PREENCHIMENTO DE LIVRANÇA
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I – Não é de considerar que o preenchimento de um livrança foi feito com abuso de direito quando apenas se prova o não preenchimento durante um longo lapso temporal, mas em que não há indícios objectivos de que  o preenchimento não mais seria feito, em que falta uma conduta do credor que manifestasse a intenção de não preenchimento ou que aludisse a um cumprimento/satisfação já ocorrido, de molde a criar a convicção e a expectativa, geradoras de confiança fundada, em que a livrança jamais seria accionada ou que a avalista seria poupada.
II - Prevendo o sistema jurídico outra solução para situações de prolongada letargia do credor, castigando-o, decorrido certo tempo, com a prescrição do direito de crédito (seja quanto ao capital, seja quanto a juros), afastada fica, por isso, a aplicação da figura do abuso do direito, na modalidade subsidiária da suppressio.

Texto Integral



Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa ([1]) que lhe move o “N... S. A.”, com os sinais dos autos,

veio a Executada AA, também com os sinais dos autos,

deduzir oposição a tal execução, alegando, para tanto, em síntese:

- ter, em 08/03/2001, a Embargante intervindo, na qualidade de avalista, quanto a uma livrança emitida parcialmente em branco, com pacto de preenchimento, no âmbito de um contrato de mútuo bancário em que era mutuária uma sua irmã, BB;

- desde a data do incumprimento da subscritora da livrança - ...02 – e até à instauração da execução (2018), nada lhe ter sido comunicado acerca da sua responsabilidade na qualidade de avalista;

- o comportamento omissivo da Exequente não pode ser premiado com mais de 15 anos de juros à taxa de 19,500%, agindo esta, assim, em abuso do direito, com ofensa do princípio da boa-fé (há comportamento contraditório, traduzido na omissão de intentar a ação executiva em tempo razoável, no caso, passados 16 anos do incumprimento da mutuária);

- foi violado o pacto de preenchimento, pois a livrança deveria ter sido preenchida logo que se verificasse o incumprimento;

- os juros de mais de 5 anos encontram-se prescritos.

Concluiu pela procedência da oposição, por provada, com as legais consequências, ou, ao menos, pela prescrição dos juros para além dos últimos cinco anos.

O Exequente contestou a oposição, pugnando pela improcedência dos argumentos invocados e concluindo pela total improcedência dos embargos.

Considerando-se conterem os autos os elementos necessários à prolação de decisão de mérito e ter sido cumprido o contraditório, foi proferido despacho saneador-sentença, datado de 25/10/2021, com o seguinte dispositivo:

«Com os fundamentos de facto e de direito enunciados, julgo parcialmente procedentes os presentes embargos de executado e, em consequência, quanto à Embargante, determino o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de 17.277,36 euros, ao que acrescem juros civis, à taxa legal, desde 10 de março de 2018 até integral pagamento e imposto de selo sobre estes.

Custas a cargo de Embargante e Embargado na proporção do respetivo decaimento.».

Inconformada, a Embargante vem recorrer do assim decidido (na parte em que vencida), apresentando alegação e formulando as seguintes

Conclusões:

«1 - Desde a data do incumprimento da subscritora da livrança - ...3 de julho de 2002 – e até à instauração da execução, nada lhe foi comunicado acerca da sua responsabilidade na qualidade de avalista. O comportamento omissivo da Exequente não pode ser premiado com mais de 15 anos de juros à taxa de 19,500%.

2 - Por outro lado, foi violado o pacto de preenchimento pois a livrança deveria ter sido preenchida logo que se verificasse o incumprimento, ou em prazo razoável.

3 - Desde a data do incumprimento da mutuária – 23 de julho de 2002, à ora embargante, nada foi comunicada pela exequente, sobre as suas responsabilidades na qualidade de avalista.

4 – Desde a data do incumprimento da mutuária, BB – 23-07-2002 – e data de entrada em juízo da presente acção executiva – 19 de março de 2018, foi com enorme surpresa que a embargante se vê confrontada com a reclamação do crédito.

5 – Esteve durante todo este período de tempo, perfeitamente convencida que a responsabilidade da mutuária estava e tinha sida cumprida.

6. Não pode ser normal, um garante, no caso um avalista, decorridos cerca 17 anos após ter avalizado uma livrança, ser surpreendido por uma acção executiva, por incumprimento verificado em 23 de julho de 2002!!!

7 - Este é um facto que deve relevar para a procedência total dos embargos, Facto objetivo, sem necessidade de mais considerações suplementares.

8 – O facto de um titular de um direito o não o ter exercido durante um lapso de tempo significativo, no caso sub judice, muito significativo, essa inação criou no espirito da avalista, ora embargante, que já não viria a ser exercido, uma vez que confiou no cumprimento atempado da obrigação da devedora, acrescido do facto de nada lhe ser comunicação em sentido contrário, até ao momento da citação para a presente execução de que se embarga.

9 - Esta confiança merece a tutela do direito da ordem jurídica através de um impedimento a esse exercício tardio e consequentemente atribuindo à contraparte um direito subjectivo obstaculizador.

10 - O não exercício, prolongado do direito à execução do crédito tendo em atenção o seu vencimento e a data da instauração da execução, tendo em conta as parte envolvidas, uma entidade financeira ( N... S. A, e uma simples avalista, a falta de qualquer comunicação do incumprimento da devedora principal, é obviamente suscetível de causar na contraparte, tendo em consideração as expectativas de contraente comum (o bonnus pter familiae), um sentimento de confiança justificado que o crédito já não lhe seria cobrado, porque cumprido.

11- Estamos perante o termo suppressio, que é a tradução latina por Menezes Cordeiro, ma sua tese de doutoramento “Da Boa – fé no direito civil “, da figura da Verwirkung do direito alemão. Veja a este propósito o Ac. do TRC, de 24-11-2020, relatora, Sílvia Pires.

12 – Pelo que se verificando a figura da suppressio, nos casos dos autos devem os presentes embargos serem considerados completamente procedente, por provados.

ASSIM, FARÃO, VOSSA EXCELÊNCIAS A COSTUMADA JUSTICA!!!!».

O Recorrido contra-alegou, concluindo pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos tais regime e efeito fixados ([2]).

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes – nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber (em matéria de direito):

a) Se foi violado o pacto de preenchimento da livrança emitida parcialmente em branco;

b) Se ocorre abuso do direito do Exequente/Apelado, paralisando/obstaculizando, por via do exercício tardio, o direito de crédito exequendo.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada – sem controvérsia nesta parte ([3]) – a seguinte factualidade como assente:

“a. O Exequente celebrou com BB, em 08/03/2001, um contrato de crédito ao consumo regido pelas seguintes condições particulares

[mostra-se digitalizada parte de um documento, sem outra indicação de proveniência, a fls. 21 do processo físico, correspondente à pág. 2 da sentença, em modo fotográfico, impedindo o uso em modo de tratamento de texto ([4]).

Desse documento consta:

Montante (Inclui prémio de seguro, se aderiu)                       2 112 455,00PTE

Prazo:            60 meses           Carência               0 Meses

Taxa de Juro: a taxa de juro anual e nominal será de 17,5000%;

a taxa de juro anual de encargos efectiva global inicial (TAEG) será de 20,418%.

Reembolso: em prestações MENSAIS iguais e sucessivas de capital e juros, podendo a primeira prestação ser de valor diferente, por débito da vossa conta à ordem n.º ....

Para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades ora assumidas, V.Exas.(s) entrega(m) ao N... S. A uma livrança com a cláusula “não à ordem” subscrita por

BB

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e avalizada por

CC

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livrança esta cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o Banco os fixe na data que julgar conveniente pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos, completando assim o seu preenchimento.

Todos os intervenientes dão o seu assentimento à entrega desta livrança nos termos e condições em que ela é feita, pelo que também assinam este contrato.]

b. No referido contrato consta ainda

[mostra-se digitalizado segmento manuscrito de documento, podendo ler-se:

«Damos o nosso Acordo

AA

BI: ... – 14-01-98 - ...»]

c. O Exequente apresentou como titulo executivo uma livrança emitida em 2001-03-08 e com data de vencimento em 2018-03-09, na importância de 36.137,92 euros, subscrita por BB e avalizada, para além do mais por AA.

d. A livrança foi emitida e entregue ao Exequente para garantia das obrigações assumidas no contrato de crédito ao consumo N... S. A celebrado por BB em 08 de março de 2001, com o montante e data de vencimento em branco.

e. O montante aposto na livrança respeita a

[mostra-se digitalizado outro documento, podendo ler-se:

«Capital                                                                                       8.521,21 EUR

Juros devidos desde 23-jul-2002, à taxa de 19,500%               26.356,70 EUR

Comissões                                                                                        24,95 EUR

Imposto do Selo s/ Juros + Comissões                                        1.055,27 EUR

Selagem da livrança                                                                        179,79 EUR

TOTAL DA LIVRANÇA A PAGAR                                              36.137,92 EUR»]”.

          B) O Direito

1. - Da violação do pacto de preenchimento da livrança

Como já enunciado, a primeira questão a decidir é a de saber se, tendo a Executada/Embargante/Apelante avalizado uma livrança que fora subscrita parcialmente em branco (pela devedora/mutuária), para depois vir a ser preenchida, sendo o caso, pelo mutuante (banco ora Exequente/Embargado/Apelado), de acordo com um celebrado pacto de preenchimento, ocorreu violação desse pacto pelo banco credor.

Refere a Apelante (avalista) que a livrança, ao abrigo de tal pacto, deveria ter sido preenchida logo que se verificasse o incumprimento, ou em prazo razoável (conclusão 2.ª), o que, a seu ver, não aconteceu, por o inadimplemento (pela mutuária/devedora) ter ocorrido em 23/07/2002 e a execução ter sido instaurada em março de 2018, tendo passado cerca de 17 anos desde a aposição do aval (conclusões 3.ª a 6.ª).

Ora, sendo o regime da obrigação cartular distinto dos demais negócios jurídicos, nele sobressaindo os critérios da incorporação da obrigação no título, literalidade, em que o título se define pelos exatos termos que dele constem, autonomia do direito do portador legítimo do título e abstração, em que a existência e validade da obrigação prescinde da causa que lhe deu origem, basta à execução, fundada em título cambiário, a apresentação desse título e a não demonstração pelo demandado, no caso de título emitido/entregue em branco, de ter sido incumprido o pacto de preenchimento ([5]).

O aval, por sua vez, configura-se como uma garantia da obrigação cambiária, destinando-se a garantir o seu pagamento. Assim, o avalista não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre o portador e o subscritor da livrança, mas tão só sujeito da relação subjacente ao ato cambiário do aval. A obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado, mantendo-se mesmo no caso de a obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, como resulta do disposto no art.º 32.º da LULLiv. ([6]).

Ante, pois, a dita natureza e características dos títulos cambiários enquanto títulos executivos, bem se compreende que a parte exequente, como portadora legítima do título, não careça de alegar no requerimento executivo a relação subjacente.

Com efeito, se o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, certo é que a sua obrigação se mantém, até no caso de a obrigação garantida ser nula, a não ser que a nulidade decorra de um vício de forma (dito art.º 32.º da LULLiv.).

Daqui se extrai, por um lado, que a obrigação do avalista é formalmente subsidiária/acessória da obrigação garantida, por isso dotada de uma extensão e de um conteúdo que se aferem pela obrigação da pessoa avalizada, nos moldes constantes do título, e, por outro lado, que a responsabilidade do avalista/garante é inequivocamente autónoma.

É, pois, consabido ([7]) ser à parte embargante, na oposição à execução, que invoca o preenchimento abusivo da livrança dada à execução (matéria de exceção), que caberá o ónus da prova dos factos ilustrativos do abuso invocado (no caso, preenchimento clamorosamente tardio face ao âmbito acordado).

Vejamos, então, se dos factos provados – os únicos a considerar para decisão do recurso – pode extrair-se a conclusão de que ocorreu preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por violação do acordado quanto ao tempo/prazo para o seu integral preenchimento.

Resulta provado que tal livrança se insere numa mais ampla relação contratual de mútuo bancário, tendo sido celebrado um contrato de crédito ao consumo em que aquela figura como elemento instrumental, com escopo garantístico, mormente quanto ao aval de que tratamos, contrato esse regido por condições particulares, em que se incluía o montante (2.112.455,00 PTE), o prazo (60 meses), as taxas de juro, o modo de reembolso (em prestações mensais) e, quanto ao que agora mais importa, a garantia (para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades assumidas, estabeleceu-se a entrega ao banco de uma livrança, subscrita pela mutuária e avalizada pela ora Apelante).

Especificamente quanto a tal livrança avalizada, ficou pactuado que os respetivos montante e data de vencimento se encontravam em branco, para permitir ao banco credor a sua fixação na data que julgasse conveniente, pelo montante que compreenderia o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos, completando assim, em caso de incumprimento pela devedora/mutuária, o seu preenchimento.

Mais ficou exarado que «Todos os intervenientes dão o seu assentimento à entrega desta livrança nos termos e condições em que ela é feita, pelo que também assinam este contrato».

Assim sendo, resulta claro que não foi fixado um prazo para o preenchimento, nem estabelecida uma data para o vencimento. Ao contrário, permitiu-se expressamente ao credor – concedendo-se-lhe essa liberdade/prerrogativa – a fixação do vencimento, com o preenchimento da livrança, na data que julgasse conveniente, em função daquele incumprimento, posto tratar-se de um crédito com reembolso em elevado número de prestações mensais, a poder, por isso dilatar-se no tempo, com inerentes repercussões temporais sobre o eventual incumprimento pela devedora ([8]), âmbito em que operaria – só então – a garantia constituída pela livrança e respetivo aval.

Não se verifica, pois, que a livrança tivesse de ser preenchida logo que ocorresse situação de incumprimento (para o qual poderia, eventualmente, haver remédio ou tentativas de remediar), nem que haja sido excedido o “prazo razoável”.

É certo que a livrança foi emitida em 2001 e lhe veio a ser aposta a data de vencimento de 09/03/2018, o que excede em muito o prazo prestacional originariamente convencionado.

Mas também é líquido que o preenchimento, de acordo com o pacto estabelecido, não ficou condicionado a tal prazo prestacional, sendo muito claro o convencionado no sentido – e é este o ponto decisivo – de caber ao banco fixar o vencimento, com o preenchimento da livrança, na data que julgasse conveniente, não vindo discutida, in casu, a ocorrência do evento de incumprimento.

O critério eleito é, pois, o da conveniência do credor, razão pela qual cai por terra, na falta de outra factualidade concludente de suporte, a tese da Apelante da irrazoabilidade da conduta desse credor, por via de excessiva/intolerável morosidade no preenchimento da livrança, na perspetiva da violação do pacto de preenchimento, a qual não pode, assim, ter-se por verificada.

Donde o decaimento, salvo o devido respeito, das conclusões da Apelante em contrário.

2. - Do abuso do direito de crédito exequendo

Importa agora saber se ocorre abuso do direito do credor, aqui Exequente/Recorrido, de molde a paralisar/obstaculizar, por exercício intoleravelmente tardio, o direito de crédito exequendo.

Com efeito, a Apelante invoca, para tanto, um exercício intoleravelmente tardio do direito, como tal, abusivo, por contrário ao princípio da boa-fé.

Para a Recorrente uma tão prolongada inércia do credor (ao longo de invocados cerca de 17 anos) criou naquela, enquanto avalista da livrança, a «perfeita convicção» de estar «a responsabilidade da mutuária» (sua irmã) integralmente satisfeita/extinta, pelo cumprimento (cfr. conclusão 5.ª).

Donde que o exercício da ação executiva, nos termos em que formulado, se apresentasse, sem mais, como anómalo e improcedente (cfr. conclusões 6.ª e 7.ª).

Ademais, a Recorrente, perante tão longa inércia, criou a convicção de que o direito já não viria a ser exercido, tendo confiado no cumprimento atempado pela devedora, o que foi reforçado pela total falta de comunicação do banco credor (cfr. conclusão 8.ª).

Houve, pois, nesta ótica, criação de expetativas, alimentadas pelo credor, e decorrente confiança da avalista, no sentido de ter ocorrido cumprimento, a dever deixar impedida uma tardia cobrança do crédito, concorrendo, para tanto, a figura jurídica da suppressio, integrante do abuso do direito (cfr. conclusões 10.ª a 12.ª).

Contrapõe o Recorrido (nas conclusões da sua contra-alegação) que:

«17. O mero decurso do tempo, sem que seja acompanhado de uma qualquer conduta positiva nesse sentido, não permite ao devedor invocar como legítima a confiança que criou de que existiu uma renúncia por parte do credor ao exercício do direito a cobrar o seu crédito.

18. De facto, resulta do próprio decurso do tempo a penalização para o credor cuja atuação é caracterizada pela inércia, ou seja, a prescrição do crédito e/ou dos juros correspondentes.

19. A invocada figura da suppressio, enquanto uma das modalidades do abuso do direito, serve efetivamente para tutelar a crença do devedor no sentido em que o direito não seria exercido. Não obstante, exigem-se razões suplementares que sejam passíveis de justificar tal confiança, não bastando o mero decurso do tempo, por si só, para invocar este instituto.

20. Deste modo, é possível de se concluir que o Recorrido não adotou qualquer conduta que pudesse ter criado na Recorrente a convicção de que esta se encontrava desvinculada ou desobrigada de quaisquer responsabilidades pessoais assumidas em virtude do aval prestado.

21. Muito menos de que o Exequente não iria acionar a garantia que na sua posse detinha e que para esse efeito foi dada, enquanto título para cobrança do seu crédito.».

E já na fundamentação jurídica do saneador-sentença se sublinhara assim:

«(…) no que respeita ao vencimento, as partes não balizaram o período de tempo durante o qual os obrigados cambiários poderiam ficar sujeitos ao preenchimento do titulo.

A Lei Uniforme das Letras e Livranças também não o faz.

Carece, desta forma, de fundamento, o invocado preenchimento abusivo da livrança porquanto, quanto à data de vencimento, nada ficou estipulado.

b. A ausência de estipulação (legal e convencional) não significa que o credor possa preencher o titulo ou nele inserir a data de vencimento que lhe aprouver.

Na verdade, a livrança destinou-se a garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades assumidas no contrato de crédito ao consumo mencionado.

Isto quer dizer que só verificado o incumprimento do contrato de crédito pode ocorrer o preenchimento da livrança.

A Embargante sustenta que ao preencher a livrança mais de 15 anos depois do incumprimento, a Exequente age em abuso de direito.

Porém, tem sido entendimento da jurisprudência que o decurso do tempo, desacompanhado de outros factos que indiciem a intenção de não exercer o direito, não configura abuso de direito.».

Vejamos.

Para a Recorrente um tal comportamento tardio do credor surgiria como manifestamente abusivo e oposto aos ditames da boa-fé objetiva (art.º 334.º, n.º 1, do CCiv.), ao pretender-se o pagamento quando o tempo decorrido e a inércia inerente – sem qualquer comunicação à avalista – fizeram criar a convicção segura de que já nada seria pedido, fundando a expetativa de que um tal comportamento letárgico só podia decorrer do cumprimento (satisfação oportuna do crédito).

Porém, dos factos provados não resulta aquela invocada total ausência de comunicação do credor à avalista, pelo que não pode a mesma ter-se por adquirida.

E é certo que – como enfatizado no Ac. TRC de 23/11/2021, deste mesmo coletivo, Proc. 3361/18.1T8VIS.C1 (Rel. Vítor Amaral), disponível em www.dgsi.pt – «O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, num campo normativo onde operam subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé». Pode, pois, dizer-se que «A boa-fé objetiva, com acolhimento na figura do abuso do direito, postula a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável e transparente, sempre reportada ao correto agir, ao viver honesto, à atuação como pessoa de bem» – cfr. Ac. TRC de 09/11/2021, Proc. 108/13.2RTPNH-A.C1 (com o mesmo relator e coletivo), também em www.dgsi.pt.

No caso, sabido que se trata de um crédito reembolsável em lato plano prestacional, da factualidade provada não resultam evidenciadas as vicissitudes da relação tendente ao cumprimento, tal como estabelecida entre credor e devedora (relação subjacente ao título avalizado).

Assim, não se conhece, designadamente, quando deixaram de ser pagas as prestações, se houve subsequentes negociações entre as partes (mutuante e mutuária), se foi estabelecido, ou não, um novo plano prestacional, se foi concedida alguma moratória (e qual o decorrente arrastamento no tempo).

Apenas se sabe – isso sim – que a livrança foi emitida em 2001, que lhe veio depois a ser aposta a data de vencimento de 09/03/2018 e que a execução foi intentada nesse mesmo ano (2018).

Com o que temos demonstrado o decurso de um muito largo período temporal, mas sem se saber como evoluiu, em concreto, a relação contratual entre mutuante e mutuária (no plano do pretendido cumprimento).   

Por isso, no desconhecimento desta circunstância, parece não poder formular-se um juízo de censura – por abuso e contraditoriedade à boa-fé objetiva – sobre o credor pelo exercício tardio/demorado do direito de acionar a avalista.

Isto é, aquele decurso do tempo, de per se, não permite censurar, no quadro das exigências do princípio da boa-fé, a conduta em análise, tanto mais que não se mostra que o banco credor tenha adotado qualquer comportamento que permitisse criar a convicção (ou fundar a expetativa e a confiança) de que já tinha ocorrido cumprimento integral ou que renunciava ao seu direito.

O simples decurso do tempo – ainda que por longo período temporal, como no caso –, com a inerente inação do credor, mas com posterior recurso à ação executiva, não permite, sem mais, que se considere existir uma atuação em abuso do direito, por não se poder concluir que com a ação para satisfação coerciva do crédito se excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, designadamente na modalidade de suppressio, decorrente da criação de uma situação objetiva de confiança na parte contrária de que não se exerceria o direito, violando-se a confiança da contraparte.

Se a Recorrente confiou que a sua irmã havia cumprido o contrato, tal confiança não resulta de qualquer comportamento apurado do credor, para o que não bastaria a demora deste na exigência do crédito.

Nada na factualidade provada permite concluir que o credor iria abrir mão da livrança ou desistiria do crédito ou o considerava já satisfeito.

O decurso do tempo não pode, sem mais, ser lido dessa forma, tanto mais que a lei estabelece sanções para a longa inércia do credor, com possibilidade de prescrição do crédito e dos juros.

Aliás, no caso sentenciou-se no sentido de ocorrer, em parte substancial, prescrição quanto a juros, com o que se evita situações de possível abuso do credor que pretenda usar de inércia (sua) para avolumar os juros correspondentes ao capital mutuado, em prejuízo do devedor ou do respetivo avalista ([9]).

E não se conheceu da prescrição do capital em dívida por apenas ter sido excecionada a prescrição de juros (cfr. petição de embargos), o que ocorreu, obviamente, por se ter perspetivado não ter decorrido o prazo prescricional legalmente estabelecido para tanto ([10]).

Isto é, em tais casos, para situações de inércia (decorrentes do mero decurso do tempo), a própria lei se encarregou de estabelecer a sanção para o credor letárgico, qual seja, a da prescrição (quanto a capital e juros), razão pela qual não será de invocar a figura subsidiária (válvula de escape do sistema, para situações de manifesta/intolerável injustiça) da suppressio integrante do abuso do direito e tributária das exigências do princípio da boa-fé.

A suppressio, agora invocada de forma nominativa ([11]), traduz-se na «situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé» ([12]).

Implica uma «demora desleal no exercício do direito, contrária à boa fé», requerendo-se «indícios objectivos de que esse direito não mais seria exercido», mas sempre a constituir uma «saída extraordinária, insusceptível de aplicação sempre que a ordem jurídica prescreva qualquer outra solução. Tem, pois, natureza subsidiária» ([13]).

Ora, in casu, apenas se apura – reitera-se – o não exercício do direito creditório durante um longo lapso temporal, sem que se provem indícios objetivos de que esse direito não mais seria exercido, uma conduta do credor que manifestasse alguma intenção de não exercício ou que exprimisse uma alusão a um cumprimento/satisfação já ocorrido, de molde a criar a convicção e a expetativa, geradoras de confiança fundada, em que a livrança jamais seria acionada judicialmente no âmbito coercivo ou que a avalista seria poupada.

Por outro lado, o sistema jurídico prevê, como visto, outra solução para situações de prolongada letargia do credor, castigando-o, decorrido certo tempo, com a prescrição do direito de crédito, seja quanto ao capital, seja quanto a juros. O que deixa afasta a operância subsidiária da figura do abuso do direito, na modalidade da suppressio.

Por fim, nada se prova quanto a uma conduta desleal ou desonesta do credor, em termos de aberta/frontal contradição com as exigências da boa-fé, de molde a tornar intolerável, face ao sentido de justiça dominante, o exercício do direito na esfera executiva contra a avalista.

Em suma, inexiste abuso do direito, improcedendo as conclusões da Apelante em contrário, termos em que é de manter a decisão recorrida.

***

(…)
***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

Custas da apelação a cargo da Embargante/Apelante (vencida no recurso), sem prejuízo do eventual benefício do apoio judiciário.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 14/06/2022

         

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro




([1]) Com o valor de € 36.137,92.
([2]) A Recorrente havia pedido efeito suspensivo, sem adiantar razões para tanto, o que não foi acolhido pelo Tribunal a quo, com subsequente despacho do aqui Relator em conformidade (aquando da determinação para inscrição em tabela).
([3]) Por ausência de correspondente impugnação da decisão da matéria de facto.
([4]) Deve dizer-se que a digitalização e colagem de documentos (em modo fotográfico), ou de partes de documentos, no elenco dos factos provados, para além de não fazer a necessária destrinça adequada entre factos e documentos, não corresponde ao imperativo de discriminação fáctica a que alude o art.º 607.º, n.º 3, do NCPCiv., recorrendo/incorrendo, em nova versão, na difundida confusão de pretérito entre factos e documentos, quando, em adoção de prática não adequada, se dava simplesmente por reproduzido na parte fáctica da sentença o teor de determinados documentos, muito embora bem se soubesse – e continua a saber – que uma coisa são os factos e outra os documentos, que são apenas (estes) elementos de prova, servindo, pois, para prova dos factos, uns (os factos) a terem assento na parte fáctica da sentença e outros (os documentos) a serem, enquanto elementos/meios de prova, atendidos/valorados na justificação da convicção probatória do Tribunal (cfr. n.ºs 4 e 5 do mesmo art.º), e não mais. Bem se entende, assim, o exarado no Ac. TRC de 08/03/2022, Proc. 586/16.8T8PBL-C.C1 (Rel. Fonte Ramos), em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação pode ler-se: «A Mm.ª Juíza a quo não elaborou a sentença segundo o disposto, nomeadamente, no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte [“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados (...)”] e 4 [“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (...)”] do CPC. // Na verdade, os citados normativos sobre a elaboração da sentença não foram devidamente observados quanto à factualidade a que se alude em (…), supra, sabendo-se que “os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados”, razão pela qual, na fixação da matéria de facto, sempre importará indicar, expressamente, os factos provados pelos documentos, não bastando “dar como reproduzidos” os documentos ou realizar uma simples “cópia e colagem” do seu teor. // Ademais, se, eventualmente, a alegação dos factos tiver sido feita com remissão para os documentos, deverá o juiz selecionar os factos incluídos ou decorrentes de tais documentos que importem à decisão da causa (…)» (itálico aditado).
([5]) Assim o Ac. do STJ de 30/09/2010, Proc. 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1 (Cons. Alberto Sobrinho), em www.dgsi.pt.

([6]) Cfr. ainda o aludido Ac. do STJ de 30/09/2010.
([7]) Cfr., por todos, deste mesmo coletivo, o Ac. TRC de 25/06/2019, Proc. 3867/16.7T8VIS-A.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt.
([8]) Relação de cumprimento continuado e duradouro, com possibilidade de renegociação/dilatação de prazos, se necessário, em caso de dificuldades da devedora e mediante assentimento do credor. Com efeito, é consabido que, com frequência, em caso de incumprimento do contrato de mútuo bancário pelo devedor, se abre um processo negocial, mais ou menos moroso, em que o banco credor, em vez de partir logo para a execução patrimonial, pode conceder novas possibilidades de pagamento, designadamente com alargamento de prazos para tal.
([9]) Note-se que, no caso, o valor dos juros pretendidos (€ 26.356,70) era substancialmente superior ao capital peticionado (€ 8.521,21), levando ao avolumar do valor global, o aposto na livrança (a ultrapassar os 36 mil euros).
([10]) Considerou, sem controvérsia, o Tribunal a quo: «A obrigação de restituição do capital mutuado encontra-se, por regra, sujeita ao prazo geral ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º do Código Civil. // O artigo 310.º, do Código Civil, consagra um prazo especial de cinco anos, mais curto, justificado pelo facto de se encontrarem em causa direitos que têm, em geral, por objeto prestações periódicas. // Os juros – convencionais ou legais – são uma das hipóteses expressamente abrangidas pelo referido curto de prazo de prescrição de cinco anos, por força da alínea d) do artigo 310.º CC. // À data em que a livrança foi preenchida, estavam, assim, prescritos todos os juros, convencionais ou legais, vencidos há mais de cinco anos».
([11]) Anteriormente, na petição de embargos, invocara-se essencialmente, embora de modo vago, «a proibição de comportamento contraditório» (cfr. art.º 16.º desse articulado).
([12]) Assim, por todos, António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 3.ª reimpressão, 2007, p. 797.
([13]) Cfr., op. cit., ps. 799, 810 e 812.