INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
REMESSA DOS INTERESSADOS PARA OS MEIOS COMUNS
Sumário

A remessa dos interessados para os meios comuns quanto aos bens a relacionar no processo de inventário não determina a suspensão do processo, mas implica a exclusão, da relação, dos bens que tiverem sido objecto de reclamação.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

Em autos de autos de Inventário em que é Requerente AA, sendo Inventariados BB e CC, e em que era cabeça-de-casal DD, os interessados EE, FF, GG, HH e GG apresentaram impugnações/reclamações à relação de bens.

Mais concretamente para o que ora releva, a interessada GG pede que se declare que adquiriu, por usucapião, o 1.º andar do prédio descrito na verba n.º 5, e que seja constituída, por usucapião, a propriedade horizontal desse prédio. Alega ainda a existência de passivo correspondente a despesas que alega ter suportado com IMI relativo a prédios que integram a herança (cf. ref. 7975794, de 08/09/2021).

Em resposta, e para o que ora interessa, a cabeça-de-casal pronunciou-se no sentido de se manter a verba 5, por não se verificarem os pressupostos dos institutos legais invocados pela reclamante, alegando ainda que deve ser relegado para ação de prestação de contas os valores de IMI que essa interessada GG refere ter pago (cf. ref. 8070750, de 12/10/2021).

                                                           *

No despacho judicial datado de 4.02.2022, em que se proferiu decisão sobre um conjunto de questões, para o que ora interessa, isto é, quanto à reclamação à relação de bens deduzida pela interessada GG, foi decidido que relativamente à verba 5, havia equiparação da situação à da verba 21, nos seguintes termos:

«(…)

No que concerne às verbas 5 e 21, cada uma das reclamações assenta numa causa de pedir distinta, sendo formulados pedidos principais e subsidiários diferenciados.

A matéria subjacente às questões suscitadas, tal como emerge das cinco reclamações apresentadas implicaria, assim, a apreciação dos fundamentos para aquisição, por cada um dos reclamantes (e respetivos cônjuges e, numa delas, ainda de um terceiro), de uma parte dos prédios a que se referem as verbas 5 e 21, por usucapião e, subsidiariamente, por acessão industrial imobiliária (sendo que, quanto à verba 5, pressupõe ainda uma decisão acerca dos pressupostos da constituição da propriedade horizontal).

Considerando os requerimentos probatórios apresentados pelos interessados reclamantes e pelo cabeça-de-casal, essa apreciação dependeria da inquirição de 17 testemunhas, da prestação de declarações/depoimento de parte dos 7 interessados reclamantes, a realização de duas perícias e de diligências para obter documentos

Nestas circunstâncias, atendendo à complexidade da matéria de facto a apreciar no âmbito de um incidente processual e a redução de garantias das partes (nomeadamente pela limitação dos meios de prova admissíveis e da sua efetiva contradição), afigura-se que, nessa parte, não será possível dirimir o(s) litígio(s) – que se traduz(em) no objeto de cinco ações declarativas autónomas – definitivamente e com segurança, neste processo, sob pena de prejudicar uma justa partilha (3).

Com efeito, “em processo de inventário, as questões relativas à relação de bens que demandem outras provas, além da documental, só devem ser objeto de decisão definitiva quando for possível a formulação de um juízo, com elevado grau de certeza, sobre a existência ou inexistência desses bens (…). Na falta dessa prova, devem os interessados ser remetidos para o processo comum ou deve ser ressalvado o direito às ações competentes (4).

Por conseguinte, uma vez que uma eventual decisão quanto às questões suscitadas em relação às verbas 5 e 21 não se conforma com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário (5), remetem-se os interessados para os meios comuns (mantendo-se o relacionamento da verba 5 – na medida em que a reclamação não abrangia a totalidade do bem, que a interessada reclamante admite integrar, ainda que parcialmente, a herança, sendo aquele, pela sua natureza, juridicamente indivisível neste processo – e excluindo-se da relação de bens a verba 21, por não se verificarem as mesmas razões e apenas ter sido incluída pelo cabeça-de-casal por se referir a parcelas doadas, para que o respetivo valor fosse tido em conta na partilha – cf. resposta apresentada em 12/10/2021).»

                                                           *

Irresignada, a referenciada interessada GG interpôs recurso em 21.02.2022, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:

«1 –A titularidade dos bens relacionados tem incontornável influência na partilha da herança e pode alterar os direitos dos interessados directos na partilha.

2 –Assim, nos termos do artigo 1092.º, n.º 1, alínea b) do CPC, a remessa para os meios comuns da resolução das questões jurídicas controvertidas em causa determina a suspensão do presente inventário.

3 – No presente caso o Tribunal a quo, ao não decidir suspender a instância, omitiu a prática de acto que a lei determinava, incorrendo na prática de uma nulidade processual prevista no artigo 195.º, nº 1, do CPC, o que aqui se invoca.

4 - Pelo que, deve ser anulado o despacho proferido e ser substituído por outro que ordene a suspensão da instância, nos termos do artigo 1092.º, n.º 1, alínea b) do CPC.

5 - Ainda que assim não se entenda, no âmbito do processo de inventário o princípio que vigora é o de que devem ser decididas definitivamente no seu âmbito todas as questões de facto de que a partilha dependa.

6 – De forma que, o juiz apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, quando a matéria de facto seja complexa e que essa complexidade torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes – cfr. artigo 1093.º, n.º 1 do CPC.

7 - Os pedidos formulados pela aqui Recorrente incidem sobre a mesma verba, estão intimamente relacionados e devem ser decididos no âmbito do mesmo processo.

8 - Pelo que, ou a constituição da propriedade horizontal e a aquisição, por usucapião, do 1.º andar da verba n.º 5 é discutida nos presentes autos, ou é, em conjunto, remetida para os meios comuns (com entendeu o Tribunal a quo).

9 – A constituição da propriedade horizontal não é uma questão complexa (porquanto os interessados não se opuseram à sua constituição nos termos requeridos pela aqui Recorrente), não torna inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes, e é benéfica, por força da economia processual.

10 - A questão da aquisição, por usucapião, do 1.º andar, destinado a habitação do prédio descrito na verba n.º 5 da relação de bens, não obstante depender da prova que foi apresentada e que irá ser produzida, não se revela de especial complexidade, que justifique a sua remessa para os meios comuns.

11 - Pelo que, salvo melhor opinião, deve o despacho proferido ser substituído por outro que não remeta os interessados para os meios comuns, no que concerne à verba n.º 5 da relação de bens (quer quanto à constituição da propriedade horizontal, quer quanto à aquisição, por usucapião, do 1.º andar), e admita os meios de prova peticionados.

12 - Ainda que assim não se entenda, nos termos do artigo 1093.º, n.º 2 do CPC, pode e deve o Tribunal suspender a instância quando a questão que foi remetida para os meios comuns afecte, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.

13 – Sem que sejam decididas as questões em causa, não se sabe se a totalidade da verba n.º 5 e da verba n.º 21 pertencem ou não ao acervo hereditário e, nessa sequência, tais questões têm incontornável influência na partilha da herança.

14 – Se o inventário prosseguir nos termos decididos pelo Tribunal recorrido, irá ser partilhado um bem cuja titularidade não está determinada.

15 - Assim, caso se mantenha a decisão proferida, pode-se chegar ao limite de ser feita a partilha de um bem que não pertence à herança e, nessa sequência – após tal questão ser resolvida nos meios comuns -, ter-se-á que refazer a totalidade da partilha, anulando totalmente a partilha anterior.

16 – De modo que, as questões a decidir nos meios comuns afectam significativamente a utilidade prática da partilha e, nessa sequência, deve o presente processo de inventário ser suspenso até decisão definitiva das questões suscitadas.

17 - Ainda que assim não se considere, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que mantem o relacionamento da verba n.º 5, desvirtua, por completo, os princípios que deverão ser prosseguidos na partilha e, consequentemente, no processo de inventário, ao pretender que seja partilhado o bem cuja titularidade não está determinada.

18 – Com tal solução, a partilha não se fará de forma justa e igualitária, comporta a possibilidade de vir a ser anulada a partilha e subjuga completamente a segurança dos actos jurídicos, que deve ser assegurada, nomeadamente, pelos Tribunais.

19 – Caso a verba n.º 5 seja excluída da relação de bens, a emenda da partilha que vier a ser necessária - no caso de ser declarado, em acção autónoma, que o bem pertence, na sua totalidade, à herança -, basta-se com uma partilha adicional, sem necessidade de anular, por completo, a partilha anterior.

20 - Pelo que, a decisão proferida deve ser substituída por outra que determine a exclusão da verba n.º 5 da relação de bens.

21 - Ao proferir o despacho de saneamento nos termos em que o fez, o Tribunal a quo fez incorrecta interpretação da lei, tendo violado o disposto nos artigos 195.º, 1082.º, alínea a), 1092, n.º 1, alínea b), 1093.º, n.º 1 e 2 do CPC e no artigo 1417.º do Código Civil.

Nestes termos, deve ser dado provimento à presente apelação e, por via dela, declarar-se a nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do CPC, ou, caso assim não se entenda, ser revogado o despacho recorrido e ser a mesmo substituído por outro que:

a) não remeta os interessados para os meios comuns, no que concerne à verba n.º 5 da relação de bens, e admita os meios de prova peticionados; ou

b) determine a suspensão do presente processo de inventário até decisão definitiva das questões suscitadas; ou

c) determine a exclusão da verba n.º 5 da relação de bens.

Assim fazendo V. Exas. a costumada

JUSTIÇA! »

                                                           *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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            De referir que no requerimento de 21.02.2022 através do qual a Interessada GG deduziu o recurso, a mesma começou por arguir autonomamente a nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC, com o fundamento de que a remessa para os meios comuns da resolução da questão jurídica controvertida – como aconteceu nos presentes autos – determinava e impunha a suspensão do inventário, sucedendo que o Tribunal não decidiu suspender a instância, nem se pronunciou sobre tal questão, ordenando os termos subsequentes no processo de inventário, sendo que tal omissão, que teria violado o artigo 1092.º, n.º 1, alínea b) do CPC, configura a dita nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC.

            Esta nulidade foi apreciada e decidida pelo Exmo. Juiz de 1ª instância através de despacho proferido em 21.03.2022, o qual foi no sentido de julgar a mesma improcedente, em concretos termos aqui dados por reproduzidos.

                                                                       *

            Na sequência processual, o Exmo. Juiz de 1ª instância após fixar (provisoriamente) o valor da causa, prosseguiu com a admissão do recurso e fixação do seu efeito. 

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- nulidade processual prevista no artigo 195º, nº 1, do n.C.P.Civil, por não se ter decidido suspender a instância após a remessa para os meios comuns da resolução das questões jurídicas controvertidas em causa [o que constituiria a omissão da prática de ato que a lei determinava]?;

- incorreção da decisão, no que concerne à verba n.º 5, ao ter remetido os interessados para os meios comuns, e não ter admitido os meios de prova peticionados; a manter-se essa remessa, que seja determinada a suspensão do presente processo de inventário até decisão definitiva das questões suscitadas; ou então, a manter-se essa remessa e a não ser determinada a suspensão do processo de inventário, que seja determinada a exclusão da verba n.º 5 da relação de bens?

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são, no essencial, os que resultam do relatório que antecede.

                                                           *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – questão da nulidade processual prevista no artigo 195º, nº 1, do n.C.P.Civil, por não se ter decidido suspender a instância após a remessa para os meios comuns da resolução das questões jurídicas controvertidas em causa [o que constituiria a omissão da prática de ato que a lei determinava].

Salvo o devido respeito, esta arguição de nulidade, como flui do relatório supra, já foi apreciada e decidida pelo Exmo. Juiz de 1ª instância através de despacho proferido em 21.03.2022, o qual foi no sentido de julgar a mesma improcedente.

Efetivamente, a Interessada GG ao deduzir o recurso, começou por arguir autonomamente a nulidade processual – opção essa que foi correta e era mesmo necessária e obrigatória quanto a tal, na medida em que não sendo uma nulidade de conhecimento oficioso, devia e tinha que ser arguida pelo interessado na sua declaração perante o Juiz de 1ª instância (cf. arts. 196º e 197º do mesmo n.C.P.Civil).

Por outro lado, seria da decisão proferida pelo Juiz de 1ª instância que caberia recurso, sendo disso caso.

No caso vertente, a Interessada GG atuou corretamente quanto a tal arguição autónoma perante o Juiz de 1ª instância, mas já introduziu alguma “confusão” quanto ao uso dos meios processuais nesta parte, pois que as primeiras “conclusões” da alegação recursiva que apresentou contemplam e integram igualmente este aspeto da arguição de nulidade.

Contudo cremos que terá sido por lapso ou menor correção formal que as fez constar nessa parte, pois que não é legalmente admissível a arguição cumulativa e simultânea dessa mesma questão processual perante dois tribunais.

Como quer que seja, o que é inequívoco é que a questão já foi apreciada e decidida pelo Exmo. Juiz de 1ª instância – como era suposto e legalmente devido! – sendo certo que da decisão deste não foi interposto recurso.

A esta luz, para além de não ser formalmente devido tal conhecer, consideramo-nos dispensados de o fazer nesta instância de recurso e momento processual.

                                                           *

  4.2 – Cumpre então entrar sem mais na apreciação e decisão sobre a outra questão supra enunciada, a saber, a da incorreção da decisão, no que concerne à verba n.º 5, ao ter remetido os interessados para os meios comuns, e não ter admitido os meios de prova peticionados; a manter-se essa remessa, que seja determinada a suspensão do presente processo de inventário até decisão definitiva das questões suscitadas; ou então, a manter-se essa remessa e a não ser determinada a suspensão do processo de inventário, que seja determinada a exclusão da verba n.º 5 da relação de bens.

Será assim?

Vejamos uma a uma as várias sub-questões.

O Exmo. Juiz a quo fundamentou a sua decisão de remeter os interessados para os meios comuns no que concerne à verba nº5, na circunstância de se tratar de questão que envolvia perscrutar e dilucidar os fundamentos para aquisição, pela interessada em causa, duma parte do prédio que constitui essa verba nº5 por usucapião e, que pressupõe, ainda, uma decisão acerca dos pressupostos da constituição da propriedade horizontal, sucedendo que estava em causa ab limine para a sua apreciação e decisão, não só o confronto dos documentos já constantes dos autos, como ainda, proceder à inquirição de 2 testemunhas, ordenar a realização de uma perícia em ordem a aferir dos pressupostos da constituição de propriedade horizontal e ainda oficiar à Câmara Municipal competente no sentido de obter prova documental para o mesmo fim [cf. reqº da própria de 8.09.2021].

Também é essa a nossa posição.

Atente-se que «as questões relacionadas com a aquisição por usucapião por outrem do direito de propriedade sobre imóveis relacionados envolvem a alegação de factos complexos, com a correspondente produção de prova, não compaginável com a prova incidental a produzir no âmbito do processo de inventário[2]

Acresce que a realização de uma perícia para aferição dos pressupostos da constituição de propriedade horizontal, sendo em si uma diligência com especificidade técnica, naturalmente envolve uma complexidade de apreciação, donde se traduzir numa diligência normalmente morosa, até pelo exercício do contraditório que terá de ser salvaguardado nas suas várias fases.

Para além de que a necessária consulta e obtenção de documentos camarários é uma diligência de resultado sempre imprevisível, muitas vezes potenciada pela dificuldade da sua localização, senão mesmo acesso aos mesmos.

Acontece que não se pode olvidar que são dois os elementos que autorizam a que o juiz remeta os interessados para os meios comuns:

- Que a matéria de facto seja complexa;

- E que essa complexidade torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes.

Neste conspecto, parece-nos que a opção, de remessa destas matérias para os meios comuns, é materialmente justificada e incontornável, sendo seguramente uma decisão prudente e avisada, quando o que está em causa supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efetiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência de julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as ações declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental.

Do que consequentemente decorre que nada há a censurar à decisão de não se ter admitido os meios de prova peticionados.

Assente isto, será que devia ter sido determinada a suspensão do presente processo de inventário até decisão definitiva das questões suscitadas [como igualmente sustenta a interessada recorrente]?

Parece-nos bem que não.

Com efeito, o atual[3] Código de Processo Civil – neste particular resultante da incorporação no mesmo do “Processo de Inventário” [arts. 1082º a 1135º], tal como operada pela Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro – dispõe quanto à suspensão da instância do processo de inventário no seu artigo 1092º.

Neste normativo prevê-se especificadamente «(….) da interferência no desenvolvimento da instância com fundamento na discussão externa em outras acções de questões prejudiciais respeitantes à admissibilidade do inventário ou à definição de direitos dos interessados directos na partilha .»[4]

Ora, não estando liminarmente em causa na circunstância ajuizada a “discussão em outras ações de questões prejudiciais à admissibilidade do inventário”, será que era caso de se estar a discutir a “definição de direitos dos interessados diretos na partilha”?

Cremos bem que não.

Atente-se que nuclearmente se trata de evitar os possíveis efeitos dilatórios (cf. nº3 do citado art. 1092º do n.C.P.Civil).

Sucede que não dispondo de modo inovatório, nessa parte, o artigo 1092º do n.C.P.Civil [neste particular, fruto da redação operada pela Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro], ao que dispunha o artigo 1335º do anterior C.P.Civil, afigura-se com acolhimento atual a doutrina e jurisprudência maioritárias perfilhadas na sua vigência, a saber, considerando que, apenas as “questões essenciais” determinam a suspensão da instância, por referência àquelas que impliquem “com a admissibilidade do inventário e com a definição dos direitos dos interessados”, excluindo deste círculo, precisamente, situações que se limitam à composição/definição do acervo de bens que fazem parte da herança a partilhar.[5]

Ora se assim é, entende-se que na situação em debate relativamente à verba nº5 poderá apenas resultar eventual alteração na composição do acervo dos bens a partilhar, rectius, não está em causa uma questão que contenda com a “admissibilidade do inventário” ou com a “definição dos direitos dos interessados” e que, portanto, se inclua na indicada alínea b) [ou na al. a) do nº1], ou do nº3 do artigo 1092º do n.C.P.Civil.

Na verdade, o que está em evidência no caso sub judice diz respeito à definição dos bens que caberão (ou não) aos inventariados naquela partilha, e/ou aos termos em que tal sucederá, o que não se prende com a “admissibilidade do inventário” ou com a “definição dos direitos dos interessados” – quer no que respeita à titularidade dos seus direitos, quer no que respeita à definição da sua quota.

Dito de outra forma: a concreta definição do bem imóvel que constitui a verba nº5 não constitui qualquer questão prejudicial de cuja resolução esteja dependente a admissibilidade do inventário ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha.[6]

Isto é, o litígio pendente (rectius, a instaurar) quanto à verba nº5, não revelava aptidão para destruir ou alterar os fundamentos da partilha dos bens que, entretanto, viesse a ser efetuada nos presentes autos de inventário.

Ademais, nos termos expressos do art. 1093º, nº2 do n.C.P.Civil, «A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha». 

O que face a tudo o precedentemente dito – e mormente quando como no caso vertente existe um vasto acervo de bens a partilhar – entendemos que não sucede!

Tanto mais que de forma muito mais expedita e com menor prejuízo para a celeridade processual é possível acautelar a inconveniência de poder vir a resultar a necessidade duma alteração à partilha anteriormente efetuada relativamente a este bem imóvel que é a verba nº5 (cuja existência ainda não é definitiva, nem se encontra rigorosamente definida).

E com isto já entramos na apreciação e decisão sobre o último aspeto da questão sob recurso.

Com efeito, pugna subsidiariamente a interessada/recorrente GG no sentido de que a manter-se a remessa dos interessados para os meios comuns quanto à verba nº5, e a não ser determinada a suspensão do processo de inventário, que seja determinada a exclusão da verba n.º 5 da relação de bens.

Neste particular parece-nos que a solução normativa atualmente vigente é diversa da do antecedente, no que o Exmo. Juiz  a quo não atentou devidamente.

Senão vejamos.

O artigo 1350º, nº1 do C.P.Civil anterior (redação do DL 227/94 de 08/09) estabelecia que, nos casos em que a complexidade da causa torne inconveniente a decisão incidental das reclamações, «o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns».

Sucedia que, remetidos os interessados para os meios comuns, permaneciam relacionados os bens cuja exclusão foi requerida pelo reclamante (cf. nº2 do artigo por último citado), o que vale por dizer que o inventário se prosseguisse também conduziria à partilha dos aludidos bens.

Certamente por considerar os constrangimentos que tal solução legal implicava, o legislador desse tempo permitia ao juiz (nº3) «com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes (…).».

Importa reconhecer que a solução não era perfeita, donde legitimamente ter tido lugar a sua correção.

Efetivamente, no n.C.P.Civil [neste particular, fruto da redação operada pela Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro], o art. 1105º, nº 5 estatui pela seguinte forma:

«Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens.» [sublinhado nosso]

Isto é, s.m.j., a contrario sensu, estatui-se que quanto aos bens objeto da reclamação, a regra ou critério é o de que, com a remessa para os meios comuns dos interessados, tem lugar a exclusão desses bens da relação de bens.

De facto, se a regra é o processo não prosseguir quanto a esses bens, tal significa e corresponde a os mesmos serem excluídos da relação de bens.

Procede, assim, apenas nestes termos mais restritos a alegação recursiva e o recurso.

                                                           *

(…)                                                                *

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se, a final, na parcial procedência da apelação da Interessada/reclamante/recorrente GG, revogar o despacho judicial proferido em 4.02.2022, no segmento respeitante à reclamação deduzida por aquela quanto à relação de bens, no particular da verba nº5 da mesma, no sentido de que, embora mantendo-se a remessa dos interessados para os meios comuns relativamente a essa verba (e sem suspensão do processo de inventário até decisão definitiva das questões suscitadas), contudo tem lugar a exclusão dessa verba n.º 5 da relação de bens.

Custas do incidente, nesta instância de recurso, em partes iguais pela Interessada/reclamante/recorrente GG e pelo cabeça-de-casal.

Coimbra, 14 de Junho de 2022

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira




[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Neste sentido vide o acórdão do TRL de 28.04.2016, proferido no proc. nº 359-09.4TBSRQ.L1-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[3] Dispunha a propósito o art. 1335º, nº1 do C.P.Civil anterior (redação do DL 227/94 de 08/09), que se «na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados»; Determinando o nº 2 do mesmo artigo poder «ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número anterior».
[4] Assim A. ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE SOUSA in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Livª Almedina, Coimbra, 2021, a págs. 542.
[5] Cfr., inter alia, na aplicação do artigo 1335º do C.P.Civil anterior, o acórdão do TRG de 01-10-2015 (proferido no proc. nº 90/09.0TBVCT.G1) e os acórdãos do TRP de 16.09.2010 (proferido no proc. nº 675/08.2 TJVNF.P1), e de 06-05-2013 (proferido no proc. nº8/1978.P1), todos eles acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido vide o acórdão do TRG de 04.04.2019, proferido no proc. nº 2661/12.9TBBCL.G1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrg.