PENA ACESSÓRIA DE INIBIÇÃO DE CONDUZIR; CUMPRIMENTO
Sumário

I – É com a entrega voluntária da licença de condução ou, caso não se verifique tal entrega, com a sua apreensão, que se efectiva a inibição de conduzir. Isto é, a partir do momento em que o arguido fica desapossado da sua licença de condução não pode conduzir. Logo, o início da proibição de conduzir, o início da execução da pena acessória, tem que corresponder a essa entrega ou apreensão.
II – O caso sub judice tem a particularidade de a entrega da carta de condução ter sido efectuada pelo arguido antes do trânsito em julgado da sentença que o condenou na pena acessória de inibição de conduzir.
Carta esta que o tribunal aceitou, não a devolvendo e nada dizendo ao arguido.
III – O arguido, não pretendendo recorrer da sentença e convicto de que poderia entregar a carta até um determinado limite temporal (10 dias após o trânsito), com receio do internamento hospitalar a que ia ser sujeito o impedir de cumprir tal prazo, resolveu entregar a carta de condução antes do trânsito da sentença. A partir dessa data ficou desapossado da carta e, por isso, impedido/inibido de conduzir.
IV – Uma vez que a carta de condução do arguido foi aceite pelo tribunal, ficando ele plenamente convicto de que estava a cumprir a inibição, seria injusto e desleal afirmar agora que, afinal, o arguido não podia cumprir a inibição de conduzir quando entregou a carta.
V – O disposto nos artigos 69.º, n.ºs 2 e 3, e 500.º, n.ºs 2, 3 e 4, ambos do Código de Processo Penal, é o procedimento normal aplicável à generalidade dos casos, quanto ao momento a partir do qual produz efeitos a decisão de proibição de conduzir veículos com motor e a forma de cumprimento dessa pena acessória.
VI – Porém, em certas situações há um maior compromisso entre o Estado e os cidadãos. Caso dos autos, face às circunstâncias em que os factos ocorreram pois seria injusto e até um “abuso de direito” por parte do Estado obrigar o arguido a cumprir novamente a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
VII – Ou seja, o arguido que já cumpriu o período de proibição de conduzir veículos com motor, ficando afectado de forma real e efectiva no seu direito de conduzir, não pode ser culpabilizado pelo cumprimento antes de transitar a decisão condenatória.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

         A – Relatório

1. Pela Comarca de Coimbra (Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2), por sentença de 13.12.2021, transitada em julgado a 25.1.2022, o arguido AA foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº1, e 69º, nº1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses.

2. A 17.1.2022, o arguido entrega nos autos, voluntariamente, a carta de condução.

3. Posteriormente, o M.P. procede à liquidação da pena acessória, fixando o início do cumprimento da pena a partir do trânsito da sentença e o seu termo no dia 25.8.2022. Afirma o M.P. que o arguido foi informado para entregar a carta de condução no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da decisão. Não obstante isso, decidiu proceder à entrega da carta de condução no dia 17.12.2021, antes do referido dia 25.01.2022, data a partir da qual a proibição produz efeito.

4. Dado o contraditório ao arguido, veio este dizer que “quanto ao cômputo da pena acessória, como sabia que iria ser submetido a internamento hospitalar, com data de alta incerta, e não querendo correr o risco de incumprir com a entrega do seu título de condução, optou por entregá-lo antes de tal internamento. Até porque não era sua intenção (e, de facto, não aconteceu) recorrer da douta sentença, sendo que o que reteve do respetivo teor oral foi de que tinha de entregar a carta até uma determinada data, como fez em Tribunal.

Assim sendo, R. a V. Exª se digne ordenar a elaboração do cômputo da pena acessória, a contar da efetiva entrega do título, i. é, a partir de 17.12.2021”.

5. Por sua vez, por despacho de 26.2.2022, decidiu-se proceder à liquidação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em moldes distintos dos referidos pelo Ministério Público, fixando-se a data do início da execução da pena no dia 17.12.2021 (data da efectiva entrega do título), e a data do término a 17.7.2022.

6. Inconformado com tal despacho, veio o Ministério Público interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1. O arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, ao abrigo do artigo 69.º/1/a) e 2 do Código Penal, pelo período de sete meses, por sentença proferida a 13-12-2021, transitada em julgado a 25-01-2022.

2. Nessa sequência, no dia 17-12-2021, o arguido procedeu à entrega da carta de condução neste tribunal e, posteriormente, no dia 22-02-2022, veio requerer que se considerasse a mesma data como a de início do prazo da referida proibição.

3. Apesar de o Ministério Público ter promovido que o termo do cumprimento da pena acessória ocorresse no dia 25-08-2022, sete meses após o trânsito em julgado da sentença, o tribunal decidiu considerar como data de início do cumprimento da pena acessória de proibição de condução a data da entrega do título.

4. Em nosso entender, tal desfecho afasta de forma injustificada aquilo que vem expressamente preceituado nos artigos 69.º/2 e 3 do Código Penal e 500.º/2 do Código de Processo Penal.

5. Ao mesmo tempo que ignora o facto de as sentenças penais condenatórias só gozarem de força executiva após o trânsito em julgado, nos termos dos artigos 467.º do Código de Processo Penal, e do 706.º do Código de Processo Civil, ex vi 4.º daquele primeiro Código.

6. Ademais, a solução oferecida permite que, no hiato temporal entre a data de entrega da carta de condução e a data do trânsito em julgado da sentença, o arguido possa desobedecer à proibição a que foi condenado, não podendo ser responsabilizado pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido no artigo 353.º do Código Penal.

7. Paralelamente, em circunstâncias idênticas às do ponto anterior, no mesmo período, nem sequer será possível às entidades policiais procederem à devida fiscalização da violação em causa, porquanto a proibição que lhe dá origem só lhes é comunicada após o trânsito em julgado, nos termos do artigo 69.º/4 do Código Penal.

8. O cumprimento antecipado de uma pena acessória, sem que a sentença que a determinou tenha transitado em julgado, constitui uma violação profunda do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º/2 da Constituição da República Portuguesa, e do princípio da liberdade, que proíbe a sua privação sem respetiva sentença judicial condenatória, aclamado no artigo 27.º/1 e 2 da nossa Lei Fundamental.

9. A data de início do cumprimento de uma pena, ainda que acessória, não poderá ficar ao critério do arguido, divergindo do legalmente estipulado, quer por adiamento, quer por antecipação.

10. No momento em que o arguido, depois de condenado, inicia o cumprimento da pena, está obrigatoriamente assistido juridicamente, pelo que lhe deve ser garantido o esclarecimento cabal da sua situação processual, designadamente o prazo para entrega do título de condução e suas respetivas consequências.

11. A decisão judicial que determina como data de início do cumprimento da pena acessória o momento da entrega da carta de condução deve igualmente determinar, se possível, a mesma data para o trânsito em julgado, de forma a que daí se possam extrair todas as legais consequências, evitando as repercussões que oportunamente criticámos.

12. Não devem as secretarias dos tribunais receber títulos de condução pertencentes a arguidos cuja sentença não tenha ainda transitado em julgado, sob pena de se onerar indevidamente os Srs. Funcionários de uma decisão que compete ao tribunal.

13. As soluções aqui apresentadas são as únicas capazes de harmonizar os direitos e as imposições que esta problemática invoca, evitando uma mudança de paradigma que poderá resultar numa total subversão do sistema punitivo”.

7. Notificado da admissão do recurso, o arguido não respondeu.

8. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador da República emitiu Parecer no sentido da improcedência do mesmo e manutenção do despacho recorrido.

Em síntese, alega que o facto de o arguido não ter interposto recurso da sentença e de ter invocado o receio de que, por força do seu previsto internamento, não pudesse entregar a sua carta de condução antes de esgotado o prazo que tinha para o efeito, o que não foi questionado pelo Ministério Público, permite ter como verdadeiro que a aceitação da carta de condução pela secretaria do tribunal criou nele a genuína convicção que, com esse ato, iniciava o cumprimento da pena acessória, sendo a expetativa assim criada, por isso, merecedora da tutela do art.º 157º.6 do CPC, aplicável ex vi do art.º 4º do CPP.

O computo do início do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor com a entrega da carta de condução antes do trânsito em julgado da sentença não deve decorrer automaticamente desse simples ato, sendo também necessário que as concretas circunstâncias do caso permitam concluir que o arguido agiu de boa fé, com o genuíno propósito de cumprir a pena acessória em que foi condenado - como, a nosso ver, sucede in casu - e não por simples comodidade ou com a intenção de obter um benefício ilegítimo, nomeadamente o que pode resultar da não comunicação da pena acessória às autoridades de fiscalização do trânsito rodoviário antes do trânsito em julgado da decisão.

Finalmente, embora se admita a utilidade de instruir as secretarias judiciais no sentido de ser levada ao imediato conhecimento do juiz titular do processo a entrega do título de condução pertencente a arguido cuja sentença ainda não tenha transitado em julgado, a quem competirá decidir, parece-nos que o caminho para o alcançar não será o jurisdicional, mas, antes, administrativo, mediante instruções dirigidas à secretaria pelo órgão de gestão competente”.

9. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido respondido ao douto parecer.

10. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

11. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

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   B - Fundamentação

 

1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal).

O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193).

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a seguinte:

- se o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor deve iniciar-se com o trânsito em julgado da sentença, no caso em que o arguido, voluntariamente, entregue nos autos, em momento anterior, a carta de condução.

3. Para decidir da questão supra enunciada, vejamos o despacho recorrido que apresenta o seguinte teor:

“Do cômputo da pena acessória:

Nos termos do art.º 69.º, n.º 3, do Código Penal e do art.º 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o título de condução da arguida deve ser entregue por ela na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado.

Ora, a sentença nos autos foi proferida em 13.12.2021, e transitou em julgado em 25.01.2022.

O arguido procedeu à entrega da carta neste Tribunal em 17.12.2021.

Assim, importa aferir se tal entrega apenas começará a produzir os seus efeitos, designadamente para contagem do prazo de proibição de conduzir veículos automóveis, após o trânsito em julgado da sentença, em cumprimento do disposto nos referidos art.ºs 69.º, n.º 3, do Código Penal, e 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ou se, pelo contrário, encontrando-se já o arguido impossibilitado de conduzir veículos automóveis por força da entrega da carta na secretaria do tribunal, se o período da pena assessória deve começar desde 17.12.2021 a ser contado.

Por outras palavras, importará perceber se a interpretação que deve ser feita dos comandos ínsitos naquelas normas deve ser uma interpretação literal e formalista ou se, contrariamente, deve a interpretação desses normativos permitir o cumprimento da pena acessória de forma antecipada.

É certo que é fundamental fixar o momento a partir do qual produz eficácia a decisão condenatória quanto ao cumprimento das penas, momento esse que será determinado pelo trânsito em julgado. De tal fixação depende a segurança dos cidadãos face ao poder punitivo do estado.

Esta norma configura-se, assim, como uma garantia dos cidadãos, que lhes assegura um período para reagirem contra a decisão punitiva.

Porém, é uma garantia que os cidadãos podem utilizar, designadamente interpondo recurso da sentença, mas que podem igualmente não utilizar, pura e simplesmente não recorrendo ou renunciando ao direito ao recurso.

Assim, tratando-se de uma norma que atribui direitos ao cidadão, e considerando que esses direitos são disponíveis, nada parece obstar a que o cumprimento da pena acessória se possa iniciar no momento em que o cidadão entregar a carta de condução na secretaria do tribunal, desse modo manifestando a sua intenção (e o seu direito) de não recorrer.

E, sendo a carta de condução recebida pela secretaria, ficando aí depositada, sem que o cidadão possa efectivamente conduzir, seria “injusto e até um “abuso de direito” por parte do Estado obrigar o arguido a cumprir novamente a sanção acessória de proibição de conduzir” (v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01/07/2015, proferido no Proc. n.º 33/14.0GBMGL-A.C1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10-11-2016, e mais recentemente, e em certa medida, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-01-2021, todos disponíveis in www.dgsi.pt) a que se adere.

Com efeito, não admitir que o tempo de cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir se contasse desde a data em que a secretaria efectivamente recebeu a carta de condução consubstanciaria uma violação “dos princípios de confiança e lealdade processuais, que impedem que seja defraudada a expectativa do condenado no sentido de o prazo de cumprimento da pena acessória de cumprimento da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor se iniciar a partir do preciso momento da entrega/recebimento do referido documento” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/06/2015, proferido no processo n.º 137/14.9GAAVZ.C1, in www.dgsi.pt), ainda mais grave no caso em apreço, considerando as razões de saúde aduzidas (o arguido ir ser submetido a internamento hospitalar, com data de alta incerta, e não querendo correr o risco de incumprir com a entrega do seu título de condução, optou por entregá-lo antes de tal internamento).

Pelo exposto, não se homologação o cômputo proposto pela Digna Magistrada do MP, considera-se outrossim como data de início do cumprimento da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor aplicada ao arguido, a data da efetiva entrega do título, pelo que a contagem do prazo de sete meses será feita a partir de 17.12.2021, terminando, como tal, a referida pena, em 17 de Julho de 2022”.

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  4. Cumpre agora apreciar e decidir.

 

Como referido supra, a questão a decidir é a de saber se o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor deve iniciar-se com o trânsito em julgado da sentença, no caso em que o arguido, voluntariamente, entregue nos autos, em momento anterior, a carta de condução.

Alega o recorrente que a posição do tribunal a quo afasta de forma injustificada aquilo que vem expressamente preceituado nos artigos 69.º/2 e 3 do Código Penal e 500.º/2 do Código de Processo Penal. Ao mesmo tempo que ignora o facto de as sentenças penais condenatórias só gozarem de força executiva após o trânsito em julgado, nos termos dos artigos 467.º do  Código de Processo Penal, e do 706.º do Código de Processo Civil, ex vi 4.º daquele primeiro Código.

Afirma ainda que a solução oferecida permite que, no hiato temporal entre a data de entrega da carta de condução e a data do trânsito em julgado da sentença, o arguido possa desobedecer à proibição a que foi condenado, não podendo ser responsabilizado pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido no artigo 353.º do Código Penal. Paralelamente, em circunstâncias idênticas às do ponto anterior, no mesmo período, nem sequer será possível às entidades policiais procederem à devida fiscalização da violação em causa, porquanto a proibição que lhe dá origem só lhes é comunicada após o trânsito em julgado, nos termos do artigo 69.º/4 do Código Penal.

Mais alega que o arguido, depois de condenado, inicia o cumprimento da pena, está obrigatoriamente assistido juridicamente, pelo que lhe deve ser garantido o esclarecimento cabal da sua situação processual, designadamente o prazo para entrega do título de condução e suas respetivas consequências.

Pois bem.

No Capítulo III, do Título III, do Livro I, do Código Penal, relativo às Penas acessórias e efeitos das penas, sob a epígrafe Proibição de conduzir veículos a motor, estipula o artigo 69º, nº1, alínea a), que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º”.

Não sendo um efeito de qualquer pena, a proibição de conduzir veículos motorizados é uma verdadeira pena acessória.

É certo que as penas acessórias pressupõem a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), mas são verdadeiras penas criminais, também elas ligadas à culpa do agente e justificadas pelas exigências de prevenção (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1ª edição, 2013, pág. 34, citada no Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsipt).

Como se refere no referido aresto, “porque se trata de uma pena, a determinação da medida concreta da sanção inibitória, há-de efectuar-se segundo os critérios orientadores gerais contidos no artigo 71.º do Código Penal, não olvidando que a sua finalidade (diferentemente da pena principal que tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) reside na censura da perigosidade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág.165)”.

Assim, inexistem quaisquer dúvidas de que estamos perante uma verdadeira pena.

Cumpre então apreciar quando se inicia o cumprimento, a execução, da referida pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados.

Estipula o artigo 500º, nºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Penal que:

2 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

3 - Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

4 - A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

É com a entrega voluntária da licença de condução ou, caso não se verifique tal entrega, com a sua apreensão, que se efectiva a inibição de conduzir. Isto é, a partir do momento em que o arguido fica desapossado da sua licença de condução não pode conduzir. Logo, o início da proibição de conduzir tem que corresponder a essa entrega ou apreensão.

Com a referida entrega ou apreensão inicia-se a execução da pena acessória.

Há muito que a jurisprudência se vem pronunciando neste sentido.

O Ac. da RG de 23.11.2020, in www.dgsi. pt, refere que “o fim visado com a entrega/apreensão da carta de condução é o não exercício desta durante o período da proibição, objectivo que foi alcançado desde a data da sua entrega na secretaria do tribunal”.

O que está em consonância com o Ac. da RG de 8.7.2002, onde se lê que “o processo de execução da pena acessória de proibição de conduzir está regulado no artigo 500.º do CPP. A apreensão da licença de condução não é, apenas, uma medida cautelar, mas uma condição sine qua non do efectivo cumprimento dessa pena acessória. O período de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicado nos termos do artigo 69.º do Código Penal, conta-se a partir da efectiva entrega ou apreensão da licença de condução e não a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória”.

No mesmo sentido encontra-se igualmente o Ac. da RP de 19.6.2006, in www.jusnet.pt, segundo o qual “o cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir inicia-se com a entrega ou apreensão da carta de condução do arguido. A partir do momento em que aquela carta de condução passa a estar à ordem do tribunal, começa a contar o período da inibição, findo o qual deverá ser a carta entregue ao arguido”.

Aliás, a Relação do Porto já no Ac. de 7.12.2005, in www.dgsi.pt., tinha afirmado que “o cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir, no caso de a licença de condução não se encontrar apreendida no processo, conta-se a partir do momento da sua entrega ou apreensão”.

O caso sub judice tem a particularidade da entrega da carta de condução ter sido efectuada pelo arguido antes do trânsito em julgado da sentença que o condenou na pena acessória de inibição de conduzir.

O arguido foi condenado por sentença de 13.12.2021, transitada em julgado a 25.1.2022, e entregou a carta de condução a 17.1.2022.

Carta esta que o tribunal aceitou, não a devolvendo e nada dizendo ao arguido.

Aquando do contraditório à liquidação efectuada pelo M.P., o arguido disse que, como sabia que iria ser submetido a internamento hospitalar, com data de alta incerta, e não querendo correr o risco de incumprir com a entrega do seu título de condução, optou por entregá-lo antes de tal internamento.

Disse ainda que não era sua intenção recorrer da sentença, sendo que o que reteve do respetivo teor oral foi de que tinha de entregar a carta até uma determinada data, como fez em Tribunal.

Requereu que o cômputo da pena acessória tivesse em consideração a data da efetiva entrega do título.

De facto, no caso concreto, a solução terá que ser essa.

O arguido, não pretendendo recorrer da sentença e convicto de que poderia entregar a carta até um determinado limite temporal (10 dias após o trânsito), com receio do internamento hospitalar o impedir de cumprir tal prazo, resolveu entregar a carta de condução a 17.1.2012. A partir dessa data ficou desapossado da carta e, por isso, impedido de conduzir.

Reafirma-se que o Tribunal aceitou a carta de condução. Não pode agora dizer, como pretende o Ministério Público, que afinal o arguido não podia cumprir a inibição de conduzir quando entregou a carta.

O facto é que ele ficou inibido de conduzir, mesmo antes do trânsito da sentença, por não ter na sua posse a carta de condução. Seria extremamente injusto dizer ao arguido, agora cumpra novamente esses dias, porque afinal quando entregou a carta não podia cumprir a pena acessória.

Seria uma posição injusta e desleal, uma vez que a carta de condução do arguido foi aceite pelo tribunal, ficando o arguido plenamente convicto de que estava a cumprir a inibição, demonstrando, aliás, preocupação pelo facto do internamento hospitalar o impedir de cumprir o prazo.

Dos tribunais, os cidadãos esperam justiça, lealdade e lisura nos procedimentos.

Aliás, nos termos do artigo 20º, nº 4, da CRP, “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.

Processo esse que reclama, necessariamente, um juízo de bom senso, de razoabilidade, de justiça e de igualdade.

Esta situação não é única nem inovadora. Ao longo dos anos têm sido inúmeras as situações em que os arguidos entregam a carta de condução sem esperar pela data do trânsito em julgado da sentença. Ao entregarem a carta, mesmo que não o digam expressamente, normalmente, pretendem renunciar ao direito de recorrer. Pelo menos, no que respeita à pena acessória (cfr. artigo 403º, nº2, alínea f), do Código de Processo Penal).

Uma coisa é certa: pretendem iniciar o cumprimento da pena acessória e iniciam-na de facto, porque ficam desapossados da carta de condução; logo, impedidos de conduzir.

É precisamente este o caso dos autos.

Não esquecemos o disposto no artigo 69º, nºs 2 e 3, do Código Penal.

 

Nos termos o artigo 69º, nº 2, do Código Penal “a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria”.

Por sua vez, dispõe o nº 3 do mesmo normativo que “no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”.

O que está em consonância com o já referido artigo 500º, nºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal.

“Este é o procedimento normal aplicável à generalidade dos casos, quanto ao momento a partir do qual produz efeitos a decisão de proibição de conduzir veículos com motor e a forma de cumprimento dessa pena acessória.

É fundamental fixar o momento a partir do qual produz eficácia a decisão condenatória quanto ao cumprimento de penas, isto é, a partir do trânsito em julgado.

É a segurança do poder punitivo do Estado e a garantia dos cidadãos que estão em causa. E como tal há necessidade de regulamentar essa relação entre o Estado e os cidadãos. Quanto mais litígio houver entre essa relação maior necessidade há dessa exigência.

Porém, há certas situações em que há um maior compromisso entre o Estado e os cidadãos mesmo na aplicação e aceitação da punição nos mais diversos domínios dos sistemas jurídicos em vigor nos estados de direito.

As leis não podem ser vistas apenas para se justificarem a si próprias, mas para regulamentarem e disciplinarem a vida concreta dos cidadãos em sociedade de forma justa e legal, aplicando com rigor as obrigações e deveres, mas sempre com respeito pelo exercício dos direitos, liberdades e garantias.

No caso dos autos, face às circunstâncias em que os factos ocorreram seria injusto e até um “abuso de direito” por parte do Estado obrigar o arguido a cumprir novamente a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor.

E não basta fazer apelo ao facto de ainda não ter transitado a decisão condenatória”.

O arguido entregou a carta de condução e a Secretaria praticou um acto de aceitação da carta de condução, quando em bom rigor o não devia” – cfr. Ac. da RC de 1.7.2015, in www.dgsi.pt.

O arguido que já cumpriu o período de proibição de conduzir veículos com motor, ficando afectado de forma real e efectiva no seu direito de conduzir, não pode ser culpabilizado pelo cumprimento antes de transitar a decisão condenatória.

Relembra este aresto que nos termos do artigo 80º, nº 1, do Código Penal também a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas no inteiro cumprimento da pena de prisão.

Não há razão para assim não ser no cumprimento das penas acessórias, uma vez constatado a regularidade no âmbito dos respectivos autos.

É vasta a jurisprudência que já se debruçou sobre este assunto.

No Ac. da RC de 4.12.2019, in www.dgsi.pt, afirma-se que “É indubitável que o artigo 69º, nº 2, do Código Penal estipula que a proibição de conduzir produz efeito após o trânsito em julgado da decisão, o que tem o sentido de consignar que essa pena (como, aliás, todas) só deve ser cumprida depois de a decisão transitar em julgado posto que só a partir desse evento se torna definitiva, estipulando o nº 3 do mesmo artigo e o artigo 500º, nº 2 do Código de Processo Penal que a licença de condução deve ser entregue para cumprimento da pena acessória no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado.

Não será por acaso que o artigo 9º, nº 1 do Código Civil estipula em matéria de interpretação da lei que esta “não deve cingir-se à letra lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…).

No vértice da pirâmide legislativa encontra-se a constituição que define os princípios básicos do estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

Se assim é, a conclusão de interpretação literal no sentido de que a proibição de conduzir só pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória e só pode ser imputado no seu cumprimento o tempo em que o condenado esteve privado da licença de condução depois do trânsito em julgado, tem, obviamente, que passar pelo crivo do disposto no artigo 20º, nº 4 da CRP que contempla um princípio estruturante de qualquer procedimento judicial e mormente do processo penal; o princípio do processo equitativo que implica, antes de mais, que em todos os termos do processo as partes sejam tratadas com lealdade e possam confiar na inexistência de decisões que as possam surpreender. O tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são, aliás, a base para a possibilidade de um processo equitativo com os derivados princípios do contraditório e da igualdade de armas que geralmente são salientados, mas que admite várias outras derivações, entre as quais o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira na sua CRP anotada, em comentário ao referido artigo.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt, qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) de ser um processo equitativo (due process of law – conceito importado para o nosso ordenamento jurídico através da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro de valores como a lealdade e a confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo.

O princípio da confiança tem diversos afloramentos na lei ordinária, como seja o caso do artigo 157º, nº 6 do Código de Processo Civil actual (161º, nº 6 do anterior) prevendo que os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso prejudicar as partes.

Ora, também por decorrência deste preceito, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do respectivo código, não pode o arguido ser prejudicado quando entregou no tribunal a licença de condução e tal foi aceite pelo funcionário que a recebeu. O princípio da confiança e lealdade impede que seja defraudada a legitima expectativa do arguido no sentido de que a partir desse momento se iniciou o cumprimento da proibição de conduzir.

Encontrar nos artigos 69º do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal motivo para divergir do exposto seria violar directamente o disposto no preceito acabado de referir e negar a validade da necessária interpretação sistemática que tem como elemento primário e primordial a Constituição”.

No mesmo sentido tomou posição o Ac. da RG de 23.11.2020, in www.dgsi.pt, segundo o qual “a aceitação pela secretaria judicial do título de condução - entregue voluntariamente pelo condenado para cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir - antes do trânsito em julgado da condenação, impõe, em respeito pelo princípio do "processo equitativo" (art. 20º, nº 4, da CRP), que o período de inibição se conte desde a data da entrega”.

Seguindo o mesmo raciocínio, mesmo no caso do Ministério Público ter interposto recurso da sentença, não pode o arguido ser prejudicado.

Como se afirma no Ac. da RL de 10.11.2016, in www.dgsi.pt, “Tendo o condenado em inibição de conduzir, antes do trânsito em julgado da decisão, entregue a carta de condução na Secretaria do Tribunal e esta aceitado tal entrega, o tempo em que a carta permaneceu no Tribunal conta para efeitos de execução de tal pena acessória.

Sabendo a Secretaria do Tribunal que o Ministério Público tinha interposto recurso da decisão, não devia ter aceitado a carta de condução entregue pelo arguido.

O arguido não pode ser prejudicado pelos erros ou omissões dos actos praticados pela Secretaria, (artigo 157º, nº 6 do novo Código de Processo Civil), nem pode cumprir duas vezes a sanção acessória, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Dirão os mais puristas que “a ignorância da lei não aproveita”. Logo, o arguido se não sabia, devia saber.

É verdade. Mas também não é mesmo verdade que a administração tem que ter com os cidadãos um dever de lealdade, boa-fé, e colaboração devendo prestar-lhes informações e esclarecimentos sobre os seus direitos, sempre tendo na base princípios de justiça e razoabilidade devendo “tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”(artigo 8º do Código de Procedimento Administrativo - DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro).

Não esquecemos que a função jurisdicional é diferente da função administrativa e, que, em relação àquela, existem normas específicas.

O legislador com o procedimento de entrega da carta, nos termos estabelecidos nos artigos 69º, nº 3 do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal, apenas pretende o não exercício da condução pelo tempo que durar a proibição e nessa medida executar a sanção. Isso mesmo resulta da interpretação do artigo 69º, nº 6 do Código Penal, que exclui do período de proibição, o período de tempo em que o condenado está privado da liberdade. Sendo a efectiva execução da proibição decretada o objectivo último do legislador, o mesmo é conseguido com a apreensão efectiva da carta na secretaria do Tribunal, ainda que a decisão não tenha transitado em julgado”.

De qualquer forma, no caso concreto, não foi interposto recurso por parte do Ministério Público e a situação tem que ser analisada com os dados do caso sub judice.

Tal como se refere no Ac. da RC de 1.7.2015, supra mencionado, “cada caso é um caso e como tal assim temos de o entender e decidir”.

No que respeita à preocupação do recorrente em relação a uma eventual violação da pena acessória e sua fiscalização antes do trânsito em julgado da sentença, a partir do momento em que o arguido começa a cumprir a pena acessória, não se vê porque razão não se possa agir em conformidade.

Em suma, nenhuma censura merece a argumentação do despacho recorrido, não assistindo razão ao Ministério Público.

Porém, o arguido não entregou a carta de condução a 17 de Dezembro de 2021, mas sim a 17 de Janeiro de 2022.

Pelo exposto, a contagem do prazo de sete meses de inibição de conduzir será feita a partir de 17.1.2022, terminando, como tal, a referida pena em 17 de Agosto de 2022.

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              Improcedendo a pretensão do recorrente, deve ser negado provimento ao recurso.

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                    C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, a contagem do prazo de sete meses de inibição de conduzir será feita a partir de 17.1.2022, terminando, como tal, a referida pena em 17 de Agosto de 2022.

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          Sem custas, por delas estar isento o recorrente – artigo 4º, nº 1, alínea a), do RCP.

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          Notifique.

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Coimbra, 29 de Junho de 2022.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

      Rosa Pinto – Relatora

      Brízida Martins – Presidente da Secção

      Alice Santos – Adjunta