ACORDO REMUNERATÓRIO
NULIDADE
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
EQUIDADE
Sumário

I – Antes de se concluir pela favorabilidade ou não favorabilidade do acordo remuneratório, impõe-se apurar o que é devido ao trabalhador por força do CCT e o que foi pago.
II – Não existindo factos que permitam apurar o montante concreto gasto pelo trabalhador em refeições no estrangeiro, não é possível concluir pela favorabilidade do acordo remuneratório, antes se impondo declarar a nulidade do mesmo, com as consequências previstas no art. 289.º, n.º 1, do CCiv. (restituição das importâncias recebidas e direito do trabalhador a receber as quantias devidas por força do CCT aplicável).
III – Quando, na incidental liquidação, a prova produzida pelas partes seja omissa ou insuficiente, a liquidação é efetuada segundo a equidade, por não poder deixar de ser fixado o direito reconhecido na sentença de condenação genérica.

Texto Integral



Apelação n.º 1511/15.9T8CLD.C1

Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA

deduziu o incidente de liquidação da sentença proferida nos presentes autos contra:

P..., Ldª

           

alegando, para tanto, que recebeu da Ré, a título de ajudas de custo, o total de € 52.780,00, no entanto, por força do CCTV deveria ter recebido de cláusula 74.ª, prémio TIR, alimentação, trabalho complementar e diuturnidades, o total de € 81.166,35, pelo que, dada a nulidade do acordo celebrado entre as partes, liquida a diferença a receber da Ré em € 28.386,35.

            Termina, requerendo a notificação da Ré para deduzir oposição, querendo, seguindo-se os demais termos da lei, designadamente os previstos no artigo 360.º do CPC.

                                                                       *

A Ré deduziu oposição alegando, em síntese, que:

Uma vez que o A. não consegue provar que despendeu o montante que alega em alimentação, a Ré deve ser absolvida do pedido; o A. não realizou trabalho suplementar e, por isso, a Ré deve ser absolvida do pagamento de qualquer quantia a este título.

Termina, requerendo que se considere procedente a presente oposição e, em conformidade, a Ré seja absolvida do pagamento de qualquer quantia ao A., confirmando a decisão da 1ª instância, “declarando que o regime remuneratório acordado entre as partes era, afinal, mais favorável para o trabalhador.”

                                                             *

Foi proferido o despacho saneador de fls. 44 e segs., fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

                                                           *

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento.

                                                           *

De seguida, foi proferida sentença que foi objeto de recurso decidido por acórdão deste tribunal constante de fls. 107  e segs. e que anulou a decisão recorrida a fim de o tribunal de 1ª instância proferir uma nova decisão nos termos enunciados.

                                                           *

Foi, então, proferida a sentença de fls. 125 e segs., cujo dispositivo tem o seguinte teor:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provado, o presente incidente de liquidação e, em consequência:

- é nulo o sistema remuneratório acordado entre o A. e a R. em substituição do previsto no CCTV;

- liquido em € 15.000,00 (quinze mil Euros) o montante devido ao A. a título de prestações retributivas fixadas no CCTV (cláusula 74.ª, n.º 7, prémio TIR, alimentação, trabalho suplementar, diuturnidades).

                                                           *                                                        

A , notificada desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

“1. O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra havia decidido … “ Declarar nulo o sistema remuneratório acordado entre as partes em substituição do previsto no CCTV se aquele sistema se revelar menos favorável ao autor em comparação com este, caso que, deverão ser restituídas todas as quantias pagas e recebidas na execução desse acordo, relegando-se para liquidação de sentença a quantificação do pago e recebido com vista ao apuramento da favorabilidade ou não favorabilidade desse acordo remuneratório.” (sublinhado e negrito nossos)

2. Mais afirmou o douto acórdão que, no cálculo a efectuar, “deve atender-se… (IV) ao pagamento das refeições à factura, quando deslocados no estrangeiro, nos termos da cláusula 47ª-A” e ao acréscimo da remuneração em 200% aquando da prestação de trabalho em dias feriados ou dias de descanso semanal ou complementar… bem como ao descanso compensatório… . (sublinhado e negrito nossos).

3. A douta sentença que decidiu o incidente de liquidação contém diversos pontos incorrectamente julgados o que se traduz na nulidade da sentença que urge corrigir

4. O douto tribunal não teve em consideração toda a matéria de facto alegada na oposição ao incidente por parte da ora Recorrente.

5. A sentença não poderia referir que “não há factos não provados”.

6. A ser assim (não factos não provados), então os factos alegados pela R. teriam de ser dados como provados no ponto 2.1 da fundamentação da sentença.

7. A sentença é nula quando refere que não factos não provados”.

8. As questões acima referidas foram submetidas pela ora Recorrente para apreciação do tribunal nos termos do art.608º/2 do CPC.

9. De acordo com o art.615º/1/d) do Código de Processo Civil (CPC), é nula a sentença quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar».

10.Tendo em consideração que, do ponto de vista da Recorrente existe omissão de sentença, neste ponto, a mesma é, no mínimo obscura, o que desde já se alega.

11.Nos autos principais ficou dado como provado que o trabalhador trabalhava de segunda à sexta-feira.

12.A douta sentença do incidente de liquidação refere na sua fundamentação que “parece também adequado considerar-se 3 dias por mês de trabalho em Sábados, Domingos e feriados”.

13.A sentença é igualmente nula porque contém uma contradição na matéria de facto dada como provada nos autos e nesta sentença do incidente de liquidação.

14.Salvo o devido respeito, que é muito, a sentença é nula nos termos do disposto no art.615º/1/c) do CPC uma vez que a sua fundamentação está em oposição com a matéria que já havia sido decidida e dada como provada nos autos.

15.Urge declarar a presente nulidade, o que desde já se alega para os devidos efeitos legais.

16.A douta sentença contém ainda um vício intransponível.

17.A douta sentença ora proferida no incidente de liquidação não respeitou a decisão superior do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

18.Este colendo tribunal ordenou no seu acórdão o pagamento da alimentação do Autor mediante a apresentação das respectivas facturas comprovativas dessas despesas, uma vez que o A. fazia percursos internacionais a Espanha no trabalho realizado para a R. (ora Recorrente).

19.Não foram apresentadas quaisquer facturas pelo trabalhador no incidente de liquidação.

20.O douto tribunal a quo, apesar da total ausência de prova sobre esta matéria por parte do trabalhador entendeu declarar que este tinha um gasto médio de 25,00€/dia de alimentação.

21.A sentença não respeitou, do ponto de vista da Recorrente, a decisão superior anterior que ordenava a que, na análise acerca da maior favorabilidade do regime em vigor na empresa, fossem tidas em contas as refeições à factura.

22.Uma vez que não foi respeitada a decisão anterior do Venerando TRC, terá de ser esta instância superior a repor a sua própria decisão já transitada nos autos e em consequência anular a sentença e manter a decisão inicial da primeira instância, no sentido de reconhecer que o sistema remuneratório em vigor na empresa era, de facto, mais favorável para o trabalhador.

23.O julgamento com recurso à equidade não obedece, nos presentes autos, ao principio da Justiça.

24.Da prova testemunhal resulta que o custo das refeições em Espanha, na altura, eram 2,50€ a 3,00€ por pequeno-almoço e cerca de 10,00€ a 11,00€ por menu completo de almoço, ou seja, cerca de 14,00€/dia (3,00€ pequeno-almoço + 11,00€ almoço)

25.A maior parte do trabalho desenvolvido pelo trabalhador foi em Portugal e apenas ocasionalmente em Espanha.

26.Os eventuais montantes a pagar por refeições do trabalhador no estrangeiro são uma fracção daquele referido na sentença condenatória.

27.Fica demonstrado, uma vez mais, que o sistema remuneratório em vigor na empresa era, de facto, mais favorável para o trabalhador.

28.Mas se assim não for entendido, o montante condenatório referido na sentença do douto tribunal a quo, deverá ser reduzido consideravelmente.

29.A douta sentença não explica que cálculos realizou para condenar a R. no montante de 15.000,00€.

30.A decisão agora em crise padece de falta de fundamentação, pois a mesma não demonstra o raciocínio que o julgador elaborou para considerar que o sistema remuneratório em vigor na empresa não era mais favorável para o trabalhador.

31.Esta falta de fundamentação, tem como consequência a nulidade da sentença, nos termos do disposto no art.615º/1/b) do CPC, uma vez que a mesma não especifica os fundamentos de facto que levaram à decisão final.

Pelo exposto, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser declarada a obscuridade e a nulidade da sentença proferida em sede de incidente de liquidação e em consequência ser confirmado que o regime remuneratório acordado entre as partes era, afinal, mais favorável para o trabalhador, com a total absolvição da ora recorrente.

Subsidiariamente e sem prescindir, deverá ser consideravelmente reduzido o montante condenatório com recurso à critérios de equidade.”

                                                           *

O Autor não apresentou resposta a este recurso.

*

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 157, no sentido de que “deve ser anulada a sentença a fim de que seja suprido o vício de falta de fundamentação acima referido”.

                                                             *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Questões a decidir:

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º do C.P.C.), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:

1ª – Se a sentença recorrida é nula por conter factos incorretamente julgados.

2ª – Se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia quando refere que “não há factos não provados”.

3ª – Se a sentença recorrida é nula porque a sua fundamentação está em oposição com a matéria que já havia sido decidida e dada como provada nos autos.

4ª – Se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação

5ª – Se a sentença recorrida não respeitou o acórdão deste tribunal da Relação, devendo declarar-se que o sistema remuneratório em vigor na empresa era mais favorável para o trabalhador

6ª – Se o montante em que que a Ré foi condenada deve ser consideravelmente reduzido.

 

III – Fundamentação

a) - Factos provados constantes da sentença recorrida:

1. Por acórdão proferido, nos autos principais, em 23/2/2017, pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, foi decidido:

«a) Declarar nulo o sistema remuneratório acordado entre as partes em substituição do previsto no CCTV se aquele sistema se revelar menos favorável ao autor em comparação com este, caso em que, deverão ser restituídas todas as quantias pagas e recebidas na execução desse acordo, relegando-se para liquidação de sentença a quantificação do pago e recebido com vista ao apuramento da favorabilidade ou não favorabilidade desse acordo remuneratório.»;

2. Nesse acórdão foi estabelecido o valor da cláusula 74.ª, n.º 7 do CCTV:

- de 1/9/2009 a 31/8/2012: € 338,40

- de 1/9/2012 até 21/5/2015 (termo da relação laboral): € 344,40;

3. O prémio TIR é de € 105,75;

4. O A. e a R. acordaram que todas as quantias devidas para além da remuneração base, nomeadamente a cláusula 74.ª, n.º 7, o prémio TIR, alimentação, trabalho suplementar e diuturnidades, seriam incluídas em sede de recebido de vencimento, numa única rúbrica denominada "ajudas de custo".

FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a decisão, não existem factos não provados.

FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

Na formação da sua convicção o Tribunal teve em conta as diligências de prova realizadas em sede de audiência de julgamento e, bem assim, os documentos juntos aos autos, os quais analisou conjugada e criticamente, lançando mão sempre que tal se justifique, e seja admissível, a regras de experiência comum.

Os factos provados extraem-se do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos autos principais.

Nenhuns outros factos foram provados, sendo que as partes não alegaram factos relevantes para a decisão de liquidação que devam ser julgados não provados.

“Factos” não podem confundir-se com juízos de valores, nem com afirmações conclusivas desprovidas de base fáctica, de tal forma que tais juízos e afirmações de natureza não fáctica devem ser arredadas da decisão sobre a matéria de facto.

“Factos” são as ocorrências da vida real; os fenómenos da natureza e as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e os factos praticados pelo Homem.

Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei» - Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 206-207.

Admite-se equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objecto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objecto do litígio.

No caso dos autos, a R., na oposição apresentada, não alegou quaisquer factos com relevância para a decisão do incidente de liquidação e, por isso, inexistem factos não provados.

As testemunhas, nos termos que se mostram registados em suporte digital, depuseram, no essencial, com isenção, revelando a sua razão de ciência relativamente à matéria de facto a que foram inquiridas, embora fosse escasso o seu conhecimento para o objecto dos autos, conhecimento concreto e factual – desconhecem com exactidão quanto o A. gastou em alimentação, e os dias de Sábado, Domingos e/ou feriados que o mesmo passou, em cada mês, no estrangeiro, por força do trabalho que efectuava.

                                                              *

b) - Discussão                                                  

1ª questão

Se a sentença recorrida é nula por conter factos incorretamente julgados.

Alega a recorrente que a sentença recorrida contém diversos pontos incorretamente julgados o que se traduz na nulidade da sentença que urge corrigir.

Pois bem, as causas de nulidade da sentença estão previstas no artigo 615.º do CPC e delas não faz parte o “julgamento incorreto dos factos”.

Na verdade, não se conformando com o julgamento da matéria de facto, o A. devia ter interposto recurso impugnando tal matéria e cumprindo o disposto no artigo 640.º do CPC, ou seja:    

<<1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 . No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)>>.

Lidas as alegações e respetivas conclusões, constatamos que a Ré recorrente não indica, desde logo, no corpo das alegações nem nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.

A recorrente nem no corpo das alegações nem nas conclusões procede a esta indicação limitando-se a alegar o supra descrito.

Conforme se decidiu no acórdão do STJ de 23/05/2018, disponível em www.dgsi.pt:

<<I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, enuncie a decisão alternativa que propõe e, tratando-se de prova gravada, que indique com exactidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância  com o decidido.>>

No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 08/02/2018 e de 06/12/2016.

Acresce que, <<a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;

b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);

d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

(…)

Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo>>[2].

<<I - O ónus de alegação previsto no art. 640.º do CPC não deve estar sujeito a um rigorismo exagerado que sirva de pretexto para recusar a reapreciação da matéria de facto, com invocação do incumprimento de requisitos de ordem objectiva.

II - Os pontos fundamentais a assegurar prendem-se com a definição do objecto da impugnação (enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova, indicados ou explicitados) e com a assunção do resultado pretendido.

III - Cumpre o ónus referido em I o recorrente que autonomizou devidamente os meios de prova que impunham decisão a alteração da matéria de facto, identificou os pontos da decisão de facto merecedores de resposta diversa e apontou o sentido que entendeu ser o correcto.>>[3]

Posto isto, dúvidas não existem de que a recorrente não cumpriu o ónus que sobre si impendia e, consequentemente, este tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto impondo-se, por isso, nesta parte, a rejeição do presente recurso e, consequentemente, a manutenção da matéria de facto dada como provada, inexistindo a invocada nulidade da sentença.

2ª questão

Se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia quando refere que “não há factos não provados”.

Alega a recorrente que o tribunal não teve em consideração toda a matéria de facto alegada na oposição ao incidente e não poderia referir que “não há factos não provados”; a sentença é nula quando refere que “não há factos não provados”, pois deixou de pronunciar-se sobre as questões supra referidas e, ainda, que a mesma é, no mínimo, obscura.

A sentença é nula quando: <<(…) ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível>> e <<o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)>> - alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, respetivamente.

Como se decidiu no acórdão deste tribunal proferido nestes autos e que acompanhamos:

Ora, segundo o acórdão do STJ de 6/6/20071, a decisão sobre a matéria de facto não é susceptível de enfermar das nulidades da sentença previstas no artigo 668º do então Código de Processo Civil (actual artº 615º do Novo CPC) - no mesmo sentido e já ao abrigo do Novo CPC, tem decidido reiteradamente esta secção deste Tribunal da Relação, por exemplo nos acórdãos de 23/6/2017, proferido no processo 716/16.0T8CVL.C1, e de 15/09/2017, proferido no processo 4302/16.6T8VIS.C1; ainda no mesmo sentido, a título de exemplo, acórdãos do STJ de 31/1/1991, BMJ nº 403, p. 382 e de 9/4/1991, BMJ nº 416, p. 558, acórdão do STA de 20/12/2007, proferido no processo 0830/07, acórdão da Relação do Porto de 8/9/2014, proferido no processo 55/13.8TTPRT.P1, acórdãos da Relação de Coimbra de 20/1/2015, proferido no processo 2996/12.0TBFIG.C1, de 19/12/2012, proferido no processo 31156/10.3YIPRT.C1, acórdão do TCA do Norte de 15/10/2015, proferido no processo 01593/15.3BEPNF.

Não ocorre, assim, a nulidade da decisão sobre a matéria de facto arguida pela apelante, logo a nulidade da sentença.

No entanto, como também se refere no mesmo acórdão, tal não impede que a sentença seja anulada oficiosamente nos termos previstos no artigo 662.º do CPC.

Vejamos:

Conforme resulta do n.º 4 do artigo 607º do CPC:

<<Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.>>.

Por outro lado, consta da sentença recorrida o seguinte:

FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a decisão, não existem factos não provados.

 “FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

Na formação da sua convicção o Tribunal teve em conta as diligências de prova realizadas em sede de audiência de julgamento e, bem assim, os documentos juntos aos autos, os quais analisou conjugada e criticamente, lançando mão sempre que tal se justifique, e seja admissível, a regras de experiência comum.

Os factos provados extraem-se do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos autos principais.

Nenhuns outros factos foram provados, sendo que as partes não alegaram factos relevantes para a decisão de liquidação que devam ser julgados não provados.

“Factos” não podem confundir-se com juízos de valores, nem com afirmações conclusivas desprovidas de base fáctica, de tal forma que tais juízos e afirmações de natureza não fáctica devem ser arredadas da decisão sobre a matéria de facto.

“Factos” são as ocorrências da vida real; os fenómenos da natureza e as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e os factos praticados pelo Homem.

Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei» - Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 206-207.

Admite-se equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objecto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objecto do litígio.

No caso dos autos, a R., na oposição apresentada, não alegou quaisquer factos com relevância para a decisão do incidente de liquidação e, por isso, inexistem factos não provados.”

Ora, compulsados os autos, mais concretamente a oposição apresentada pela Ré, constata-se que para além das respetivas decisões e dos factos julgados provados na sentença e no acórdão proferidos nos autos de que estes são apenso, mais nenhuns foram alegados com interesse para a decisão da causa.

Na verdade, para além daqueles, o constante dos pontos 6, 7, 12, 13, 14, 17, 19 a 25, 27 a 30 e 32 a 34, mais não são do que afirmações conclusivas que, como resulta do supra exposto, não devem constar do elenco dos factos provados. 

Assim sendo, tal como consta da sentença recorrida, com relevância para a decisão, não existem factos não provados e, consequentemente, a decisão de facto não sofre de qualquer vício, nomeadamente, de deficiência ou obscuridade que determine a sua anulação oficiosa nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC.  

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente.

3ª questão

Se a sentença recorrida é nula porque a sua fundamentação está em oposição com a matéria que já havia sido decidida e dada como provada nos autos.

Alega a recorrente que:

- Nos autos principais ficou dado como provado que o trabalhador trabalhava de segunda a sexta-feira.

- A sentença do incidente de liquidação refere na sua fundamentação que “parece também adequado considerar-se 3 dias por mês de trabalho em Sábados, Domingos e feriados”.

- A sentença é igualmente nula porque contém uma contradição na matéria de facto dada como provada nos autos e nesta sentença do incidente de liquidação.

- A sentença é nula nos termos do disposto no art. 615º/1/c) do CPC uma vez que a sua fundamentação está em oposição com a matéria que já havia sido decidida e dada como provada nos autos.

Vejamos:

A sentença é nula quando:

<<Os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)>> - n.º 1, c), do artigo 615.º do CPC.

Existe oposição entre os fundamentos e a decisão <<quando os fundamentos invocados pelo julgador devam conduzir logicamente a resultado oposto ao expresso na decisão>>[4].

<<I - Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC que a sentença (…)) é nula quando «Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;».

II - O vício a que se reporta o apontado segmento normativo implica, por um lado, que haja uma contradição lógica no aresto, o que significa, para a sua ocorrência, que a fundamentação siga um determinado caminho e a decisão opte por uma conclusão completamente diversa, e, por outro, que tal fundamentação inculque sentidos diversos e/ou seja pouco clara ou imperceptível.>>[5]

Trata-se de uma nulidade da decisão, de um vício intrínseco da mesma que não se confunde com uma errada subsunção dos factos ao direito, nem com uma errada interpretação das pertinentes normas jurídicas.

Pois bem, lida a sentença recorrida não vislumbramos a invocada oposição entre os fundamentos e a decisão.

Na verdade, não resulta da mesma que a fundamentação siga um determinado caminho, uma determinada linha de raciocínio e a decisão opte por uma conclusão completamente diversa, oposta à apontada.

O que ocorre é que a recorrente entende que existe contradição entre a matéria de facto provada nos autos principais no sentido de que o A. trabalhava de segunda a sexta feira e a fundamentação da sentença recorrida que considerou adequado considerar 3 dias por mês de trabalho em sábados, domingos e feriados, no entanto, tal não consubstancia a alegada oposição entre os fundamentos e a decisão.

Questão diferente, a apreciar oportunamente, é se a decisão recorrida não respeitou os limites da condenação imposta pela decisão ora em liquidação, posto que, <<a liquidação da sentença destina-se, tão somente, a ver concretizado o objecto da sua condenação (genérica), mas respeitando sempre (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, a liquidação tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença, não podendo contrariar esse julgado, nomeadamente, corrigindo-o.>>[6].

Pelo exposto, improcede esta nulidade da sentença invocada pela recorrente.

4ª questão

Se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação.

Alega a recorrente que a sentença recorrida não explica que cálculos realizou para condenar a Ré no montante de 15.000,00 e que a mesma decisão padece de falta de fundamentação pois a mesma não demonstra o raciocínio que o julgador elaborou para considerar que o sistema remuneratório em vigor na empresa não era mais favorável para o trabalhador, o que acarreta a nulidade da sentença, uma vez que a mesma não especifica os fundamentos de facto que levaram à decisão final.

A sentença é nula quando <<não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;>>.

Acontece que, apenas existe tal nulidade <<quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão>>[7], sendo certo que uma deficiente fundamentação não consubstancia tal vício.

A sentença recorrida especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, inexistindo, por isso, a invocada nulidade por falta de fundamentação.

Improcedem, assim, mais estas conclusões da recorrente.

5ª questão

Se a sentença recorrida não respeitou o acórdão deste tribunal da Relação, devendo declarar-se que o sistema remuneratório em vigor na empresa era mais favorável para o trabalhador.

Alega a recorrente que:

- Este tribunal ordenou no seu acórdão o pagamento da alimentação do Autor mediante a apresentação das respetivas faturas comprovativas dessas despesas, uma vez que o A. fazia percursos internacionais a Espanha no trabalho realizado para a R. (ora Recorrente) e que não foram apresentadas pelo trabalhador.

- O tribunal a quo, apesar da total ausência de prova sobre esta matéria por parte do trabalhador entendeu declarar que este tinha um gasto médio de 25,00€/dia de alimentação.

- A sentença não respeitou a decisão superior anterior que ordenava que, na análise acerca da maior favorabilidade do regime em vigor na empresa, fossem tidas em conta as refeições à fatura.

- Uma vez que não foi respeitada a decisão anterior do TRC, terá de ser esta instância superior a repor a sua própria decisão já transitada nos autos e em consequência anular a sentença e manter a decisão inicial da primeira instância, no sentido de reconhecer que o sistema remuneratório em vigor na empresa era, de facto, mais favorável para o trabalhador.

- O julgamento com recurso à equidade não obedece, nos presentes autos, ao principio da Justiça.

- A maior parte do trabalho desenvolvido pelo trabalhador foi em Portugal e apenas ocasionalmente em Espanha.

- Os eventuais montantes a pagar por refeições do trabalhador no estrangeiro são uma fração daquele referido na sentença condenatória.

- Fica demonstrado, uma vez mais, que o sistema remuneratório em vigor na empresa era, de facto, mais favorável para o trabalhador.

Pois bem, antes de mais, cumpre dizer que no requerimento inicial do presente incidente o A. veio liquidar o trabalho realizado nos dias de descanso (sábados, domingos e feriados), a 4 dias por mês, no valor previsto na cláusula 41.ª do CCT.

Acontece que, como se constata da sentença proferida nos autos de que estes são apenso, não resultou provado que o A. trabalhou em sábados, domingos e feriados, apenas se apurou que o A. trabalhava de segunda a sexta feira.

Aliás, o A. nem sequer peticionou qualquer quantia a este título, sendo que, pretendia fazê-lo em momento posterior à apresentação da p. i., no entanto, tal requerimento foi indeferido.

E do acórdão deste tribunal proferido nos mesmos autos, consta o seguinte:

A 1ª instância, conforme acima se deixou assinalado aquando da apreciação da questão da nulidade da sentença, na comparação entre o recebido pelo autor a título de “ajudas de custo” e o devido ao autor nos termos do CCTV apenas imputou no valor daquelas “ajudas” o valor da Clª 74ªn.º7, do prémio TIR e das diuturnidades, omitindo por completo a quantia que seria devida ao autor a título de alimentação, cujo pagamento foi expressamente peticionado e se reconheceu ser devida (a R. não pagava ao A. as refeições à factura nem antes da saída para as viagens fazia adiantamentos [factos 4 e 5].

No que respeita ao valor devido a este último título, percorrendo toda a matéria de facto que, note-se, não foi impugnada, não descortinamos que esse valor tivesse em alguma parte sido quantificado, e sem essa quantificação não é possível, por falta de elementos, apurar a favorabilidade do acordo remuneratório substitutivo firmado entre as partes.

Consequente essa favorabilidade apenas em execução de sentença poderá ser definida o que, a final, se determinará”.

E, no seu dispositivo pode ler-se que se decide:

Declarar nulo o sistema remuneratório acordado entre as partes em substituição do previsto no CCTV se aquele sistema se revelar menos favorável ao autor em comparação com este, caso em que, deverão ser restituídas todas as quantias pagas e recebidas na execução desse acordo, relegando-se para liquidação de sentença a quantificação do pago e recebido com vista ao apuramento da favorabilidade ou não favorabilidade desse acordo remuneratório.”

Assim sendo, facilmente se conclui que, ao contrário do alegado pelo requerente recorrido, não foi reconhecido ao A. o direito a receber os dias de descanso trabalhados. O que se refere no acórdão é que, nos termos do respetivo CCT, o trabalhador em direito ao acréscimo da remuneração em 200% aquando da prestação de trabalho em dias feriados ou dias de descanso semanal ou complementar (cláusula 41.ª), tendo-se relegado apenas para liquidação a quantificação do devido a título de alimentação não levado em conta pela 1ª instância aquando da apreciação da questão da nulidade do acordo remuneratório, não tendo sido feita qualquer referência ao devido a título de trabalho prestado em dias de descanso, sendo certo que o sentido do dispositivo não pode alhear-se de toda a fundamentação da respetiva decisão.

Desta forma, e porque como já referimos, a liquidação da sentença destina-se a concretizar o objeto da sua condenação genérica, nunca ultrapassando o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar, ou seja, a liquidação tem de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença, não podendo contrariar esse julgado, não pode a sentença recorrida subsistir na parte em que considerou, na quantificação do crédito do A., três dias por mês de trabalho em sábados, domingos e feriados, sob pena de violação daquele caso julgado.

Na verdade, como se decidiu no acórdão do STJ, de18/01/2022, disponível em www.dgsi.pt:

<<I. O incidente de liquidação previsto no n.º 2 do art.º 358.º do CPC é um incidente da instância declarativa com estreita e indissociável ligação à acção onde a sentença foi proferida e se reconheceu a existência do crédito, decretando uma condenação genérica, e destina-se somente à concretização do objecto dessa condenação, com respeito pelo caso julgado, não sendo permitido às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na mesma acção.

II. Para interpretar o sentido e alcance da sentença, coberta pelo caso julgado, há que recorrer à respectiva fundamentação, segundo as regras de interpretação dos negócios jurídicos, pois assim decorre do disposto no art.º 295.º do CC.

III. Viola a autoridade do caso julgado a decisão que permite ao requerente do incidente de liquidação, deduzido ao abrigo do disposto nos art.ºs 358.º, n.º 2 e 609.º, n.º 2, ambos do CPC, discutir, novamente, a obrigação e os seus montantes, contrariamente ao decidido na acção, onde se considerou que a condenação não é genérica nem há uma situação de iliquidez.>>

Mais alega a recorrente que este tribunal ordenou o pagamento da alimentação do Autor mediante a apresentação das respetivas faturas e que não foram apresentadas por aquele e que a sentença recorrida apesar da total ausência de prova entendeu declarar que este tinha um gasto médio de € 25,00 por dia, não respeitando aquele acórdão, pelo que, deve manter-se a decisão da 1ª instância no sentido de reconhecer que o sistema remuneratório em vigor na empresa era mais favorável para o trabalhador.

Vejamos:

Como se refere no acórdão deste tribunal proferido nos autos de que estes são apenso, de acordo com o CCT aplicável, os motoristas de serviço internacional têm direito ao pagamento das refeições à fatura, quando deslocados no estrangeiro, nos termos da cláusula 47.ª-A.

Acontece que, o facto de o A. não ter apresentado as faturas não determina, como parece entender a recorrente, que o mesmo não tem direito ao pagamento da alimentação. O Autor teve necessariamente gastos com a alimentação independentemente de ter ou não as respetivas faturas. Aliás a Ré, como resulta da matéria de facto provada, não pagava as refeições à fatura.

Assim sendo, ao contrário do alegado pela recorrente, não foi desrespeitada a decisão deste tribunal nem, por isso, se impõe o reconhecimento de que o sistema remuneratório em vigor na empresa era mais favorável para o trabalhador.

Por outro lado, como já referimos, a sentença recorrida declarou nulo o sistema remuneratório acordado entre o A. e a Ré em substituição do previsto no CCTV, nos seguintes termos:

O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu declarar nulo o sistema remuneratório acordado entre as partes, em substituição do previsto no CCTV, se aquele sistema se revelar menos favorável ao A. em comparação com este (realce meu).

Em caso de nulidade do sistema acordado entre as partes, mais foi decidido, deverão ser restituídas todas as quantias pagas e recebidas em execução desse acordo.

Foi relegada para execução de sentença a quantificação do pago e do recebido com vista ao apuramento da favorabilidade ou não favorabilidade desse acordo remuneratório.

No acórdão proferido, o Tribunal da Relação de Coimbra explicou (a páginas 23 do acórdão, fls. 345 dos autos) que para se aferir se o regime instituído é mais favorável para o trabalhador temos de apurar se o recebido pelo autor na rubrica ou a título de ajudas de custo é superior ao que tinha direito por aplicação do IRCT aplicável.

Ali ficou estabelecido que recai sobre o empregador a prova da favorabilidade do regime retributivo acordado.

Em face destas considerações constantes do acórdão proferido nos autos, e da prova produzida nestes autos de liquidação urge concluir que a R. não logrou demonstrar que o regime acordado entre as partes fosse mais favorável ao trabalhador do que o que resulta da Convenção Colectiva de trabalho aplicável – a celebrada entre a ANTRAM e a FESTRU e publicada no BTE, n.º 9, de 8/3/1980.

Em consequência, o acordo remuneratório é nulo (por não ser mais favorável ao trabalhador) e, por isso, deverão ser restituídas todas as quantias pagas e recebidas em execução daquele acordo, como decidido pelo Tribunal da Relação.

Em linha com o constante do acórdão proferido, o A. tem direito a:

i) o valor decorrente da aplicação da cláusula 74.ª, n.º 7:

- de 1/9/2009 a 31/8/2012: € 338,40

- de 1/9/2012 até 21/5/2015 (termo da relação laboral): € 344,40;

ii) prémio TIR no valor fixo de € 105,75;

iii) valor das diuturnidades: uma diuturnidade de € 12,92 de três em três anos até ao limite de cinco;

iv) pagamento das refeições à factura, quando deslocados no estrangeiro, nos termos da cláusula 47.ª-A;

v) ao acréscimo da remuneração em 200% aquando da prestação de trabalho em dias feriados ou dias de descanso semanal ou complementar (n.º 1 da cláusula 41.ª).

Sabe-se, por ter ficado provado nos autos principais, conforme consta da respectiva sentença:

- a R. não pagava ao A. as refeições à factura;

- o A. desempenhava as funções de motorista de transportes internacionais rodoviários de mercadorias, deslocando-se Portugal/Espanha/Portugal;

- o A. recebia a remuneração base mensal de € 600,00;

- a R. pagou ao A. as quantias elencadas no ponto 18 dos factos provados.

Desconhece-se, por não ter ficado provado:

- quanto gastou o A. em refeições tomadas, quando deslocado no estrangeiro;

- quantos dias esteve deslocado no estrangeiro;

- quantos desses dias deslocado no estrangeiro, foram Sábados, Domingos e/ou feriados.

Com relevância para o objecto destes autos, nada ficou provado.

Porém, tratando-se de um incidente de liquidação em execução de sentença, a sentença a proferir terá, necessariamente, que decidir-se pela quantificação do crédito do credor sobre o devedor.

Com efeito, quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial – cfr. art.º 360.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

No caso dos autos, não se vislumbra outra prova, não produzida, possa auxiliar o Tribunal na fixação de factos que permitam a liquidação da quantia de que o A. é credor.

«O incidente de liquidação de sentença destina-se a obter a concretização do objecto de condenação da decisão proferida na acção declarativa, dentro dos limites do caso julgado, tendo sempre e necessariamente que conduzir a um resultado concreto e objectivo. Por outras palavras, o incidente de liquidação nunca poderá vir a ser julgado improcedente por “falta de prova”, pois tal desfecho, resultando na absolvição da Ré do pedido, inutilizaria a decisão proferida na acção declarativa e contraria a finalidade do incidente.

«Precisamente por isso, quando a prova produzida pelos litigantes se mostre insuficiente para fixar a quantia de vida, a lei impõe ao juiz o dever de a procurar completar, “mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial” [n.º 4, do art.º 360.º CPC].

«Mais, se ainda assim não for possível fixar a quantia devida, isto é, se o juiz através da indagação oficiosa não conseguir reunir outros elementos que lhe permitam decidir, num último recurso, sempre deverá o tribunal julgar de acordo com a equidade, por imposição do n.º 3, do art.º 566.º do CC, dispondo que “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.» - acórdão T.R.L., 15/4/2015, P. 30324/11.5T2SNT.L1-4, www.dgsi.pt.

Não existe prova suplementar que imponha ao Tribunal determinar.

Por consequência, a quantificação do crédito do A. terá de ser efectuada lançando-se mão a juízos de equidade.

Para o efeito importa ponderar:

parece equilibrado considerar-se o gasto médio de € 25,00 por cada dia de alimentação (como faz o A.), embora se entenda demasiado considerarem-se (como faz o A.) 22 dias úteis em cada mês para o efeito, dado que parte da actividade do A. também era realizada em Portugal, para carregar e/ou descarregar a mercadoria, e, por isso, é certo que não realizava no estrangeiro todas as refeições de cada dia de trabalho; parece também adequado considerar-se 3 dias por mês de trabalho em Sábados, Domingos e feriados.

Porém, importa considerar que o A. gozou férias, período em que, necessariamente, não trabalhou no estrangeiro.

Pondera-se, igualmente, as quantias que a R. já pagou ao A., a título de ajudas de custo, elencadas no número 18 dos factos provados da sentença condenatória, e a duração da relação laboral estabelecida entre as partes (2009 a 2015).

Em suma, entende-se por justo e adequado fixar em € 15.000,00 a quantia devida ao A. à luz do Contrato Colectivo de Trabalho.” fim de citação.

Pois bem, decidiu-se no acórdão deste tribunal proferido nos autos de que estes são apenso, declarar nulo o sistema remuneratório acordado entre as partes em substituição do previsto no CCTV se aquele sistema se revelar menos favorável ao autor em comparação com este, caso em que, deverão ser restituídas todas as quantias pagas e recebidas na execução desse acordo, relegando-se para liquidação de sentença a quantificação do pago e recebido com vista ao apuramento da favorabilidade ou não favorabilidade desse acordo remuneratório.

Ora, antes de se concluir pela favorabilidade ou não favorabilidade do acordo remuneratório impõe-se apurar o que é devido ao Autor por força do CCT e o que lhe foi pago.

Nos termos do já citado CCT aplicável, e tendo em conta a condenação em liquidação, o Autor tem direito a receber: a cláusula 74.ª, n.º 7, no valor de € 338,40 até 31/08/2012 e de € 344,40 (de 01/09/2012 até ao termo da relação laboral); o prémio TIR no montante de € 105,75; uma diuturnidade no valor de € 12,92, de três em três anos e, ainda, o pagamento das refeições à fatura quando deslocado no estrangeiro.

Por outro lado, as quantias pagas ao Autor a título de ajudas de custo encontram-se descritas no ponto 18 do elenco dos factos provados constante do acórdão ora em liquidação e incluem todos os montantes devidos a título de cláusula 74.ª, n.º 7, prémio TIR, alimentação, trabalho suplementar e diuturnidades (ponto 22 da mesma decisão).

Mais resulta do mesmo elenco a seguinte factualidade:

- A Ré não pagava ao Autor as refeições à fatura.

- O Autor desempenhava as funções de motorista de transportes internacionais rodoviários de mercadorias, deslocando-se Portugal/Espanha/Portugal.

No entanto, como se refere na sentença recorrida, não se apurou:

- quanto gastou o A. em refeições tomadas, quando deslocado no estrangeiro.

- quantos dias esteve deslocado no estrangeiro.

Assim sendo, facilmente se conclui que não existem factos que nos permitam apurar o montante concreto gasto pelo Autor em refeições no estrangeiro, posto que, não se apuraram os dias concretos em que o A. esteve deslocado no estrangeiro e, consequentemente, não é possível concluir pela favorabilidade do acordo remuneratório, sendo certo que era à Ré que competia fazer a sua prova (n.º 2 do artigo 342.º do CC), impondo-se, por isso, declarar a nulidade do mesmo com as consequências previstas no artigo 289.º, n.º 1 do CC, ou seja, restituição das importâncias recebidas e o direito do Autor receber as quantias devidas por força do CCT aplicável[8].

Acontece que, e ultrapassada a questão do ónus da prova da favorabilidade do acordo remuneratório, o presente incidente não pode ficar num impasse, ou seja, não pode terminar sem que seja fixado ao Autor o direito que lhe foi reconhecido de receber o pagamento das refeições quando deslocado no estrangeiro.

Na verdade, <<não se pode olvidar que o incidente de liquidação existe, precisamente, para se fixar ou precisar a condenação (que fora genérica), sendo que, para além de a sentença proferida no incidente de liquidação não poder alterar o que ficou decidido na sentença de condenação, esse incidente – como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA – “não pode findar com sentença de improcedência, a pretexto de que o requerente não fez prova, na medida em que tal equivaleria a um non liquet e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva anterior, que reconheceu à parte um crédito, apenas dependente de liquidação (cfr. STJ 4-7-19, 5071/12). Seria, de resto, um paradoxo o incidente de liquidação culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respetivo”.[9]

<<1 - Quando uma sentença condena no que se vier a apurar em incidente de liquidação fica certa a condenação duma parte a favor da outra, permanecendo apenas incerta a “quantidade” da condenação; ou seja, está à partida afastada a possibilidade processual de, no consequente incidente de liquidação, se concluir que não há qualquer “quantidade” a pagar.

2 - Caso não se apure exacta e precisamente o que se relegou para liquidação, impõe-se efectuar um julgamento “ex aequo et bono” e julgar/fixar equitativamente, dentro dos limites provados na acção (e que conduziram à condenação genérica), a “quantidade” a pagar.>>[10]

<<Relegado para liquidação em execução de sentença o apuramento do valor a receber pelo credor e uma vez que no incidente de liquidação não existe ónus da prova por parte do credor, no termo desse incidente terá que ser quantificado um qualquer crédito do credor sobre o devedor, recorrendo-se oficiosamente, se necessário, à prova pericial ou à equidade, sob pena de violação do caso julgado formado em torno da decisão em liquidação.>>[11]

Assim, quando, na liquidação, a prova produzida pelas partes seja omissa ou insuficiente, a liquidação deverá ser efetuada segundo a equidade.

A equidade é um “Termo de procedência latina (aequitas) com o significado etimológico e corrente de “igualdade”, “proporção”, “justiça”, “conveniência”, “moderação”, “indulgência”, é utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares (a equidade é, por assim dizer, a “justiça do caso concreto”) …

[…] A equidade ocupa um lugar muito importante no domínio da experiência jurídica, a ela se apelando para o desempenho de múltiplas funções práticas: interpretação e individualização das normas, correcção da lei, moderação da legalidade estrita e humanização do direito, flexibilização dos enunciados normativos (ius aequum), integração de lacunas, critério de decisão autónoma do julgador (juízo de equidade ou ex aequo et bono)” – “Logos-Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia” – pág.126, citada pelo referido Ac. da Rel. Porto de 31/1/2005.

Ora, como já referimos, a matéria de facto dada como provada neste incidente de liquidação limitou-se àquela que já constava da ação declarativa.

Pelo exposto, ponderando o que ficou dito e, ainda, que: se nos afigura justo e equilibrado um gasto médio de € 25,00 por dia com alimentação e considerar apenas 16 dias úteis por mês de refeições tomadas no estrangeiro, posto que, resulta da matéria de facto provada que o Autor trabalhava de segunda a sexta feira e, no exercício das suas funções, fazia Portugal/Espanha e vice-versa, o que implica também o desenvolvimento da sua atividade em Portugal, nomeadamente, em cargas e descargas de mercadoria, fixa-se em  € 400,00 (€ 25,00 x 16) o montante mensal devido ao Autor a título de alimentação.

Resulta da matéria de facto provada (ponto 18) que o Autor recebeu a título de ajudas de custo (que incluíam a cláusula 74ª, n.º 7, o prémio TIR, as diuturnidades e a alimentação – ponto 22) a quantia global de € 34.060,00 respeitante aos meses de setembro de 2009 a dezembro de 2010 e de janeiro de 2013 a maio de 2015, sendo certo que não se provou qualquer pagamento no que respeita aos anos de 2011 e 2012 (ónus que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 342.º do CC, recaía sobre a Ré), no entanto, o A., no seu requerimento inicial, alegou que a Ré, nos anos de 2011 e 2012, lhe pagou a quantia global de € 18.720,00 a título de ajudas de custo e que, por isso, será tida em consideração, perfazendo assim o total de € 52.780,00.

Por outro lado, o Autor tinha direito a receber, por força do CCT aplicável, a quantia total de € 58.846,71  (338,40x40+344,40x29+105,75x69+12,92x33+400x69), a título de cláusula 74.ª, n.º 7, prémio TIR, diuturnidades e alimentação respeitantes àqueles meses.

Desta forma e em suma, tendo em conta o que ficou dito a propósito das consequências da declaração de nulidade do acordo remuneratório, fazendo a compensação, o Autor tem direito a receber da Ré a quantia em dívida no montante de € 6.066,71, a título de cláusula 74.ª, n.º 7, prémio TIR, diuturnidades e alimentação.  

Procedem, assim, em parte, as conclusões da recorrente.

*

Fica prejudicada a apreciação da última questão supra enunciada.

                                                         *

Na parcial procedência do recurso impõe-se a revogação e manutenção da sentença recorrida em conformidade.

                                                             *                                                        

*

IV – Sumário[12]

(…)

                                                              *

                                                             *

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na parcial procedência do recurso, acorda-se em:

- revogar a sentença recorrida na parte em que liquidou em € 15.000,00 o montante devido ao Autor a título de prestações retributivas fixadas no CCTV, liquidando-se em € 6.066,71 (seis mil e sessenta e seis euros e setenta e um cêntimos) a quantia em dívida ao Autor a título de cláusula 74.ª, n.º 7, prémio TIR, diuturnidades e alimentação e, no mais,

- em manter a sentença recorrida.

                                                                       *

                                                    *

Custas a cargo da recorrente e recorrido, na proporção de 2/3 e 1/3, respetivamente, uma vez que, pese embora o Autor não tenha apresentado resposta, a decisão reflete-se negativamente na sua esfera jurídica.

                                                           *

                                                           *                                                        

 Coimbra, 2022/06/24

                                                                                                                                                                                                      

(Paula Maria Roberto)  

(Azevedo Mendes)  

(Felizardo Paiva)                                                                                                                                                   

  



[1] Relatora  – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Azevedo Mendes
– Felizardo Paiva

[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 128 e 129.
[3] Acórdão do STJ, de 04/06/2019, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do STJ, de 14/01/2010, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. do STJ, de 26/01/2021, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do STJ, de 16/12/2021, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Lebre de Freitas, CPC anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 735 e 736.
[8] A este propósito cfr. o acórdão da RE, de 30/03/2017 e da RG, de 17/12/2020, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do STJ, de 16/12/2021, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Acórdão da RC, de 18/12/2013, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Acórdão da RC, de 31/01/2020, disponível em www.dgsi.pt.
[12] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.