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ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
FORMA
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário
I- Transparecendo do documento executivo o reconhecimento de uma dívida que a lei substantiva presuma, nos termos do artº 458º CC não se impõe que o credor/exequente indique a causa debendi, subjacente à emissão do título. II- Porém, a verificação da insuficiência formal relativamente ao contrato subjacente à dita confissão de dívida tem de ser sujeita à sindicância judicial, nos termos do aludido nº 2 do artº 458º CC. III- A invalidade formal do negócio afecta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo. Ou seja, tal invalidade formal atinge não só a exequibilidade da pretensão, como também a exequibilidade do próprio título. IV- Assim, quando o título formalize ou nele se confesse a celebração dum negócio nulo e a nulidade dê direito a restituição (artº 289 CC)-- como acontece, por exemplo, quando um contrato de mútuo civil de valor superior a € 14.963,94 é celebrado por documento particular (artº 1143 CC)-, o título não é exequível-- o documento dado à execução não pode ser havido como um dos “documentos particulares” a que se reporta a al. c) do artº 46º CPC-- e o credor terá de recorrer previamente a uma acção declarativa de condenação ou de simples apreciação e só a partir da decisão condenatória com trânsito em julgado disporá o exequente de título executivo. V- É que: a)- a obrigação de pagar é nula e é-o desde o início, ex tunc, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos a partir do momento da formação do negócio, voltando-se ao statu quo ante; b)- o direito à restituição e aquele a que o título se reporta são de diversa natureza.
Texto Integral
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO:
Na ...ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, veio B......... instaurar acção executiva contra C........., sob o nº .......4/03.OTBVNG, dando à execução o documento com cópia a fls. 91 do seguinte teor:
“Eu, C.......... declaro sob compromisso de honra que pedi por empréstimo ao Sr. B.......... a quantia de 4.295.000$00.
Sou mãe de D.......... e ter sido eu a pedir o dinheiro”.
Segue assinatura da dita C......... e a data de 16.04.2000.
Por apenso à dita execução, veio a executada C.......... deduzir embargos à mesma, alegando, em suma, que o aludido documento dado à execução não consubstancia qualquer título executivo, desde logo porque o negócio por ele titulado – mútuo – seria nulo por falta de forma legal, para além de se mostrar inexigível a respectiva obrigação.
Contestou o embargado, sustentando a improcedência dos embargos, por entender que o documento particular apresentado nos autos de execução configura um título executivo, sendo a respectiva obrigação certa, líquida e exigível.
Após despacho saneador tabelar, foi proferida decisão sobre o mérito dos embargos de executado, os quais foram julgados procedentes, declarando-se extinta a execução movida pelo exequente contra a executada.
Em suma, entendeu a Mmª Juiz a quo que, embora se esteja perante um título executivo, o certo é que perante o mesmo não decorre a exigibilidade da obrigação, desde logo porque, face à nulidade formal do mútuo (ut artº 1143º CC), a obrigação nele contida é nula “e, por isso, inexigível em sede de processo executivo”, sem embargo de o mutuante poder recorrer à acção declarativa para lograr obter a restituição de tudo o que prestou à mutuária - mas nunca pode exercer esse direito no âmbito da presente acção executiva, já que nesta o título “há-de constituir a respectiva condição necessária e suficiente”, o que in casu não ocorre.
Inconformado com o sentenciado, o embargado interpôs recurso de apelação, apresentando alegações que remata com as seguintes
CONCLUSÕES:
“1ª/ O apelante deu à execução um documento particular, datado e assinado pela executada, em que esta reconhece que recebeu a importância líquida, então de 4.295.000$00.
2ª/ Estão pois preenchidos os requisitos do Título executivo referidos na al. c) do artº 46º do C.P.C..
3ª/ Face a este princípio, os embargos teriam que improceder.
4ª/ Firam violados os artigos 46º al. c) e 815º, ambos do C.P.C..
Nestes termos, deve proceder o presente recurso, serem os embargos julgados improcedentes, e ser ordenado o prosseguimento da execução, nos seus termos legais”.
Contra-alegou a apelada, sustentando a improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
a única questão suscitada pelo apelante reduz-se a saber se o documento de confissão de dívida que tenha subjacente um contrato de mútuo nulo por vício de forma tem, ou não, todos os requisitos para lhe ser dada eficácia executiva.
II. 2. FACTOS PROVADOS:
Ao supra descritos, que aqui nos dispensamos de repetir.
III. O DIREITO:
Vejamos, então, a questão suscitada pelo apelante.
O executado pode opor-se à execução por embargos (artº. 812º. do Cód.P.Civil).
Os embargos de executado apresentam a fisionomia duma acção quase perfeita dirigida pelo executado contra o exequente, com o fim de invalidar, no todo ou em parte, o direito que este invoca no requerimento de execução. Não constituem um mero incidente da execução.
"Pelos embargos, o executado assume a autoria dum processo declarativo, destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção.
Apresentam, assim, os embargos a figura quase perfeita duma acção dirigida contra o exequente, em que este toma a posição de réu e passa a denominar-se “embargado” e em que o executado é autor, com o nome de “embargante” (Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, vol. I, 3ª ed., pág. 275).
Por outro lado, embora os embargos de executado revistam a natureza de uma acção declarativa de simples apreciação negativa, o ónus de prova, ao contrário do que nelas acontece, impende sobre o autor (embargante-executado).
Assim também se entendeu no Ac. do S.T.J., 29.2.96 (Col. Jur. (Ac. do S.T.J.), 96, I, pág.102):
Quer dizer, aplica-se nos autos a regra geral do ónus da prova previsto no artº 342º do Cód. Civil.
Isto posto, passemos, então, à apreciação da questão sub judice.
Como vimos, o que está em questão neste recurso é apenas e só saber se o documento de confissão de dívida fls. 91 e que tem subjacente um contrato de mútuo nulo por vício de forma, reúne, ou não, todos os requisitos para lhe ser dada eficácia executiva.
Sustenta o apelante que no dito documento estão preenchidos todos os requisitos de Título executivo referidos na al. c) do artº 46º do C.P.C., o que tanto basta para a improcedência dos embargos.
Quid juris?
Com a reforma operada pelo Dec. Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, conforme se refere no relatório preliminar de tal diploma, optou-se "pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis ou de prestação de facto determinado".
Agora, só nos escritos particulares com assinatura a rogo é exigido o reconhecimento notarial da assinatura, para que o documento goze de força executiva (conf. o citado artigo 51º, na redacção actual).
Mais:
Ao enumerar as espécies de títulos executivos, o artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil, em vez de referir-se, como acontecia antes, às "letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis", refere-se agora aos "documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ode prestação de facto".
Ou seja: o legislador deixou cair a específica referência aos títulos de crédito, substituindo-a pela simples alusão a documentos particulares.
Considerou desnecessária aquela referência certamente porque ao não exigir-se, para que os documentos particulares gozem de força executiva, que a assinatura do devedor esteja reconhecida por notário, os títulos de crédito deixaram de ter, no aspecto em apreço, qualquer autonomia relativamente aos demais documentos particulares.
Convém, porém, reparar que a Lei Uniforme, facultando a acção cambiária ao portador de um cheque que o tenha apresentado a pagamento em tempo útil e veja esse pagamento recusado por um dos modos referidos no artigo 40º, é completamente omissa quanto à espécie da acção a que aquele poderá recorrer.
Não esclarece se deve usar a acção declarativa ou pode recorrer logo à acção executiva.
Tais questões, foram deixadas para a lei de processo.
É esta, na verdade, que enumera as espécies de títulos executivos e, consequentemente, define quando é lícito o recurso à acção executiva ou se impõe o prévio recurso à acção executiva.
Não cremos, assim, v.g., que possa retirar-se, à partida, a natureza de título executivo a um cheque só porque ele não é susceptível de produzir efeitos como tal. Deve indagar-se é tão só se ele preenche ou não os requisitos que o citado artigo 46º, alínea c) impõe para que os documentos particulares sejam considerados títulos executivos.
Em síntese: a actual redacção do art.º 46º, al. c) do Código de Processo Civil - procurando alargar o elenco dos títulos executivos e evitar a desnecessária proposição de acções declaratórias de condenação - deixou cair a referência expressa que anteriormente fazia aos cheques, letras e livranças e alargou a eficácia executiva a todos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado.
Há que ver, então, se o documento dado à execução e com cópia a fls. 91, constitui um documento particular assinado pelo devedor que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado, de forma a enquadrá-lo assim na previsão daquela al. c) do art.º 46º do Código de Processo Civil
Define-se título executivo como “(…) o instrumento que é considerado condição necessária e suficiente da acção executiva”, Anselmo de Castro, A acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 1977, pág. 14.
Considera-se que o título executivo é condição necessária da execução na medida em que os actos executivos em que se desenvolve a acção apenas podem ser praticados na presença dele.
Por outro lado, diz-se que o título executivo é condição suficiente da acção executiva, na medida em que na sua presença segue-se imediatamente a execução, sem ser necessário indagar previamente sobre a real existência do direito a que se refere.
Mas o título, além, de ser a condição necessária e suficiente da execução, define-lhe também os fins e os limites.
Nos termos do art. 45º do Código de Processo Civil (CPC), “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.
Ora, o art. 46º, nas suas diversas alíneas, diz quais os títulos com força executiva. Trata-se de uma enumeração taxativa, como facilmente se constata da letra do preceito em análise (“À execução apenas podem servir de base(…)”).
A enumeração legal pode ser reduzida à seguinte classificação: títulos judiciais, parajudiciais e extrajudiciais.
Dentro dos títulos extrajudiciais, temos os documentos particulares. Antes da revisão da lei adjectiva, para os documentos particulares serem títulos executivos exigia-se que contivessem a assinatura do devedor e o reconhecimento dessa assinatura.
A evolução da nossa lei caracteriza-se por uma progressiva expansão dos títulos executivos extrajudiciais, em contraste com a maioria das legislações que persistem em os restringir à escritura pública e aos títulos mercantis.
Prova desta evolução encontra-se, como já referimos, na reforma processual de 1995, onde o elenco dos títulos executivos foi significativamente ampliado, conferindo-se força executiva aos “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto” - (al. c) do art. 46º do CPC). Desapareceu, portanto, a exigência de reconhecimento da assinatura que antes existia.
Mantém-se, contudo, um requisito de fundo: que deles conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, de entrega de coisa móvel ou de prestação de facto.
No caso do documento em questão nos autos encontra-se perfeitamente determinada a quantia em dívida: 4.295$00.
No entanto, tendo presente que a al. c) do art. 46º confere exequibilidade aos documentos particulares, assinados pelo devedor, constitutivos ou recognitivos de obrigações--o que, de facto, formalmente ocorre no documento em apreço --, a questão que se coloca é, porém, saber se substancialmente há algum obstáculo a que o dito documento possa ter a aludida força executiva.
Cremos que há.
Rfeira-se que a respeito da prescrição cambiária que o cheque incorpora, escreveu Pinto Furtado, Títulos de Crédito, a págs. 82/83:
“Efectivamente, prescrita a obrigação, deixaremos de estar em presença de um título de crédito e nem poderá pôr-se a questão da executoriedade do crédito cartular correspondente - mas nem por isso desaparecerá o papel que, muito embora não seja um título de crédito, constitui decerto, ainda, um escrito particular do qual conste a obrigação de prestação de quantia determinada e a assinatura do devedor.
Ele não documenta, é certo, a inteira obrigação fundamental - mas nem isso é preciso para poder valer como título executivo, nos termos da facti species constante da al. c) do artº 46º CPC; basta, para tanto, que dele conste, como efectivamente consta, a obrigação do pagamento de uma quantia determinada e esteja assinado pelo devedor executado.
Se estes requisitos se configuram num escrito, ele poderá não ser um título de crédito e pode mesmo ter deixado de sê-lo, em face da prescrição cambiária; não deixará por isso é de constituir um título executivo da obrigação de pagamento nele literalmente expressa.
[......................................]
Isto é, hoje em dia, particularmente mais claro, em presença da actual versão desta alínea, a qual, como se sabe, deixou de conter uma enumeração de títulos de crédito típicos, que inseria no elenco dos títulos executivos para se limitar a descrever apenas as menções que deverá conter todo o documento de dívida, em geral, para constituir um título executivo.”
Assim, atenta a nova redacção da citada al. c) do artº 46º CPC, para a exequibilidade do documento particular, basta que o mesmo obedeça aos requisitos contidos nessa mesma alínea.
Tais elementos ou requisitos são a assinatura do devedor e a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.
Ora - repete-se - não parece haver dúvidas que tais requisitos estão bem plasmados no documento exequendo.
Mas, como dissemos supra, estão-no apenas formalmente.
Aliás, não deve olvidar-se que, como emerge do artº 458º do CC, se alguém, por declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, mesmo que não indique a respectiva causa - causa que, porém, vem indicada no documento sub judice--, fica o credor até dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presumirá até prova em contrário.
Como sustenta Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., pág. 442, trata-se de uma presunção de causa e de inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental. O que tornava desnecessário que do título executivo constasse a causa da obrigação.
O problema, no entanto, está do lado dos requisitos de índole substantiva a que deve obedecer o mesmo “título”.
E tais requisitos obviamente que se não verificam.
Efectivamente, estando em causa um mútuo de valor superior a “3.000.000$00”, a legislação vigente exigia a sujeição a escritura pública (artº 1143º do CC).
Tal formalidade não foi respeitada, o que acarreta a nulidade do negócio (artº 220º CC) - de conhecimento oficioso pelo tribunal (porque estabelecida no conspecto da protecção de interesses e ordem pública: a forma escrita do mútuo é exigida por lei como modalidade eficaz de combate à usura, proibida) e que pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado (artº 286º CC).
Daqui logo se vê que, se é certo que formalmente o documento em questão está conforme o previsto na al. c) do artº 46º CPC, não é menos certo que, substancialmente, tal documento está ferido de nulidade.
Já Vaz Serra (citado por Rodrigues Bastos, in Das obrigações em Geral, Vol. I, 2ª ed., pág. 181) escrevia que “a promessa ou reconhecimento de dívida pode não mencionar a relação fundamental, cabendo ao Réu a prova dela ou da sua falta ou dos seus vícios, se quiser tirar daí as consequências que comportam”.
In casu o aludido documento de reconhecimento de dívida menciona, como vimos, até, a relação fundamental - o mútuo--, pelo que jamais podia valer como título executivo, dado estar viciado “de morte”, atenta a nulidade da obrigação subjacente.
Poder-se-á argumentar que, não obstante a nulidade do mútuo, a obrigação de restituição do dinheiro recebido sempre se mantém, nos termos do Assento nº 4/95, de 28/3/95, publicado no D.R. I S.-A, de 17/5/95 (cfr BMJ, 445-67) que reza assim:
“Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº 1 do artigo 289º do Código Civil.”
Não se confundam, porém, as coisas: uma coisa é a exgibilidade de cumprimento da obrigação emergente do contrato de mútuo, outra - bem diferente - é a condenação a devolver o dinheiro que (por força da declaração de nulidade) se recebeu, provados os necessários factos. A obrigação que está em causa e que sustenta a exequibilidade do título, essa não existe, dada a nulidade do contrato que a sustentava: o mútuo. E tanto basta para que o respectivo documento não possa constituir título executivo - impondo-se o recurso à acção declarativa por forma a permitir ao exequente munir-se de título válido e eficaz.
Dito de outra forma: abstraindo da génese do documento dado à execução - que integra a aludida confissão de dívida resultante do mútuo--, dele jorra, sem dúvida, uma declaração de dívida que, se abstrairmos da validade substancial da sua causa, vincula o respectivo subscritor ao pagamento de uma determinada quantia.
Mas à defesa assiste o direito de invocação de factos impeditivos dos efeitos pretendidos (v.g., nulidade do mútuo - nulidade esta, aliás, como vimos, de conhecimento oficioso pelo tribunal--, simulação, etc.).
Invocado esse facto impeditivo, com êxito, obviamente que aquilo que aparentemente constituía um título executivo, afinal não o é.
Portanto, se nos parece que se não impunha ao exequente a indicação da causa debendi (embora, no presente caso, a mesma já transparecesse do documento executivo) [Sabemos não ser esse entendimento pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência (contra, v.g., Lebre de Freitas, “A Acção Executiva”, págs. Cits. e, ainda, A Confissão no Direito Probatório, págs. 390/391 e Ac. STJ in CJ, Acs. STJ, T. I, pág. 64).
Mas parece-nos que é o entendimento mais justo, na ponderação dos interesses das partes e da letra e espírito da lei.
No sentido aqui defendido, ver., v.g., Ac. Rel. de Lisboa, de 27.06.2002, Col. Jur. 2002, T. III, pág. 121.
De facto, atento o regime prescrito pelo art. 458º do Código Civil e a conexão existente entre o ónus da alegação e o ónus da prova, não se vislumbra fundamento para impor ao credor o ónus de alegação/invocação da causa da dívida reconhecida, porquanto só faz sentido impor o ónus da alegação àquele sobre quem recai simultaneamente o ónus da prova.
Atendendo a que a lei, face a uma promessa de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento de dívida, presume a existência da respectiva causa, o credor está exonerado do respectivo ónus da prova (art. 344º, n.º 1 do Código Civil) e, assim, não faz qualquer sentido impor-lhe o ónus de alegação, totalmente despiciendo no contexto processual. Cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.05.99, CJSTJ, tomo II, p. 88.
É que se nos afigura ainda inexistente ou insubsistente o perigo a que atende Lebre de Freitas para sustentar a posição supra referida: o de o mesmo documento poder servir para instruir uma outra acção, uma vez que sempre o devedor pode ilidir a presunção da existência da dívida, em resultado do confronto entre os factos alegados pelo executado na oposição à acção executiva e a contestação do exequente.
Ainda a respeito do artº 458º CC, refere Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, I, 253: “...no que respeita à substância, é dispensada a invocação pelo credor da relação subjacente- causa- cuja existência e licitude se presume. Esta presunção é ilidível- tantum iuris- pelo respectivo obrigado, que é admitido a invocar a sua falta ou qualquer outra excepção ex causa”], a verdade é que a nulidade do mútuo fere de morte o pretenso título.
Estamos perante um facto impeditivo da acção executiva que serviu de fundamento aos embargos de executado (artº 815º CPC).
No sentido aqui sustentado, pode ver-se Teixeira de Sousa, In Acção Executiva, a pág. 70:
“...a invalidade formal do negócio afecta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo”. “Essa invalidade formal” - acrescenta o mesmo autor - “atinge não só a exequibilidade da pretensão, como também a exequibilidade do título” - sublinhado nosso.
Da mesma forma, Lebre de Freitas, Acção Executiva, pág. 29, nota 2, escreveu: “... Se houver dúvidas acerca do tipo ou do objecto da obrigação titulada, o título não é exequível e o credor terá de recorrer previamente a uma acção declarativa de condenação ou de simples apreciação (Bruns-Peters, ZVR, p. 20; Bronx-Walker, ZVR, p. 31). E terá também que o fazer quando o título formalize ou nele se confesse a celebração dum negócio nulo e a nulidade dê direito a restituição (artº 289 CC), como acontece, por exemplo, quando um contrato de mútuo civil de 600.000$00 é celebrado por documento particular (artº 1143CC), pois o direito à restituição e aquele a que o título se reporta são de diversa natureza” - sublinhado nosso.
À mesma solução se chega por aplicação do disposto no nº 2 do artº 458º CC.
Efectivamente, mesmo que não constasse - e consta-- da declaração confessória a indicação da respectiva causa (o mútuo)--, caso em que sempre ficava o credor/exequente dispensado de provar a relação fundamental--, sempre o reconhecimento da dívida emergente do mútuo tinha de sujeitar-se à forma imposta por lei : in casu a escritura pública, sob pena de nulidade.
Isto é, a verificação da insuficiência formal relativamente ao contrato subjacente à dita confissão de dívida - o mútuo - tinha de ser sujeita à sindicância judicial, nos termos do aludido nº 2 do artº 458º CC.
E operando tal sindicância, logo se vê que se impunha a escritura pública para o mútuo. E não tendo sido observada esta forma, tal nulidade da relação subjacente (o contrato de mútuo) inquina a exequibilidade do próprio título dado à execução.
Assim, não sendo observada a forma legal para o contrato subjacente à declaração confessória da dívida, o documento particular dado à execução não tinha eficácia executiva. Daí que se impusesse a procedência dos embargos de executado deduzidos, com a extinção da execução.
Anote-se que o mesmo aconteceria se, em vez de uma declaração confessória de dívida, fosse dado à execução um cheque como caução do dinheiro emprestado (pelo exequente ao executado) - oque não aconteceria, porém, caso fosse dado à execução um cheque (apenas) para pagamento da própria dívida (Cfr. Ac. Rel. do Porto, de 20.04.2004, Relator Cândido de Lemos, disponível na Internet, in dgsi.pt). É que, então, teríamos uma situação de datio pro solvendo, traduzida na entrega do cheque com o valor do capital de mútuo. Pelo que, nesta hipótese, o direito de crédito do exequente à restituição não se extinguiria pela mera entrega do cheque, dependendo da efectiva realização do seu direito de crédito. Como por via do cheque se constitui uma obrigação cambiária de pagamento de determinada quantia, valeria, então, como título executivo, nos termos da alínea c) do artigo 46º do C.P.C.
E o mesmo valeria se de uma letra se tratasse, emitida para pagamento da quantia mutuada, caso em que o mutuário era, não obstante a aludida nulidade formal, obrigado a restituir a quantia mutuada (posição que ficou cimentada com o aludido Assento nº 4/95, de 28/3/95, publicado no D.R. I S.-A, de 17/5/95-- BMJ, 445-67) [Cfr. Ac. Rel. do Porto, de 19.02.2004 (relator Durval Morais), disponível na Internet, in DGSI.pt].
No sentido aqui defendido, pode ver-se, ainda, os Acs. lavrados nas apelações nºs 1425/99 e nº 922/00, ambos desta 3ª Secção da Relação do Porto (este de 02.11.2000 disponível no site da DGSI).
Portanto, o documento dado à execução não pode ser havido como um dos “documentos particulares” a que se reporta a al. c) do artº 46º CPC.
Efectivamente, a obrigação de pagar é nula. E é-o desde o início, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos.
Ora, o regime jurídico da nulidade reflecte a intenção, pelo menos de princípio, de fazer desaparecer as consequências a que o negócio directamente se dirige... Portanto, uma vez declarado nulo o negócio, a produção dos seus efeitos é excluída desde o início, ex tunc, a partir do momento da formação do negócio, e não ex nunc, a contar da data da declaração da nulidade. O carácter retroactivo da nulidade leva à repristinação da situação criada pelo negócio, voltando-se ao statu quo ante - Diogo Leite de Campos in Subsidiariedade da Obrigação de Restituir por Enriquecimento, 1974, pág. 196.
Sendo assim, e no domínio das relações imediatas, a nulidade do contrato de mútuo inquina de invalidade o título que o pretende representar, tornando-o inexequível (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CCIV Anot., Vol. II, 3ª Ed., pág. 683).
Impõem-se, por isso, o recurso à acção declarativa, na qual, declarando-se a nulidade do mútuo, se condene, também, na restituição da quantia emprestada. E só a partir da decisão condenatória com trânsito em julgado disporá o exequente de título executivo.
CONLUINDO:
Transparecendo do documento executivo o reconhecimento de uma dívida que a lei substantiva presuma, nos termos do artº 458º CC não se impõe que o credor/exequente indique a causa debendi, subjacente à emissão do título.
Porém, a verificação da insuficiência formal relativamente ao contrato subjacente à dita confissão de dívida tem de ser sujeita à sindicância judicial, nos termos do aludido nº 2 do artº 458º CC.
A invalidade formal do negócio afecta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo. Ou seja, tal invalidade formal atinge não só a exequibilidade da pretensão, como também a exequibilidade do próprio título.
Assim, quando o título formalize ou nele se confesse a celebração dum negócio nulo e a nulidade dê direito a restituição (artº 289 CC)-- como acontece, por exemplo, quando um contrato de mútuo civil de valor superior a € 14.963,94 é celebrado por documento particular (artº 1143 CC)-, o título não é exequível-- o documento dado à execução não pode ser havido como um dos “documentos particulares” a que se reporta a al. c) do artº 46º CPC-- e o credor terá de recorrer previamente a uma acção declarativa de condenação ou de simples apreciação e só a partir da decisão condenatória com trânsito em julgado disporá o exequente de título executivo.
É que: a)- a obrigação de pagar é nula e é-o desde o início, ex tunc, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos a partir do momento da formação do negócio, voltando-se ao statu quo ante; b)- o direito à restituição e aquele a que o título se reporta são de diversa natureza.
IV. DECISÃO:
Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Porto, 13 de Outubro de 2005
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves