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PROCEDIMENTO CAUTELAR
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RELAÇÃO DE INSTRUMENTALIDADE
Sumário
Atenta a relação de instrumentalidade e dependência existente entre o procedimento cautelar instaurado pelo requerente no tribunal judicial e a reconvenção pelo mesmo deduzida em ação que corre termos no tribunal administrativo e fiscal, será este último o tribunal competente, por conexão, para julgar do referido procedimento cautelar.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I–Relatório:
O Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P. (IHRU, I.P.) veio propor, em 21.3.2022, contra B e C, procedimento cautelar de restituição provisória de posse, pedindo, no essencial e além do mais,
que:
-seja declarado o requerente como proprietário e legítimo possuidor do prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na Travessa P..... C....., nº .., A....., Q____ C____, S_____, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 5..., da União das freguesias do S_____, A_____ e A_____ P____ P____ e descrita na Conservatória do Registo Predial do S_____ sob o nº 2..., freguesia da A______;
-seja reconhecida a privação do requerente da posse do imóvel, por meio de esbulho, praticado com violência pelos requeridos;
- seja ordenada a restituição, por estes, da posse do imóvel ao requerente, livre e devoluta de pessoas e bens; e
- seja decretada a inversão do contencioso e, assim, dispensado o requerente do ónus de propositura da ação principal.
Invoca, para tanto e em breve síntese, que encontrando-se o referido prédio, propriedade do requerente, devoluto, devidamente fechado e emparedado desde 2014, em Janeiro de 2021 os requeridos procederam ao respetivo arrobamento e passaram a ocupar o referido imóvel e no mesmo a residir, sem qualquer título que legitime essa ocupação e sem o consentimento do requerente, impedindo o mesmo de proceder às obras necessárias e indispensáveis ao seu uso e à respetiva atribuição a candidatos com carência económica em regime de arrendamento apoiado, no âmbito das atribuições que lhe competem. Mais alega que teve conhecimento da identificação dos requeridos por meio de ação administrativa instaurada pelo requerido contra o requerente onde solicita o “reconhecimento de situações jurídicas subjetivas”.
A convite do Tribunal, veio o requerente esclarecer, em 8.4.2022, que o “Requerido, intentou contra o IHRU, uma ação administrativa de reconhecimento de situações jurídicas (art. 37.º, n.° 1, j) do CPTA), solicitando, em suma, "que seja declarada a existência do direito do A. a celebrar um contrato de arrendamento de habitação social com a Ré (IHRU), com recurso aos valores da renda que resultam da Lei, condenando-se consequentemente as Ré a abster de por qualquer forma perturbar o gozo do locado até que tenha lugar a efetiva celebração do contrato de arrendamento.” Mais refere que “a referida ação já foi contestada pelo IHRU e encontra-se a aguardar despacho do MM. Juiz” e que “as ação, administrativa e a providência cautelar de restituição provisória da posse, relacionam-se com o mesmo imóvel, o qual foi ocupado abusiva e ilicitamente, pelos Requeridos.” Junta certidão respeitante ao Proc. nº 92/22.1BEALM do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Por despacho de 21.4.2022, foi determinada a notificação do requerente para se pronunciar sobre a possível incompetência material do tribunal para conhecer da providência instaurada em virtude de se encontrar intentada ação administrativa no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Pronunciou-se o requerente no sentido da inexistência de qualquer relação de prejudicialidade e/ou de litispendência entre as duas ações, dado que o objeto do litígio não é o mesmo, pois “na ação administrativa é peticionado que seja declarada a existência do direito do A. (aqui requerido) a celebrar um contrato de arrendamento com o IHRU, e na providência cautelar, peticiona-se a restituição provisória da posse de um imóvel que foi ocupado abusiva e ilicitamente, pelos Requeridos”, sendo competentes para conhecer a presente providência os tribunais comuns, e não os administrativos. Conclui, pedindo que, caso assim se não entenda, seja ordenada a remessa do processo para ser apensado à ação que corre termos sob o Proc. nº 92/22.1BEALM, Unidade Orgânica 1, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Em 3.5.2022, veio a ser proferido despacho que, considerando estar pendente causa principal no Tribunal Administrativo de Almada entre as mesmas partes e tendo por base o mesmo objeto (na parte em que se refere à entrega do locado), e dever a presente providência cautelar correr por apenso àqueles autos, concluiu: “(…) julga-se verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal para julgar a presente previdência cautelar de restituição provisória da posse e, em consequência, é a mesma liminarmente indeferida. Considerando que se trata de uma providência cautelar especificada, decretada, nos termos do art° 378.° do CPC, sem audição do requerido, destarte estarmos em sede de despacho liminar não se vê óbice a que se aplique o art.° 99°, n.° 2 do CPC, remetendo-se os autos ao Tribunal competente. Assim, atendendo à posição dos Requerentes, e nos termos do disposto no art.° 99°. 2 do CPC, determina-se, após trânsito, a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, Unidade Orgânica 1 (proc. nº 92/22.1BEALM). Custas a cargo da Requerente, pelo mínimo legal (cf. art° 527.° e 539º, 1.ª parte, ambos do CPC). (…).”
Inconformado, interpôs recurso o requerente, IHRU, I.P., apresentando as respetivas alegações que culmina com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“ A)–O Tribunal "a quo" declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da providência cautelar de restituição provisória da posse instaurada pelo Recorrente, contra os Requeridos, BP..... e VF....., entendendo ser competente o tribunal administrativo e Fiscal de Almada, onde corre a ação administrativa de reconhecimento de situações jurídicas, previamente instaurada por BP..... contra o IHRU, B)–alegando em suma, que se encontra verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal para julgar a presente providência cautelar em virtude da existência de uma ação administrativa. C)–Entende, porém, o ora Recorrente, que não esta a ser feita a pertinente interpretação da lei. D)–O Requerente/Recorrente, instaurou no tribunal judicial uma providência cautelar de restituição provisória da posse contra os Requeridos peticionando a restituição provisória da posse de um imóvel, sua propriedade e do qual detinha a posse, que foi ocupado abusiva e ilicitamente, por aqueles. E)–No tribunal administrativo encontra-se a decorrer uma ação de reconhecimento de situações jurídicas (art. 37 n.° 1, al f), do CPTA) contra o Recorrente onde o Requerido peticiona que seja declarada a existência do direito a celebrar um contrato de arrendamento de habitação social com o IHRU, com recurso aos valores da renda que resultam da lei, condenando-se consequentemente, a IHRU a abster de por qualquer forma perturbar o gozo do locado até que tenha lugar a efetiva celebração do contrato de arrendamento. F)–À semelhança do entendimento do tribunal, entende também o Recorrente que as providências cautelares, ainda que uma das partes seja entidade de direito público, caem na alçada dos tribunais comuns. G)–Não concorda o Recorrente com o entendimento do tribunal "a quo" quando este refere "que o prosseguimento das duas ações em separado possa gerar decisões diferentes no que se refere à entrega do locado: ou a prolação de decisões contraditórias entre si ou verificação de uma situação de inutilidade superveniente do conhecimento de um dos pedidos". H)–O Recorrente entende que não existe qualquer relação de prejudicialidade e/ou de litispendência entre as duas ações "uma vez que nem o pedido nem a causa de pedir é a mesma. I)–Assim como, também, o objeto do litígio não é o mesmo, porquanto, na ação administrativa é peticionado que seja declarada a existência do direito do Autor a celebrar um contrato de arrendamento com o IHRU e na providência cautelar peticiona-se a restituição provisória da posse de um imóvel que foi abusiva e ilicitamente. J)–O Requerido sem autorização e à revelia do Requerente, ocupou ilicitamente o imóvel, propriedade do Instituto e que se encontrava na sua posse, arrombando a porta e introduzindo-se no seu interior. K)–O Requerido privou o Requerente da posse do seu imóvel, não possuindo qualquer título válido (contrato de arrendamento, documento de atribuição, etc,) que o legitime a sua permanecer no imóvel. L)–A ocupação ilícita, pelo Requerido, viola o direito de propriedade e de posse do Requerente sobre o imóvel que de forma violenta viu esbulhado, e M)–a ocupação também não permite que se crie qualquer expetativa legítima por parte do Requerido. N)–Na ação administrativa o Requerido peticiona que seja declarada a existência do direito a celebrar um contrato de arrendamento de habitação social com o IHRU. O)–Resulta da lei, e é do conhecimento geral, que a celebração de um contrato de arrendamento de habitações sociais propriedade do Recorrente e, consequentemente, a atribuição de fogos habitacionais é feita nos termos da Lei e do Regulamento. P)–Nos termos do regulamento n.° 84/2018, de 2 de fevereiro, a atribuição de habitação social é necessariamente procedida de procedimento de concurso por inscrição, em que são apreciadas e classificadas as candidaturas em conformidade com as normas regulamentares aplicáveis. Q)–O direito à habitação, consagrado no artigo 65.° da CRP, não é um direito absoluto, nem confere aos cidadãos um direito imediato e direto a uma habitação. R)–O Autor não pode assentar o seu pedido no direito à habitação pois tal princípio constitucional está dependente de concretização legal, só podendo exigir o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei, ou seja, o direito à habitação não é diretamente aplicável ou exequível por si mesmo, isto é, não confere um direito imediato a uma habitação. S)–Por outro lado o direito à habitação não justifica por si mesmo a violação dos direitos de terceiros, nem legítima a ocupação de edifícios alheios, nem impede o proprietário do imóvel ocupado de agir judicialmente para recuperar a posse do seu bem. T)–O tribunal "a quo" não se pode abster de decidir a providência cautelar uma vez não existe qualquer exceção dilatória que obste à absolvição da instância. U)–O tribunal administrativo também não é competente para apreciar a presente providência cautelar porque não estamos perante um litígio emergente de qualquer relação jurídica administrativa (artigo 1.° e 4 do ETAF), V)–nem existe um ato administrativo cuja legalidade seja suscetível de ser posta em causa. W)–E muito menos quando a pretensão do Requerido na ação administrativa é manifestamente infundada, de facto e de direito, e bem assim, quando este tipo de ações visa tão só subverter o direito e a justiça, e X)–causar graves prejuízos ao Requerente e a todos os cidadãos que de forma ordeira e legal se candidatam a uma habitação social. Y)–Deste modo deverá prosseguir a providência cautelar de restrição provisória de posse no tribunal judicial.”
Não havendo lugar a contraditório, o recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II–Fundamentação de facto:
Resulta dos autos, designadamente da certidão junta, com interesse para a decisão do presente recurso, e para além do que acima consta do relatório, que: 1)–Na ação que corre termos sob o Proc. nº 92/22.1BEALM, Unidade Orgânica 1, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, instaurada, em 14.2.2022, pelo aqui requerido B contra o aqui requerente IHRU, e respeitante ao mesmo imóvel, pede o mesmo a condenação da Ré a “abster de por qualquer forma perturbar o gozo do locado até que tenha lugar a efetiva celebração do contrato de arrendamento”; 2)–O aqui requerente apresentou naqueles autos contestação, em 23.3.2022, e deduziu reconvenção, pedindo, além do mais, que seja o IHRU reconhecido como “dono e legítimo proprietário do imóvel identificado nos autos”, bem como a condenação do “Autor/Reconvindo a restitui-lo ao Réu/Reconvinte livre e devoluto de pessoas e bens” e ainda “condenado a pagar ao Réu uma indemnização correspondente às rendas que deixar de receber desde a data do presente pedido de indemnização até efetiva entrega do imóvel, calculada pelo valor de € 206,42/mês”.
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III–Fundamentação de Direito:
São as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, a única questão a apreciar respeita à inexistência da exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal para julgar o presente procedimento cautelar, sendo as demais suscitadas respeitantes ao mérito da providência que não caberá, naturalmente, neste momento conhecer.
Na decisão recorrida invocou-se o disposto nos arts. 112, 113 e 114 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (C.P.T.A.) e, considerando-se ainda a petição inicial e a contestação/reconvenção apresentadas no Proc. nº 92/22.1BEALM da Unidade Orgânica 1, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, discorreu-se nos seguintes termos: “(…) como se vê, o eventual decretamento da restituição provisória da posse no âmbito dos presentes autos, buliria com parte do pedido do Autor na ação administrativa (na parte em que requer que a ali requerida se abstenha de praticar atos que balam com o gozo do locado) e com o pedido da ali requerida, na instância reconvencional (na medida em que igualmente peticiona a entrega do imóvel, devoluto de pessoas e bens e ainda uma indemnização a pagar até à efetiva entrega do locado). Fica evidente a possibilidade de, prosseguindo as duas ações em separado, se gerar uma de duas situações no que se refere à entrega do locado: ou a prolação de decisões contraditórias entre si ou verificação de uma situação de inutilidade superveniente do conhecimento de um dos pedidos. É precisamente para evitar situações como esta que, de acordo os artes 113.°, n.°s 1 e 2 e 114.°, n.° 1, al. c) e n.° 2 do CPTA, se considera competente para conhecer da providência cautelar o tribunal onde foi intentada a ação principal. Ora, nos termos do art.° 64.° do Código do Processo Civil, que estabelece que "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional", conclui-se pela competência residual dos tribunais judiciais. Este preceito é confirmado pelo art.° 40.º, n.º 1 da LOSJ, que estipula que "os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional". Por sua vez, de acordo com o art.° 1.° do ETAF "os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nas litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.° deste Estatuto". Da interpretação conjugada de todos os preceitos mencionados, considerando o que acabou de se expender sobre os contornos das ações em causa, impõe-se a conclusão de que, estando pendente causa principal, entre as mesmas partes e tendo por base o mesmo objeto (na parte em que se refere à entrega do locado), deverá a presente providência cautelar de restituição provisória da posse correr por apenso aos autos da ação administrativa que corre termos Tribunal Administrativo de Almada. Estabelece o art° 576.°, n.ºs 1 e 2 do CPC que as exceções dilatórias "obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal" (cf. artigo 278,°, n.°1, al. e), do Código de Processo Civil), podendo o Tribunal delas conhecer oficiosamente (com as exceções previstas no artigo 578.°, do Código de Processo Civil). O desrespeito pelas regras relativas à competência em razão da matéria, nos termos do art.° 96.º do Código do Processo Civil, determina a incompetência absoluta do Tribunal, o que constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso (cf. artigos 97.°, n° 1, 577.°, al. a) e 578.° do Código do Processo Civil). A incompetência nestes termos corresponde a uma exceção insanável, que determinará, consoante a fase processual, ou o indeferimento liminar ou a absolvição da instância (cf. artigos 99.º, n.º 1 do Código do Processo Civil). (…).”
O apelante defende, no essencial, que cabe aos tribunais comuns a competência para conhecer das providências cautelares em que uma das partes é uma entidade de direito público e que não há qualquer relação de prejudicialidade e/ou de litispendência entre as duas causas.
Vejamos.
Conforme decorre do art. 362 do C.P.C., os procedimentos cautelares constituem medidas provisórias, de natureza conservatória ou antecipatória, destinadas a assegurar a efetividade de um direito que se encontra ameaçado. Têm por propósito acautelar o efeito útil de uma ação, já instaurada ou a instaurar, de que são dependentes e que tem por fundamento o direito acautelado (art. 364 do C.P.C.).
Por conseguinte, o que cabe, em primeira linha, destacar é a natureza claramente instrumental do procedimento cautelar e a sua “dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado” (art. 364 do C.P.C.). De resto, os efeitos da providência estão dependentes do resultado obtido na ação definitiva e caducam, por regra, se essa ação não for instaurada, se a mesma vier a ser julgada improcedente ou se o direito tutelado se extinguir (art. 373 do C.P.C.). Assim, o procedimento cautelar não se destina a dar realização direta e imediata ao direito do requerente, mas apenas a assegurar/prevenir a eficácia da tutela que deve depois obter-se na ação principal (já proposta ou a propor), sem prejuízo da possibilidade da definitiva composição do litígio nas condições hoje previstas no art. 369 do C.P.C.([1]).
Será, pois, nessa ação principal que será definido e reconhecido, em definitivo, o direito em litígio, exceto se for decretada a inversão do contencioso.
Assim, a relação que se estabelece entre a providência cautelar e a ação principal que lhe corresponde é de instrumentalidade e dependência([2]).
Essa dependência, expressa através da identidade entre o direito, ou interesse, acautelado e aquele que se faz valer na ação, implica que as partes no procedimento cautelar sejam normalmente as mesmas na ação e que a causa de pedir coincida em ambos, sendo o pedido, por definição, distinto em cada um deles([3]).
Como diz A. Abrantes Geraldes([4]): “(…) A identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento à providência integre a causa de pedir da acção principal.(…).”
Em todo o caso, nada obsta que a providência seja requerida pelo réu reconvinte na dependência da ação em que é demandado, como medida cautelar do pedido reconvencional formulado([5]).
Quando o procedimento é requerido antes de a ação ser proposta, é apensado aos autos desta logo que a ação seja instaurada, e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa (art. 364, nº 2, do C.P.C.). É a denominada competência por conexão, paralela à definida nos arts. 91 a 93 do C.P.C.([6]).
Quando for requerido no decurso da ação, o procedimento é instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso (art. 364, nº 3, do C.P.C.).
De resto, e em termos gerais, dispõe o nº 2 do art. 206 do C.P.C. que: “As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.”
Definida, assim, em abstrato, a relação entre o procedimento cautelar e a ação principal à luz do C.P.C., voltemos ao caso sub judice.
Sem prejuízo da inversão do contencioso solicitada no presente procedimento pelo requerente, afigura-se evidente que a causa principal que lhe corresponde é a consubstanciada no pedido reconvencional formulado no Proc. nº 92/22.1BEALM a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Relembra-se que a inversão do contencioso, prevista art. 369 do C.P.C, significa a inversão do ónus da propositura da ação principal que passa a caber ao requerido, nos termos do art. 371 do C.P.C.. Ou seja, o juiz do procedimento cautelar não julga a causa principal, mas decreta uma providência que pode consolidar-se e converter-se numa decisão definitiva se o requerido não interpuser a ação principal([7]).
Ora, sendo este um procedimento cautelar de restituição provisória de posse em que é pedido, designadamente, que seja ordenada a restituição, pelos requeridos, da posse do imóvel ao requerente, livre e devoluta de pessoas e bens, no pedido reconvencional formulado na indicada ação que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, e respeitante ao mesmo imóvel, requer o IHRU, além do mais, seja reconhecido como “dono e legítimo proprietário do imóvel identificado nos autos” e a condenação do “Autor/Reconvindo a restitui-lo ao Réu/Reconvinte livre e devoluto de pessoas e bens”, bem como a sua condenação “a pagar ao Réu uma indemnização correspondente às rendas que deixar de receber desde a data do presente pedido de indemnização até efetiva entrega do imóvel, calculada pelo valor de € 206,42/mês.”
Resulta, pois, inequívoco, que constitui aquele processo, por via da reconvenção aí deduzida pelo aqui requerente IHRU, a causa principal de que é dependente o presente procedimento e onde será definido e reconhecido, em definitivo, o direito em litígio.
Nem se vislumbra, s.d.r., que outra ação poderia ser instaurada pelo aqui requerente caso não viesse a ser decretada a inversão do contencioso.
Acresce que, nos termos do art. 112 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (C.P.T.A.), também os tribunais administrativos e fiscais têm competência para conhecer e julgar providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, sendo equivalente a relação de instrumentalidade e dependência entre estas e a causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito.
Assim, dispõe o art. 113 do C.P.T.A. que: “1- O processo cautelar depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respetivo. 2- O processo cautelar é um processo urgente e tem tramitação autónoma em relação ao processo principal, sendo apensado a este. 3- Quando requerida a adoção de providências antes de proposta a causa principal, o processo é apensado aos autos logo que aquela seja intentada. 4- (…).. 5- (…).”
Por sua vez, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (art. 211, nº 1, da C.R.P.), o que resulta confirmado no art. 40 da LOSJ e no art. 64 do C.P.C..
Por conseguinte, tendo em vista a relação de dependência existente entre o presente procedimento cautelar e a reconvenção deduzida no referido Proc. nº 92/22.1BEALM, a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, tornou-se este último o tribunal competente, por conexão, para julgar desse procedimento.
Ou seja, é precisamente a dependência e a conexão entre ambos os processos que justificará, neste caso, a competência material daquele Tribunal Administrativo e Fiscal, e não os critérios que, em regra, elegemos na definição, em concreto, da competência material do tribunal – os termos em que a ação é proposta, a relação controvertida tal como é configurada na petição inicial, o fundamento da causa e a pretensão deduzida([8]).
Em suma, e uma vez que no aludido Proc. nº 92/22.1BEALM que corre termos na Unidade Orgânica 1 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada se discute, ao menos por via reconvencional, o mérito do direito em litígio, será o Juízo Local Cível do Seixal incompetente, em razão da matéria, para apreciar do presente procedimento cautelar, tendo-se por verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, conforme se entendeu em 1ª instância (ainda que com argumentação não exatamente coincidente).
Improcede, pois, o recurso.
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IV–Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
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Lisboa, 21.6.2022
Maria da Conceição Saavedra Cristina Coelho Edgar Taborda Lopes
[1]Dispõe este art. 369, sob a epígrafe “Inversão do contencioso”, que: “1. Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio. 2. A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada. 3. (…).” [2]Ver, a propósito, ainda que no âmbito do C.P.C. de 1961, A. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Vol., 3ª ed., págs. 144 e ss.. [3]José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., págs. 19/20. [4]Ob. cit., pág. 146. [5]Cfr., A. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 146, nota 226, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 20. [6]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 21. [7]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., págs. 45/46. [8]Daí não haver necessária contradição com o decidido no Ac. da RP de 9.9.2021, Proc. 3858/21.6T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt, que se
encontra referido na decisão recorrida.