SEGURO DE VIDA DE GRUPO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
LIMITAÇÃO OU EXCLUSÃO DO ÂMBITO DE COBERTURA
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
NULIDADE DA CLÁUSULA
Sumário

Num seguro de vida de grupo celebrado com uma ordem profissional, a exigência cumulativa da verificação de uma determinada incapacidade funcional (no grau de 60%), para o acionamento da garantia respeitante à “invalidez profissional”, quando esta se encontra definida nas condições especiais como a “total e definitiva impossibilidade de exercer a profissão declarada ao segurador e efetivamente desempenhada à data do acidente ou do inicio da doença”, deixaria de fora do âmbito da respetiva proteção situações de invalidez que impedem de facto a pessoa segura de trabalhar, ficando aquém do âmbito de cobertura com que o tomador podia contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato, sendo, como tal, nula a respetiva cláusula, por atentatória do princípio da boa-fé.

Texto Integral


Processo nº 1117/20.0T8VIS.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Melo

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA, intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A... SA.,

pedindo o pagamento, pela ré, da quantia de € 99.759,94 e juros, dos quais logo liquidou € 2.327,73, correspondente ao dobro do capital seguro na companhia ré, indemnização que lhe é devida por se ter visto acometida de síndrome do canal cárpico, integrante de doença profissional, e que a impede, definitivamente, do exercício da sua atividade de médica dentista, da qual deu baixa, encontrando-se reformada, tendo aderido a seguro de grupo celebrado pela Ordem dos Médicos Dentistas, que previa o pagamento, nessas circunstâncias, de tal quantitativo.

A Ré apresenta Contestação, pugnando pela improcedência da ação, por falta de verificação das condições contratuais, alegando, em síntese:

com a receção, pela ré, a 12.06.2018, do Relatório do Dr. BB que determina que “dada a profissão que desempenha, apresenta incapacidade para a atividade laboral habitual”, foi suspensa a cobertura de Incapacidade Total Temporária e proposto à autora que ativasse a cobertura de Invalidez Profissional, apresentando o documento de aposentação emitido por uma entidade oficial, bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiusos com desvalorização igual ou superior a 60%;

trocada correspondência com o mandatário da autora, por ele era defendido que o pedido de apresentação de AMIM com desvalorização igual ou superior a 60% era descabido, face à situação em clinica em que a A. se encontrava;

ora, de acordo com o previsto no art. 2º das Condições Especiais da Apólice, para a garantia complementar “Invalidez profissional”, a seguradora só se obriga a liquidar o capital seguro, caso a pessoa segura seja atingida por uma invalidez profissional e cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior a 60%;

por outro lado, a autora fez 65 anos em 2018, pelo que deveria ter apresentado um Atestado Médico de Incapacidade Multiuso com desvalorização igual ou superior a 60%, que se reportasse a data anterior a 31.12.208, o que não fez.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida Sentença em que é proferida a seguinte decisão:

“Julgo a presente ação procedente, pelo que condeno a ré, A... SA, no pagamento, à autora, AA, da quantia de € 99.759,94 e juros, até integral pagamento, e dos quais estavam vencidos, à data da instauração da ação, € 2.327,73.


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Inconformada com tal decisão, a Ré CC interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:  

I. A decisão de folhas é injusta e violadora da lei substancial e, por conseguinte, de princípios elementares de justiça.

II. Por muito que o Tribunal a quo quisesse considerar que o que acha “mais justo” é condenar a Recorrente nunca pode olvidar que os princípios jurídicos que informam o processo dos autos (nomeadamente o princípio do pacta sunt servanda) devem ser escrupulosamente respeitados.

III. Resultou como provado que o contrato de seguro em questão tinha, entre outras, as seguintes garantias:

4 – garantia complementar – invalidez total e definitiva (condição especial 6) Em caso de invalidez total e definitiva da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 100% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º); e

6 – garantia complementar – invalidez profissional (condição especial 10) Em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º). A incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no número 1 do artigo 2º é fixada em 60%. Fixa convencionado que a amputação ou perda completa do uso de qualquer dedo da mão dominante em consequência de acidente é condição suficiente para que seja reconhecido ao médico dentista o estado de invalidez permanente profissional.

IV. Ora, quem tinha o ónus da prova acerca da verificação das condições contratuais para possibilidade de acionamento das garantias de cobertura da apólice era a Recorrida (art.º 342.º do Código Civil).

V. O Tribunal a quo estriba a decisão respeitante à matéria de facto provada, entre outros elementos de prova, no relatório pericial dos autos.

VI. A Recorrida padece de um grau de incapacidade de 28% e não está impossibilitada de exercer outras atividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à sua profissão de médica dentista diz respeito.

VII. A Recorrida não preenche os requisitos necessários para que as garantias de cobertura da apólice possam ser acionadas.

VIII. Não tendo a Recorrida 60% de incapacidade e não estando impedida para o desenvolvimento da sua atividade profissional, as garantias de cobertura da apólice, contrariamente àquilo que é defendido na douta Sentença agora colocada em crise, não poderiam ser acionadas.

IX. Este foi o motivo pelo qual o Tribunal a quo, sem que a Recorrida alguma vez o tenha alegado (art.ºs 3.º e 5.º do CPC), decidiu declarar nula uma cláusula constante das CONDIÇÕES PARTICULARES da apólice.

X. Efetivamente, conforme se pode aferir pelo teor da apólice (junta a fls… com a contestação da Recorrente) as cláusulas/estipulações vindas de referir encontram-se nas CONDIÇÕES PARTICULARES ada apólice.

XI. Não se tratam de CONDIÇÕES GERAIS.

XII. Não é, pois, possível excluir as referidas condições tendo por base o diploma que regula as CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS DL n.º 446/85, de 25.10).

XIII. Acresce referir que a douta decisão agora colocada em crise se limita a alegar que em face dos princípios da boa fé a cláusula/estipulação vinda de referir é nula, não remetendo para qualquer preceito jurídico concreto.

XIV. De todo o modo sempre será de referir que o escopo da cláusula em questão é assegurar a um qualquer segurado a possibilidade de ser indemnizado em determinadas circunstâncias, nomeadamente não poder mais desenvolver a sua atividade profissional (o que não sucede) e ter uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver outra qualquer atividade.

XV. A mesma não é, assim, abusiva ou ofensiva de quaisquer princípios de boa-fé.

XVI. A decisão recorrida violou, assim, as normas constantes dos art.ºs 405.º, 406.º, 422.º e 342.º do Código Civil, art.ºs 3.º e 5.º do CPC e o art.º 427.º do Código Comercial (em vigor à data da celebração do contrato de seguro).

XVII. Estamos perante um contrato de seguro de grupo.

XVIII. A obrigação de comunicação das cláusulas é da responsabilidade do tomador/beneficiário do contrato de seguro (a instituição de crédito), conforme veio esclarecer, de forma definitiva, o disposto no art.º 79.º da Lei do Contrato de Seguro (Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), por remissão do art.º 78.º do mesmo dispositivo legal.

XIX. O Dec.-Lei n.º 176/95, de 26.07 foi, desta forma, definitivamente interpretado no sentido que agora se encontra definitivamente plasmado na Lei do Contrato de Seguro.

XX. A obrigação de comunicação das cláusulas é do tomador do seguro e a eventual responsabilidade pela sua não comunicação, só poderia, sem prescindir, ser assacada ao tomador e nunca à seguradora, ora Recorrente.

XXI. Trata-se de uma disposição legal (constante da Lei do Contrato de Seguro) que resolve, de forma definitiva, a querela jurisprudencial acerca desta problemática, servindo mesmo de norma interpretativa para o que se passava antes da entrada em vigor do aludido diploma legal.

XXII. Estando-se perante um seguro de grupo, nenhuma consequência poderia advir para a mesma de qualquer problema de comunicação/validade de cláusulas contratuais uma vez que a Lei do Contrato de Seguro interpretou de forma definitiva a questão da obrigação (e responsabilidade) pela comunicação das cláusulas contratuais quando está em causa um seguro de grupo: essa obrigação cabe, em exclusivo, ao tomador do seguro e quaisquer consequências decorrentes dessa não comunicação fazem o tomador do seguro incorrer em responsabilidade civil nos termos gerais da lei.

XXIII. Com a entrada em vigor da Lei do Contrato de Seguro o objetivo do legislador não foi ampliar o leque de “figuras” que podem ser objeto de responsabilização contratual.

XXIV. A segurança jurídica dos segurados (caso existisse algum perigo neste sentido) está perfeitamente assegurada pois tem que demandar, como decorre da Lei do Contrato de Seguro, que tem natureza interpretativa em relação à querela jurisprudencial que se verificava a este propósito, o tomador do seguro.

XXV. Só não seria assim se o legislador quisesse acautelar a insolvência ou do tomador ou da seguradora o que, manifestamente, não parece ser a pretensão…

XXVI. A douta sentença violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art.º 4.º, n.º 1 do Dec. Lei. n.º 176/95, de 26.07 bem, como o disposto no art.º 227.º do Código Civil.

XXVII. A decisão agora recorrida tem, pois, que ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido.

*
A autora apresentou contra-alegações, cujos fundamentos sintetiza, nas seguintes conclusões:
(…).
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Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Não verificação das garantias de cobertura da apólice – não se encontrar impedida para o desenvolvimento da sua atividade profissional, tendo uma incapacidade funcional geral de 28%.
2. Nulidade da cláusula que exige a verificação cumulativa de uma incapacidade funcional de 60%, por violadora dos princípios da boa-fé.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de Facto

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

1. A ré é uma sociedade anónima que explora a atividade seguradora, tendo estabelecido um seguro de vida grupo com a Ordem dos Médicos Dentistas, o qual se rege pelas Condições Particulares Gerais e Especiais que, juntas ao presente, aqui se dão por integralmente reproduzidas.

2. A autora, médica dentista inscrita na Ordem dos Médicos Dentista com o nº ...00, subscreveu tal seguro de vida grupo desde 01/06/1993.

3. A autora exercia, em profissão liberal, a atividade de médica dentista desde 1984, na cidade ..., profissão que deixou de exercer, dando baixa de atividade em 30/07/2018.

4. A autora é dextra e o uso prolongado da mão direita no exercício da profissão, que implica movimentos repetitivos de flexão e de extensão do punho na execução de endodontia destartarizações e intervenções cirúrgicas/orais, foi-lhe causando lesões nessa mão, que se foram agravando ao longo dos anos, com diminuição de mobilidade e força de preensão e diminuição de sensibilidade por compressão bilateral do nervo mediano a nível cárpico (síndrome do túnel cárpico).

5. Por tais motivos foi operada, em 2013, ao túnel cárpico do lado direito.

6. Apesar dessa intervenção cirúrgica, com a continuação da atividade, a autora continuou a sofrer dores e apresentar parestesias na mão direita, o que a levou a submeter-se a uma consulta médica de ortopedia do Dr. DD, no Hospital ..., no dia  20/02/2017.

7. Pelo mesmo clínico foi considerado que a “doente de 64 anos (médica dentista) apresenta dores e parestesias da mão direita (10 meses de evolução) situação agravada com atividade laboral (a considerar doença profissional) Compressão do mediano bilateral no canal cárpico sensitivo-motor de gravidade avançada bilateralmente (mais à direita)

8. A situação clínica da autora foi-se agravando e no final do ano de 2017 já a autora não se sentia em condições de exercer a sua profissão pela incapacidade de movimentar a mão direita em alguns dos movimentos e atuações que a profissão de médica dentista lhe exigia.

9. Foi submetida a nova consulta médica no dia 19/12/2017, tendo-lhe sido dada baixa médica, com indicação de “doença profissional” pelo período de 12 dias.

10. Baixa médica essa que lhe veio a ser sucessivamente renovada até ao dia 28/07/2018.

11. A autora enviou à ré cópia das sucessivas baixas médicas, solicitando o pagamento da indemnização diária devida.

12. Indemnização essa que lhe foi sendo liquidada até que, por missiva de 26/02/2018, a ré entendeu submeter a autora a uma consulta médica no seu gabinete técnico, no ..., em 12/03/2018.

13. O clínico da ré entendeu que “a situação clínica não se encontra devidamente consolidada, pelo que será de aguardar mais sessenta dias e avaliar de novo a situação“.

14. Por missiva de 26/06/2018, a ré comunicou à autora que “é entendimento do nosso Gabinete Médico que, à data da consulta, não se encontra com uma incapacidade temporária, mas que a Incapacidade é de caracter definitivo”.

15. E, nesse entendimento, apenas iriam proceder ao pagamento das indemnizações diárias até à data da decisão técnica.

16. Lembrando que assistia à autora o direito de acionar a garantia de invalidez profissional, para o que se tornava necessário a apresentação do “documento da aposentação emitido por uma Entidade Oficial bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%”.

17. A autora continuou a beneficiar de baixa por incapacidade temporária.

19. Uma vez já cessada a atividade, a autora formulou à ré o pedido de lhe ser reconhecido o direito à indemnização por invalidez profissional.

20. E, para tanto, remeteu à seguradora aqui ré a Participação obrigatória/Parecer Clínico emitida por Entidade Oficial, e o Relatório de Incapacidade emitido pelo Médico Especialista em Ortopedia e Traumatologia, Dr. EE.

22. O parecer clínico refere “Défice de mobilidade e força de preensão do 1º dedo da mão, bilateral, por rizartrose avançada (confirmada por RX – 08/03/18). Concomitantemente, diminuição a sensibilidade por compressão bilateral do nervo mediano a nível cárpico, em estádio sensitivo-motor avançado, bilateralmente (pior à direita). Estas alterações condicionam atividade profissional de forma permanente, com incapacidade”.

23. O Dr. EE conclui: “A neuropatia periférica apresentada enquadra-se na categoria de doença profissional pela ergonomia da profissão (médica dentista) que implica movimentos de extensão prolongada de punho com consequente compressão de nervo mediano. Segundo o disposto, apresenta perda da função da mão para a atividade cirúrgica nomeadamente nos movimentos finos de preensão, quadro totalmente incapacitante para o exercício da profissão de médica dentista, pelo que deve ser reconhecido o estado de Invalidez Permanente Profissional”.

27. A 19/06/2019, a ré insiste em que lhe seja enviado “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%” e “Relatório Médico, onde conste a causa, a natureza e as lesões que padece a pessoa segura”. – nomeadamente, nos movimentos finos e de preensão, quadro totalmente incapacitante para o exercício da profissão de médica dentista”.

34. O síndrome do canal cárpico constitui fator de risco na prática da medicina dentária.

37. A autora nasceu no dia .../.../1953, completando 65 anos em 2018, e o pedido de indemnização, acompanhado dos documentos contratualmente exigíveis, foi enviado por correio eletrónico a 26 de Novembro de 2018.

39.A autora liquidou todos os prémios de seguro que se venceram na vigência do contrato.

--- contestação ---

2. Este contrato foi aceite tendo por base as informações e declarações prestadas pela proponente na Proposta de Adesão e no questionário médico subscritos em 22.05.1993.

3. O contrato foi aceite sem quaisquer agravamentos e/ou exclusões.

6. O contrato de seguro em questão tinha, entre outras, as seguintes garantias:

4 – garantia complementar – invalidez total e definitiva (condição especial 6) Em caso de invalidez total e definitiva da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 100% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º)”.

e

6 – garantia complementar – invalidez profissional (condição especial 10) Em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º). A incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no número 1 do artigo 2º é fixada em 60%. Fixa convencionado que a amputação ou perda completa do uso de qualquer dedo da mão dominante em consequência de acidente é condição suficiente para que seja reconhecido ao médico dentista o estado de invalidez permanente profissional”.

9. A participação de sinistro por incapacidade total temporária para o trabalho da autora foi recebida nos serviços administrativos da ré a 21.12.2017.

12. De acordo com o art.º 2.º das condições especiais da apólice, “o segurador obriga-se a liquidar o capital seguro fixado nas condições particulares da adesão, em vigor à data do evento, para esta garantia, caso a pessoa segura seja atingida por uma invalidez profissional e, cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior ao estabelecido, mediante convenção expressa nas condições particulares”.

13. De acordo com as condições particulares da apólice, “em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes de 31 de Dezembro do ano em que a pessoa segura atinja os 65 anos de idade, o segurador garante o pagamento de 200% do capital seguro da garantia principal de morte (…) o grau de incapacidade funcional para o reconhecimento do estado de invalidez previsto (…) é fixado em 60%”.

17. A autora não apresentou à ré o atestado médico de incapacidade multiusos reportado a data anterior a 31.12.2018.


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B. Subsunção dos factos ao direito

1. Verificação das garantias de cobertura da apólice – não se encontrar impedida para o desenvolvimento da sua atividade profissional, não apresentando uma incapacidade funcional geral de 60%.

Fazendo a autora assentar o seu pedido de condenação da Ré no pagamento do capital seguro, na síndrome do túnel cárpico de que ficou a padecer e que lhe acarreta incapacidade total para a profissão de médico dentista, a Ré Seguradora contestou, opondo-se a tal pedido, com fundamento em que não se verificam as condições contratuais para o efeito: i) o artigo 2º das Clausulas Contratuais Especiais exige que a pessoa segura seja atingida por doença profissional e que, cumulativamente, apresente uma incapacidade funcional igual a superior ao estabelecido nas Condições Particulares, sendo que, tal incapacidade funcional foi fixada nas Clausulas Particulares em  60%; ii) por outro lado, tendo a autora completado os 65 anos em 2018, deveria ter apresentado um Atestado Médico Multiusos que se reportasse a data anterior a 31.12.2018.

A sentença recorrida, “assumindo que tudo o mais não se encontra controvertido”, coloca como questões a resolver, “se o contrato de seguro, em apreço, formalizada que esteja a incapacidade total, exige, complementarmente, uma incapacidade genérica de 60%”.

A tais questões, responde o tribunal afirmativamente:

- atentos os factos provados, a autora está “completa e definitivamente incapaz de exercer a sua atividade profissional habitual”, ou seja, “ficou impossibilitada de, irreversivelmente, prover ao seu sustento”;

- “a Ré exige-lhe com base no texto, simultaneamente, das condições gerais e das condições especiais, que a autora, para além da incapacidade total e permanente para a sua profissão – matéria que, repito, a seguradora aceita ocorrer – que esteja, igualmente, afetada por uma incapacidade geral igual ou superior a 60%.

Seguidamente, questionando a validade de tal restrição, conclui ser a mesma ofensiva dos princípios da boa-fé, e como tal nula: “quando é indiscutível, está documentalmente comprovado, e a própria seguradora admite, que a aqui autora está total e definitivamente incapacitada para a sua profissão habitual, é uma cláusula nula, por ofensa aos princípios da boa-fé, exigir-lhe, para que lhe seja paga a contraprestação correspondente ao estatuto de “invalidez profissional“, a apresentação de um atestado multiuso que lhe atribua uma incapacidade permanente de 60%.

Insurge-se a Ré/Seguradora/Apelante contra o decidido com base na seguinte argumentação, que analisaremos separadamente:

1. Não tendo a autora 60% de incapacidade funcional e não estando impedida para o desenvolvimento da sua atividade profissional, as garantias de cobertura da apólice não poderiam ser acionadas: a recorrida padece de um grau de incapacidade de 28% e não está impossibilitada de exercer outras atividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à sua profissão de médica dentista diz respeito.

2. O tribunal não podia declarar nula uma clausula constante das Condições Particulares, não sendo possível excluir tais condições com base no diploma que regula as clausulas contratuais gerais.

3. A decisão recorrida limita-se a alegar que em face dos princípios da boa-fé a cláusula/estipulação é nula, não remetendo para qualquer preceito jurídico concreto.

4. Tal cláusula não é abusiva nem ofensiva de quaisquer princípios da boa-fé: o escopo de tal clausula é assegurar a qualquer segurado a possibilidade de ser indemnizado em determinadas circunstancias, nomeadamente não poder mais desenvolver a sua atividade profissional e ter uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver qualquer outra atividade.


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1.1. Não tendo a autora 60% de incapacidade funcional e não estando impedida para o desenvolvimento da sua atividade profissional, as garantias de cobertura da apólice não poderiam ser acionadas: a recorrida padece de um grau de incapacidade de 28% e não está impossibilitada de exercer outras atividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à sua profissão de médica dentista diz respeito.

Encontra-se aqui em causa o preenchimento da “Garantia complementar – Invalidez Profissional”, a que se reporta a Clausula Especial 10, das Condições Especiais da Apólice, com o seguinte teor:

“Artigo 2º - Garantia

Ao abrigo da presente garantia complementar (…) a seguradora obriga-se a liquidar o capital seguro fixado nas Condições Particulares da adesão, em vigor à data do evento, para esta garantia, caso a pessoa seja atingida por uma invalidez profissional e, cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior ao estabelecido, mediante convenção expressa nas Condições Particulares, em consequência de (…).

E ainda o seguinte excerto das “Condições Particulares”:

Garantia complementar – Invalidez profissional

Em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º das Condições Especiais).

O grau de incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no número 1 do artigo 2º é fixada em 60%.

Fixa convencionado que a amputação ou perda completa do uso de qualquer dedo da mão dominante em consequência de acidente é condição suficiente para que seja reconhecido ao médico dentista o estado de invalidez permanente profissional”.

Sustenta a Apelante não se verificarem os requisitos necessários para o preenchimento de tal garantia, porquanto, a recorrida padece de um grau de incapacidade de 28% e não está impossibilitada de exercer outras atividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à sua profissão de médico dentista diz respeito.

Envolvendo a garantia em causa que a situação da pessoa segura integre cumulativamente dois tipos de invalidez, “invalidez profissional” e “uma incapacidade funcional de grau igual ou superior a 60%” (pelo menos assim foi entendido pelo tribunal recorrido, sendo que, tal segmento da decisão não foi objeto de impugnação), a sentença recorrida deu por verificado o primeiro desses dois requisitos, ou seja, a situação de invalidez profissional, com base em duas ordens de razões:

i) por um lado, tal situação de invalidez resultaria dos factos dados como provados, e,

ii) por outro lado, porque a própria seguradora admite a Incapacidade Total e Permanente da autora para o exercício da sua profissão.

Nas suas alegações de recurso, a Apelante, ignorando os motivos em que a decisão recorrida baseou a sua decisão de considerar verificada a tal situação de “invalidez profissional”, sustenta que tal pressuposto não se acha verificado, alegando que, estribando o tribunal a decisão respeitante à matéria de facto provada, entre outros elementos de prova, no relatório pericial dos autos, deste resulta que a autora “não está impedida para o desenvolvimento da sua atividade profissional”, por não se encontrar “impossibilitada de exercer outras atividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à atividade de dentista diz respeito”.

Antes de mais, cumpre esclarecer que da seleção de factos dados como “provados” (sendo que nenhuns foram dados como não provados) não consta expressamente que a autora sofra de incapacidade permanente total para o exercício da sua profissão de dentista, retirando-se, das considerações expostas na sentença recorrida, que o reconhecimento de tal incapacidade, resultará dos seguintes factos, estes sim, dados como provados:

- reconhecendo a situação de baixa médica da autora, relacionada com a síndrome do túnel cárpico de que padecia, a Ré/Seguradora foi procedendo ao pagamento das indemnizações diárias respeitantes à garantia complementar “Incapacidade Total Temporária para o trabalho”, até que, por missiva de 26.06.2018, comunicou à autora que “é entendimento do nosso Gabinete Médico que, à data da consulta, não se encontra com uma incapacidade temporária, mas que a incapacidade é de carater definitivo

lembrando que assistia à autora o direito de acionar a garantia de invalidez profissional para o que se tornava necessário a apresentação do “documento da aposentação emitido por uma Entidade Oficial bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%” (cfr., cfr., pontos 11 a 16 dos factos dados como provados).

De tal circunstancialismo fáctico, retira-se que, é a própria ré, que, reconhecendo que a situação clínica da autora se havia consolidado, considera que a autora não se encontra mais numa situação de Incapacidade Total Temporária, mas que tal incapacidade total, se tornou permanente, instando-a a acionar a garantia da Invalidez profissional, apenas lhe pedindo um documento de Aposentação emitido por uma entidade oficial e o tal Atestado Médico de incapacidade Multiuso, igual ou superior a 60%.

De tal missiva resulta a assunção por parte da ré, de que a autora se passou a encontrar numa situação de Incapacidade Total Permanente para o exercício da sua profissional (razão pela qual não poderia continuar a fazer-lhe os pagamentos mensais como até aí vinha fazendo).

É certo que o reconhecimento de tal situação de incapacidade de facto, não envolveria o reconhecimento automático por parte da Ré de que a autora teria, sem mais, o direito à indemnização por invalidez profissional: para acionar a garantia a tal respeito constante do contrato de seguro vida, a autora teria de cumprir os seguintes requisitos, como a Ré fez questão de salientar em tal missiva: tornava-se necessária a apresentação de documento da aposentação emitido por uma Entidade Oficial, bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%”.

E, como a Ré salienta no art. 11º da contestação que deduz à presente ação, o dissenso entre a autora (através do seu mandatário) e a Ré residiu no facto de aquela entender, dada a sua situação clinica, ser descabida a apresentação deste Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%”, alegando a Ré não se encontrarem reunidas as condições para a garantia da apólice fosse acionada porque a autora deveria ter apresentado um Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%”, que se reportasse a data anterior a 31.12.2018, e não o fez.

Da leitura dos autos, constata-se que a autora propõe a presente ação partindo dessa assunção da sua situação de incapacidade profissional total e permanente por parte da Ré – os factos por si alegados descrevem a situação clínica que que levou a autora a sucessivos períodos de baixa médica, reconhecidos e objeto de indemnização por parte da ré, até que o seu Departamento Clinico a considerou “incapaz de retomar a laboração, por se tratar de uma invalidez profissional”. E a Ré, na contestação que deduz à presente ação, também não coloca em causa a alegada situação de incapacidade total permanente em que a autora se encontrava à data da participação efetuada pela autora a tal respeito.

Antes pelo contrário, é aí assumido pela Ré que tal situação foi por si reconhecida na sequência e em conformidade com o parecer emitido pelos seus Serviços Clínicos:

“Da análise efectuada pela Direção Clínica da Ré aos documentos recepcionados a mesma conseguiu apurar o seguinte:

 A Pessoa Segura apresentava, desde 19.12.2017, “sintomatologia relacionada com compressão do nervo a nível do túnel cárpico do pulso direito por movimento de repetição de mão, relacionado com a actividade profissional”, conforme consta da participação de sinistro apresentada à Ré;

 Da mesma participação consta, também, que a síndrome e a sintomatologia descrita agravam com o exercício da sua profissão pelo que é accionada a cobertura de ITT (Invalidez Temporária para o Trabalho);

 A 30.01.2018 é recepcionado um relatório de Ortopedia, elaborado pelo Sr. Dr. EE, datado de 18.12.2018, que atesta que “a neuropatia periférica apresentada enquadra-se na categoria de doença profissional pela ergonomia da profissão (médica dentista) que implica movimentos de extensão prolongada do punho com consequente compressão do nervo mediano (…) apresenta perda de função da mão para a atividade cirúrgica nomeadamente nos movimentos finos e de preensão, quadro totalmente incapacitante para o exercício da profissão de médica dentista, pelo que deve ser reconhecido o estado de invalidez permanente profissional”;

 Com base neste relatório, foi efectuada consulta de contra visita, a 12.03.2018, da qual resultou o relatório médico do Sr. Dr. FF, que atesta que “GG não está capaz de exercer a sua atividade profissional de médica dentista, nomeadamente em determinadas áreas como a destartarização, desvitalização (endodontias) e extração dentária (exodontias). Com base neste relatório a nossa Direção Clínica determina que se mantenha a cobertura de ITT por mais 2 meses e decorrido esse tempo, se volte a reavaliar;

 A 12.06.2018 é recepcionado novo relatório, do Sr. Dr. BB, datado de 04.06.2018, que determina que “dada a profissão que desempenha, apresenta incapacidade para a atividade laboral habitual”;

 Com este relatório é suspensa a cobertura de ITT e proposto à Autora que, se assim o entender, active a cobertura de Invalidez Profissional, apresentando o documento de aposentação emitido por uma Entidade Oficial bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso (AMIM) com desvalorização igual ou superior a 60%, conforme carta remetida pela Ré à Autora em 26.06.2018.

Daí que, como é salientado, por mais do que uma vez, na decisão recorrida, aceitando a Seguradora ocorrer uma incapacidade total e permanente para a sua profissão, a decisão recorrida não aprecia, direta e expressamente, esta questão, enquanto questão de facto, centrando-se a discussão em determinar se tal situação de IPPT, reconhecida pela ré, reúne as condições para o acionamento da garantia “Invalidez Profissional”, em especial na exigência cumulativa que aí é feita de uma incapacidade funcional geral de 60%.

De qualquer modo, ainda que não se tivesse por relevante a assunção de tal atitude por parte dos serviços da Ré, os demais elementos constantes dos autos vão no sentido de dar por demonstrada tal incapacidade:

- na sequência de uma “consulta de contra visita” a que a autora é submetida a 12.03.2018, é o próprio médico da seguradora, que já então atesta que “GG não está capaz de exercer a sua atividade profissional de médica dentista, nomeadamente em determinadas áreas como a destartarização, desvitalização (endodontias) e extração dentária (exodontias).

- a autora remeteu à Seguradora documento de “Participação Obrigatória/Parecer Clínico” que enviou à Segurança Social, acompanhada do Relatório de Incapacidade exigido por lei, e que lhe reconhecia o estado de Invalidez Permanente Profissional” (pontos 20 a 23, dos factos provados);

- o Relatório de Incapacidade emitido pelo Médico Especialista em Ortopedia e

Traumatologia, Dr. EE refere “Défice de mobilidade e força de preensão do 1º dedo da mão, bilateral, por rizartrose avançada (confirmada por RX – 08/03/18). Concomitantemente, diminuição da sensibilidade por compressão bilateral do nervo mediano a nível cárpico, em estádio sensitivo-motor avançado, bilateralmente (pior à direita). Estas alterações condicionam actividade profissional de forma permanente, com incapacidade”, aí se concluindo: “A neuropatia periférica apresentada enquadra-se na categoria de doença profissional pela ergonomia da profissão (médica dentista) que implica movimentos de extensão prolongada de punho com consequente compressão de nervo mediano. Segundo o disposto, apresenta perda da função da mão para a actividade cirúrgica nomeadamente nos movimentos finos de preensão, quadro totalmente incapacitante para o exercício da profissão de médica dentista, pelo que deve ser reconhecido o estado de Invalidez Permanente Profissional”.

Vem, agora, a Ré seguradora, em sede de alegações de recurso, ao arrepio da posição anteriormente por si assumida e pelos seus serviços clínicos, sustentar não se encontrar demonstrado que a autora não pudesse mais desenvolver a sua atividade profissional, apoiando-se no Relatório de Exame Médico elaborado pela Medicina Legal no âmbito dos presentes autos, e alegando que a recorrida “padece de um grau de incapacidade de 28% e não está impossibilitada de exercer outras atividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à sua profissão médica diz respeito”.

Antes de mais, cumpre referir que, a alusão que no Relatório de Exame Médico é feita ao “coeficiente de incapacidade permanente parcial” de 28%, respeita à incapacidade funcional geral e não à incapacidade para o exercício da profissão[1].

Relativamente à incapacidade para o trabalho ou profissional, retemos de tal relatório, os seguintes excertos:

à pergunta, “A autora encontra-se na presente data, numa situação irreversível de invalidez provocada por doença ou acidente”, a resposta é – Sim,

à pergunta “A autora encontra-se impossibilitada de desenvolver a sua profissão?, a resposta é – Dado que a sua profissão exige movimentos de extensão prolongada dos punhos e visto que a examinanda apresenta perda de função da mão para atividade médico-cirúrgica, considera-se a mesma impossibilitada de exercer tais tarefas profissionais”, acabando por concluir “neste caso, o quadro de limitação funcional, dolorosa e sensitiva é impeditivo do exercício da atividade profissional habitual de médica dentista, sendo, no entanto compatível com outras atividades nesta área, como por ex. as consultas sem procedimento médico-cirurgico”.

Mais chamamos a atenção de que o próprio artigo 1º desta Garantia Complementar define a “Invalidez Profissional”, como a incapacidade total para o trabalho que ocasione à pessoa segura “uma total e definitiva impossibilidade de exercer a profissão declarada ao Segurador e efetivamente desempenhada à data do acidente ou do inicio da doença”.

Ou seja, para efeito de verificação do requisito da invalidez profissional (e aqui movemo-nos, claramente, no âmbito da incapacidade enquanto questão, já, não só, de facto, mas também de direito), bastaria a verificação da incapacidade para o exercício da atividade habitual e efetivamente desempenhada, de “médica dentista”, ainda que fosse possível alguma reconversão para outra profissão (ou ainda que não se encontrasse impossibilitada para alguns dos específicos atos que se incluem dentro da atividade própria do médico dentista).

E essa incapacidade, de facto, para a sua profissão habitual de médico dentista tem de ter-se por reconhecida quando é o próprio corpo clinico da ré que reconhece, não se encontrar a autora “capaz de exercer a sua atividade profissional de médica dentista, nomeadamente em determinadas áreas como a destartarização, desvitalização (endodontias) e extração dentária (exodontias)”.

Como tal, os demais atos que pela autora pudessem ainda ser praticados, dentro dos que se incluem dentro da atividade própria do médico[2], como fazer diagnóstico ou emitir receitas ou atestados médicos, sempre assumiriam carater perfeitamente residual.

Confirmando-se, assim, a demonstração de que a autora foi atingida por “Invalidez Profissional”, nos termos em que se mostram exigidos pelo artigo 2º da Garantia Complementar, passemos à análise da exigência cumulativa de uma “incapacidade funcional igual ou superior a 60%”.

E, relativamente a este requisito, aqui sim, este grau de incapacidade funcional não se tem por demonstrado, aludindo o Relatório de Medicina Legal a um Coeficiente de incapacidade permanente parcial, resultante do acidente, atual de 28%.

Contudo, a sentença recorrida, reconhecendo a não verificação deste segundo requisito, veio a considerar que a exigência de que a pessoa segura, para além da incapacidade total e permanente para a sua profissão, se encontre igualmente afetada por uma incapacidade geral igual ou superior a 60%, constituiu uma cláusula nula por atentatória dos princípios da boa-fé, segmento com o qual a ré também se insurge, pelas razões que passamos a analisar.

1.2. O tribunal não podia declarar nula uma clausula constante das Condições Particulares, não sendo possível excluir tais condições com base no diploma que regula as clausulas contratuais gerais.

Segundo a Apelante, encontrando-se as clausulas/estipulações em causa nas Condições Particulares da Apólice, e não se tratando de “condições gerais”, não seria possível excluí-las tendo por base o DL 446/85, de 25-05, diploma que regula as Condições Contratuais Gerais.

Não podemos dar razão ao Apelante, desde logo, por pretender fazer coincidir o sentido ou âmbito das clausulas contratuais gerais, com o das “Condições Gerais” da Apólice, respeitantes ao contrato de seguro em questão.

Segundo o nº1 do artigo 1º do Dec. Lei nº 446/85, de 25-05 (alterado pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31 de agosto, pelo Decreto-Lei n.º 249/99, de 7 de julho, e pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de dezembro), – aplicável ao contrato de seguro (artigo 3º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16 de abril) – a são cláusulas contratuais gerais “aquelas que são elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar”.

Tal diploma aplica-se igualmente às clausulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar (nº2 do artigo 1º), sendo que, o ónus da prova de que uma clausula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.

Não é o local onde as cláusulas se encontram inseridas que determina, ou não, a sua sujeição ao regime das clausulas contratuais gerais, mas a natureza das mesmas, resultante da ausência de negociação individual.

A(s) cláusula(s) em causa, cujo teor a sentença recorrida considerou nula(s) por atentatória(s) dos princípios da boa-fé, resulta(m) da conjugação:

- do artigo 2º, da “Clausula Especial 102 – “Garantia complementar – Invalidez Profissional”, das Condições Especiais/Seguro Grupo Contributivo, através da qual se exige, para a verificação de tal garantia, que “a pessoa seja atingida por uma invalidez profissional e, cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior ao estabelecido, mediante convenção expressa nas Condições Particulares (…):

- com o disposto nas Condições Particulares, onde se fez constar, relativamente à Garantia Complementar – Invalidez Profissional, que “O grau de incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez no nº1 do artigo 2º é fixada em 60%.

Temos assim que, a estipulação de que, para se ter por verificada a garantia da “Invalidez Profissional”, tem a pessoa de, cumulativamente, comprovar um determinado nível de incapacidade funcional, foi feita constar das Cláusulas Especiais, apenas tendo sido remetido para as Condições Particulares a fixação do concreto grau de incapacidade funcional exigível.

Sendo a apólice – documento que titula o contrato de seguro – integrada pelas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares, acordadas: i) “condições gerais”, são as que se aplicam a todos os contratos de seguros de um mesmo ramo ou modalidade; ii) “condições especiais”, são as que completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo; iii) condições particulares são as que se destinam a responder em cada caso às circunstancias específicas do risco a cobrir[3].

Pela sua própria definição, as cláusulas inseridas nas condições gerais e nas condições especiais de um contrato de seguro, sendo de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo, assumem a natureza de clausulas contratuais gerais.

Quanto às condições particulares, por princípio, não são predispostas unilateralmente pela Seguradora, respeitando ao tomador de seguro em concreto, individualizando os aspetos do seguro em causa depois de este já estar formado – têm como finalidade regular elementos pessoais ou especiais do contrato (como sejam as franquias estabelecidas, os valores do capital seguro especificamente acordado, as características relevantes da pessoa ou bem seguro, etc.)[4].

Contudo, como salienta Luís Poças, a regulação contratual do seguro assenta, em regra, “em clausulas contratuais gerais pré-elaboradas pelo segurador: as chamadas condições gerais, aplicáveis a todos os contratos do ramo ou modalidade subscrita pelo tomador, e as condições especiais, aplicáveis às coberturas complementares facultativas e/ou à submodalidade subscrita, sem prejuízo da inclusão de clausulas contratuais gerais nas condições particulares (aplicáveis especificamente ao contrato em causa), no formulário de proposta ou em actas adicionais.[5]

Ou seja, não é pelo facto de a seguradora ter optado por inserir o clausulado em apreço, em parte nas “Condições Especiais” – onde faz constar a exigência cumulativa de uma determinada incapacidade funcional, para que a garantia da invalidez profissional possa ser invocada –, remetendo a concreta percentagem de incapacidade funcional a exigir, para o texto das “Condições Particulares”, que as cláusulas/estipulações em causa deixarão de poder ser consideradas clausulas contratuais gerais, como resulta expressamente do nº2 do artigo 1º do DL nº446/85, quando aí se afirma que tal regime se aplica inclusivamente aos “contratos individualizados”, relativamente às concretas cláusulas cujo teor o destinatário não pode influenciar.

Reconhecendo a dificuldade em reconhecer quais as normas que num contrato concretamente resultaram de um acordo específico ou têm a natureza de predeterminadas e de pura adesão, o legislador veio resolver expressamente tal questão a favor do consumidor, ao estatuir que “o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo” (art.º 1.º n.º 3, do Decreto-Lei n.º 446/85)

Como tal, querendo valer-se de tais clausulas, era à Ré seguradora que competia alegar e provar que, pelo menos o específico valor de 60%, havia sido submetido a negociação individual (quanto à exigência cumulativa de uma determinada incapacidade funcional a determinar nas condições particulares, constando das Condições Especiais, daquele tipo de seguro, não haveria dúvidas quanto à sua qualificação como cláusula contratual geral,  por inseridas nas Condições Especiais, quando estas são, por natureza, de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo).

Ora, a Ré não alega nunca, e muito menos prova, que esta concreta percentagem de incapacidade funcional tenha sido fixada na sequência de negociação com o tomador de seguro (Associação Profissional dos Médicos Dentistas), como lhe era exigido pelo nº3 do artigo 1º do DL 446/85.

De qualquer modo, e ainda que assim não fosse, sempre se poderia discutir se, independentemente da especifica percentagem de incapacidade funcional aí indicada, o simples facto de, para o acionamento da garantia “Invalidez Profissional” não ser suficiente a verificação de uma incapacidade total para o exercício da sua profissão habitual e se exigir, cumulativamente, a verificação de uma dada percentagem de incapacidade funcional, constitui, por si só, uma violação dos principio da boa-fé, questão que apreciaremos de seguida.

1.3. A decisão limita-se a alegar que, em face dos princípios da boa-fé, a clausula/estipulação referida é nula, não remetendo para qualquer preceito jurídico concreto.

Alega a Apelante que a decisão recorrida se limita a alegar que, em face dos princípios da boa-fé, a clausula/estipulação é nula, não remetendo para qualquer jurídico concreto, sem que a Apelante, além do mais, retire qualquer consequência pratica de tal alegação ou que alegue qual a(s) norma(s) que deveria(m) ter sido aplicada(s) e não foi(ram).

Da leitura da análise que a decisão recorrida faz acerca da validade das estipulações em apreço, resulta que, quanto à interpretação das mesmas, invocou o disposto nos artigo 8º, nº3 do Código Civil, remetendo, ainda, quanto ao sentido da declaração negocial, para o que a propósito do artigo 236º do CC se afirma no Ac. STJ de 14.01.2021, invocando, ainda, o disposto no artigo 3º da Diretiva 1993/13CEE, de 05-04-1993, de 05.04.1993, relativamente às clausulas gerais abusivas quando contrariem a boa-fé.

Como tal, não alegando a apelante que outras normas deveriam ter sido aplicadas e não foram, é improceder a oposição constante da XIIª conclusão das suas alegações de recurso.

1.4. A clausula tem por escopo assegurar ao segurado a possibilidade de ser indemnizado no caso de não poder mais desenvolver a sua atividade profissional e ter uma incapacidade que o impossibilite de desenvolver outra qualquer atividade, não sendo, como tal abusiva.

A sentença recorrida veio a considerar a referida exigência cumulativa, de uma incapacidade funcional igual ou inferior a 60%, como violadora dos princípios da boa-fé, com base nas seguintes considerações:

“Diferentemente, a Ré exige-lhe, com base no texto, simultaneamente, das condições gerais e das condições especiais, que a autora, para além da incapacidade total e permanente para a sua profissão – matéria que repito, a seguradora aceita ocorrer – que esteja igualmente afetada por uma incapacidade geral igual ou superior a 60%. Correctamente?

A jurisprudência tem-se multiplicado em arestos que aceitam como uma restrição válida a definição de uma determinada incapacidade e, por vezes, até o modo como a mesma deve ser apurada e ou declarada. Todavia, estamos a definir ou delimitar o sentido e alcance de conceitos como “invalidez absoluta e definitiva”, ou “invalidez total e permanente”, enquanto que, no presente caso, estamos a lidar com cláusulas contratuais que, repetidamente, mostram a locução “invalidez profissional”, o que se me afigura ser um conceito distinto. O vocábulo “invalidez”, como dizem os especialistas, refere-se ao “estado de uma pessoa que tem capacidade de trabalho reduzida ou que está impossibilitada de exercer uma profissão, uma actividade… por razões de saúde”. Se, a este vocábulo, acrescentarmos algum dos adjectivos “absoluta” ou “total”, de significados muito semelhantes, ficamos com um conceito que se afasta, que exclui mesmo, a mera redução da capacidade, para transmitir a ideia de que não subsista qualquer capacidade útil. De seguida, se ao mesmo significante “invalidez”, acrescentarmos “permanente” ou “definitiva” – palavras, uma vez mais, de significados muito semelhantes – fica ainda a informação de que esse estado limitativo, para além de absoluto, se torna prevalente, no sentido em que não há retorno. E, note-se, na casuística referida pelo Supremo Tribunal, a aqui autora – que, diga-se em abono da verdade, não padece, de modo algum, de uma “invalidez absoluta e definitiva”, ou de uma “invalidez total e permanente” – pode dizer-se que, tanto intuitiva como juridicamente, preenche, como vimos, os conceitos, com base na exigência que deles faz o nosso mais alto Tribunal. Não se deverá considerar que preenche os requisitos necessários para receber a prestação a que afirma fazer jus?

O contrato de seguro é, fundamentalmente, estabelecido pelo clausulado constante da apólice, segundo a qual “em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro”. Como compatibilizar esta cláusula contratual com a exigência segundo a qual, para a sua verificação, terá a autora que se fazer acompanhar de um atestado multiusos? A autora esteve, antes dos 65 anos de idade, afectada de invalidez profissional, conceito que pode e deve ser interpretado como bem menos exigente e severo do que aqueles que têm ocupado a nossa jurisprudência mais recente. Poderá ser-lhe recusada a prestação de 200% do capital seguro?

O critério a adoptar deve ser, assim o entendo, o da compreensão dos termos da restrição e ou o da sua aferição com base na boa-fé. Se for perfeitamente compreensível – como admito que o seja exigir um comprovativo de que a pessoa segura padece de uma incapacidade permanente igual ou superior a 60% para poder concluir que a mesma padece de “invalidez absoluta e definitiva”, ou de “invalidez total e permanente” e – então admito que a cláusula, ainda que limitativa, deve ser admitida. Diferentemente, quando todos concordam que a pessoa segura, sexagenária e com formação superior, está definitiva e totalmente incapacitada para a sua profissão, exigir-lhe, para aferir da qualidade de “invalidez profissional”, afigura-se-me, à luz de critérios como da boa-fé, inaceitável.”

O que aqui se discute – ou pelo menos foi nestes termos que a decisão recorrida colocou a questão e o objeto de recurso reside precisamente nessa apreciação – passa por determinar se, para o acionamento de uma Garantia Completar de “Invalidez Profissional”, é legítimo circunscrever tal garantia à ocorrência, em simultâneo – para além de uma incapacidade total e permanente para o exercício da sua profissão habitual –, de uma incapacidade funcional igual ou superior a 60%.

O tribunal recorrido, apelando à distinção entre os conceitos de invalidez total absoluta e invalidez profissional, entendeu que, se a exigência, de verificação de uma incapacidade permanente igual ou superior a 60%, faz algum sentido quando se discute se o segurado padece de “invalidez absoluta e definitiva”, já não o fará, quando falamos de “invalidez profissional” e a pessoa segura está totalmente incapacitada para o exercício da sua profissão, pelo que, relativamente a este caso, tal limitação afigurar-se-ia, à luz de critérios de boa-fé, inaceitáveis.

A Apelante insurge-se contra o decidido, alegando não ser a clausula abusiva ou ofensiva de quaisquer princípios de boa-fé, porquanto, “o escopo da cláusula em questão é assegurar a um qualquer segurado a possibilidade de ser indemnizado em determinadas circunstâncias, nomeadamente, não poder mais desenvolver a sua atividade profissional (o que não sucede) e ter uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver outra qualquer atividade”.

Sendo o risco um elemento essencial do contrato de seguro, dentro do principio geral da liberdade contratual (artigo 11º da Lei do Regime Jurídico do Contrato de Seguro), cumpre às partes selecionar o risco e os interesses que pretendem tutelar, operação denominada “limitação do risco”. Nesta delimitação causal do risco, há uma apreciação e ponderação do risco que influencia ou determina as condições do contrato, a própria decisão de contratar por parte da seguradora e o valor do prémio.

As clausulas de delimitação do risco, embora afetem necessariamente as pretensões do segurado, nem todas elas limitam os seus direitos, porquanto é a elas a quem cabe definir o objeto de contrato, clarificando o seu conteúdo e extensão. Não se trata de excluir a responsabilidade da seguradora, mas de delimitar o seu âmbito de atuação, ou seja, o risco coberto, impedindo que ab initio o dever de prestar não chegue sequer a formar-se em abstrato[6].

Tratando-se de um seguro facultativo e dentro do principio da livre conformação do conteúdo dos contratos, nada impede que nas condições gerais ou especiais da apólice se estipule a limitação ou exclusão do risco assumido pela seguradora, havendo, tão só, e porque nos movemos no âmbito de contratos de adesão, que atender ao regime das clausulas contratuais.

E, segundo o artigo 15º do Regime jurídico das Clausulas Contratuais Gerais (DL nº 444/85, de 25 de outubro, e sucessivas atualizações), são proibidas as clausulas contratuais gerais contrárias à boa-fé, indicando o artigo 16º de tal diploma, os seguintes elementos de concretização a atender na aplicação de tal norma:

a) a confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das clausulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;

b) os objetivos que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do contrato utilizado.

Devendo o regime das clausulas contratuais gerais (RJCCG), ser interpretado à luz das regras estabelecidas na Diretiva 1993/13/CE, de 05.04.1993, relativa às clausulas abusivas em contratos com consumidores, dispõe o seu artigo 3º, que, “uma clausula que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência da boa-fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato”.

Também o artigo 9º da Lei do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de julho), estabelece que, com vista à prevenção de abusos resultantes de contratos pré-elaborados, o fornecedor de bens e o prestador de serviços estão obrigados à não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor.

Em matéria de seguros, a doutrina vem considerando como abusivas aquelas clausulas que reduzem a cobertura que seria de esperar tendo em conta o tipo de seguro em causa, o seu objeto principal ou a finalidade económica do contrato[7]:

1. Podendo as clausulas de delimitação do risco em decorrência da liberdade individual incidir sobre inúmeros elementos (descrição dos riscos cobertos, modalidade de sinistro pelas quais se deva desencadear a indemnização ou inclusive o tempo e o lugar da ocorrência do mesmo a que se deve atender para efeitos do contrato), esta delimitação não pode ser realizada de tal forma que acabe por comprometer consideravelmente a própria probabilidade de realização do evento designado no contrato, do qual dependeria a indemnização da seguradora, acabe por não justificar a prestação do tomador[8] – situações que integram uma delimitação abusiva por referência ao seguro enquanto tipo contratual.

2. A circunscrição do risco coberto pode ainda analisar-se do ponto de vista qualitativo, por referencia ao fim contratual, atendendo à natureza do seguro contratado. Partindo do princípio de que cada modalidade de seguro compreende um certo tipo de risco, relativamente a cada específica modalidade de seguro, devem considerar-se como implícitos certos tipos de riscos que definem o seu âmbito de incidência e pelos quais são vulgarmente conhecidos.

“Concretas delimitações de risco no contrato que tenham como resultado – e sobretudo – como direta finalidade – a exclusão da eventual obrigação de indemnização e que contendam com limites legalmente estabelecidos, nomeadamente normas imperativas (e com elas elementos que caraterizam o tipo negocial), ordem pública (artigo 280º, nº2, CC) ou obrigações essenciais ao fim do seguro em causa, podem ser consideradas abusivas[9]”.

A tal respeito, haverá que atentar no que, relativamente ao conteúdo do contrato, se dispõe o nº1 do artigo 45º da LCS que “As condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado”. (cfr., ainda art. 183º e 184º da LCS, quanto aos seguros de vida e seguros complementares devida relativos a danos corporais, incluindo, a incapacidade para o trabalho e a morte por acidente ou invalidez em sequencia de acidente ou doença).

Para aferir se as restrições acabam por comprometer a própria finalidade do contrato, e se se processam em moldes qualitativamente inadmissíveis, haverá assim que atender à finalidade do contrato de seguro em causa e às expectativas do segurado cuja legitimidade se baseie no âmbito do risco seguro, que, atendendo àquela, o segurado poderia esperar, e que terá incidido sobre a sua decisão de contratar[10].

A fim de apreciar se existe um desequilíbrio das prestações gravemente atentatório da boa-fé importa ter em consideração todas as circunstancias que envolvem o contrato, as quais podem ser apreciadas objetivamente, na perspetiva de um observador razoável e com referência não ao momento da celebração do contrato mas daquele em que é feita valer a nulidade da clausula[11].

Como salienta Moutinho de Almeida[12], para a apreciação da natureza abusiva de uma clausula, a jurisprudência pondera a finalidade do contrato e, assim, quando em resultado de clausulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato, tais clausulas são nulas.

Para aferir da sensibilidade dos nossos tribunais especificamente quanto a esta questão da delimitação dos riscos relacionados com as garantias de invalidez total permanente e de invalidez profissional, demos uma vista de olhos pelas decisões[13] que vêm sendo proferidas relativamente às situações de existência de uma cláusula que restringe o risco respeitante a uma Invalidez Total Permanente ou a uma Invalidez Profissional, mediante a exigência cumulativa de outras especificas condições:

- o acórdão do STJ de 27-05-2021, relatado por Catarina Serra, considerou que a cláusula, que condiciona o atendimento da incapacidade total permanente ao reconhecimento por médico da seguradora, configura uma exigência desnecessária à luz das finalidades do contrato de seguro (sendo certo que, outros médicos teriam condições para fazer aquele reconhecimento com a competência e objetividade necessárias), considerando-a nula;

- segundo o acórdão do STJ de 02-03-2021, relatado por Graça Trigo, visando o contrato de seguro de vida colmatar os prejuízos decorrentes da perda (por acidente ou doença), total ou definitiva, da capacidade de ganho, mostra-se contrária à boa-fé e, como tal, ferida de nulidade, a estipulação ínsita no contrato que condiciona a cobertura de invalidez absoluta definitiva à necessidade de o segurado recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos elementares da sua vida corrente e, cumulativamente, apresentar um grau de incapacidade igual ou superior a 85%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.

- o acórdão do STJ de 27-09-2016, relatado por José Rainho, considerou abusiva, por atentatória da boa fé, uma cláusula especial de um contrato de seguro de grupo destinado ao pagamento do saldo de um empréstimo por crédito à habitação em caso de invalidez absoluta e definitiva do aderente, que exige acrescidamente para a caraterização desse estado de invalidez que o aderente fique na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos da vida corrente;

- o Acórdão do TRL de 09-09-2021, relatado por Laurinda Gemas, que considera não contrária à boa fé uma clausula que, visando a concretização da situação de Invalidez Total e Permanente – como situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com seus conhecimentos e aptidões – explicite que tal invalidez deverá “corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”;

- acórdão de 11-07-2017, relatado por Maria João Matos, concluindo pela nulidade de uma clausula de um contrato de seguro de grupo que, mercê da cumulativa exigência de plúrimas circunstancias[14], limita de tal forma a verificação da invalidez total e permanente que exclui do âmbito expetável da cobertura situação de incapacidade que a devia integrar: censurando o excesso de rigor das clausulas definidoras da cobertura da invalidez dos seguros de vida impostos pelos bancos no âmbito da contratação do crédito à habitação, por tal rigor ser contrário aos interesses e finalidades do seguro – que é o pagamento do crédito ao banco quando o segurado já não o possa fazer, por perda de capacidade de ganho, e não a assistência ao segurado quando este se veja em situação de gravíssima perda de autonomia física.

No caso em apreço, encontramo-nos perante um Seguro de Grupo Contributivo, “Seguro de Vida – Ordem dos Médicos Dentistas”, em que, a par da Garantia Principal Morte, se mostram cobertas, entre outras, as seguintes garantias:

- Garantia Adicional – Invalidez total e definitiva (Condição especial 06)

definida esta, como “a invalidez, física ou mental, que após consolidação deixe a pessoa total e definitivamente impossibilitada de exercer qualquer trabalho que dê remuneração ou lucro, necessitando de terceira pessoa para efetuar com autonomia, os atos normais da vida (higiene pessoal básica, alimentação e vestir)”,

- Garantia Complementar – Invalidez Profissional  (condição especial 10)

considerando como:

Invalidez profissional – a incapacidade total para o trabalho, em consequência de doença ou acidente, que após completa consolidação e cura clinicamente comprovada ocasione à Pessoa Segura uma total e definitiva incapacidade de exercer a profissão declarada ao Segurador e efetivamente desempenhada à data do acidente ou do inicio da doença,

Incapacidade funcional – diminuição, com carater permanente e definitivo, da capacidade física e mental da pessoa segura para o exercício dos atos normais da sua vida diária, independentemente da atividade profissional exercida,

Determina-se, (art. 2º, Condições Especiais)

Ao abrigo da presente garantia complementar (…) a seguradora obriga-se a liquidar o capital seguro fixado nas Condições Particulares da adesão, em vigor à data do evento, para esta garantia, caso a pessoa seja atingida por uma invalidez profissional e, cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior ao estabelecido, mediante convenção expressa nas Condições Particulares, em consequência de (…).

Fazendo-se ainda constar a tal respeito, nas Condições Particulares,

O grau de incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez previsto no nº1 do art. 2º é fixado em 60%.”

A ter como válida esta exigência cumulativa, tal implicaria que, muitos dos casos em que a pessoa segura se encontre total e definitivamente incapaz para o exercício da sua profissão de médico/dentista (como é o da situação em apreço), veria a sua situação excluída do âmbito da cobertura “Invalidez Profissional”, pelo facto de a sua incapacidade funcional não atingir os 60%.

Segundo a Apelante, tal clausula não é abusiva ou ofensiva de quaisquer princípios de boa-fé, porquanto “o escopo da cláusula em questão é assegurar a um qualquer segurado a possibilidade de ser indemnizado em determinadas circunstâncias, nomeadamente, não poder mais desenvolver a sua atividade profissional e ter uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver outra qualquer atividade”.

A leitura das Condições Especiais da Apólice, em especial, a Condição 10, respeitante à “Garantia Complementar – Invalidez Profissional”, leva-nos a discordar da Apelante.

Com efeito, do seu artigo 1º, fez-se constar, que, “para efeitos da presente Condição Especial, considera-se “Invalidez Profissional” “a incapacidade total para o trabalho que (…) ocasione à Pessoa Segura uma total e definitiva impossibilidade de exercer a profissão declarada ao segurador e efetivamente desempenhada à data do acidente ou do inicio da doença”.

Ao contrário de inúmeros contratos de seguro que estendem o conceito de incapacidade a “qualquer outra atividade compatível com os seus conhecimentos e capacidades”, no caso em apreço, a incapacidade ou “invalidez profissional” a que se reporta esta garantia complementar, é definida, pela própria seguradora, como sendo reportada à profissão efetivamente exercida à data do início da doença, ou seja, a de médico dentista.

A finalidade especifica deste seguro de vida, relativamente à situação decorrente da incapacidade de trabalhar por parte do segurado, é a de garantir que este possa usufruir de determinado montante compensatório em caso de ficar privado de auferir os rendimentos do trabalho perante a perda total e definitiva da sua capacidade de exercer a sua atividade habitual de médico dentista.

Pelo que, quando, no momento seguinte, no artigo 2º de tal Condição Especial, se faz depender o funcionamento da garantia Invalidez Profissional, da verificação cumulativa de uma incapacidade funcional de grau igual ou superior a … 60%, nem sequer se pode afirmar, como o faz a Apelante, que, com a mesma, se pretenda assegurar a verificação de uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver qualquer outra atividade: uma incapacidade funcional de 60% – reportando-se às limitações que a situação de doença lhe acarreta nas diversas funções do seu dia a dia, tais como alimentar-se e fazer a sua higiene sozinho, realizar tarefas domésticas, correr, subir para um autocarro, etc. – pode ser perfeitamente compatível com o exercício de qualquer outra atividade remunerada e, nomeadamente, com a atividade de médico dentista.

O que se pretende acautelar, em termos genéricos e por referencia ao tipo de seguro em causa, com a cobertura do risco invalidez profissional é incapacidade para o exercício da sua profissão, enquanto a mesma se reflete na perda de capacidade de ganho.

Trata-se de um seguro de grupo contributivo em que o tomador do seguro é a Ordem dos Médicos Dentistas, sendo admissíveis como pessoas seguras todas as pessoas singulares que comprovadamente se encontrem vinculadas, por via profissional, associativa ou contratual ao tomador do seguro (cfr., artigo 4º da Condições Gerais).

E, atentar-se-á em que, para além da garantia invalidez profissional, aquele começa por cobrir o dano morte (Garantia Principal) e a Invalidez Total e Definitiva (onde nesta, aí sim, como referiu a sentença recorrida, poderia fazer sentido a fixação de um grau mínimo de incapacidade funcional para o acionamento da mesma).

Sendo um seguro de grupo, negociado pela Ordem dos Médicos Dentistas e tendo por destinatários os médicos dentistas, faz todo o sentido que, no que à garantia invalidez profissional diz respeito, se tenha pretendido acautelar precisamente a situação de incapacidade para a profissão de médico dentista. E é o que resulta da própria definição que, quanto a tal garantia, é dada no artigo 1º das condições gerais – “total e definitiva impossibilidade de exercer a profissão declarada ao segurador e efetivamente desempenhada à data do acidente ou do inicio da doença”. É este o risco que se pretende cobrir e com o qual a autora poderia contar.

Quanto à exigência acrescida de uma determinada incapacidade funcional é uma condição que já nada tem a ver com o âmbito desta cobertura complementar, em que o que pretende compensar é a perda da capacidade de ganho acarretada pela impossibilidade de exercício da sua profissão de médico dentista (exigência que continuaria a não fazer sentido, ainda que tivesse sido adotado, e não foi, um conceito mais amplo de invalidez profissional, de modo a abranger qualquer outra atividade remunerada), e não como compensação para as dificuldades ou incómodos que tal doença lhe possa acarretar nas inúmeras tarefas do seu seu dia a dia, nomeadamente nas suas tarefas domésticas ou de lazer.

Ora, como resulta da resenha que fizemos à nossa jurisprudência, os tribunais vêm entendendo maioritariamente que, nos seguros de vida reportados à incapacidade total e definitiva para o trabalho – visando estes colmatar os prejuízos na sua capacidade económico financeira perante a perda definitiva (por acidente ou doença), da sua capacidade de ganho, a exigência cumulativa de qualquer outra condição relacionada com um mínimo de incapacidade funcional, deixaria gorado o objetivo visado com a celebração do contrato.

Num seguro de grupo celebrado pela Ordem dos Médicos Dentistas, no qual é subscrita, entre outras, e a par da morte e da invalidez total permanente (por acidente ou doença), a garantia da Invalidez Profissional, reportada à incapacidade para o exercício da profissão médico dentista, a exigência cumulativa de uma incapacidade funcional de 60%, deixaria de fora do âmbito da respetiva proteção inúmeras situações de invalidez que impedem de facto o segurado de trabalhar, ficando aquém daquela com que o tomador podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato.


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Por fim, nas XVII a XXXIª conclusões de recurso, alega a Apelante que, tratando-se de um seguro de grupo, o dever de comunicação das clausulas é do tomador e não da seguradora, pelo que nenhuma consequência poderia advir para esta da falta de comunicação das mesmas.

Ora, tal argumentação não faz qualquer sentido no âmbito do presente recurso, uma vez que a clausula em questão não foi considerada nula por incumprimento do dever de comunicação, mas em função do seu conteúdo, por atentatória dos princípios da boa-fé, sendo que, uma clausula proibida ainda que seja previa e integralmente comunicada ao aderente não deixa, por isso, de ser nula.

A apelação é de improceder, confirmando-se a decisão recorrida.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante

                                                                     Coimbra, 14 junho de 2022       

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo                                  


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…)



[1] Remetendo-nos para a distinção entre as incapacidades em sede de direito laboral e em sede de direito civil, efetuada no âmbito a avaliação médico legal do dano corporal: no primeiro caso, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que, no âmbito do direito civil, se valoriza a incapacidade permanente geral, isto é, a incapacidade para os atos e gestos correntes do dia a dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da atividade profissional especifica do examinado – cfr., preâmbulo do Dec. Lei nº 352/2007, de 23 de outubro.
[2] Sendo a atividade de médico dentista, definida no site da Ordem dos Médicos Dentistas, como “a atividade de estudo, prevenção, diagnostico, tratamento e reabilitação das anomalias e doenças dos dentes, boca, maxilares e estruturas anexas, no contexto da saúde em geral, incluindo a prescrição e execução de meios auxiliares de diagnostico e emissão de receitas e atestados médicos, em conformidade com a Lei” – https://www.omd.pt/2019/04/atividade-medico-dentista/
[3] José Vasques, “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, pp.30-31. Segundo Pedro Romano Martinez as condições gerais correspondem às clausulas que definem basicamente o tipo de seguro acordado; condições especiais concretizam as clausulas gerais, delimitando o tipo de seguro, excluindo certos aspetos do risco assumido pela seguradora; nas condições particulares incluem-se as clausulas identificadoras do tomado do seguro especificamente ajustado individualizam-se os aspetos do contrato de seguro em causa, sendo que, para além dos elementos que resultam do elenco do art. 426º do CComercial, como o nome e domicílio do tomador do seguro, aí se farão constar determinados dados a prestar pelo segurado, relacionados com informações a prestar por este - “Clausulas Contratuais Gerais e clausulas de limitação ou exclusão da responsabilidade no contrato de seguro”, Sciencia Iuridica – Tomo LV, 2006, nº306, p. 244-245.
[4] Ana Serra Calmeiro, “Das Clausulas Abusivas no Contrato Seguro”, 2014, Almedina, p. 17.
[5] “Os novos requisitos formais das clausulas contratuais gerais (Lei 32/2021): implicações, em particular no contrato de seguro”, in Revista de Direito Comercial, p.905, https://www.revistadedireitocomercial.com/os-novos-requisitos-formais-das-clausulas-contratuais-gerais#:~:text=Os%20novos%20requisitos%20formais%20das%20cl%C3%A1usulas%20contratuais%20gerais,%28Lei%2032%2F2021%29%20Lu%C3%ADs%20Po%C3%A7as%20Vice-presidente%20da%20AIDA%20Portugal.
[6] Ana Serra Calmeiro, obra citada, pp.37-38.
[7] Cfr. Ana Serra Calmeiro, cujo entendimento seguimos de perto, obra citada, pp. 35-49.
[8] Ana Serra Calmeiro dá como exemplos desta situação, um seguro contra furto à habitação condicionado à necessidade do segurado adotar inúmeras medidas de salvaguarda que extravasam se forma gritante as exigências da normal diligencia (necessidade de instalação de alarme, obrigatoriedade de trancar todas as possíveis entradas da habitação sempre se deite ou dela se ausente, inclusive por brevíssimos tempos) – obra citada p. 40.
[9] Ana Serra Calmeiro, obra citada, p.38.
[10] Ana Serra Calmeiro, obra citada., pp.44-45.
[11] J. C. Moutinho de Almeida, “Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, p. 97, indo de encontro ao que a tal respeito dispõe o artigo 4º da Diretiva 93/13/CEE), segundo a qual “o carater abusivo de uma clausula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstancias que, no momento em que foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras clausulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa”.
[12] Obra citada, pp.99-100.
[13] Todas disponíveis in www.dgsi.pt.
[14] Para a verificação da cobertura “invalidez total permanente”, exigia-se cumulativamente um elevado grau de incapacidade, a insusceptibilidade completa e definitiva para o exercício da profissão habitual ou de qualquer atividade remunerada compatível com os conhecimentos e aptidão do segurado, ou a necessidade da assistência de uma terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária, o que foi considerado como uma inadmissível limitação e até mesmo, inviabilização da cobertura do seguro.