AUTORIDADE DO CASO JULGADO
QUESTÃO PREJUDICIAL
CASO JULGADO MATERIAL
PRESSUPOSTOS
IDENTIDADE SUBJETIVA
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO IMPLÍCITA
NULIDADE
ATO DE REGISTO
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
PROPRIEDADE INTELECTUAL
PRINCÍPIO DA NOVIDADE
DIREITOS DE AUTOR
Sumário


I. O caso julgado material, como autoridade de caso julgado, pressupõe sempre uma relação de prejudicialidade, no sentido de que o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto da ação posterior, sendo pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta venha a ser proferida.
II. A autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, não dispensando a identidade subjectiva (sendo as mesmas as partes em ambas as acções, desde logo por exigência do princípio do contraditório – art. 3º do CPC), o que significa que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira, ainda que parcial.
III. Não se verifica caso julgado “implícito” entre a decisão que decretou a nulidade do registo de desenho/modelo nacional de que era titular a Autora, resultante do vício concreto de falta de novidade e singularidade, e a decisão da acção em que aquela mesma Autora visa o reconhecimento da titularidade de direitos de autor e a criação intelectual da obra, independentemente da existência de registo, depósito ou qualquer outra formalidade, conforme o disposto nos artigos 11º e 12º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).
IV. Estamos, assim, nesta e naquela acção, ambas protagonizadas pelas mesmas partes, perante uma situação em que, na senda da defesa de interesses patrimoniais de uma e de outra, são formulados pedidos estruturalmente distintos, com base em pressupostos de facto e de direito perfeitamente diversos, não sendo configurável qualquer tipo de prejudicialidade entre um e outro pleito.
V. Ao referir-se o tribunal, na acção de anulação do registo, à questão da titularidade dos direitos de autor, fê-lo “a latere”, como mero obiter dictum, sem qualquer interferência na resolução do litígio centrado na nulidade do registo, nada permitindo que tal referência possa assumir natureza prejudicial ou sequer que se encontre numa qualquer dependência lógica com a decisão final a proferir na acção posterior em que se visa a defesa dos direitos de autor e a criação intelectual da obra, independentemente da existência de registo.
VI. O art. 91º nº 2 do CPC reporta-se a questões e incidentes julgados numa acção anterior, que aí assumam natureza instrumental, e que possam voltar a ser discutidos em ulterior pleito, já numa óptica de questão essencial ou principal, mediante requerimento de julgamento com tal amplitude, mediante o exercício amplo do contraditório, sem o que a autoridade de caso julgado não pode operar.

Texto Integral


           

1. J.C. Nascimento, L.da, com sede em Lagos instaurou, no Tribunal da Propriedade Intelectual, contra Francisco Ribeiro & Filhos Lda., com sede no Funchal, a presente acção declarativa, com processo comum, pedindo:

i. A condenação da Ré ao pagamento de uma indemnização por perdas e danos resultantes da violação dos direitos de autor exclusivos do desenho/modelo criado pela autora, sendo o valor de 151.851,60 euros a título de prejuízo patrimonial por lucro cessante e 2.000,00 euros a título de despesas com a identificação e averiguação do fenómeno da violação dos direitos exclusivos;

ii. A apreensão de todas as bonecas copiadas, cujo desenho foi criação exclusiva da Autora, à venda e nas instalações da Ré e dos seus clientes;

iii. A condenação da Ré numa sanção pecuniária compulsória, por força do artigo 829º- A do Código Civil (doravante também CC), no valor de 100,00 euros por cada boneca existente no mercado, à venda ao público, que seja uma cópia, imitação ou usurpação autoral da criação da autora, levada a cabo pela Ré ou a pedido desta por intermédio de terceiros fabricantes nacionais ou estrangeiros;

iv. A intervenção provocada subsidiária daqueles fabricantes, nos termos e para os efeitos dos artigos 39.º e 316.º do Código de Processo Civil (doravante também CPC), após implementação do dever processual de colaboração e cooperação da ré na identificação dos mesmos, sem prejuízo da condenação solidária.

Invocou, em síntese, como fundamentos da sua pretensão, que: os desenhos/modelos das bonecas em litígio são criação artística da autora, à qual cabe em exclusivo o direito de os fruir e utilizar; a autora é titular do direito de autor sobre essa criação intelectual independentemente de registo, nos termos, nomeadamente, dos artigos 9.º, 11º e 12º do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (doravante também CDADC); não obstante, a ré utiliza o desenho/modelo das bonecas, imitando-as, reproduzindo-as e comercializando-as, sem autorização da autora e causando a esta prejuízos no seu giro comercial.

2. A Ré contestou:

i. Impugnando a protecção jusautoral invocada pela autora;

ii. Deduzindo a excepção de caso julgado com base em decisão anterior já transitada, nomeadamente, a proferida no processo n.º 167/17.9YHLSB do 1.º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual;

iii. Deduzindo reconvenção na qual pede a condenação da autora a pagar à R. quantia de 37.857,58 Euros acrescida de juros legais, contados desde a data em que a ré foi impedida de comercializar os produtos em causa, com base nos danos causados pelos processos judiciais que tiveram origem na conduta da autora e levaram à apreensão da mercadoria da ré;

3. Pedindo a condenação da autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização condigna a favor da ré.

4. A autora replicou, pugnando pela improcedência, tanto da excepção de caso julgado, como da reconvenção.

5. O Tribunal da Propriedade Intelectual, por despacho saneador de 22.9.2021, decidiu:

i. Não admitir a reconvenção por considerar que a mesma não se enquadra em nenhuma das possibilidades previstas no artigo 266.º do CPC;

ii. Verificar que as partes tiveram oportunidade de se pronunciar e tomaram posição sobre as exceções e questões suscitadas;

iii. Julgar que, em face do teor dos articulados e documentos juntos, não há necessidade de dar cumprimento ao disposto no n.º 2, do artigo 590.º do CPC;

iv. Dispensar, com esses fundamentos, a realização de audiência prévia, por força do artigo 593.º, n.º 1, do CPC, e proferir de imediato o despacho a que alude o artigo 595º do CPC;

v. Decidir que o Tribunal é competente, o processo é o próprio, não existem nulidades que o invalidem, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas;

vi. Julgar verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, absolver a ré da instância.

vii. Condenar a autora em custas

viii. Fixar o valor da ação em 153.861,60 euros.

6.  Desta decisão foi interposto recurso de apelação independente pela Autora e recurso subordinado pela Ré, vindo a ser proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu nos termos seguintes:

I. Revogar o despacho recorrido substituindo-o por outro que admite a reconvenção e julga improcedente por não provada a excepção dilatória de caso julgado.

II. Ordenar a baixa do processo para que os autos prossigam para os fins previstos no artigo 593.º n.º 2 do CPC e subsequente conhecimento do mérito da causa.

7. É deste Acórdão que a Ré reconvinte interpõe recurso de revista, oferecendo as suas alegações e assim concluindo:

1. A excepção de caso julgado suscitada nos autos, devidamente comprovada, foi considerada, e bem, procedente pela 1ª Instância, estando evidenciado que a prova já produzida e a avaliação judicial do modelo em causa afasta, de todo, qualquer propriedade intelectual, designadamente em sede de direitos de autor, por ser manifesta a falta de “criação artística” passível de tal tutela.

2. Admitindo, sem conceder, que o decidido pelo Acórdão da Relação de Lisboa, de 02-05-2019 – Proc. nº 167/17.9YHLSB, não possa ser tomado como caso julgado expresso, relativamente ao decidido quanto aos direitos de autor, sempre o decidido e confirmado pelo Acórdão do STJ, de 30-04-2020, no mesmo processo, tudo confirmativo da sentença da 1ª Instância, envolve, atentas as questões analisadas e decididas, caso julgado implícito relativamente a pretensos direitos de autor a que a recorrida se arroga.

3. O Acórdão recorrido decidiu mal a presente questão, ao revogar a sentença da 1ª Instância e ao determinar a baixa dos autos para efeito de fixação de temas da prova e realização de julgamento, que se afigura, de todo, desnecessário, face aos anteriores julgados, e se apresenta como risco a evitar, de duplicação e contradição de julgados, desprestigiante dos Tribunais e causador de insegurança jurídica.

4. O Acórdão recorrido está em oposição com o Acórdão do STJ, de 14-05-2014, Revista 120/13.1TTGRD-AC1S1, 4ª Secção, acessível em www.dgsi.pt/jstjnsf, sobre a mesma questão fundamental de direito, ou seja, sobre a admissibilidade do caso julgado implícito, relevante como excepção que obste ao conhecimento da causa.

8. A Autora recorrida contra-alegou, culminando nos termos seguintes:

I - Ao contrário do que defende a RECORRENTE, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, e bem, ao revogar o Despacho Saneador-Sentença proferido pela 1ª Instância e determinar a descida dos autos para prolação de Despacho Saneador. - Inexiste excepção de caso julgado sempre que a versão e qualificação jurídica dos factos, entre dois e mesmos sujeitos processuais, não é a mesma.

II - A criação artística é uma componente do direito de propriedade civilístico e não deve ser confundido com a propriedade industrial, cujo escopo visa uma rentalização e utilização totalmente diferenciadas.

III - A utilização da motivação constante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no dia 2 de Maio de 2019 no âmbito do processo n.° 167/17.9YHLSB, sobre a impossibilidade de a AUTORA ora recorrida gozar de protecção jusautoral constituiu, por parte da 1ª Instância, um alargamento dos efeitos do caso julgado aos motivos daquele Acórdão.

III - A decisão incidental proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no dia 2 de Maio de 2019 e os seus efeitos extra-processuaís deveriam ser analisados à luz do disposto no artigo 91° n° 2 do Código de Processo Civil. O reconhecimento de que o decidido no Acórdão do TRL de 02-05-2019 não é caso julgado expresso, relativamente à matéria dos direitos de autor, acaba por configurar, por parte da recorrente, uma «contraditio in adjecto”.

IV - Um dos objetivos do artigo 91.° n.° 2 do Código de Processo Civil é garantir o princípio do contraditório [cfr. artigo 3.° n.° 3 do Código de Processo Civil], relativamente ao uso, fora do processo, de decisões sobre questões suscitadas pelo réu como meio de defesa ou apreciadas incidentalmente no decurso da acção. De modo que só excecionalmente, quando alguma das partes o requeira, é que a sentença fará caso julgado quanto às questões mencionadas no artigo 91° n° 1 do Código de Processo Civil.

V - O Acórdão recorrido demonstrou um profundo conhecimento das matérias e, sobretudo, uma isenção e independência política, que levou a questão para o foro judiciário concreto. O Acórdão recorrido conclui que «Por último, resulta do artigo 621º do CPC, tal como é interpretado pela doutrina acima citada, que a eficácia do caso julgado se limita aos efeitos concretos que as partes tiveram realmente em vista quando litigaram, respectivamente, em cada uma das ações anteriores, acima referidas.

VI - Estender a força do caso julgado a factos apurados, situações, ou relações jurídicas, pressupostas nas decisões proferidas nos processos anteriores, como fez o despacho recorrido, terá por efeito alargar a autoridade daquelas decisões a consequências que as partes não previram».

VII - Bem andou o Tribunal da Relação de Lisboa ao revogar o Despacho Saneador-Sentença, não permitindo o alargamento dos efeitos do caso julgado a uma questão que não constituía causa de pedir, mas foi, apenas e tão só, invocada como meio de defesa e apreciada incidentalmente pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão proferido no dia 2 de Maio de 2019.

VIII - Quanto à verificação da tripla identidade [partes, causa de pedir e pedido] exigida pelo artigo 581° do Código de Processo Civil para que se estar perante a exceção de caso julgado, o Tribunal da Relação de Lisboa conclui que apenas se verifica a identidade das partes.

IX - Quanto à causa de pedir e ao pedido, no Processo n.° 167/17.9YHLSB estávamos perante uma ação anulatória, na qual a causa de pedir consiste na nulidade específica invocada, não na categoria ou tipo abstrato em que se integra tal nulidade.

X - Já nos presentes autos a causa de pedir consiste no facto jurídico de que derivam os direitos de autor, nomeadamente a criação intelectual da obra.

XI - Os efeitos concretos que a recorrida tem em vista na presente ação são diversos daqueles que as partes tinham em vista nas demais ações, nomeadamente com a questão de saber se desenhos/modelos não registados também podem gozar de protecção jusautoral.

XII - Embora a causa de pedir consista nos factos alegados pelas partes, independentemente da qualificação jurídica que estas lhes dão, os factos que integram a causa de pedir são factos jurídicos ou o vício específico invocado, conforme resulta do disposto no artigo 581.°. n.° 4. do Código de Processo Civil.

XIII - Conclui o Tribunal da Relação de Lisboa que não se verifica a identidade de causa de pedir e do pedido, motivo pelo qual a 1ª Instância errou ao julgar verificada a exceção de caso julgado.

Termina no sentido da improcedência da revista e manutenção da decisão recorrida, no segmento em que determinou a revogação do despacho saneador-sentença proferido pela 1ª instância.

Cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

9. Objeto de recurso

O Tribunal de 1ª instância, da Propriedade Intelectual, pelo despacho saneador de 22-9-2021, pôs termo ao processo, decidindo, no essencial, o seguinte:

- “Não admitir a reconvenção por considerar que a mesma não se enquadra em nenhuma das possibilidades previstas no artigo 266.º do CPC;

- Verificar que as partes tiveram oportunidade de se pronunciar e tomaram posição sobre as exceções e questões suscitadas;

- Julgar que, em face do teor dos articulados e documentos juntos, não há necessidade de dar cumprimento ao disposto no n.º 2, do artigo 590.º do CPC;

- Dispensar, com esses fundamentos, a realização de audiência prévia, por força do artigo 593.º, n.º 1, do CPC, e proferir de imediato o despacho a que alude o artigo 595º, do CPC;

- Decidir que o Tribunal é competente, o processo é o próprio, não existem nulidades que o invalidem, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas;

- Julgar verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, absolver a ré da instância.”

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-01-2022, que julgou procedentes os recursos de apelação independente e subordinado antes instaurados e, em conformidade, decidiu:

“I. Revogar o despacho recorrido substituindo-o por outro que admite a reconvenção e julga improcedente por não provada a excepção dilatória de caso julgado.

II. Ordenar a baixa do processo para que os autos prossigam para os fins previstos no artigo 593.º n.º 2 do CPC e subsequente conhecimento do mérito da causa.”.

10. Admissibilidade da revista

A recorrente Ré Francisco Ribeiro & Filhos, Lda. interpõe o presente recurso de revista desta última decisão, invocando os fundamentos previstos no art. 671º nº 2 al. a) e art. 629º nº 2 al. a) do CPC (ofensa do caso julgado) e no art. 671º nº 2 al. b) do mesmo diploma legal (oposição de julgados).

No que respeita à ofensa do caso julgado, como fundamento de recurso, como se afirma nos acórdãos de 19-05-2020 (Revista n.º 6673/10.9TBCSC-D.L1.S1) e de 13-09-2018 (Revista n.º 679/14.6TBALQ.L1.S1), basta a possibilidade de a ofensa ocorrer para que o recurso seja admissível.

No entanto, a admissão do recurso ao abrigo da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, com fundamento na ofensa de caso julgado, tem como consequência que o seu objecto fique circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões (neste sentido, pronunciaram-se os Acórdãos do STJ de 04-07-2019, Revista n.º 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, de 04-12-2018, Revista n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1 de 22-11-2018, Revista n.º 408/16.0T8CTB.C1.S1, de 18-10-2018 , Revista n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1, de 28-06-2018, Revista n.º 4175/12.8TBVFR.P1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt).

No presente caso, revela-se indiscutível que a alegada ofensa do caso julgado é decisiva para o pleito, porquanto determinante ou não da apreciação do respetivo mérito.

Assim, afigura-se-nos que a revista é admissível pelo fundamento da ofensa do caso julgado, não estando em causa o recurso de revista por oposição de julgados, impondo-se a sua admissão, nos termos do disposto nos artigos 629.º, n.º 2, al. a) 631.º/1, 671.º/2, al. a), todos do Código de Processo Civil, ficando prejudicado o conhecimento da invocada oposição de julgados (art. 671º nº 2 al. b) do CPC), consignada no ponto IV das conclusões de recurso, sendo certo que o acórdão do STJ identificado se circunscreve à mesma problemática do caso julgado e foi invocado de forma a suportar o entendimento defendido pela Ré quanto à verificação de caso julgado implícito.

11. Thema decidendum

Tendo por base as conclusões do recurso de revista, importa desde já apreciar a verificação da excepção de caso julgado, discutindo-se, sobretudo, se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2019 no âmbito do Processo n.º 167/17.9YHLSB se constitui como caso julgado “implícito” relativamente à matéria de direitos de autor que opõem as duas partes em litígio, ou de outra forma, saber se a fundamentação relativa à matéria de direitos de autor ínsita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2019 no âmbito do Processo n.º 167/17.9YHLSB releva para efeitos de caso julgado, circunstância impeditiva do conhecimento de mérito da presente ação.

Vejamos:

12. Da exceção de caso julgado

Para aferir da verificação da excepção de caso julgado, importa aferir se existe identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir entre estes autos e o processo n.º 167/17.9YHLSB, cuja certidão de decisão se mostra junta aos autos (cf. art. 581.º do CPC).

Como é sabido, do caso julgado decorrem, essencialmente, dois efeitos, a impossibilidade de qualquer tribunal voltar a pronunciar-se sobre a questão decidida (efeito negativo ou exceção de caso julgado) e vinculação do mesmo tribunal ou de outros tribunais à decisão proferida (efeito positivo ou autoridade de caso julgado).

Com o caso julgado visa-se, essencialmente, assegurar a certeza e segurança jurídicas que se afiguram indispensáveis à vida em comunidade, impedindo a verificação de decisões judiciais incompatíveis entre si, podendo ser material ou formal, conforme a decisão verse sobre a relação material controvertida ou recaia sobre a relação processual.

  Revertendo ao caso dos autos, diremos que é manifesta a identidade de sujeitos entre as duas acções, já que as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica e ocupam a mesma posição na relação jurídica em causa, sendo certo que não obsta à identidade das partes a circunstância de aparecerem em posição processual inversa no processo n.º 167/17.9YHLSB.

 Já não assim quanto ao pedido e causa de pedir, que são, como veremos, manifestamente distintos numa e noutra ação.

Com efeito, quanto ao pedido, no Processo n.º 167/17.9YHLSB, foi pela aí Autora (ora Ré) peticionada a declaração de nulidade do registo do modelo ou desenho n.º 3223, respeitante a figuras representativas do “vilão” e “viloa” da Madeira, o qual foi concedido à Ré por despacho de 23.8.2013 do diretor do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

  Para tanto, alegou, em síntese, que os trajes típicos do “vilão” e da “viloa”, que representam, respectivamente, o camponês e a camponesa da Madeira estão, há largos anos, imortalizados, na literatura, pintura, gravura, dança folclórica e emissões de selos, sendo que as vendedoras de flores que existem em diversas praças do Funchal envergam o traje regional da “viloa”; que também se fabricam as figuras do “vilão” e “viloa” da Madeira, em louça, barro, vidro, bonecos, em diversas formas e variados materiais e que a ré, porém, em 2013, procedeu ao registo dos modelos e desenhos ao arrepio das normas reguladoras da propriedade industrial, registo que, por isso, enferma de nulidade.

 No âmbito de tal processo, o Tribunal da Relação de Lisboa, em sintonia com a 1.ª instância, julgou a ação procedente e declarou a nulidade do registo, tendo vindo a ser proferido o Ac. do STJ de 30-04-2020, que decidiu negar a revista.

         

 Diferentemente, nos presentes autos e com fundamento na violação de direitos de autor, a ora Autora vem peticionar:

i. A condenação da ré ao pagamento de uma indemnização por perdas e danos resultantes da violação dos direitos de autor exclusivos do desenho/modelo criado pela autora, sendo o valor de 151.851,60 euros a título de prejuízo patrimonial por lucro cessante e 2.000,00 euros a título de despesas com a identificação e averiguação do fenómeno da violação dos direitos exclusivos.

ii. A apreensão de todas as bonecas copiadas, cujo desenho foi criação exclusiva da autora, à venda e nas instalações da ré e dos seus clientes;

iii. A condenação da ré numa sanção pecuniária compulsória, por força do artigo 829-A do Código Civil (doravante também CC), no valor de 100,00 euros por cada boneca existente no mercado, à venda ao público, que seja uma cópia, imitação ou usurpação autoral da criação da autora, levada a cabo pela ré ou a pedido desta por intermédio de terceiros fabricantes nacionais ou estrangeiros;

iv. A intervenção provocada subsidiária daqueles fabricantes, nos termos e para os efeitos dos artigos 39.º e 316.º do Código de Processo Civil (doravante também CPC), após implementação do dever processual de colaboração e cooperação da ré na identificação dos mesmos, sem prejuízo da condenação solidária.

     Invocou, em síntese, como fundamentos da sua pretensão, que: os desenhos/modelos das bonecas em litígio são criação artística da autora, à qual cabe em exclusivo o direito de os fruir e utilizar; a autora é titular do direito de autor sobre essa criação intelectual independentemente de registo, nos termos, nomeadamente, dos artigos 9.º, 11.º e 12.º do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (doravante também CDADC); não obstante, a ré utiliza o desenho/modelo das bonecas, imitando-as, reproduzindo-as e comercializando-as, sem autorização da autora e causando a esta prejuízos no seu giro comercial.

    Do exposto, resulta manifesto que a causa de pedir do processo n.º 167/17.9YHLSB. consiste na nulidade invocada do registo do desenho/modelo nacional nº 3223 de que era titular a ora ré.

    Já na presente ação, a causa de pedir consiste no facto jurídico – criação intelectual da obra - de onde derivam os direitos de autor invocados pela ora Autora, a que acresce o facto ofensivo do direito de autor alegadamente praticado pela ré.

   Por aqui, facilmente se conclui que não se mostra verificada, no caso, a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir que permitiria concluir pela procedência da invocada exceção de caso julgado.

13. Da autoridade do caso julgado / caso julgado “implícito”: do alargamento do caso julgado à motivação da decisão final

  Inexistindo identidade de pedidos e causa de pedir, importa analisar a eventual verificação de exceção de autoridade de caso julgado.

Na definição dada por MANUEL DE ANDRADE, o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação jurídica controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”. ( Noções Elementares de Processo Civil ”, Coimbra Editora; Coimbra, 1976, págs. 304 e segs).

TEIXEIRA E SOUSA admite a autoridade de caso julgado sobre os fundamentos da decisão nos casos em que exista um relação de prejudicialidade ou quando ocorram relações sinalagmáticas, precisando que, nestes casos, não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão. (“Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, págs. 578 e 580).

 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA sustenta que “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente” (“ Estudos sobre o novo Processo Civil ”, Lex, Lisboa, 1997, págs. 572 e segs).

Já REMÉDIO MARQUES admite que os fundamentos de facto adquirem o valor de caso julgado quando dizem respeito a relações sinalagmáticas e quando criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado e o objeto da ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico. (In “Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 2ª ed., pág. 663).

Nesta mesma linha de entendimento, defendem ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE PIRES DE SOUSA (Código de Processo Civil, Anotado”, 2ª ed. Almedina 2020, págs. 122 e 123) que haverá prejudicialidade, por exemplo “nas hipóteses em que da mesma relação jurídica brotam uma série de direitos (v.g., contrato de arrendamento e de fornecimento), de modo que, se na primeira sentença se declarou a (in)existência do contrato, haveria que atender à sua (in)existência na ação subsequente. As relações sinalagmáticas também poderiam fundamentar a extensão de caso julgado a certos fundamentos de facto da decisão. Assim, se numa primeira ação foi pedido o cumprimento de um contrato e a mesma foi julgada improcedente, por nulidade do contrato, e numa ação subsequente é pedida a condenação na contraprestação do contrato”. Neste sentido, diremos, justifica-se atribuir efeitos definitivos entre as partes relativamente a fundamentos da decisão nos casos em que ocorrem relações de prejudicialidade e de sinalagmaticidade.

Admitindo que a autoridade de caso julgado abrange não apenas a decisão sobre o pedido, mas também as decisões sobre os fundamentos, defende, porém, MARIANA FRANÇA GOUVEIA (Parecer elaborado no processo nº 2104/12.8TBALM), que importa determinar, com precisão, quais são as decisões sobre os fundamentos que adquirem força de caso julgado, sustentando que, no seu entendimento, só podem ter autoridade de caso julgado em processos subsequentes as decisões sobre as questões essenciais relativas à causa de pedir da ação anterior, ou seja, as decisões sobre os factos constitutivos delimitados pela previsão da norma jurídica aplicável, essenciais à procedência da ação (A Causa de Pedir na Ação Declarativa”, 2019, pág. 501). Por exemplo, numa ação em que se peça o reconhecimento da propriedade com fundamento na usucapião, são decisões sobre a causa de pedir aquelas em que o tribunal afirma que o autor é possuidor; que o autor é possuidor em termos do direito de propriedade; que o autor possui há x tempo. E é decisão sobre o pedido aquela em que o tribunal afirma que o autor é proprietário de y, pois, atento o disposto no art. 91º nº 2 do CPC, só assim se previne a eficácia surpresa de decisões menores, ao mesmo tempo que se assegura o respeito pelas decisões judiciais.

Mas ainda assim estas decisões relativas à causa de pedir só têm potencialidade de adquirir autoridade de caso julgado quando entre as duas ações haja uma relação de prejudicialidade ou dependência, ou seja, nos casos de “ prejudicialidade lógica”, em que se debate a validade da relação jurídica para um efeito e posteriormente para outro” (A Causa de Pedir na Ação Declarativa, 2019, pág. 503).

Também LEBRE DE FREITAS e outros (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354) consideram que “a autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.”

Prejudicialidade que CASTRO MENDES também sublinha, quando, referindo-se à identidade objetiva entre as duas acções, adianta que “se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental), é preciso que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos… a relevância do caso julgado em processo civil posterior, quando nesse processo a questão sobre a qual o caso julgado se formou desempenha a função de questão fundamental ou mesmo de questão secundária ou instrumental, não de thema decidenum. (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 43-44 e 50)

Conclui o Acórdão deste Supremo Tribunal de 11.11.2020 (processo nº 214/17.4T8MNC.G1.S1) que “quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda acção anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do STJ vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira.[1] (sublinhados nossos).

    Exige-se, assim, que o caso decidido/julgado seja prejudicial em relação ao caso a decidir/julgar e que se inscreva, ainda que parcialmente, no objeto do processo a decidir, e que sejam as mesmas as partes em ambas as acções, a identidade subjetiva, exigida, desde logo, pelo princípio do contraditório – art. 3º do CPC.

   Tem sido entendimento dominante da jurisprudência do STJ que o âmbito objetivo do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, entre outros o acórdão do STJ de 07-02-2019 (Revista n.º 3263/14.0TBSTB.E1.S1), onde se afirma que a autoridade do caso julgado tem, antes, o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito e, sem prescindir da identidade das partes, dispensa a identidade do pedido e da causa de pedir nos casos em que existe uma relação de prejudicialidade entre o objeto da ação já definitivamente decidida e a ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico necessário.”

  No mesmo sentido, todos sublinhando a relação de prejudicialidade entre as decisões, se pronunciaram os acórdãos do STJ de 12-01-2021 (Revista n.º 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1), de 02-12-2020 (Revista n.º 3077/15.0T8PBL.C1-A.S1, de 26-11-2020 (Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1), de 28-03-2019 (Revista n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, de 04-12-2018  (Revista n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1) e de 08-11-2018  (Revista n.º 478/08.4TBASL.E1.S1).

  Nas palavras do acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1) “a  autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa” e  abrange, “para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado”.

  Com efeito, a doutrina tem entendido que o conhecimento de matéria de exceção (perentória), não faz, em princípio, caso julgado fora do processo respetivo, nos termos do disposto no atual art. 91.º, n.º 2, do CPC. Neste sentido, pronunciaram-se Manuel de Andrade[2], Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora[3], Teixeira de Sousa[4].

   Já a jurisprudência deste STJ tem vindo a admitir que a matéria de exceção seja integrada no caso julgado sempre que tal matéria se afigure como sendo o antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado.

  A título de exemplo, pronunciou-se o STJ, no acórdão de 02-12-2017, nos seguintes termos “atualmente, a posição jurisprudencial predominante reconhece, na esteira da doutrina defendida por VAZ SERRA (cfr. R.L.J. ano 110º, p. 232) - embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença / a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão ("tese ampla") -, que, apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito enquanto limites objetivos dessa decisão), em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas ("tese eclética")” – sublinhado nosso – (Ac. do STJ, de 02-12-2017, proc. n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1, e no acórdão de 26-03-2015, nos seguintes termos “As exceções perentórias, como fundamentos de defesa, traduzem-se em questões fundamentais, preliminares em relação ao thema decidendum, delimitando, negativa e internamente, a pretensão deduzida pelo autor.” – (Ac. do STJ, de 26-03-2015, proc. n.º 1847/08.5TVLSB.L1.S1).

   A referida tese eclética foi, efetivamente, defendida por Vaz Serra[5] que, em anotação ao acórdão do STJ de 29-06-1976, defendeu a extensão do caso julgado às questões preliminares que constituam o antecedente lógico da parte dispositiva da sentença.

  Também Lebre de Freitas (Um Polvo…, pag. 697) admite que a matéria atinente a exceções perentórias deve considerar-se abrangida pelo caso julgado, defendendo que “entende-se por questão prejudicial toda aquela cuja solução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito, quer se trate de questão fundamental, relativa à causa de pedir ou a uma exceção perentória, quer respeite ao objeto de incidentes que estejam em correlação lógica com o objeto do processo.

  Parece também ser esse o entendimento de Mariana França Gouveia, quando afirma que, em casos de improcedência, “as decisões sobre factos principais que enquadram excepções peremptórias alegadas pelo réu têm também autoridade de caso julgado” (“A Causa de Pedir na Ação Declarativa”, 2019, pág. 505).

  Já a tese restritiva defende que a decisão transitada em julgado não produz efeitos externos na parte em que incide sobre questões prejudiciais resolvidas apenas com o escopo de apreciar o pedido deduzido pelo autor, salvo se, nos termos do art. 91º nº 2, for peticionada a realização do julgamento com essa amplitude.

  Entendem ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE PIRES DE SOUSA (Código de Processo Civil, Anotado”, 2ª ed. Almedina 2020, págs. 122), que “tal regime seria, assim, o preço a pagar pela rapidez da resposta encontrada para as questões prejudiciais suscitadas no processo, evitando que se extraíssem da decisão efeitos mais amplos para cada uma das partes.

  Nesta conformidade, assistiria, por exemplo, ao réu a faculdade de fazer valer pedidos fundados em excepções anteriormente julgadas improcedentes com o limite da possibilidade da afectação do caso julgado favorável ao autor.”

  E referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC anotado, vol. I, 3ª ed., p. 182, que reputam de errada a orientação jurisprudencial que persiste em reconhecer força de caso julgado material à decisão da questão que seja mero antecedente lógico da parte dispositiva da sentença”.

         

  Reaproximando-nos do caso concreto, temos que a recorrente sustenta que no processo n.º 167/17.9YHLSB foi apreciada e decidida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a questão dos direitos de autor suscitada pela autora, ora recorrida.

  Analisando tal Acórdão de 2 de Maio de 2019, verificamos que a consideração da impossibilidade de a Autora ora recorrida gozar de protecção jusautoral constituiu, por parte da 1ª Instância, um alargamento dos efeitos do caso julgado aos motivos daquele Acórdão, considerando também que tal questão incidental e os seus efeitos extra-processuaís deveriam ser analisados à luz do disposto no artigo 91° n° 2 do Código de Processo Civil, sendo que o reconhecimento por parte da recorrente de que o decidido naquele Acórdão não constitui caso julgado expresso relativamente à matéria dos direitos de autor, acaba por configurar uma «contraditio in adjecto”.

  Como bem aduz a recorrida, um dos objetivos do artigo 91° n.° 2 do Código de Processo Civil é garantir o princípio do contraditório [cfr. artigo 3.° n.° 3 do Código de Processo Civil], relativamente ao uso, fora do processo, de decisões sobre questões suscitadas pelo réu como meio de defesa ou apreciadas incidentalmente no decurso da acção. De modo que só excecionalmente, quando alguma das partes o requeira, é que a sentença fará caso julgado quanto às questões mencionadas no artigo 91° n° 1 do Código de Processo Civil.

  Defende a recorrente a este propósito que se formou “caso julgado implícito” relativamente à matéria de direitos de autor, porquanto foi ali expressamente decidido que o modelo do “vilão” e da “viloa” da Madeira não se distinguiam dos modelos comercializados há mais de 60 anos, não revestindo os requisitos de “novidade” e de “singularidade” indispensáveis à tutela registral. Concluindo que, não sendo aqueles modelos considerados uma original criação artística, não podem ser passíveis de proteção em sede de direitos de autor.

  Tendo presente o objeto de cada um dos processos em confronto, tal como acima delineado, vejamos, em primeiro lugar, o que consta da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no aludido Processo n.º 167/17.9YHLSB.

   Ao apreciar a questão da inconstitucionalidade, por violação dos direitos à iniciativa privada, liberdade criativa e artística, ali suscitada pela ré (autora na presente acção), escreve-se no aludido acórdão o seguinte:

 “(…) a ré não beneficia de registo válido porque nulo. E porque assim é, não goza da suposta protecção autoral. (…) Ora, flui dos factos provados que a Ré não criou – em termos inovatórios – os modelos desenhos em causa, limitando-se a reproduzir (…) desenhos/modelos pré-existentes. Não se pode, pois, defender sequer que os desenhos/modelos registados pela Ré sejam fruto do espírito e engenho intelectual da sua funcionária/designer” (sublinhado nosso).

  É com base neste fundamento, de resto, que o saneador proferido na 1.ª instância concluiu existir caso julgado. Aí se escreve: “(…) é inquestionável afirmar-se que, para efeitos de análise de formação de caso julgado nos presentes autos, as ações n.os 167/17.9YHLSB e 341/17.8YHLSB são indissociáveis uma da outra e devem ser aqui consideradas. E, na ação n.º 167/17.9YHLSB, pelos mesmos factos que agora estão em causa, foi apreciada a questão da titularidade dos direitos de autor, concluindo-se pela sua inexistência. Nesta medida, não considerar que, neste caso, o tribunal já se pronunciou sobre a questão que é objeto desta ação é criar a absurda possibilidade de decisões contraditórias, pondo em causa os referidos princípios de segurança jurídica e prestígio dos tribunais.”

 Entendeu a 1.ª instância que, por via da fundamentação que deixámos transcrita, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no Processo n.º 167/17.9YHLSB, com base nos “mesmos factos” que estão em causa nestes autos, apreciou a titularidade dos direitos de autor e concluiu pela sua inexistência.

 Não podemos deixar de discordar com tal entendimento, desde logo porque entre uma e outra acção inexiste qualquer relação de prejudicialidade.

   São acções que, pese embora a identidade subjectiva, nada as liga na vertente objectiva, tocante à causa de pedir e ao pedido, bem como ao contexto jurídico de uma e outra.

   Com efeito, não restam dúvidas que os factos em causa num e noutro processo são diferentes, assim como é diverso o enquadramento jurídico aplicável, sendo certo que os pressupostos tendentes à anulação do registo (arts. 202.º e 203.º do CPI) não se confundem com os requisitos exigidos para o reconhecimento dos direitos de autor (art. 2.º do CDADC).

  Sobre esta questão, importante é atentar no teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2020, proferido no âmbito do mesmo Processo n.º, 167/17.9YHLSB.L2.S2 onde se escreve o seguinte:

  “Na presente ação, atendendo ao objeto do processo, delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, está exclusivamente em causa a proteção específica dos desenhos e modelos decorrente do registo no INPI pelo Direito Industrial (cf. art. 203º, do CPI), pelo que será apenas neste âmbito que se conhecerá das questões suscitadas no recurso, surgindo como injustificada a invocação do regime jurídico da proteção jus autoral.”. É nesse contexto que, adiante, aí se conclui que “(…) está absolutamente vedado à ré/recorrente formular, nesta instância de recurso, o pedido de que se “reconheça o direito de propriedade industrial da ré sobre o desenho registado sob o nº 3223 (…)”.

  Foi nestes termos que o STJ, confrontado com esta mesma questão, recusou a tese defendida pela ora recorrente, afastando a possibilidade de estender o caso julgado aos motivos da decisão proferida na ação de nulidade do registo que se pronunciam sobre a titularidade dos direitos de autor.

  Por outro lado, perspetivando que a questão relativa aos direitos de autor foi suscitada no Processo n.º 167/17.9YHLSB pela aí Ré (aqui Autora) em sede de recurso de apelação e que a matéria de facto anteriormente alegada a esse propósito consubstancia matéria de exceção e se reconduz exclusivamente ao facto não provado na alínea a) da decisão da 1.ª instância (Tendo resultado como não provado “que o modelo dos bonecos que a R. registou sob o n.º 3223 fossem diferentes dos desenhados pela sua funcionária em 2007 ou sequer fossem diferentes dos bonecos típicos representativos do rancho folclórico da Madeira e existentes há, pelo menos, uma centena de anos), sempre tenderemos a concluir pela insusceptibilidade de o conhecimento de tal questão fazer caso julgado fora desse processo, nos termos do disposto no atual art. 91º, n.º 2 do CPC.

    Ora, no caso do Processo n.º 167/17.9YHLSB, a questão dos direitos de autor foi apreciada pelo Tribunal da Relação no contexto da violação das normas constitucionais em matéria de reconhecimento dos direitos fundamentais à iniciativa privada, liberdade criativa e artística, suscitada pela ré.

    Porém, para além de não resultar dos autos que, no processo n.º 167/17.9YHLSB, a Ré, em sede de recurso, tenha requerido o julgamento com tal amplitude, como tanto exige o n.º 2 do artigo 91º do CPC, tal questão foi apreciada “a latere” e não se identifica ou se confunde com a pretensão principal deduzida nesse processo – atinente à nulidade do registo. Não vemos, por isso que essa questão possa ser considerada prejudicial ou sequer que se encontre numa qualquer dependência lógica com a decisão final aí proferida.

  Diremos mesmo que tais considerações relativas aos direitos de autor da ali Ré não assumiram naquele pleito, centrado na questão da nulidade do registo, a relevância de questão instrumental, ou mesmo incidental, como sendo perfeitamente descabidas e deslocadas no quadro fáctico-jurídico em que a acção n.º 167/17.9YHLSB se movia.

         

 Daí que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2020 proferido na revista n.º 167/17.9YHLSB tenha considerado absolutamente “injustificada a invocação do regime jurídico da proteção jus autoral” no âmbito específico daquela ação.

         

 Assim, a decisão proferida sobre a nulidade do registo naquela acção está longe de se constituir como precedente lógico ou pressuposto necessário à decisão a proferir na presente ação, já que o direito de autor pertence ao criador intelectual da obra e é reconhecido independentemente de registo, depósito ou qualquer outra formalidade, conforme o disposto nos artigos 11º e 12º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).

 Digamos mais: Inscrevendo-se a acção do processo n.º 167/17.9YHLSB como uma acção anulatória, consistindo a sua causa de pedir na nulidade específica invocada, não na categoria ou tipo abstracto em que se integra tal nulidade, mas sim no vício concreto, que incidiu sobre o facto jurídico (o registo do desenho/modelo nacional n.º 3223 de que era titular a ora autora, e resultando o vício concreto invocado da falta de novidade e singularidade, em virtude da divulgação ao público do modelo registado, mediante comercialização, muito antes da data do depósito do pedido do registo, ultrapassando o período de graça, cfr. documentos n.º 3, 4 e 5, juntos à contestação, mencionados no parágrafo 18), já a presente acção visa o reconhecimento da titularidade de direitos de autor, consistindo a causa de pedir no facto jurídico de que derivam os direitos de autor, a criação intelectual da obra, independentemente da existência de registo, a que pode acrescer, por se tratar de uma acção de condenação, o facto ilícito alegadamente praticado pela Ré, ofensivo dos invocados direitos.

  Sendo, assim, manifestamente diversas as causas de pedir de uma e outra acção, naquela o concreto vício invocado e ferido de nulidade, nesta a tutela dos direitos de autor e a protecção deles resultante.

 Diremos mesmo que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no Processo n.º 167/17.9YHLSB, ao referir-se à questão da titularidade dos direitos de autor, fê-lo como mero obiter dictum, sem qualquer interferência na resolução do litígio que, centrado na nulidade do registo, se procurava dirimir. A alusão a tal matéria, surgindo como resposta a uma alegação de recurso apresentada por uma das partes, não teve natureza minimamente decisiva para a resolução do litígio, nem o aí decidido se constituiu como pressuposto lógico e necessário para a solução a dar, quer nesse processo, quer na presente ação, ou sequer como mero incidente cujo julgamento possa de alguma forma conceder à recorrente a possibilidade de requerer o julgamento de tal questão com tal amplitude nestes autos, à luz do art. 91º nº 2 do CPC, porquanto, já se deixou dito, o que naquele processo se considerou a respeito dos direitos de autos da ali ré e aqui autora, nada valem no contexto daquele pleito e nada podem valer no contexto deste.

  Em conclusão, mesmo propugnando a tese restritiva acima sucintamente explanada, que sufragamos, porquanto é a que concebe melhor articulação com o preceituado no art. 580º nº 2 do CPC (evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior), nunca se vislumbraria compaginável para a recorrente o uso da prerrogativa inserta no art. 91º nº 2 do CPC, porquanto o que se disse no Acórdão da Relação de Lisboa daquela acção n.º 167/17.9YHLSB, a respeito dos direitos de autor da aqui Autora e recorrida, não assume de minimis a natureza de decisão incidental, que alguma prejudicialidade possa merecer em relação ao thema decidendum da presente acção.

 

  Estamos, assim, nesta e naquela acção, ambas protagonizadas pelas mesmas partes, perante uma situação em que, na senda da defesa de interesses patrimoniais de uma e de outra, são formulados pedidos estruturalmente distintos, com base em pressupostos de facto e de direito perfeitamente diversos, não sendo configurável qualquer tipo de prejudicialidade entre um e outro pleito.

  Impondo-se concluir que deverá soçobrar a pretensão da recorrente, confirmando-se o acórdão recorrido na totalidade.

                    

  DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento à revista e confirmar inteiramente o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 21 de junho de 2022


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza

2ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Fátima Gomes  

______

[1] Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos de 11.11.2020 (proc. n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1), 26.11.2020 (proc. n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1), 24.10.2019 (proc. n.º 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2), 13.09.2018 (proc. 687/17.5T8PNF.S1), 19/06/2018 (proc. n.º 3527/12.8TBSTS.P1.S2), de 06/11/2018 (proc. n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1), de 28/03/2019 (proc. n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1) e de 30/04/2020 (proc. n.º 257/17.8T8MNC.G1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt. No plano doutrinário, tal jurisprudência alinha com as posições assumidas por Rui Pinto, In Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar Online, Novembro 2018, pp. 28 e ss.; Lebre de Freitas In Um Polvo Chamado Autoridade de Caso Julgado, pp. 700 e ss. e In A Extensão Subjetiva da Eficácia do Caso Julgado, pp. 613; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, págs. 309 e ss. e ss.; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 581 e ss.; Castro Mendes, Direito Processual Civil, II Volume, p. 781, Edição da Associação Académica, 1987, Ferreira de Almeida,  Direito Processual Civil, Vol. II, 2.ª edição, 2020, Almedina, pp. 719 e ss.;
[2] Noções Elementares…pp. 327 e ss.;
[3] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, p. 717;
[4] Preclusão e Caso Julgado, p. 160
[5] In RLJ, Ano 110, n.º 3599, pp. 228 e ss.;