CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS
Sumário

A cláusula que exclui da garantia obrigatória do seguro “quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais” não se aplica aos danos sofridos por um veículo automóvel em consequência de um despiste num kartódromo, ocorrido quando o proprietário do veículo aí circulava após ter sido autorizado pelo responsável da pista a dar nela uma volta.

Texto Integral




Autores: AA
               BB
              CC

Ré: C..., S. A.

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
AA intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré:
a) a pagar-lhe a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos em consequência do acidente de viação a quantia de €70.611,65, a título de compensação pelos danos sofridos e a reparar na sua viatura;
b) a pagar-lhe a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos em consequência do acidente de viação a quantia de €1.700,00, a título de privação do uso do veículo.
c) a pagar os juros à taxa legal sobre as quantias peticionadas, desde a citação até ao seu integral e efectivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou em síntese, conforme consta do relatório da decisão proferida:
No dia 16 de abril de 2017, pelas 16.00 horas, ocorreu um acidente de viação na pista do ..., quando por ali circulava com o seu veículo de matrícula ..-SH-.., por si conduzido, o qual consistiu num despiste, que melhor descreveu.
Em virtude desse acidente, o seu veículo sofreu danos no montante de €72.611,65, tendo ficado privado do seu uso pelo período de 34 dias.
No âmbito do contrato de seguro que celebrara com a ré – e cujos termos melhor precisou – visa ser indemnizado do valor necessário para a reparação do seu veículo deduzida a franquia acordada de €2.000,00, e ainda, pela privação do uso daquele, no montante diário de €50.

A Ré contestou, excepcionando a sua responsabilidade pelo facto do acidente, do qual resultaram os danos cuja indemnização o Autor reclama, ter ocorrido na pista de um kartódromo, o que não está abrangido pelo contrato de seguro entre ambos celebrado e impugnou a factualidade atinente à ocorrência do acidente alegada pelo Autor, concluindo pela improcedência da acção.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Interposto recurso, por acórdão deste Tribunal que concluiu pela admissibilidade da resposta do Autor à contestação do Réu no que respeita à excepção por este deduzida – exclusão de cláusulas contratuais –, bem como à defesa por si deduzida nesse articulado, impõe-se a procedência deste fundamento do recurso, o que determina a inexorável anulação de todo o processado posterior à sua apresentação, porquanto a matéria da defesa do Autor aí apresentada nunca foi considerada após a sua apresentação, devendo o processo prosseguir, a partir daí os seus termos, revogou-se a decisão recorrida respeitante ao articulado de resposta apresentado pelo Autor em audiência, admitindo-se o mesmo e anulando-se todo o processado subsequente.

Por sentença proferida em 29.1.2021 foram, os agora Autores, habilitados como sucessores de AA falecido em .../.../2020.
Voltou a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.
         
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Os Autores interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Por sentença proferida nos autos de processo nº 2796/18...., do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi julgada improcedente, por não provada, a acção intentada pelo falecido autor.
2. A sentença recorrida padece de nulidade, nos termos das alíneas b) e d) do artigo 615º do CPC, dado que o tribunal a quo não fundamenta a decisão, com matéria de facto e com questões de direito.
3. Tal decisão do Tribunal recorrido padece de fundamentação legal e factual.
4. A sentença recorrida padece de uma nulidade pelo facto de violar direito substantivo e processual.
5. A sentença dá como provado que aquando a outorga do contrato de seguro celebrado entre o falecido autor e a Ré, esta disponibilizou aquele as respectivas condições gerais, especiais e particulares, sem que contudo tal facto tenha sido logrado provar pela Ré.
6. Não foi junto aos autos pela Ré qualquer documento comprovativo de que tais condições tenham sido disponibilizadas e entregues ao primitivo falecido autor, bem como a prova testemunhal arrolada pela Ré não referiu em momento algum que as condições gerais, particulares e especiais tenham sido disponibilizadas e entregues ao primitivo falecido autor, aquando a formação do contrato de seguro.
7. Apenas após o acidente em causa nos autos, por solicitação do primitivo autor, é que foram enviadas as condições gerais, especiais e particulares do seguro outorgado, conforme documentos juntos aos autos.
8. Incidia sobre a Ré o ónus de provar que o falecido autor tinha conhecimento de todas as cláusulas contantes no contrato de seguro (contrato de adesão), o que não logrou provar, pese embora a sua alegação em sede de Contestação das exclusões constantes na Apólice em causa.
9. A sentença recorrida não fundamenta como é que chegou à conclusão a que chegou, não fundamentando como chegou aos factos dados como provados e não provados, bem como, jurisprudencialmente e doutrinalmente não fundamenta a sua decisão.
10. A Ré não logrou alegar e provar o conhecimento completo e efectivo por parte do tomador do seguro na conclusão do contrato ou na fase a ela conducente, de acordo com o nº 3 do artigo 5º e artigo 6º do Decreto Lei nº 446/85 de 25 de Outubro (contratos de adesão).
11. A ré não alega e prova nada quanto ao cumprimento da sua obrigação quanto às cláusulas que invoca, das condições gerais do contrato de seguro, pelo que a consequência é, nos termos do artigo 8º do mesmo diploma legal (DL 446/85) a exclusão da mesma.
12. Nessa sequência, o falecido autor requereu a exclusão das normas constantes no contrato de seguro invocadas pela Ré para não aceitar a sua responsabilidade contratual.
13. A Ré violou o dever de informação consagrado nos preceitos legais supra referidos, tendo o falecido autor impugnado expressamente a cláusula 5ª e 38ª das condições gerais do contrato de seguro em causa nos autos, pois relativamente às mesmas não foi dado ao falecido autor conhecimento cabal e pleno.
14. A Ré não logrou provar que cumpriu com o dever de informação das cláusulas gerais, especiais e particulares do contrato de seguro.
15. No Acórdão proferido pelo STJ de 15-12-2011 – processo nº 4867/07.3TBSTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, foi considerado que: recai sobre a seguradora um particular dever de informação e esclarecimento do segurado quanto ao exacto âmbito dos riscos efectivamente cobertos, de modo a resultarem, no momento em que se procede à alteração contratual, plenamente apreensíveis os limites, condições e exclusões da cobertura acordada.(…).
16. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-07-2016 – processo nº 2246/14.5T8GMR, disponível em www.dgsi.pt, refere que: II – O não cumprimento desse dever, relativamente a uma cláusula de exclusão da cobertura do seguro, relacionada com uma das causas da morte do segurado (por cirrose hepática), determina a invalidade de tal cláusula e a sua exclusão do contrato. (…) “
17. Como se decidiu no Ac do STJ de 02-12-20l3 (disponível em www.dgsi.pt) «Dada a disparidade de poder entre as partes do contrato de adesão, assume um papel decisivo a garantia do "modelo de informação" ou "imperativo de transparência”, cuja finalidade é potenciar a formação consciente e ponderada da vontade negocial, parificando posições de disparidade cognitiva, quer quanto ao objeto, quer quanto às condições do contrato (…).
18. O Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 28-09- 2017, no processo 580/13.0TNLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt foi referido que, mencionou que: “2. Assim, o ónus de prova que recai sobre o proponente pressupõe a invocação, pelo aderente, da violação desses deveres por parte daquele (…) O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-03-2016 , no processo nº 4990/12.2TBCSC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, refere que “No contrato de seguro, o risco constitui um elemento essencial ou típico dessa espécie contratual, o qual se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento futuro e incerto, de natureza fortuita, com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato, e que deve existir quer aquando da sua celebração quer durante a sua vigência.
19. Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-01-2018, proferido no âmbito do processo nº 825/15.2T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt debruça-se sobre o assunto.
20. Atento o exposto nos Acórdãos referidos, é manifesto que perante a invocação por parte da seguradora da não responsabilidade pelo sinistro alegando que se trata de matéria inserida nas exclusões constantes no contrato de seguro, esta tem o ónus de provar que cumpriu com a sua obrigação contratual de informação, sob pena de as cláusulas invocadas serem consideradas excluídas do contrato de seguro.
21. A decisão proferida pelo Tribunal a quo entra em contradição com o teor dos arestos mencionados, pois a Ré não logrou efectuar qualquer prova documental ou testemunhal quanto ao cumprimento do dever de informação a que estava obrigada.
22. Ora, atento o exposto nos Doutos Acórdãos referidos, é manifesto que perante a invocação por parte da seguradora da não responsabilidade pelo sinistro alegando que se trata de matéria inserida nas exclusões constantes no contrato de seguro, esta tem o ónus de provar que cumpriu com a sua obrigação contratual de informação, sob pena de as cláusulas invocadas devem ser declaradas nulas e consideradas não escritas e consequentemente consideradas excluídas do contrato de seguro, com todas as consequências legais.
23. Não era o falecido autor que tinha a obrigação de promover a consulta, download ou impressão das condições gerais, particulares e especiais ou sequer de solicitar o envio das mesmas pelo correio, mas sim a ré é que tinha a obrigação de entregar toda a documentação do contrato de seguro a celebrar;
24. A seguradora invoca uma determinada cláusula para limitar a sua responsabilidade tendo de alegar e provar o seu conhecimento completo e efectivo por parte do tomador de seguro na conclusão do contrato ou na fase a ela conducente (arts. 5.º, n.º 3, e 6.º, do DL n.º 446/85, de 25-10) - O que não logrou fazer.
25. Não tendo a seguradora provado, conforme lhe competia, que cumpriu aquela obrigação quanto a determinada cláusula, a consequência é, nos termos do art. 8.º do DL n.º 446/85, de 25-10, a exclusão da mesma
(…).»
26. O artigo 5º nº 3 ao estabelecer que o ónus da prova de comunicação adequada e efectiva cabe ao predisponente das cláusulas, pretende salvaguardar que, se depois de celebrado o contrato com base em cláusulas contratuais gerais, o aderente vier a impugnar o contrato ou um segmento dele, impugnando, por exemplo, uma cláusula de exclusão do sinistro no âmbito da cobertura do contrato de seguro, não tem ele aderente de provar que lhe não foram concedidas possibilidades de conhecimento; Cabe, ao invés, ao predisponente a prova de que cumpriu esta obrigação e, assim, de que proporcionou ao aderente as condições para que ele conhecesse completa e efectivamente o regulamento contratual.
27. Necessário é, todavia, que o aderente impugne a cláusula específica e manifeste, relativamente à mesma, que dela não foi dado conhecimento cabal e pleno, o que efectivamente foi alegado pelo falecido autor nos autos, impugnando tais cláusulas.
28. O tribunal a quo considerou erradamente provado que: 22. Aquando da outorga do contrato de seguro referido em 9., a ré disponibilizou ao primitivo falecido autor as respetivas condições gerais, especiais e particulares.
29. Não se vislumbra como é que o Tribunal a quo chegou a esta conclusão, pois a Ré não fez qualquer tipo de prova de que tenha entregue ao falecido autor as condições gerais, especiais e particulares do seguro celebrado.
30. Sendo referido pelo Tribunal a quo que: Da apólice que titula aquele novo seguro consta, expressamente, que esse “contrato de seguro é constituído pela Proposta que lhe serviu de base, pelas presentes Condições Particulares e Condições Gerais e Especiais anexas”; dela constam as condições particulares aplicáveis ao contrato, assim como que “as condições gerais da apólice que integram o presente contrato de seguro estão disponíveis em ... para consulta, download ou impressão, e em qualquer Agência da Companhia. Podem ainda ser enviadas por correio, mediante solicitação pelo telefone ...90
31. Pois, de acordo com a sentença recorrida impendia sobre o falecido autor a obrigação de fazer o download das condições gerais, especiais e particulares do contrato de seguro bem como de solicitar que as mesmas lhe fossem enviadas por correio;
32. Tal situação entra em total contradição com a verificação do pressuposto de que as condições gerais, especiais e particulares do seguro outorgado tenham sido entregues ao falecido autor.
33. Tendo tal situação como consequência a declaração de nulidade das cláusulas de exclusão constantes no contrato de seguro, não podendo as mesmas ser aplicadas ao caso concreto.
34. Pela falta de qualquer prova quanto ao facto dado como provado em 22) dos factos provados o mesmo deve ser considerado como não provado.
35. No dia do sinistro dos autos o falecido autor encontra-se a circular com o seu veículo de forma adequada e prudente, não se encontrando a fazer qualquer prova desportiva de cariz automobilístico.
36. A conclusão retirada pelo Tribunal quanto à eventual imprudência e inadequação do falecido autor, carece de qualquer fundamento.
37. Considerou ainda o Tribunal que: “E tanto foi assim, no caso, que o falecido autor perdeu o controlo do seu veículo – o que, na ausência do conhecimento de outros factos que apontem em sentido diverso, indicia que não andaria em marcha branda …, não pode deixar de indiciar que o falecido autor circularia a uma velocidade elevada, certamente que superior àquela que imprimiria ao veículo se estivesse a circular por uma via aberta ao trânsito regular e se observasse as normas que aí lhe seriam impostas pela legislação que disciplina a circulação rodoviária (…)”
38. Tal conclusão quanto à velocidade a que o veículo do falecido autor embateu é manifestamente infundada pois não foram efectuadas quaisquer diligências de prova no sentido de apurar qual a velocidade do embate, não podendo o tribunal a quo, retirar da prova produzida que o veículo do falecido autor circulava a uma velocidade excessiva e que por tal motivo não se fazia um uso normal do veículo.
39. O falecido autor encontrava-se a circular numa via pavimentada, fazendo uma utilização prudente e normal do veículo, não tendo ficado provado que o mesmo fazia uma utilização imprudente e inadequada.
40. Deve ser considerado como provado que: o falecido autor fazia uma utilização prudente e adequada do veículo, tendo em consideração as passagens dos depoimentos das testemunhas DD e EE a fls… dos autos.
41. O facto considerado não provado: a) Que o acidente tenha ocorrido “aquando da utilização normal e prudente do veículo propriedade do falecido autor”, deve ser considerado como provado
42. Sendo aditado aos factos provados: Que o acidente tenha ocorrido “aquando da utilização normal e prudente do veículo propriedade do falecido autor”
43. O tribunal a quo considerou não provado: e) – Que o primitivo falecido autor, aquando da outorga do contrato de seguro supra identificado, não tenha sido informado das respetivas condições gerais e particulares
44. Não foi feita qualquer tipo de prova pela Ré, como lhe assistia, no sentido de confirmar que ao falecido autor terão sido disponibilizadas as condições gerais, especiais e particulares aquando a celebração do contrato de seguro.
45. Deve o facto considerado não provado em e) ser considerado como provado: Que o primitivo falecido autor, aquando da outorga do contrato de seguro supra identificado, não tenha sido informado das respetivas condições gerais e particulares, devendo ser aditado aos factos dados como provados.
46. O acidente em causa nos autos encontra-se coberto pelo contrato de seguro em apreço motivo pelo qual deve a sentença recorrida ser revogada por outra que julgue a acção totalmente procedente, condenando a ré a pagar aos habilitados do falecido autor todos os danos patrimoniais que o primitivo autor sofreu em consequência do sinistro e considerados como provados, bem como a proceder à reparação da viatura sinistrada.
47. O tribunal recorrido fez uma valoração errada da matéria em discussão, nomeadamente, por violação da legislação e jurisprudência.
48. Deve a sentença recorrida ser revogada sendo substituída por outra que julgue totalmente procedente a acção, condenando a Ré no pagamento do valor do pedido.    
Conclui pela procedência do recurso.

A Ré apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

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1. Do objecto do recurso
Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:
- A sentença é nula, por falta de fundamentação e excesso de pronúncia ?
- O facto constante do ponto 22 deve ser julgado não provado ?
- Os factos constantes das alíneas a) e e) devem ser julgados provados ?
- Devem considerar-se excluídas do contrato as cláusulas invocadas pela Ré para excluir a sua responsabilidade por indemnizar os estragos sofridos pelo veículo do Autor em resultado do acidente em causa nos presentes autos ?

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2. Das nulidades da sentença
O Autor imputa à sentença proferida o vicio da nulidade, invocando o disposto no art.º 615º, n.º 1, alíneas b) e d), do C. P. Civil.
Para demonstrar a verificação das indicadas nulidades o Autor alega: 
… a sentença recorrida encontra-se ferida de nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. b) e d) do CPC, uma vez o Tribunal a quo não fundamenta a decisão, quer através de fundamentos de facto, quer através de questões de direito.
 O tribunal a quo limita-se a considerar improcedente o pedido, não tendo ponderado a prova produzida, ou a falta de prova produzida pela Ré, de forma a condenar a Ré a ressarcir o Autor dos danos sofridos com o acidente em causa nos autos.
Assim, entende o recorrente que a sentença recorrida está ferida de nulidade, conforme exposto.
Pois a sentença dá como provado que aquando a outorga do contrato de seguro celebrado entre o falecido autor e a Ré esta disponibilizou aquele as respectivas condições gerais, especiais e particulares, sem que contudo tal facto tenha sido logrado provar pela Ré.
Todavia, não foi junto aos autos pela Ré qualquer documento comprovativo de que tais condições tenham sido disponibilizadas e entregues ao primitivo falecido autor, bem como a prova testemunhal arrolada pela Ré não referiu em momento algum que as condições gerais, particulares e especiais tenham sido disponibilizadas ao primitivo falecido autor.
Assim, incidia sobre a Ré o ónus de provar que o falecido autor tinha conhecimento de todas as cláusulas contantes no contrato de seguro (contrato de adesão), o que não logrou provar, pese embora a sua alegação em sede de Contestação das exclusões constantes na Apólice em causa.
Padece assim a sentença recorrida de nulidade, atento o exposto.
A sentença recorrida não fundamenta como é que chegou à conclusão a que chegou, não fundamentando como chegou aos factos dados como provados e não provados, bem como, jurisprudencialmente e doutrinalmente não fundamenta a sua decisão.
Padece assim de uma nulidade.
Dispõe o art.º 615, n.º 1:
É nula a sentença quando:
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.
Quanto à primeira das causas de nulidade invocada diremos que a mesma não se verifica.
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do art.º 607º, n.º 3º do C. P. C. que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo citado.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
No caso em apreço o juiz fundamentou a sua decisão, pelo que independentemente do seu acerto conclui-se que não se verifica esta causa de nulidade.
Invoca ainda o Autor a nulidade referida na alínea d), do n.º 1 do art.º 615º do C. P. Civil, alegando que o tribunal julgou provado um facto que realmente não está provado. Este fundamento não integra qualquer uma das causas de nulidade da sentença, mas sim uma discordância relativamente á decisão da matéria de facto.
Não se verificam, pois, as invocadas nulidades da sentença.

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3. Os factos
Os Autores discordam do julgamento da matéria de facto que julgou provado o facto n.º 22 e  não provados os constante das alíneas a) e e).
Tais factos são:
22. Aquando da outorga do contrato de seguro referido em 9., a ré disponibilizou ao primitivo autor as respetivas condições gerais, especiais e particulares.
a) - Que o acidente tenha ocorrido “aquando da utilização normal e prudente do veículo propriedade do autor”.
e) – Que o primitivo autor, aquando da outorga do contrato de seguro supra identificado, não tenha sido informado das respetivas condições gerais e particulares.
A prova do facto 22 encontra-se fundamentada nos seguintes moldes:
No que concerne à questão de saber qual o conhecimento que o primitivo autor tinha acerca das cláusulas do contrato de seguro, aquando da respetiva outorga, nenhuma prova foi diretamente produzida.
Dos elementos carreados para os autos, resulta, nomeadamente, que:
- O falecido autor era pessoa instruída.
- Foi o próprio autor quem juntou aos autos, com a sua petição inicial, as condições gerais, especiais e particulares do contrato de seguro em apreço (documento 1), sem que haja levantado qualquer obstáculo à sua validade e eficácia, sendo que, nessa ocasião, já conhecia a posição da aqui ré no sentido de invocar algumas dessas cláusulas para considerar o sinistro excluído do âmbito do seguro – cf. documentos 6 e 7 juntos com a contestação.
- Aquando da negociação do contrato de seguro, o autor fez-se representar por profissional do setor, mais precisamente, por uma corretora de seguros – vide documento 8 junto com a contestação -, representação essa que se mantinha aquando da participação do sinistro – cf. documento 2 junto com o mesmo articulado -, do que se extraia que sempre esteve representado e assessorado por profissional do ramo de seguros (sendo pouco crível que o contrato tivesse sido outorgado sem que hajam sido ponderadas as respetivas cláusulas, ou diretamente pelo autor, ou através da corretora que o representou junto da ré).
- Da apólice que titula aquele novo seguro consta, expressamente, que esse “contrato de seguro é constituído pela Proposta que lhe serviu de base, pelas presentes Condições Particulares e Condições Gerais e Especiais anexas”; dela constam as condições particulares aplicáveis ao contrato, assim como que “as condições gerais da apólice que integram o presente contrato de seguro estão disponíveis em ... para consulta, download ou impressão, e em qualquer Agência da Companhia. Podem ainda ser enviadas por correio, mediante solicitação pelo telefone ...90”.
- O primitivo autor, quando participou o sinistro e quando, posteriormente, em depoimento, o descreveu, referiu que circulava “nas instalações do ..., em ...” (documentos 3 e 4 juntos com a contestação) e não na respetiva pista, o que se valora como indiciando o conhecimento do âmbito do seguro e a consciência das previsíveis objeções da ré, no sentido de não assumir a responsabilidade pela indemnização pretendida, decorrentes do local (privado, destinado exclusivamente à prática de desportos motorizados, fora de via pública ou equiparada) em que aquele sinistro se deu.
Da ponderação conjunta e crítica desses elementos, à luz das regras da experiência comum, extraiu-se a convicção da veracidade do facto 22. e a infirmação do facto inserto em e), que, aliás, não foi confirmado, direta ou indiretamente, por qualquer meio de prova.
O facto não provado referido em a) foi fundamentado pela seguinte forma:
Mais precisamente, acerca do facto a que se refere a alínea a) dos factos não provados – que, aliás, se admite ser conclusivo, mas, por cautela, se julgou ser preferível englobar no julgamento da matéria de facto – pensa-se ser facto notório que quem ingressa numa pista destinada a corridas de veículos motorizado, com um carro topo de gama, que, como referido pela testemunha FF, é um desportivo de corrida homologado para circular em vias normais, não o faz para com ele passear, como se estivesse numa normal via aberta ao trânsito.
E tanto foi assim, no caso, que o falecido autor perdeu o controlo do seu veículo – o que, na ausência do conhecimento de outros factos que apontem em sentido diverso, indicia que não andaria em marcha branda – e, ao embater com ele no muro, causou danos significativos nesse muro (veja-se o custo da reparação mencionado no documento 4 junto com a contestação) e danos avultados no próprio veículo, o que, sopesado à luz das regras da experiência comum, não pode deixar de indiciar que o autor circularia a uma velocidade elevada, certamente que superior àquela que imprimiria ao veículo se estivesse a circular por uma via aberta ao trânsito regular e se observasse as normas que aí lhe seriam impostas pela legislação que disciplina a circulação rodoviária.
Ponderado o tipo de considerações que, muito sumariamente, se acabaram de aludir, ficou-se com a convicção de que a verdade dos factos será contrária à da mencionada alínea a), assim se havendo imposto o seu julgamento negativo.
Da audição da prova produzida resulta:
DD, FF, EE, GG, não revelaram, nos seus depoimentos, conhecimento da factualidade em causa no facto 22 e e).
HH, funcionário da Ré – gestor de sinistros -  declarou que não teve intervenção na fase negocial do contrato de seguro, e explicou que na proposta do contrato não constam as exclusões nem as condições gerais do contrato de seguro que dele constarão posteriormente.
O facto 22º -  Aquando da outorga do contrato de seguro referido em 9., a ré disponibilizou ao primitivo autor as respetivas condições gerais, especiais e particulares – foi julgado provado com base numa presunção.
Nos termos do disposto no art.º 349º do C. Civil:
As presunções são ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhe­cido para firmar um facto desconhecido.
As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais. No caso em apreço, somente, nos interessam as judiciais.
Estas presunções só são admitidas nos casos e termos em que é admissí­vel a prova testemunhal – art.º 351º, do C. Civil.
As presunções judiciais fundam-se em regras práticas da experiência comum, nos conhecimentos da vida e estão vocacionadas, nomeadamente, para a sua utilização nos casos em que a prova directa é muito difícil de conseguir.
A prova com recurso à presunção comporta três operações: em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julga­dor, uma regra da experiência ou da ciência que per­mite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
Desde que a convicção do julgador seja devidamente motivada é impres­cindível o recurso à prova por presunções para aferir da veracidade de certos factos, nomeadamente em matérias cuja prova directa é muito difícil, dado encontrarmo-nos no mundo das motivações e intenções.
No seu funcionamento, a presunção produz um efeito materialmente idêntico à exclusão do ónus da prova, embora se não confunda com este. Na ver­dade, a presunção não fornece a demonstração do facto, mas dá por admitida a sua realidade com base na experiência comum de como certos factos normalmente se verificam sem esperar o exercício da prova.
No valor da credibilidade que a regra de experiência apresenta, encontra-se o fundamento racional da presunção e na medida desse valor assenta o seu grau de rigor.
A presunção pode, assim, ser o único meio em que o juiz baseia a sua convicção, podendo até fazer prevalecer a presunção em detrimento de outras provas produzidas e mesmo recorrer a ela ainda que o facto questionado possa ser apurado por outro meio relativamente mais seguro.
As presunções sejam judiciais ou de facto ou legais, não são, propria­mente, meios de prova, mas somente meios lógicos ou mentais de descoberta de factos e firmam-se mediante regras de experiência [1].
No caso concreto, o recurso às regras da experiên­cia culmina todo o per­curso probatório, traduzindo-se num juízo presuntivo em que um conjunto de factos positivos e omissivos, onde avulta a circunstância do primitivo autor ter sido representado na outorga daquele contrato por uma corretora de seguros, é mais que bastante para que possa, de harmonia com o senso comum e as realidades da experiência e da vida, permitir concluir pela verificação do facto julgado provado, nos moldes efectuados pela 1ª instância, com os quais concordamos. Importa apenas precisar, tendo em consideração o sentido com que foi alegada a expressão “aquando da celebração do contrato” e o facto da proposta de contrato se mostrar assinada por um representante do Autor primitivo (uma empresa corretora de seguros) que a disponibilização pela Ré das condições gerais, especiais e particulares foi efetuada previamente à entrega nos serviços da Ré da proposta de contrato de seguro assinada por esse representante.
No que respeita ao facto não provado constante da alínea e) nada se provou além do que consta no facto provado no n.º 22., pelo que se mantém o julgamento efectuado.
Por sua vez a factualidade constante de a) é manifestamente conclusiva, envolvendo juízos valorativos, razão pela qual deve ser eliminada da lista de factos não provados, sem que transite para a lista de factos provados
Pelas razões expostas decide-se:
Alterar a redação do facto provado sob o n.º 22, o qual passa a ter a seguinte redação:
Aquando da outorga do contrato de seguro referido em 9., a Ré disponibilizou ao representante do primitivo autor as respetivas condições gerais, antes da sua entrega nos serviços da Ré da proposta relativa a esse contrato, assinada por aquele representante.
Eliminar a alínea a) dos factos não provados.

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Os factos provados são:
1. No dia 16 de dezembro de 2017, pelas 16 horas, ocorreu um despiste em ..., ..., na pista de corrida do ... – Núcleo de Desportos
Motorizados de ..., em que foi interveniente o automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., modelo ... ... ..., com a matrícula ..-SH-.., conduzido pelo primitivo autor e a ele pertencente.
2. Na referida data, hora e local, quando circulava na identificada pista, após ter dado uma volta à mesma, já no decurso da segunda volta, na denominada reta das boxes, o primitivo autor perdeu o controlo do veículo automóvel que conduzia. Sentiu, então, o veículo a fugir para a esquerda, tendo perdido o seu controlo e havendo acabado por embater com a frente do mesmo no muro de cimento aí existente, com cerca de um metro de altura, o qual derrubou parcialmente. Seguidamente, o carro rodopiou e embateu, no mesmo muro, com a embaladeira lateral direita, com a embaladeira traseira, incluindo tampa da mala (capot do motor) e asa traseira, tendo o veículo ficado virado e parado quase no mesmo sentido em que seguia inicialmente.
3. O acidente ocorreu numa faixa asfaltada, com bom piso e cerca de 10 metros de largura, dentro do circuito do Kartódromo, quando não se encontrava a decorrer qualquer prova desportiva, nem quaisquer treinos oficiais.
4. Essa pista encontra-se vedada e é de uso restrito, isto é, não é acessível a qualquer pessoa ou a qualquer condutor, mas antes é, habitualmente, usada para os fins a que se destina – isto é, desporto e organização de eventos de carácter motorizado -, estando o seu uso para qualquer outro fim dependente da autorização dos respetivos responsáveis.
5. Nessa mesma pista não existe qualquer sinalização de trânsito, nem os seus utilizadores estão sujeitos ao cumprimento das regras de circulação nas vias públicas ou equiparadas.
6. Na data referida em 1, estava prevista a realização de uma prova desportiva, que veio a ser cancelada.
7. Juntaram-se, naquele local, diversos sócios do ... para um encontro, sendo por esse motivo que o autor estava ali presente.
8. Tendo em conta o cancelamento da referida prova desportiva, o primitivo autor solicitou ao responsável do Kartódromo ali presente autorização para entrar na pista com o seu veículo automóvel, com o intuito de dar uma “volta”, o que lhe foi permitido.
9. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...54, o primitivo autor transferiu para a ora ré a responsabilidade civil obrigatória e coberturas facultativas, por danos causados pela e na sua viatura, conforme documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial.
10. De entre as coberturas facultativas contratadas constava a cobertura de seguro do veículo sinistrado relativamente aos danos decorrentes de choque, colisão ou capotamento.
11. Nas condições particulares da apólice foi contratada, entre o primitivo autor e a ré, uma franquia fixa de €2.000, 00
12. A Cláusula 5ª das Condições Gerais do contrato de seguro mencionado em 9. prevê as “Exclusões da garantia obrigatória” do mesmo, estatuindo a alínea e) do seu nº4 de tal Cláusula (5.ª) que se excluem da garantia obrigatória do seguro “quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguro de provas desportivas, caso em que se aplicam as presentes condições gerais com as devidas adaptações previstas para o efeito pelas partes”.
13. Também a Cláusula 38ª das Condições Gerais do mesmo contrato de seguro rege sobre as “Exclusões” do mesmo, estatuindo que:
 “Para além das exclusões constantes da cláusula 5ª das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel que não tenham sido derrogadas, as quais igualmente se aplicam ao seguro facultativo, ficam também excluídos:
(…)
d) Sinistros em que o veículo seguro seja utilizado em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver mencionado nas Condições Particulares;
(…)”
14. Por carta datada de 1 de fevereiro de 2018, a ré comunicou ao primitivo autor ter concluído que a regularização do sinistro se encontrava excluída por força das cláusulas referidas em 12. e 13., o que reiterou por carta endereçada ao seu Ilustre Mandatário e datada de 16 de fevereiro do mesmo ano.
15. O veículo identificado em 1. é um veículo automóvel de passageiros de cariz desportivo, de alta cilindrada (3996 cm3), estando homologado para circular na via pública ou em qualquer via similar.
16. Do descrito embate, resultaram diversos danos no veículo do primitivo autor, sobre o lado direito, frente direita e esquerda e traseira direita e central do mesmo, cuja reparação ascende à quantia de 72.611,65€.
17. Foi considerado necessário um período de oito dias para proceder a tal reparação, sendo que os danos causados no veículo o impediam de circular.
18. Por carta datada de 24.01.2018, a ré transmitiu ao primitivo autor que a reparação do veículo fora orçamentada em €68.911,65, pelos seus serviços técnicos, bem como que o processo se encontrava em fase de instrução, pelo que não se pronunciavam pela assunção de responsabilidade.
19. Mais informou que o primitivo autor, a partir daquela data, poderia ordenar a reparação do veículo sinistrado, por sua conta e risco.
20. Tendo em consideração a comunicação efetuada pela ré no sentido de declinar a responsabilidade pelo sinistro e em consequência declinar a reparação e pagamento dos danos ao primitivo autor, este procedeu, por sua iniciativa e expensas, à aquisição de peças e serviços para proceder à reparação parcial do veículo.
21. Para efetuar tal reparação parcial, de forma a que o veículo pudesse voltar a circular na via pública, o primitivo autor despendeu, com a aquisição de peças e serviços, junto do concessionário ..., em ..., ...., a quantia de €32.583,81.
22. Aquando da outorga do contrato de seguro referido em 9., a ré disponibilizou ao representante do primitivo autor as respetivas condições gerais, antes da sua entrega nos serviços da Ré da proposta relativa a esse contrato, assinada por aquele representante.

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4. O Direito aplicável
Na presente acção, discute-se a responsabilidade da Ré indemnizar os Autores habilitados pelos prejuízos materiais que resultaram de um acidente de viação que o Autor primitivo sofreu ao conduzir um veículo automóvel, num Kartódromo, por força de um contrato de seguro de responsabilidade civil do ramo automóvel, que incluía a responsabilidade por danos próprios.
A Ré não assumiu a responsabilidade pretendida, invocando encontrar-se a mesma excluída pelas cláusulas do contrato de seguro.
A sentença recorrida validou a posição da Ré, por entender que as circunstâncias em que ocorreu o acidente configuravam um risco que não se encontrava coberto pelo contrato de seguro, conforme resultava da leitura da cláusula 38ª desse contrato.
Os Autores habilitados recorreram desta decisão, alegando que a referida cláusula, assim como todos os termos contratuais, não lhe foram comunicados adequada e efectivamente, pelo que deve excluir-se o conteúdo dessa cláusula do contratado.
Estamos perante um contrato abrangido pelo Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (RCCG), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Efectivamente da conjugação dos artigos 5º e 8º, a), deste diploma, resulta que, sob pena de se considerarem excluídas, as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, devendo a comunicação ser realizada de modo adequado e com antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo, por quem use de comum diligência, competindo o ónus da prova da comunicação adequada e efetiva ao contraente que submeta as cláusulas contratuais gerais.
Na presente acção, a Ré provou que aquando da outorga do contrato de seguro a Ré disponibilizou ao representante do primitivo autor as respetivas condições gerais, antes da sua entrega nos serviços da Ré da proposta relativa a esse contrato, assinada por aquele representante.
Não há um modelo rígido de comunicação do conteúdo de um contrato sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais, quer quanto à forma de comunicação, quer quanto ao momento em que ela deve ser efectuada. Tudo dependerá da dimensão, complexidade e importância do clausulado contratual e dos conhecimentos e experiência dos intervenientes no contrato, além de outros factores que sempre poderão determinar maiores ou menores exigências na realização dessa comunicação.
No presente caso, tendo em consideração que estamos perante a celebração de um tão comum contrato de seguro do ramo automóvel, em que a proposta do mesmo é subscrita por uma sociedade correctora de seguros, em representação do tomador, a simples disponibilização do clausulado contratual em momento anterior à entrega dessa proposta, é claramente suficiente para se considerar cumprido esse dever, atenta a habitualidade do teor do clausulado naquele tipo de seguros e o know how da pessoa que, em representação do aderente, interveio no contrato, pelo que deve considerar-se suficientemente cumprido esse dever de comunicação pela Ré ao ter disponibilizado o seu conteúdo em momento anterior à entrega da respectiva proposta.
No entanto, atente-se na cláusula que, segundo a sentença recorrida excluiu a responsabilidade da seguradora na indemnização dos prejuízos resultantes do acidente participado pelo segurado.
Cláusula n.º 38
... ficam também excluídos sinistros em que o veículo seguro seja utilizado em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver mencionado nas Condições Particulares.
Nas Condições Particulares não se encontrava previsto qualquer risco acrescido, além daqueles que resultam da condução do veículo automóvel segurado, e que se encontram cobertos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, uma vez que a cobertura facultativa de danos próprios foi incluída num contrato de seguro obrigatório daquele tipo, sem que tenha sido objecto de qualquer restrição o âmbito do risco obrigatoriamente contratado.
O risco coberto por um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é o dos acidentes ocorridos na circulação de veículos terrestres a motor, independentemente destes terem lugar em estradas públicas ou privadas [2], conforme resulta do disposto no art.º 4º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Embora o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não abranja os acidentes ocorridos no decurso de provas desportivas e respectivos treinos – art.º 14º, e), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto -, ele não deixa de abranger os acidentes que ocorram num Kartódromo (uma pista destinada a nele serem realizadas corridas de karts), fora daquelas circunstâncias (provas desportivas e respectivos treinos).
 O acidente em causa nos presentes autos ocorreu quando, após ter sido cancelada uma prova desportiva que se encontrava programada para aquele dia, o primitivo autor solicitou ao responsável do Kartódromo, ali presente, autorização para entrar na pista com o seu veículo automóvel, com o intuito de dar uma “volta”, o que lhe foi permitido.
O acidente não ocorreu, pois, no decurso de uma prova desportiva, nem em qualquer treino, pelo que o mesmo se encontrava incluído no risco objeto do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, apesar de se ter verificado num kartódromo. 
Daí que, uma interpretação do clausulado que exclua da cobertura dos danos próprios, os acidentes ocorridos em pistas desportivas, mesmo que fora de qualquer competição ou treino, revela-se diversa daquela que o texto contratual aparenta (na cláusula 5ª do contrato apenas se excluía expressamente “quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respectivos treinos oficiais”), não se sendo perceptível para o aderente, mesmo que representado por um profissional do ramo dos seguros, o sentido dessa interpretação, salvo se a mesma lhe fosse especificamente explicada [3], pelo que tal leitura, a ser admissível, exigia o cumprimento do dever de informação previsto no art.º 6º, n.º 1, do RCCG, pela Ré.
A alegação do não cumprimento pelos primitivo Autor do dever de comunicação abrange, por ser mais lato, o incumprimento do dever de informação, pelo que competia à Autora provar o cumprimento desse dever, relativamente à referida interpretação do âmbito do seguro, o que não fez.
Não se mostrando cumprido esse dever, relativamente à referida interpretação, a mesma, na hipótese de ser perfilhada, sempre deve considerar-se excluída do contrato, nos termos do art.º 8º, b), do RCCG.
Encontrando-se o acidente em causa coberto pelo contrato de seguro celebrado, nomeadamente na parte em que se contratou a cobertura de danos próprios, deve a Ré ser condenada a pagar ao Autor os prejuízos materiais que dele decorreram.
Provou-se que a reparação dos estragos sofridos no veículo custa € 72.611,65.
Relativamente ao alegado danos da privação do uso do veículo durante um período de 34 dias, é hoje maioritária, na jurisprudência do S.T.J., a tese que entende suficiente a prova que o lesado utilizava habitualmente a viatura sinistrada na sua vida corrente, presumindo-se que da respectiva privação derivaram danos efectivos [4].
No entanto, os Autores não alegaram e consequentemente não fizeram prova sequer que o veículo sinistrado fosse utilizado pelo primitivo Autor na sua vida corrente, pelo que não é possível presumir a existência do invocado dano da privação de usos. Não se tendo provado este dano, não é o mesmo indemnizável.
Resta considerar que, relativamente à indemnização dos danos próprios o seguro contemplava uma franquia de € 2.000,00, pelo que a Ré deve ser condenada a pagar aos Autores a quantia de € 70.611,65, acrescida de juros de mora desde a citação, nos termos dos art.º 804º, 805º e 806º do C. Civil.
Face ao exposto, deve o recurso ser julgado parcialmente procedente, e revogar-se a decisão recorrida, condenando-se e absolvendo-se nos termos acima referidos.

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Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 70.611,65, acrescida de juros de mora desde a data da citação da Ré até integral pagamento desta quantia, calculados sobre ela, à taxa definida por lei, absolvendo-se a Ré do demais pedido.

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Custas da acção e do recurso, pelos Autores, na proporção de 3% e pela Ré, na proporção de 97%.

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                                                                     14.6.2022





[1] Vaz Serra, BMJ 110, pág. 198.
[2]  Entre outros, os seguintes acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt:
 S. T. J., de 17.12.2015 relatado por. Abrantes Geraldes,
 T. R. G., de 14.4.2016, relatado por Fernando Freitas,
 T. R. L., de 2.7.2015, relatado por Anabela Calafate, e
 T. R. C., de 10.3.2015, relatado por Teles Pereira).
[3] Neste sentido, Ana Prata, Contratos e Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina, ed. 2010, pág. 252-253.

[4] A título de exemplo, os  acórdãos do S. T. J. de 23.01.2020, relatado por  Nuno Pinto Oliveira e de 28.01.2021, relatado por Rosa Tching, contendo indicações jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema, acessíveis em www.dgsi.pt.
 No mesmo sentido, Paulo Mota Pinto, Dano da privação do uso, Estudos de direito do consumidor, n.º 8 (2006-2007), pág. 229-273, e Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 60.