ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Sumário

I – O fim da acção de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter-se a definição de um saldo e de determinar a situação do réu - de devedor, ou de credor - perante o titular dos interesses geridos.
II - A acção de prestação de contas não é o meio processual próprio para um ex-cônjuge pedir ao outro, que está na posse de um imóvel comum, o valor de uso de tal imóvel.

Texto Integral



Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I – AA, intentou acção de prestação de contas contra BB, alegando que tendo sido casada com o R. e tendo ocorrido o divórcio entre ambos ficou este desde então a deter a posse de determinado bem comum, dele retirando os frutos e utilidades, devendo o mesmo prestar-lhe contas desde Setembro de 2021, data em que denunciou o contrato de arrendamento que vinha vigorando relativamente  a esse imóvel e passou nele a residir.

            Alegou, em síntese, que faz parte do património comum da A. e R. determinada  fração autónoma  que se destina a habitação e que se compõe de rés do chão e primeiro andar – que corresponde à verba nº 214 da relação de bens -  e que estava arrendada, sendo que o R. denunciou o contrato de arrendamento em Setembro de 2021, passando a fruir e a ocupar em exclusivo tal imóvel. Mais alega que o valor locativo mensal do mesmo é de € 750,00, entendendo que, em consequência, esse valor de uso do imóvel, dada a utilização exclusiva pelo R., deve ser considerado, como receita, e como tal computado na prestação de contas.

             Foi proferido despacho de indeferimento liminar por se ter entendido ser o pedido é manifestamente improcedente.

            II – Do assim decidido, apelou a A., que concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:

            1º - O Tribunal a quo cometeu erro de actividade ao indeferir liminarmente a petição inicial. Fazendo errada interpretação e aplicação das normas processuais.

            2º-  Entende o Tribunal a quo, que atendendo à causa de pedir constante da P.I., não se encontram preenchidos os requisitos necessários a uma acção de prestação de contas.

            3º-  Pois, a ação de prestação de contas tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

            4º- Não se destinando a contabilizar as receitas eventuais que poderiam ter sido obtidas, apenas se destina a contabilizar as receitas que foram efetivamente obtidas, ou seja, as quantias que foram efetivamente recebidas por quem administrava os bens.

            5º -Não tendo a A. alegado a existência de receitas obtidas pelo R. ou de despesas por este realizadas que devam ser apuradas, mas tão só receitas eventuais.

            6º-  Tão só, segundo a sentença recorrida, a A. alegado que o R. está a ocupar em exclusivo uma fracção autonoma comum e que essa utilização deverá ter uma tradução monetária.

             7º- Pelo que, o Tribunal a quo, entende que o é pedido manifestamente improcedente, indeferindo liminarmente a petição inicial.

            8º - Enfermando, assim, a sentença recorrida de manifesta ilegalidade.

            9º- Assim, a A. intentou acção de prestação de contas com os seguintes fundamentos e causa de pedir: Que faz parte do património comum da A. e R., uma determinada fração autónoma– verba nº 214 da relação de bens. b) Que tal fracção autónoma estava arrendada. c) Que o R. denunciou o contrato de arrendamento em Setembro de 2021. d) Que o R. após ter denunciado tal contrato de arrendamento, passou a fruir e a ocupar em exclusivo tal fracção autónoma. e) O valor locativo mensal de tal fracção autónoma é de € 750,00.

            10º -Tendo, após Setembro de 2021, ficado o R. a deter a fruição exclusiva de tal fracção autónoma, deve prestar à A. contas desde tal data, por essa ocupação exclusiva.

            11º -Tanto mais, que por via do R., tal fracção autónoma deixou de estar arrendado, e assim, deixando de ser recebida renda paga por terceiros.

            12º- Assim, tendo um dos cônjuges a posse exclusiva de uma fracção autonoma que é comum, deverá o valor locativo dessa fracção autonoma considerado como receita e como tal computado na prestação de contas, a que o R. se encontra obrigado,

            13º -Em consequência, o valor de uso da aludida fracção autonoma (valor locativo mensal), dada a utilização exclusiva pelo R., deve ser considerado divida deste, e em consequência receita a partilhar, e como tal computado na prestação de contas.

            14º -Pois, “1. Após o divórcio, tendo ficado um dos ex-cônjuges a deter a posse de bens comuns, deve prestar ao outro contas desde a data da propositura da acção de divórcio (nº 1 do artº 1789º do CC) ou da data em que foi declarada cessada a coabitação, no caso previsto no nº 2 do artº 1789º do CC.

            15º- Tendo um dos cônjuges a posse exclusiva de um imóvel que era comum, deverá o valor locativo desse imóvel ser considerado como receita.” Uma vez dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os frutos é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde a data da instauração da respectiva acção de divórcio.” Ac. Trib. Rel. Porto, Proc. 641-K/2002.P1, de 22-03-2011.

            16º - E assim, “I - Dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde data da propositura da acção de divórcio. II - O cônjuge administrador não pode beneficiar do lucro que lhe proporciona a utilização exclusiva dos prédios comuns, em prejuízo do outro ex-cônjuge. III - O valor do uso desses prédios representa uma vantagem económica, que não pode deixar de ser considerado na prestação de contas, sob pena de injusto locupletamento à custa alheia e de um intolerável enriquecimento sem causa do cônjuge que os utiliza exclusivamente, em seu benefício.” Ac. STJ, Proc. 04A364, de 25/03/2004, in www.dgsi.com

            17º-  Pelo que, nas contas deve ser considerado, como receita, o valor da utilização que o R. vem fazendo da fracção autónoma, enquanto bem comum.

            18º - Com efeito, utilizando o R. em exclusivo tal fracção autónoma, desde Setembro de 2021, na sequência de ter o próprio R. denunciado o contrato de arrendamento, que tinha por objecto tal fracção autónoma, deixando-se, por via de tal denuncia de se receber as respectivas rendas.

            19º - Passando o R. a utilizar, em seu exclusivo proveito, tal fracção autónoma desde Setembro de 2021.

            20º -Não pagando o R. à A. qualquer quantia a título de utilização da fracção autónoma.

            21º- Representando o valor do uso dessa fracção autónoma uma vantagem económica, que não pode deixar de ser considerado na prestação de contas, sob pena de injusto locupletamento à custa alheia e de um intolerável enriquecimento sem causa do R., que a lei não consente. Não podendo o R. beneficiar do lucro que lhe proporciona a utilização exclusiva daquele imóvel comum, em prejuízo da A.

            22º -Tal como foi decidido pelo STJ no acórdão supra enunciado.

            23º- Assim, deve ser considerado como receita o valor da utilização exclusiva pelo R. da fracção, nos casos em que, o utilizador não paga qualquer contrapartida económica ao outro cônjuge.

            24º- Assim, face aos fundamentos supra invocados e atendendo à causa de pedir formulada na acção de prestação de contas e ao direito aplicável, entende-se que o Tribunal a quo, cometeu erro de julgamento.

             25º -A acção intentada é a própria e a adequada

             26º -Devendo ser revogada a sentença, e em consequência ser liminarmente admitida a acção de prestação de contas, seguindo os autos, a sua normal tramitação até final.

            Citado o R. para os termos do recurso e da causa, apresentou contra-alegações em que sustentou a decisão recorrida, não tendo, no entanto, apresentado conclusões.

            III – A matéria de facto necessária ao conhecimento do recurso emerge do condicionalismo fáctico processual resultante do acima relatado, configurando-se, no entanto, como útil, evidenciarem-se os seguintes factos, que, estando em causa um indeferimento liminar, se deverão ficcionar como provados:

            1-A e R. contraíram entre si casamento em 1996.

            2-Encontram-se divorciados em função de processo de divórcio sem consentimento que deu entrada em 2020.

            3-O R. ficou a deter a posse de uma fracção autónoma de um prédio que se destina a habitação, fracção essa constituída por rés do chão e 1º andar.

            4- Tal fracção constitui bem comum do casal e mostrava-se arrendada.

            5 - O R. procedeu à denúncia do contrato de arrendamento em Setembro de 2021 e desde então está a ocupar sozinho tal fracção.

            IV – A questão que constitui objecto do presente recurso, vistas as conclusões das alegações e o teor da decisão recorrida, é tão somente a de saber se, estando A. e R. divorciados, e mostrando-se pendente inventário para separação de bens comuns, tem o R. que prestar contas à A. relativamente ao valor de uso de imóvel comum a cujo arrendamento pôs termo, para passar a nele viver.

            Deve desde já acentuar-se que a matéria de facto que a A. trouxe aos autos é bastante imprecisa, pois, em rigor, não refere a pendência de inventário para separação de bens comuns – pese embora este Tribunal conclua por essa pendência, por a apelante ter referido na conclusão 9ª que o imóvel em questão  constitui a verba nº 214 da relação de bens – como apenas invoca que o R. desde o divórcio «ficou a deter a posse» da fracção - art 3º da petição -  desconhecendo-se com exactidão a que corresponde a referida posse e em função de que factos se iniciou a mesma.

            Pressupõe assim este Tribunal a referida pendência do inventário e que a dita «posse» corresponderia à possibilidade de fazer suas as rendas do imóvel durante o respectivo arrendamento, o que sucederia em função de acordo com a aqui A., sendo que esse arrendamento já se verificaria antes do divórcio.

            Cabe acentuar também, que em lado algum da petição a A. indicou o valor da renda referente a esse arrendamento, designadamente que o mesmo correspondesse ao valor de uso que lhe atribui.

            Feitos estes reparos, deve dizer-se desde já que concorda com o indeferimento liminar da petição, mas não exactamente em função da manifesta improcedência do pedido, mas, antecedentemente, por erro não suprível da forma de processo.

            A ideia central que presidiu ao indeferimento da petição na 1ª instância resultou da impropriedade do meio utilizado – acção de prestação de contas – justificando-se essa impropriedade em função das seguintes considerações, referidas logo no inicio do despacho recorrido, e que aqui se transcrevem:

            «De acordo com o disposto no artigo 941.º do Código de Processo Civil, a ação de prestação de contas tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

            Não se destina a contabilizar as receitas eventuais que poderiam ter sido obtidas, apenas se destina a contabilizar as receitas que foram efetivamente obtidas, ou seja, as quantias que foram efetivamente recebidas por quem administrava os bens.

            A autora não alega a existência de receitas obtidas pelo réu ou de despesas por este realizadas que devam ser apuradas, mas tão só receitas eventuais.

            Concretamente, a autora não alega que o réu tenha obtido receitas com o património comum (designadamente com o imóvel que a autora alega que o réu habita) ou que tenha realizado despesas em bem comum (designadamente no imóvel que a autora alega que o réu habita), mas tão só que o réu está a ocupar em exclusivo um imóvel comum e que essa utilização deverá ter uma tradução monetária.

            Também não alega que o réu esteja obrigado, por sentença ou acordo, a pagar uma contrapartida pela utilização exclusiva do imóvel».

            Por seu turno, do Acórdão desta Relação em que a 1ª instância se louvou (de 28/3/2017, Processo 835/21.0T8CBR-A, Maria Catarina Gonçalves), relevam, para a conclusão em apreço, as seguintes passagens aqui plenamente aplicáveis.

            «Ora, se o imóvel não foi arrendado – sendo, ao invés, ocupado e utilizado por quem o administrava sem qualquer acordo prévio do qual decorresse a sua obrigação de pagar determinada contrapartida por essa utilização – parece que não foi obtida qualquer receita que pudesse ser considerada em sede de prestação de contas e muito menos se poderia afirmar que essa pretensa receita correspondia ao valor locativo do imóvel. Numa situação dessas, o valor locativo do imóvel corresponderia, quando muito, à receita que poderia ter sido obtida no âmbito de uma administração prudente e zelosa, caso o imóvel fosse arrendado ao invés de ser ocupado e utilizado por quem tinha a sua administração.

            Mas a acção de prestação de contas não se destina a contabilizar as receitas eventuais que poderiam ter sido obtidas (e que apenas poderiam corresponder a um prejuízo emergente de uma administração imprudente ou ruinosa); a acção de prestação de contas apenas se destina a contabilizar as receitas que foram efectivamente obtidas, ou seja, as quantias que foram efectivamente recebidas por quem administrava os bens.

            Parece-nos, portanto, que o valor do uso do imóvel por parte da Apelante (seja ele o valor locativo ou qualquer outro valor), não corresponde a uma receita que, como tal, possa ser contabilizada no âmbito de uma prestação de contas – neste sentido ,veja-se o Ac R C de 25/5/2010 proferido no processo nº 14-A/1998.C2-  Esse valor – a entender-se que era devido – corresponderia apenas, na nossa perspectiva, a um débito da Autora relativamente ao património comum do casal (eventualmente com fundamento em enriquecimento sem causa, como parece sustentar o Apelante) e que devia ser pago ou conferido aquando da partilha (cfr. art. 1689º do CC); estaria em causa, portanto, uma dívida da Autora ao Apelante ou ao património comum, mas não uma receita obtida com a administração do bem que pudesse ser considerada em sede de prestação de contas referente a tal administração».

            Com efeito, o uso adequado do processo de prestação de contas não se basta com a circunstância de alguém administrar bens inteira ou parcialmente alheios, mas pressupõe que, em função dessa administração, haja receitas efectivamente recebidas  e despesas efectivamente realizadas  por quem administra esses bens, estando em causa o apuramento e aprovação dessas receitas e dessas despesas  e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se, como resulta do art 941º do CPC.

            O fim da acção de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter-se a definição de um saldo e de determinar a situação do réu - de devedor, ou de credor - perante o titular dos interesses geridos. Com o julgamento das contas apresentadas por uma ou por outra parte, visa-se apurar o montante em dívida e quem é o devedor [1].

            A acção de prestação de contas não tem como objectivo aquele que a aqui A. previamente lhe atribui – a discussão a respeito do valor de uso de imóvel comum por parte de um dos ex-cônjuges.

            Devendo, aliás, fazer-se notar que o valor de uso se não confunde com o valor locativo, como o parece pretender a A.

            O valor de uso corresponde à «utilização directa da coisa ou ao aproveitamento imediato das aptidões naturais dela», sendo distinto do valor locativo que pressupõe o «conceito distinto da fruição, que visa fundamentalmente a utilização da coisa como instrumento de produção, de frutos, proventos, etc.». O direito de uso que, quando se refere à casa de morada, se chama direito de habitação – cfr art 1484º CC – implica a faculdade de se servir de certa coisa e haver os respectivos frutos, mas apenas «na medida das necessidades do titular». Esta fruição limitada à estrita medida das necessidades do titular do direito de uso, não se confunde com a fruição implicada no conceito de valor locativo.

            O que se vem de dizer não exclui, naturalmente, que o valor do uso de um imóvel comum de um extinto casal represente uma vantagem económica do ex-cônjuge  que o usa sobre o outro, e que a mesma se possa revelar como um injusto locupletamento à custa deste outro, e desse modo um enriquecimento sem causa, mas as circunstâncias de que poderá advir essa conclusão têm que ser apuradas em função do necessário contraditório entre os ex-cônjuges, contraditório esse, de todo estranho ao processo de prestação de contas. È no inventário para separação de bens que tais circunstâncias terão de ser contraditadas, tendo esse contraditório como objectivo, não uma subsequente prestação de contas, mas antes o acerto de contas entre os ex-cônjuges, mediante a possível reclamação de um crédito da aqui A. sobre o acervo patrimonial a partilhar e não sobre o outro cônjuge. [2]

            Suscita no entanto a decisão recorrida, a questão, de caracter oficioso, de saber se  em face da petição inicial produzida nos presentes autos, se deve falar verdadeiramente de pedido manifestamente improcedente, como o entendeu a 1ª instância, ou antes da ocorrência de forma evidente da exceção dilatória insuprível, a que corresponde o erro total da forma de processo, em face do dicotomicamente constante do  nº 1 do art 590º CPC,  enquanto causas de indeferimento liminar.

            Tem-se vindo a entender que o que  releva para o erro na forma do processo é a relação entre a forma de processo utilizada e o pedido formulado,  irrelevando a causa de pedir  [3], de tal modo que, quando haja correspondência entre a forma de processo utilizada e o pedido deduzido não haverá erro na forma de processo.

             Ora, na situação dos autos essa correspondência não parece, desde logo, existir, pela razão acima referida – o pedido formulado na prestação de contas há-de ser de receita efectiva.

            O que a A. pede na presente acção é que o R. preste contas de um valor que nunca foi por ele efectivamente recebido, e que, apenas num segundo plano, correspondente ao da improcedência da acção, se poderia vir a concluir não ser devido.

            De todo o modo, ainda que com esta diferença, a petição deve ser indeferida.

            V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando o indeferimento liminar decidido na 1ª instância.

            Custas pela apelante.

Coimbra, 14 de Junho de 2022


(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)



[1] - Alberto dos Reis, RLJ 74º/46
[2] - Cfr Ac STJ  de 13/10/2016 (Lopes do Rego)
[3] - Neste sentido, Ac RL 18/5/95 (Ribeiro Coelho), Ac R G 14/12/2010 (Isabel Fonseca)