QUEIXA CRIME; EXERCÍCIO
Sumário

I – A queixa crime consiste em “dar conhecimento do facto ao Mº Pº” para que este promova o processo; constitui a mera comunicação, diretamente ao Mº Pº ou aos órgãos de polícia criminal, de determinado facto naturalístico, dotado de sentido social, e manifestação de vontade do queixoso para que sejam promovidos os termos do processo.
Como mera notícia de um facto e declaração de vontade para que seja investigado, não exija a lei outras particulares especificidades.
II – In casu, a falta de assinatura da queixa pelo queixoso; a não ratificação da queixa durante o prazo legal de 6 meses para seu exercício; e a falta de assinatura digital, por parte de mandatária judicial, do requerimento para instauração de procedimento penal, remetido aos serviços do Mº Pº, com a queixa e a procuração em anexo não constituem razões conducentes a que a mesma se não tenha por validamente efectuada.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

No despacho a que se reporta o art. 311º do CPP (despacho de 19.01.2022, ref. Citius 89640701) a Mª Juíza, ponderando que

“inexistindo queixa tempestiva por quem tinha legitimidade para a apresentar, falta um requisito de procedibilidade da acção, carecendo o MP de legitimidade para deduzir acusação contra o arguido, pela prática dos factos e do referido ilícito penal de natureza semipública, o que obsta à apreciação do mérito da causa”,

decidiu:

- rejeitar a acusação pública por falta de legitimidade do Ministério Público para promover e prosseguir o processo penal contra o arguido AA.

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Inconformada com tal despacho, dele recorre a digna magistrada do MºPº, formulando, na respetiva motivação, as seguintes CONCLUSÕES:

1- Nos presentes autos foi proferida decisão de rejeição da acusação pública deduzida, por falta de legitimidade do Ministério Público para promover e prosseguir o processo penal, uma vez que a participação criminal apresentada pela mandatária constituída da ofendida não se encontrava por aquela assinada;

2- Concluiu o tribunal a quo que “No caso vertente constatamos que a queixa que foi apresentada em 19.11.2019 no apenso A a fls. 3 e segs. não se mostra assinada manualmente pela sua subscritora, nem contém qualquer assinatura digital certificada cronologicamente validada, sendo a mesma insusceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, o que equivale à sua inexistência. Acresce a ratificação de tal queixa pelo legal representante da ofendida, BB, apenas ocorreu em 12.12.2019 (cfr. fls 48 a 49 do apenso A), ou seja, já após o prazo dos 6 meses mencionados no art.º 115.º, n.º 1, do Código Penal. Assim, e em inexistindo queixa tempestiva por quem tinha legitimidade para a apresentar, falta um requisito de procedibilidade da acção, carecendo o MP de legitimidade para deduzir acusação contra o arguido, pela prática dos factos e do referido ilícito penal de natureza semi-pública, o que obsta à apreciação do mérito da causa.”

3- Contudo tal solução não se mostra consentânea com a legislação em vigor, nomeadamente por violação dos Artigos 113.º; 115.º, 259.º, n.º 1 e 4, todos do Código Penal e Artigos 48.º, 49.º, 53.º, n.º 2, al. a), b) e c), 283.º, 311.º do Código de Processo Penal; Artigo 4.º do Código de Processo Penal; Artigo 268.º, n.º 2, do Código Civil; e Artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.

4- O Tribunal a quo considerou que a queixa apresentada é inexistente, por falta de assinatura da mandatária judicial subscritora. Contudo, e salvo melhor opinião, não podemos concordar com tal posição, porquanto, a “inexistência” é a mais grave das consequências de um acto, pois nem sequer é considerado pela ordem jurídica, é como se – perdoe-se o pleonasmo – o acto não existisse. O que não é o caso.

5- Com efeito, embora a queixa não se mostre assinada pela Il. Mandatária subscritora, certo é que a mesma teve a virtualidade de transmitir ao Ministério Público a notícia do crime e desencadear a instauração de inquérito e a dedução de acusação pública.

6- E note-se que a queixa foi remetida pela ilustre advogada através de endereço de correio eletrónico da Ordem dos Advogados, sendo que a queixa que se anexava apresentava timbre identificativo da casuística, pelo que se deveria entender que nenhuma dúvida havia acerca do autor dessa peça processual.

7- O que, em conjugação com a procuração forense outorgada a favor da Il. Mandatária subscritora, a 19.11.2019, à qual eram conferidos “(…) poderes para, em seu nome e em representação, apresentar queixa crime contra o Sr. AA e/ou a condómina proprietária da Fração C.”, torna inequívoco que a queixosa pretendia procedimento criminal.

8- Mesmo que assim não se entendesse, e sendo permitida a prática de actos através de remessa por correio-electrónico, sempre deveria ter o tribunal notificado a Il. Mandatária da queixosa para vir aos autos juntar o original da queixa-crime, devidamente assinada.

9- Na realidade, paralelamente, podemos concluir que nem a sentença em que falte a assinatura do juiz é considerada inexistente.

10- Pois que nem a falta de assinatura da sentença é culminada com a inexistência ou nulidade insuprível, por maioria de razão, também a queixa apresentada por mandatário forense ainda que não assinada, remetida por endereço de correio eletrónico oficial da ordem dos advogados, não pode ser considerada inexistente.

11- A queixa apresentada não tinha qualquer assinatura aposta, nem autografa nem digital e, nessa medida, dispõe o Artigo 10.º do mesmo diploma que “À apresentação de peças processuais por correio electrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.”.

12- No caso da telecópia, cujo regime legal aqui se tem que ter como aplicável, tal objectivo é assegurado ou pela utilização do respectivo serviço público ou do equipamento do advogado ou solicitador, cujo número tinha que constar das listas organizadas pela respectiva Ordem ou Câmara dos Solicitadores. Crê-mos que o mesmo sucede com o envio do requerimento através de endereço de correio-electrónico oficial da ordem dos advogados, como foi o caso.

13- Em todo o caso, e para cumprimento do disposto no n.º 3, do Artigo 4.º, do Decreto-Lei 28/92, de 27/02, entendemos que a Ilustre Mandatária da queixosa deveria ter sido “convidada” para vir juntar aos autos o original da participação criminal, devidamente assinada, o que não foi até ao momento da prolação do despacho do qual se recorre.

14- Não se entendendo assim, tal posição é inconstitucional porque violadora dos princípios de acesso aos tribunais e à justiça e o princípio da confiança.

15- A rejeição da queixa apenas porque a mesma não se encontrava assinada pela mandatária subscritora, sem que haja prévio convite à correção dessa irregularidade, viola o Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

16- E bem assim, o princípio da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito ínsito no Artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, tendo sido apresentada a queixa-crime, o inquérito foi tramitado sem que a questão da falta de assinatura da queixa fosse levantada;

17- Na realidade, tendo em consideração todo o desenrolar do processo, a ofendida criou uma legitima espectativa de que o assunto que entregou aos tribunais iria aí ser resolvido.

18- De modo que, são inconstitucionais as normas constantes dos Artigos 4.º, n.º 1 e 3, do Decreto-Lei 28/92, de 27/02, Artigo 4.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do Artigo 4.º do Código de Processo Penal, por violação do disposto nos Artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de que tendo o mandatário remetido por correio-electrónico simples ou sem validação cronológica, ainda que oficial da ordem dos advogados, uma peça processual anexa não assinada, deve tal peça ser rejeitada, não tendo o tribunal que notificar primeiramente o apresentante a fim de juntar o original devidamente assinado, por violação dos princípios constitucionais de acesso aos tribunais e à justiça e da confiança.

19- No mais, a ofendida reiterou a sua vontade em desejar procedimento criminal, mesmo que após o prazo de 6 (seis) após ter tido conhecimento dos factos, tendo tal ratificação efeitos retroactivos, nos termos do disposto no Artigo 286.º, n.º 2, do Código Civil.

Nestes termos e nos demais de direitos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, nessa medida, deverá ser revogada a decisão de rejeição da acusação pública, sendo substituída por outra, que a receba, seguindo-se os ulteriores termos do processo até à decisão final nos termos do disposto nos Artigos 311.º e seguintes, do Código de Processo Penal, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA.

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Não foi apresentada resposta.

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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual sufragando a motivação do recurso, sustenta a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que considere ter a ofendida manifestado atempadamente o seu desejo de exercício de procedimento pelos factos que deu a conhecer ao Ministério Público, sendo assim designado dia para audiência de julgamento.

Corridos vistos, cumpre decidir.


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II – FUNDAMENTAÇÃO

1 – Constitui objeto do recurso, definido nas conclusões, a validade da queixa apresentada nos autos, pressuposto do exercício da ação penal pelo MºPº.

2 – Com relevo para a apreciação da questão suscitada, resulta dos autos:

- No dia 19 de novembro de 2019, pelas 13H18M, foi remetida uma mensagem de correio eletrónico para viseu.diap@tribunais.org.pt, pelo enderenço de e-mail ..., com o assunto “Apresentação de queixa crime” e com o seguinte teor:

««N/ cliente e Ofendida: N..., Lda.

Denunciado: AA

Exmo. Senhor Secretário Judicial:

Nos termos e para os efeitos do previsto pelo art.º 203.º, n.º 3 do Código Penal e do art.º 49.º, n.º 1 e n.º 3 do Código de Processo Penal, anexo, em nome e representação da Ofendida acima identificada, a respectiva queixa crime, bem como um documento (para instrução da mesma) e Procuração, com poderes especiais para o efeito.

Com os meus melhores cumprimento

A Advogada, CC” – cfr. fls. 3 do apenso A.

ii) Nessa mensagem de correio-electrónico não foi aposta assinatura digital ou certificação cronológica (MDDE) – cfr. fls. 3 do apenso A;

iii) Em anexo à mensagem de correio-electrónico vinham 3 (três) ficheiros denominados de “queixa.pdf”, “Acta.pdf” e “Procuração.pdf” »» – cfr. fls. 3 do apenso A.

- Do teor daquela queixa-crime resulta que ali era imputada a AA a prática de um crime de furto, p. e p. pelo Artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, com o fundamento de que no dia 20 de Maio de 2019, pelas 18H30M, o denunciado deslocou-se às instalações da participante, sociedade N..., Lda., sitas na Rua ..., ... ..., e, após consultar o livro de atas do condomínio do prédio sito na Rua ..., em ..., retirou e levou a ata n.º 45 que tinha sido elaborada na sequência da assembleia de condóminos realizada nesse mesmo dia. – cfr. fls. 4 a 11 do apenso A.

- Tal documento anexo, denominado “queixa.pdf” não se encontra assinado.

- Com a referenciada queixa-crime foi junta uma procuração com o seguinte teor: ««N..., Lda., contribuinte n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ... ..., representada pelo seu sócio gerente BB, na qualidade de entidade nomeada como Administradora de Condomínio do Edifício denominado R... do NIPC ..., sito na Rua ..., em ..., confere à SRA. DRA. CC, advogada, com domicílio profissional na .... Frente, em ..., os mais amplos poderes forenses gerais, em direito permitidos, e os especiais para confessar, transigir e desistir e ainda poderes para, em seu nome e em representação, apresentar queixa crime contra o Sr. AA e/ou a condómina proprietária da Fração C.»».

- Tal procuração encontra-se datada de 19 de novembro de 2019 – fls. 20 do apenso A (cópia) e fls. 338 do processo principal.

- Na sequência e por efeito de tal expediente foi instaurado o inquérito preliminar, ao qual foi atribuído o n.º ...9....

- No âmbito do inquérito realizaram-se as diligências consideradas pertinentes, designadamente procedeu-se à inquirição, em 12.12.2019, de BB, na qualidade de gerente da sociedade queixosa, o qual “confirmou na integra o teor da participação criminal por corresponder à verdade (…) Assim, o depoente considera que foi lesado por conduta ilícita adotada pelo denunciado, pelo que continua a deseja procedimento criminal contra o mesmo e que desde já manifesta o propósito de formular o pedido para ser ressarcido nos termos da lei.” – cfr. fls. 48 e 49 do apenso A.

- Foi constituído como arguido AA, a 16.12.2019, tendo nessa data sido confrontado com os factos que lhe eram imputados – cfr. fls. 55 a 59, do apenso A.

- Entretanto, verificou-se existir uma conexão de processos com o Inquérito n.º 2594/19...., onde também estavam em causa factos referentes à indicada Acta n.º 45 daquele condomínio, tendo os processos sido apensados – cfr. despacho de fls. 61 do apenso A.

- Em 02.03.2021 foi proferida acusação pública imputando ao arguido AA a prática de factos qualificados como integradores de um crime de subtração de documentos, p. e p. nos termos do Artigo 259.º, n.º 1, com referência ao Artigo 255.º, al. a), ambos do Código Penal – cfr. fls. 166 a 171 (Ref.ª 87240488).

- Foi ainda requerida a abertura de instrução a qual não versou sobre a acusação pública, que em nada foi alterada

- Em 19.01.2022 foi proferido o despacho recorrido que rejeitou a acusação pública deduzida.

Resulta ainda dos autos que

- Consta da impressão, pela Secretaria, a fls. 3 do Apenso A, da mensagem de correio eletrónico remetida pela ilustre advogada Dra. CC do dia 19.11.2019 (à qual foi anexada a queixa) que em tal mensagem de correio eletrónico foi aposta assinatura digital pela respetiva remetente, como resulta do respetivo cabeçalho: “...”.

O que confirma que a mensagem foi assinada digitalmente através do sistema MULTICERT.  


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3. Apreciação

A decisão recorrida considerou que a queixa que foi apresentada em 19.11.2019 (no apenso A a fls. 3 e segs.) não se mostra assinada manualmente pela sua subscritora, nem contém qualquer assinatura digital certificada cronologicamente validada, sendo a mesma insuscetível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, o que equivale à sua inexistência. Acresce a ratificação de tal queixa pelo legal representante da ofendida, BB, apenas ocorreu em 12.12.2019 (cfr. fls 48 a 49 do apenso A), ou seja, já após o prazo dos 6 meses mencionados no art.º 115.º, n.º 1, do Código Penal.

Assenta, pois, em três proposições: - falta de assinatura da queixa pelo queixoso; - não ratificação da queixa durante o prazo legal de 6 meses para seu exercício; - falta de assinatura digital, por parte de ilustre mandatária judicial, do requerimento para instauração de procedimento penal, remetido aos serviços do MºPº, com a queixa e a procuração em anexo.

Sobre o exercício do direito de queixa, dispõe o artigo 48.º do Código de Processo Penal: O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º.

Por outro lado, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal “Quanto o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”.

Sobre a natureza e conteúdo da queixa, postula, ainda do art. 49º nº 1 do CPP: – Quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao MºPº, para que este promova o processo.

No caso dos autos, a factualidade descrita na queixa-crime, quer seja qualificada como crime de furto (como ali é referenciado) quer seja qualificada como crime de subtração de documento (como foi na acusação deduzida pelo MºPº rejeitada pelo despacho recorrido) constituem crimes de natureza semi-pública, conforme, resulta da conjugação do disposto nos artigos 203º, nº 3 e 259º, nº 4, do Código Penal.

A queixa não constitui, porém, a imputação acabada da prática de um crime – o que compete à acusação, depois de realizado o inquérito e da avaliação dos elementos recolhidos pelo MºPº ou por mandatário forense constituído, nos termos previstos nos artigos 283º e 284º do CPP.

Consiste apenas em “dar conhecimento do facto ao MºPº” para eu este promova o processo – art. 49º, 1 do CPP citado. Constitui a mera comunicação, diretamente ao MºPº ou aos órgãos de polícia criminal, de determinado facto naturalístico, dotado de sentido social, e manifestação de vontade do queixoso para que sejam promovidos os termos do processo.

Daí que, como mera notícia de um facto e declaração de vontade para que seja investigado, não exija a lei outras particulares especificidades.

Como refere Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, editorial notícias, pág. 665 a queixa “pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam corretamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”.

No caso dos autos, certo é que o documento apresentado como “queixa” não se encontra assinado pela pessoa que ali figura como queixoso.

No entanto, quando ouvido - no âmbito do inquérito preliminar aberto por efeito da queixa apresentada - o queixoso reiterou, de forma expressa, inequívoca e inquestionada, a sua vontade de prossecução da ação penal. Ratificando assim a queixa apresentada em seu nome.

Certo é que tal ratificação ocorreu após o prazo dos 6 meses indicado no Artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal. Mas, nos termos do disposto no Artigo 268.º, n.º 2, do Código Civil, a ratificação tem natureza retroativa e, por isso, pode ser realizada após o prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa.

Pelo que a queixa apresentada foi validamente ratificada, não devendo a acusação ser rejeitada por falta de apresentação da queixa. 

Acresce que

A queixa - contendo a descrição do facto, a declaração de vontade e a identidade do queixoso - ainda que não assinada, vinha acompanhada de procuração forense a favor da ilustre advogada que remeteu o documento aos serviços do MºPº requerendo a promoção do processo.

Ora o exercício do direito de queixa pode ser realizado através por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais – cfr. Artigo 49.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal.

E, no caso - ainda que tal não fosse necessário para a apresentação de queixa por mandatário judicial – como resulta do quadro factual supra descrito, a procuração conferia poderes especiais para a apresentação da queixa, por determinados factos e seus autores, identificados: - “(…) ainda poderes para, em seu nome e em representação, apresentar queixa crime contra o Sr. AA e/ou a condómina proprietária da Fração C.”.

Portanto, ainda que pudesse ser desconsiderada a queixa apresentada pelo queixoso, sempre seria de considerar validamente apresentada pelo mandatário judicial constituído para o efeito.

A objeção levantada sobre ao envio por email do requerimento com a queixa e a procuração não colhe.

Porquanto, desse logo, consta da impressão, pela Secretaria, a fls. 3 do Apenso A, da mensagem de correio eletrónico remetida pela ilustre advogada Dra. CC do dia 19.11.2019 (à qual foi anexada a queixa) que em tal mensagem de correio eletrónico foi aposta assinatura digital pela respetiva remetente, como resulta do respetivo cabeçalho: “...”.

O que confirma que a mensagem de correio eletrónico foi assinada digitalmente através do sistema MULTICERT.  

De qualquer forma

De harmonia com a Doutrina fixada pelo Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 3/2014, publicado no DR, 1.ª Série, de 15 de Abril de 2014, «em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27.12, e na Portaria n.º 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal».

Esta jurisprudência é aplicável à tramitação do processo até ao início da fase de julgamento pois, a partir daí, torna-se possível o envio de peças processuais através da plataforma CITIUS, nos termos do disposto no Artigo 1.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto.

Ora, nos termos do disposto no Artigo 3.º, da Portaria n.º 642/2004, de 16 de Junho, “O envio de peças processuais por correio eletrotónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 62/2003, de 3 de Abril, bastando para tal a aposição de assinatura electrónica avançada.”.

Dispõe ainda o Artigo 4º do mesmo diploma:

1 - As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respectivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exactos, salvo prova em contrário. (…)

3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos.

E o artigo 10º: “À apresentação de peças processuais por correio eletrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.”.

No caso da telecópia, cujo regime legal aqui se tem que ter como aplicável, tal objetivo é assegurado ou pela utilização do respetivo serviço público ou do equipamento do advogado ou solicitador, cujo número tinha que constar das listas organizadas pela respetiva Ordem ou Câmara dos Solicitadores.

O mesmo sucede com o envio do requerimento através de endereço de correio-electrónico oficial da ordem dos advogados, como foi o caso, designadamente por recurso ao disposto no nº 3 do Artigo 4º do Decreto-Lei 28/92, de 27/02, diploma relativo à utilização de telecópia em processo penal.

Em todo o caso

A questão não foi levantada nem durante o inquérito preliminar nem durante a instrução - tendo sido realizadas todos os atos do inquérito e da instrução no pressuposto de que a queixa foi validamente apresentada.

Daí que, caso surgissem dúvidas, sendo inequívoca a efetiva receção do requerimento e documentação anexa, nos serviços do MºPº, com identificação da autora do documento, antes de obstaculizar, em definitivo, o exercício da ação penal, deveria ser concedido ao queixoso a possibilidade de corrigir a falta, de natureza formal, face a todo o conteúdo e contexto do documento.

Sob pena de violação de princípios superiores do acesso à justiça consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, da proteção da confiança e da tutela jurisdicional efetiva, princípios inerentes ao direito a um processo justo e equitativo consagrado no artigo 6º da C.E.D.H. Princípios aplicáveis também ao ofendido/demandante, conforme entendimento da Comissão e jurisprudência do TEDH – cfr. Irineu Cabral Barreto, in Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3ª ed., p.116-119.

Pelo que, também por aqui, tendo em vista todo o processado no pressuposto de que a queixa apresentada era válida e relevante, não devia ser tido desconsiderada radicalmente, ao menos sem possibilidade de correção.

Impõe-se, assim, quer porque validamente ratificada a queixa apresentada sem assinatura do ofendido, quer porque sempre haveria de ser validamente apresentada a queixa através de mandatário judicial constituído para o efeito, impõe-se a procedência do recurso.

III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que, reconhecendo legitimidade ao MºPº para o exercício da ação penal, não se verificando outros obstáculos, designe data para julgamento. ---

Sem custas.

Coimbra, 29 de junho de 2022

Acórdão elaborado em processador de texto. Revisto pelos subscritores - com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09.

Belmiro Andrade – Relator

Brízida Martins – Presidente da Secção

Luís Ramos – Adjunto