ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
Sumário

1. A responsabilidade criminal é autónoma da responsabilidade tributária.
2. A noção de situação contributiva regularizada, contida no artigo 208.º do Código Contributivo, não releva para efeitos penais.
3. A  autorização concedida pela Segurança Social para o pagamento da dívida em prestação, ou mesmo os pagamentos parcelares efetuados no seu âmbito, não preenchem a norma contida na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º, aplicável por via do n.º 2 do  n.º artigo 107.º, ambos do RGIT, de modo a afastar a punibilidade da conduta.
4. O preenchimento dessa condição objetiva de punibilidade exige o pagamento integral da dívida contributiva, o que apenas sucede quando todas as quotizações em dívidas - retidas aos trabalhadores - sejam pagas, incluindo os respetivos juros moratórios, de modo a repor de imediato o desequilibro financeiro gerado.
5. O crime de abuso de confiança contra a segurança social não pune a mora, mas sim a conduta daquele que, perante a segurança social, assume uma posição fiduciária relativamente às quotizações retidas aos trabalhadores e omite culposamente o cumprimento dos seus deveres de entrega de tais quantias.
(Sumário elaborado pelo relator).

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. O Ministério Público deduziu acusação contra ..., ... e ..., imputando aos dois últimos arguidos a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, conjugado com os artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 6.º do mesmo diploma, e artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, e imputado o mesmo crime à sociedade arguida, nos termos do artigo 7.º do RGIT.
2. A arguida ... requereu a abertura da instrução, pugnando pela suspensão provisória do processo, fase processual que culminou em 24 de setembro de 2021 com a prolação de despacho de não pronúncia relativamente a todos os arguidos.
3. Notificado, o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP, constituiu-se assistente e interpôs recurso do despacho de não pronúncia para esta Relação. Extraiu da motivação as seguintes conclusões:
«a) A decisão instrutória recorrida, que considera que a celebração de acordo para pagamento faseado da dívida global de contribuições e de quotizações em processo de cobrança coerciva, (ao qual a lei atribui o efeito de situação contributiva regularizada, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 208.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, com a consequente suspensão do processo de cobrança executiva do tributo) equivale ao pagamento que, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT. impede o desencadear do procedimento criminal por abuso de confiança à Segurança Social, é ilegal e faz errada interpretação do disposto nos supra citados normativos legais, mormente do disposto no art.º 105.º e 107.º do RGTT e do art.º 208.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
b) Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 107.º do RGIT a dedução nas remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais do montante das contribuições por estes legalmente devidas para o regime contributivo obrigatório de segurança social, e a não entrega, total ou parcial, dos correspondentes valores às instituições de segurança social. só não serão puníveis se. após notificada para o efeito. a entidade empregadora pagar à segurança social. no prazo de 30 dias. a totalidade da prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.
c) Face à letra da lei (artigo 107.º e artigo 105.º do RGIT), só o efetivo e integral pagamento/entrega à segurança social da totalidade do valor das quotizações deduzido [às] remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais. no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, pode obstar à instauração ou ao prosseguimento do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social: só o cumprimento, pela entidade empregadora/devedora, da condição de pagamento, no prazo de 30 dias após notificação para o [efeito] da totalidade do montante das quotizações em falta impede o acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.
d) A celebração de acordo de pagamento da dívida de contribuições e de quotizações em sede de execução fiscal, não descriminaliza a conduta da entidade empregadora, muito menos não impede/desobriga a segurança social de notificar o devedor, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 4. do artigo 105.º do RGlT, e não dispensa a entidade empregadora devedora de cotizações [sic], caso queira evitar a instauração do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social, de ter de proceder ao pagamento integral desse valor das quotizações. no prazo de 30 dias. que para o referido efeito lhe seja notificado pela segurança social. acrescido dos juros e da coima.
e) A instauração ou a pendência de processo executivo para cobrança coerciva dos tributos de contribuições e de quotizações. ou a celebração de acordo de pagamento faseado desse mesmo tributo, no âmbito da execução fiscal, não constitui causa de exclusão da ilicitude ou da exclusão da punibilidade da conduta da dedução das quotizações nos salários e da não entrega à segurança social no prazo legal, nem é causa impeditiva do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social. contra a entidade empregadora e contra os respetivos gerentes.
f) Se o legislador quisesse que a retenção pelos empregadores das quotizações nos salários dos seus trabalhadores e a não entrega das mesmas à segurança social só fossem puníveis se, antes da notificação efetuada nos termos do disposto na alínea b), do n.º 4, do artigo 105.º do RGIT, o devedor não tivesse celebrado acordo de pagamento da dívida em prestações em processo de execução fiscal; ou se o legislador quisesse que os acordos e pagamento de dívida em processo ele execução fiscal determinassem a impossibilidade de instauração ou prosseguimento do procedimento criminal em abuso de confiança fiscal relativamente à conduta do abuso de confiança à segurança social pela retenção e não entrega mensal à segurança social dos valores das quotizações retidos nos salários dos trabalhadores, tê-lo-ia dito na letra da lei - e não o diz.
g) A celebração de acordo de pagamento en prestações de dívida à segurança social, nos termos do CPPT, não impede a instauração de procedimento criminal por abuso [de] confiança à segurança social, nem desobriga a Instituição de Segurança Social de notificar o devedor para proceder ao pagamento integral das quotizações, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 107.º e 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, nem obsta ao prosseguimento do procedimento criminal pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social, nem tão pouco faz desaparecer ou impede a prática do ilícito criminal.
h) Face à lei vigente, (artigo 107.º e 105.º. nº 4. alínea b). do RGIT) só o pagamento integral da dívida de quotizações, no prazo de 30 dias a contar da notificação efetuada para o efeito, e não já o pagamento faseado, impede a reação processual criminal por crime de abuso de confiança à segurança social.
i) As causa de extinção da dívida à segurança social são as taxativamente previstas no artigo 188.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social; e a situação contributiva efetivamente regularizada pelo pagamento é, apenas e tão só, a prevista no n.º 1 do artigo 208.º do referido código.
j) Nos termos do disposto na alínea b), do n.º 4, ao artigo 105.º do RGIT, só o pagamento integral da dívida de quotizações. acrescida e juros e da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito. constitui condição objetiva que obsta à punibilidade.
k) A celebração de acordo de pagamento da dívida e contribuições e quotizações, designadamente o efetuado processo de execução fiscal, não constitui um facto demonstrativo da não verificação da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, nº 4 alínea b) do RGIT.
1) A responsabilidade tributária é autónoma face à responsabilidade penal tributáric1. e nos termos do disposto no artigo 105.º, nº 4. alínea b), do RGTT, o acionamento desta última está objetivamente condicionada à notificação para pagamento dos créditos tributários (das quotizações retidas e não entregues pelo empregador) pelo que. sendo o crime de abuso de confiança à segurança social um crime omissivo puro - que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida - não é defensável que um acordo de pagamento. ainda que celebrado antes daquela notificação, seja impeditivo da instauração ou do prosseguimento de procedimento criminal por abuso de confiança fiscal do empregador e dos seus gerentes, responsabilidade essa que é autónoma da responsabilidade tributária.
m) Não existe equivalência entre um acordo de pagamento em prestações da dívida de contribuições e de quotizações à segurança social, e o pagamento total e imediato (no prazo de 30 dias a contar da notificação) do valor das quotizações previsto na alínea b), do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, pelo que um acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária (quotizações) e a segurança social, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no artigo 105.º. n.º 4, alínea b), do RGIT.
n) O acordo de pagamento em prestações efetuado no âmbito de execução fiscal em nada contende com a verificação do crime de abuso de confiança à segurança social, com o procedimento criminal e com a punibilidade da conduta do agente, pois o procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social visa sancionar os comportamentos criminais, traduzidos na retenção e não entrega à segurança social das quotizações no prazo legal. com o atinente desvalor face ao bem jurídico que a incriminação visa tutelar, e não visa a cobrança do tributo (quotizações).
o) Nesta sequência, conforme foi até decidido numa situação semelhante à dos presentes autos (cfr. Douto Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 1490/17.8T9FNC.L1. do Tribunal da Relação de Lisboa. 3ª Secção, em que foi Relatora a Exmª Srª Juiz Desembargador M. Elisa Marques), relativamente a um processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, do Juízo de Instrução Criminal do Funchal, em que o ora Recorrente Instituto de Segurança Social da Madeira. IP-RAM, interpôs recurso de uma decisão instrutória e em que foi julgado procedente o recuso e revogou-se a decisão recorrida pois entendeu-se "por adquirido ser a responsabilidade tributária autónoma face à responsabilidade penal tributária."
p) E de acordo com o mencionado Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foi julgado procedente o recurso interposto pelo Instituto de Segurança Social da Madeira. IP-RAM, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que "retire as devidas consequências legais das notificações efectuadas para efeitos do disposto no art. 105.º, alínea b) do RGIT.”
q) Nos termos atrás expostos. deverá julgar-se totalmente procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que retire as devidas consequências legais das notificações efetuadas para efeitos do disposto no artigo 105.º. 11.º 4, alínea b), do RGIT, pronunciando-se, assim os arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
r) Neste contexto. face aos elementos constantes dos autos. a douta decisão instrutória proferida pelo Digníssimo Tribunal a quo, deverá ser revogada integralmente, o que aqui se requer, para os devidos efeitos.»
2. Os recorridos ..., ... e ..., em peças autónomas, apresentaram resposta.
2.1. O Ministério Público pugnou pela revogação da decisão recorrida, dizendo em conclusão:
«1. O acordo de pagamento prestacional das quantias em dívida, ainda que com a constituição de garantia, não tem a capacidade de, só por si, impedir o prosseguimento do processo crime, nomeadamente, com a notificação prevista no art. 105°, n.º 4. al. b) RGlT.
2. Apenas o cumprimento da obrigação nos termos das als. a) e b) do n. 4 do art l05° RGIT, toma não punível o crime que se consumou no dia seguinte ao prazo legal para o cumprimento da mesma.
3. Ou seja, não obstante o art. 177°-A CPPT estatuir que a celebração de acordo de pagamento prestacional das quantias em dívida com a constituição de garantia equivalerá a considerar-se que o contribuinte tem a situação tributária regularizada, tal não poderá entender-se como válido além do âmbito dessa própria Lei e, muito menos, com consequência ao nível da acção penal pela prática deste tipo de crime.
4. Acresce que, no caso concreto, a notificação prevista no art. 105º. n.º 4, al. b) RGIT foi legalmente (arts. 70° RGIT e 41° do CPPT) efectuada ao sujeito passivo (e só a este tinha de ser efectuada - art. 7°, n.º 4 RGIT) antes da celebração do acordo de pagamento prestacional das quantias em dívida.
5. Na verdade, o acordo de pagamento prestacional foi celebrado (em 13 de Junho de 2017) após a notificação prevista no art. 105°, n.º 4, al. b) RGIT e legalmente, como se referiu (em 17-06-2016, 20-06-2016 e 16-08-2016), pelo que o referido raciocínio não se aplica no caso concreto.
6. Embora o argumento dos princípios da boa-fé e da confiança nos pareça ser um raciocínio defensável do ponto de vista dos Princípios (embora se entenda não ter acolhimento legal) quando a notificação prevista no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT seja efectuada após a celebração do acordo de pagamento prestacional, nomeadamente, o da boa-fé do Estado, não é o caso dos autos.
Em consonância com as considerações acima expendidas, o Ministério Público impetra que esse Venerando Tribunal revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que pronuncie os arguidos ... e ... pela prática, como autores materiais e na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada previsto e punido pelo artigo 107.º. n.º 1 e 2, do RGIT, conjugado com o artigo 105.º, n.º 1, e n.º 4, e artigo 6.º, do mesmo diploma legal e artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal e a arguida ..., pela prática na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada previsto e punido pelo artigo 107.º. n.º 1 e 2, do RGIT, conjugado com o artigo 105.º, n.º 1, e n.º 4, e artigo 7.º, do mesmo diploma legal e artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal.»
2.2.  Diferente foi a posição da recorrida ..., que defendeu a improcedência do recurso, com o seguinte remate conclusivo:
«- A douta sentença colocada em crise pelo Recorrente, mostra-se devidamente fundamentada;
- A Recorrida está de acordo com a decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo, entendendo inexistir qualquer, erro, vício, contradição ou nulidade.
Termos em que, pelo que doutamente vier a ser suprido, deve ser negado provimento ao recurso interposto, confirmando-se integralmente a doutra decisão recorrida, ou caso assim não seja o douto entendimento do Tribunal, em alternativa, ao abrigo do disposto no art. 281.º e no n.º 2 do art. 307.º, ambos do C.P.Penal, e obtida a concordância do Ministério Público, deverá ser determinada a suspensão provisória do processo, quanto à aqui Recorrida, por determinado período, mediante a aplicação de injunção ou regra de conduta.»
2.3. Por último, no mesmo sentido, disse o recorrido ..., também em conclusão:
«1 – Nos termos do artigo 177-A nº 1 do CPPT, considera-se que o contribuinte tem a situação tributária regularizada quando esteja autorizado o pagamento da dívida em prestações, desde que exista garantia constituída nos termos legais.
2 – No caso dos autos, de acordo com a informação da Segurança Social a sociedade arguida tinha um plano de pagamento em prestações aprovado por despacho de 13 de Junho de 2017, e portanto quando é notificado para os efeitos do art. 105º nº 4, alínea b) do RGIT, já esse plano estava aprovado.
3 – E assim terá de considerar-se que para efeitos do referido artigo 177-A nº 1 alínea b) do CPPT a sociedade arguida tinha a sua situação contributiva regularizada, inexistindo fundamento legal para que a segurança social notificasse os arguidos para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das quantias de imposto em dívida, da coima porventura aplicável e dos eventuais juros de mora devidos.
4 – São pressupostos da não punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a obrigação da Autoridade Tributária notificar o contribuinte em mora e para este a condição de pagamento do montante em falta como condição do não acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança.
5 – Ora a sociedade arguida, à data da aludida notificação, já não estava em mora, por ter visto aprovado, em Junho de 2017, um acordo de pagamento em prestações do tributo declarado.
6 – A notificação da Autoridade Tributária feita ao arguido, nos termos da alínea b) do nº 4, do artigo 105º do RGIT para proceder ao pagamento do tributo declarado de demais acréscimos, por ser omissa ou desconsiderar o acordo prestacional não cumpre a obrigação que lhe está imposta de notificar o contribuinte para regularizar a sua situação tributária, que, à data da notificação, era já inferior à declarada.
7 – Não pode o recorrido aceitar o facto de, mesmo tendo efectuado o acordo de pagamento em prestações nos termos e para os efeitos do artigo 196.º do CPPT deferido pela Administração Tributária por despacho de 13 de Junho de 2017 não seja o mesmo considerado para efeitos de classificação da dívida como “regularizada” e, bem assim por, à data da sua notificação (23-11-2017 e 04-01-2018), nos termos e para os efeitos da alínea b) do número 4 do artigo 105.º do RGIT – enquanto derradeira oportunidade para evitar a punição da conduta omissiva – o plano já estar aprovado, pelo que não havendo mora e estando a dívida regularizada para os efeitos previstos no art. 177-A n.º 1, alínea b) do CPPT, não poderá considerar-se quaisquer efeitos à notificação efetuada para os efeitos previstos no art. 105º nº 4, alínea b) do RGIT.
8 – Do que resulta que não se verifica a condição de punibilidade enunciada na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
9 – Pelo que a decisão instrutória proferida se afigura, em face da falta de indícios na fase de inquérito da prática daqueles crimes, isenta de qualquer censura quando não pronunciou os arguidos/recorridos pela sua prática.
Termos em que deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo Instituto da Segurança Social, mantendo-se, na íntegra a decisão recorrida, no sentido de não pronunciar os arguidos pela prática, como autores materiais e na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, p. e p. pelo art. 107º nº 1 e 2 do RGIT.»
3. Subido o recurso a esta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto tomou posição pela improcedência do recurso, acompanhado a posição da resposta apresentada pelo Ministério Público junto da instância recorrida.
4. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.
5. Colhidos os vistos, procedeu-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A. Objeto do recurso e questões a decidir
6. Mostra-se sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a delimitação do objeto do recurso decorre do enunciado das conclusões formuladas na motivação do recurso, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24 de março de 1999, in CJ [STJ], ano VII, T1, pág. 247, entre muitos).
As conclusões da motivação do recorrente colocam em questão a verificação de erro de julgamento quanto à aplicação do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
B. Do despacho recorrido
7. A decisão recorrida assenta na seguinte fundamentação:
«Foi imputada aos arguidos ... e ... a prática, como autores materiais e na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º1 e 2, do RGIT, conjugado com os artigo 105.º, n.º1, e n.º 4, e art.º 6.º, do mesmo diploma legal e artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal e à arguida ..., a prática na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1 e 2, do RGIT, conjugado com os artigo 105.º, n.º 1, e n.º 4, e art.º 7.º, do mesmo diploma legal e artigo 30.º, n.º1, do Código Penal.
De acordo com o referido artigo 107.º, n.º 1, “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º 1 e 5 do artigo 105.º”.
Por sua vez o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), estabelece que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Face ao teor do requerimento de abertura de instrução e ao alegado em sede de instrução há que analisar duas questões diversas, designadamente, os efeitos da regularização da situação contributiva nos moldes em que foi efectuada pela sociedade arguida e na eventualidade de se concluir pela verificação do crime, do preenchimento dos pressupostos de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.
Quanto à primeira questão, consta da acusação que no dia 23-11-2017 a arguida ... e a arguida ... foram notificados nos termos do art.º 105.º, n.º4, al. b), do RGIT para no prazo de trinta dias a contar da notificação procederem ao pagamento, do valor referente às quotizações em divida, acrescidas dos juros de mora e, dessa forma beneficiarem da extinção do procedimento criminal, e que o arguido ... foi notificado nos mesmos termos do dia 04-01-2018 e de igual modo não procedeu ao pagamento das referidas quantias.
Até esta notificação, e por força do mencionado art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, não obstante o crime se ter consumado, a respectiva conduta não era punível. Na verdade, embora se refira na acusação que a referida notificação se destinava a que os arguidos beneficiarem da extinção do procedimento criminal, é hoje pacifico na jurisprudência que a efectivação da mencionada notificação e o não pagamento nos termos da mesma constitui condição objectiva de punibilidade.
A notificação em causa pressupunha que a situação da sociedade arguida não estava regularizada, pois só essa circunstância a legitimava.
Ora, nos termos do art. 177.º-A, n.º 1, alínea b) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, considera-se que o contribuinte tem a situação tributária regularizada quanto esteja autorizado a pagamento da dívida em prestações, desde que exista garantia constituída, nos termos legais.
No caso dos autos, e de acordo com a informação junta pelo IPSS a sociedade arguida efectuou e viu autorizado por despacho de 13 de Junho de 2017 (cfr. fls. 1085) o pagamento da dívida em prestações, e portanto, antes da mencionada notificação e no âmbito do mesmo e conforme resulta dos documentos constantes dos autos e prestou garantia real (cfr. fls. 1085 e 1138 e ss.).
Deste modo, e para efeitos do mencionado artigo a sociedade arguida tinha a sua situação contributiva regularizada, inexistindo fundamento legal para que a Segurança Social notificasse os arguidos para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das quantias de imposto em dívida, da coima porventura aplicável e dos juros de mora devidos.
Os princípios da boa-fé e da confiança que vinculam também – e principalmente – o Estado impunham que a notificação em causa fosse efectuada aquando da prática dos factos. Não o sendo, e aceitando a regularização da dívida nos termos descritos, mesmo com risco de prescrição dos factos, não podiam os arguidos ter sido notificados e responsabilizados pela omissão em tempo daquela.
Ora, a consequência lógica do que se expôs é a de que não podem ser retiradas quaisquer consequências legais da notificação efectuada para efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT e que, como tal os factos em causa nestes autos não são puníveis.
Assim sendo, considero que os indícios recolhidos em sede de inquérito e de instrução não são suficientes para que os arguidos sejam submetidos a julgamento pela prática do crime de que vêm acusados.»
C. Apreciação
8. O requerimento de abertura de instrução colocou, como se diz no segmento da decisão recorrida que se vem de transcrever, duas questões, suscitadas numa relação de subsidiariedade, tendo o tribunal recorrido dado provimento à primeira, deduzida a título principal, relativa à norma da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. A segunda, relativa ao preenchimento dos pressupostos de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, foi implicitamente tida por prejudicada pelo afastamento da condição de punibilidade da conduta.
No essencial, a decisão recorrida suporta-se na conjugação dessa norma com o regime do artigo 177.º-A, n.º 1, alínea b) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPP), entendendo o julgador que, tenho sido concedida autorização para o pagamento das prestações contributivas aludidas na acusação, a consequência «lógica» a extrair seria a de que não haveria lugar à notificação prescrita pelo RGIT, não sendo os factos em causa nestes autos puníveis. Mas sem razão, como se passa a demonstrar.
9. Como referido no despacho recorrido, encontra-se documentado a fls. 1085 e 1136 e segs. que a sociedade arguida requereu e foi autorizado por despacho do Instituto recorrente de 13 de junho de 2017, a pagar em prestações a dívida contributiva. Porém, ao contrário do entendido pelo tribunal recorrido, essa autorização, ou mesmo os pagamentos parcelares efetuados no seu âmbito, não preenchem a norma contida na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, de modo a afastar a punibilidade da conduta.
Introduzida pela Lei do Orçamento do Estado de 2006, aprovado pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, decorre da referida alínea que os factos tipificados no n.º 1 do artigo 107.º do RGIT só são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Trata-se da expressão de razões de oportunidade da perseguição criminal, assentes fundamentalmente na necessidade de racionalidade e economia de meios na atuação do sistema judicial, incrementando a sua efetividade e eficiência. Assim decorre do relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, onde se indica o propósito legislativo de que «não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se a 'proliferação' de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto».
A medida legislativa comporta, pois, todas as marcas caracterizadoras da figura jurídica da condição objetiva da punibilidade, consubstanciando o resultado da ponderação de finalidades extrapenais, as quais, por opção do legislador democrático, assumem prioridade em relação à necessidade da pena. Essa foi a conclusão afirmada pelo STJ no Acórdão Uniformizador n.º 6/2008 (DR n.º 94/2008, 1.ª série, de 15 de maio de 2008, pp. 2672-2680), em análise da questão no quadro do problema de saber se a medida importou uma descriminalização da conduta, que se mantém inteiramente válida e deve ser renovada no quadro do problema em apreço.
Atenta a teleologia do pressuposto de punibilidade, enquanto última oportunidade do responsável tributário para evitar a punição criminal, compreende-se que o mecanismo da notificação não pode ser desligado do modo fixado pelo legislador para o funcionamento desse mecanismo, pois, mesmo relevando outros interesses legítimos, o legislador não abdicou da tutela do interesse público na solvabilidade da segurança social, por via da reposição do desequilíbrio criado no financiamento do pilar contributivo do sistema público. Trata-se de uma notificação adicional para pagamento integral num prazo certo e relativamente curto (30 dias), cuja racionalidade assenta na completa eliminação das consequências patrimoniais acarretadas pela conduta antijurídica, o que apenas sucede quando todas as quotizações em dívidas - retidas aos trabalhadores - sejam pagas, incluindo os respetivos juros moratórios, de modo a repor de imediato o desequilibro financeiro gerado. E não apenas de tais prestações: exige-se também o pagamento voluntário da coima aplicável, o que aqui correspondente à infração contraordenacional pela ultrapassagem do prazo legal de entrega das quotizações retidas (artigo 42.º, n.º 3 do Código Contributivo).
Assim, o pagamento parcial não satisfaz, como é bom de ver, a exigência legal de pagamento integral para operar a não punição da conduta criminal, permanecendo em dívida um remanescente, o qual deverá ser atendido no ato de liquidação a efetuar pela entidade pública credora quando solicitada a fazê-lo por qualquer dos arguidos notificados. Do mesmo jeito, a mera concessão de autorização de pagamento a prestações não opera a extinção da obrigação contributiva, nem é idónea a satisfazer a exigência de pagamento da coima, insuscetível de pagamentos parcelares.  
Esse tem sido o entendido sufragado pela jurisprudência dos tribunais superiores, de modo constante e consolidado, a partir do reconhecimento da autonomia entre a responsabilidade tributária e a responsabilidade criminal (assim, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, 2.ª ed., 2018, pp. 118-119), de que são exemplo os Acórdãos desta Relação de 5 de abril de 2016 (P.º 1262/12.6IDLSB.L1-5), de 17 de abril de 2018 (P.º 777/16.1IDLSB.L1-5) e de 18 de janeiro de 2022 (P.º 574/18.0IDLSB.L1-5); Acórdão da Relação de Guimarães de 5 de junho de 2017 (P.º 480/15.0T9PTL.G1);  Acórdãos da Relação do Porto de 14 de janeiro de 2015 (P.º 2689/13.1IDPRT.P1), de  3 de fevereiro de 2016 (P.º 2607/13.7IDPRT.P1) e de 17 de fevereiro de 2021 (P.º 35/19.0IDPRT.P1); Acórdãos da Relação de Coimbra de 24 de abril de 2015 (P.º 122/09.2IDVIS.C1); e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19 de dezembro de 2013 (P.º 388/11.8IDFAR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
10. A decisão recorrida parece assentar o seu juízo na noção de regularização da situação tributária, prevista no artigo 177.º-B do CPPT, ao qual atribui implicitamente o sentido de extinguir a dívida à segurança social e operar a preenchimento da condição objetiva de punibilidade. O raciocínio é enunciado em termos pouco claros, mas a afirmação de uma relação lógica entre o conteúdo daquele preceito e o disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT parece sinalizar que se entende existir uma relação de equivalência ou até de implicação na conjugação das duas das normas, convocando-se também circunstâncias específicas dos presentes autos, como a oportunidade da notificação.
Não se vê, porém, que o argumento proceda.
Em primeiro lugar, e como nota o recorrente, o regime do artigo 177.º-B do CPPT não é aqui aplicável. As prestações contributivas devidas à segurança social no quadro do sistema previdencial regulam-se pelo Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (doravante Código Contributivo), aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, o qual contém normas específicas sobre a autorização para o pagamento fracionado das quantias em dívida.
É certo, porém, que existe uma grande proximidade entre esse preceito e o artigo 177.º-B do CPPT, ambos acolhendo um conceito de regularização, no caso do Código Contributivo através do seu artigo 208.º, com a designação de «situação contributiva regularizada», integrada nomeadamente pelas situações de dívida cujo pagamento em prestações tenha sido autorizado, subsistindo enquanto estiverem cumpridas as condições dessa autorização [alínea a) do n.º 2 do preceito].
Ocorre, no entanto, que o âmbito de aplicação do conceito contributivo é expressamente circunscrito ao estipulado no específico instrumento legal em que se integra, como avulta, com nitidez, do segmento inicial da norma do n.º 1 do preceito - «Para efeitos do presente Código, considera-se situação contributiva regularizada...». O que afasta a presença de uma relação lógica ou de necessária conjugação dos preceitos de outros diplomas, mormente do RGIT, pressuposta pelo tribunal recorrido. A formulação legal transporta justamente o sentido oposto.
Também do ponto de vista teleológico, o instituto da regularização da situação contributiva não releva da definição dos pressupostos da responsabilidade penal, pois tem propósito distintos. Fundamentalmente, os efeitos visados pelo artigo 208.º do Código Contributivo são os de afastar as limitações impostas no artigo 213.º do mesmo diploma aos contribuintes relapsos, onde se acolhe um conjunto de restrições da liberdade de atividade económica de quem não tenha a situação contributiva regularizada, cujo alcance atinge o relacionamento  contratual com o Estado, outros entes públicos ou instituições particulares de segurança social comparticipadas pelo orçamento da segurança social, a exploração de serviços públicos, o benefício de apoios de fundos comunitários ou subsídios públicos, assim como a execução de várias categorias de atos societários. E, bem assim, agora nos termos do artigo 214.º, efeitos reputacionais, por via da divulgação de listas de contribuintes cuja situação contributiva não se encontre regularizada. Esses preceitos e os conceitos simétricos neles instituídos – regularização versus não regularização –, atuam em tandem, com efeitos contrapostos, não podendo ser lidos de modo desgarrado ou atomístico, fora do ambiente normativo em que são chamados a funcionar.
Sendo esse o escopo e o alcance do instituto, a concessão de autorização do pagamento da dívida em prestações, com constituição de garantia real, não pode ser interpretada como operando a extinção da dívida contributiva, e muito menos como contendo habilitação legal a uma dispensa da notificação prevista no RGIT, para efeitos da verificação do pressuposto de punibilidade, como se entendeu na decisão recorrida. A tal se opõe também, como refere o recorrente, o disposto no artigo 188.º do Código Contributivo, o qual contém o elenco taxativo das causas de extinção da dívida contributiva: pagamento; dação em pagamento; compensação de créditos; retenção de valores por entidades públicas, conversão em participações sociais; alienação de créditos. Diferentemente, o pagamento em prestações é previsto no preceito seguinte e qualificado como «diferimento do pagamento da dívida à segurança social», o que afasta uma pretérita equivalência normativa ao pagamento ou a outra forma de extinção da dívida contributiva.
Ademais, a noção de situação contributiva regularizada abarca outras hipóteses, para além da autorização para o pagamento a prestações, mormente circunstâncias de índole contenciosa, cujo sentido também se opõe à ideia de que o reconhecimento desse status legal equivale à extinção da dívida. É manifestamente o caso, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 208.º do Código Contributivo, da apresentação de reclamação, recurso, oposição ou impugnação judicial pelo contribuinte, o que transporta o sentido de manutenção do litígio, e não a sua erradicação, projetada pelo legislador com a introdução da condição objetiva de punibilidade.
 Aliás, se bastasse a mera dedução de qualquer desses meios processuais, e a decorrente aquisição do estado de situação contributiva regularizada, para assegurar a impunidade da conduta, estaria aberta uma avenida muito larga para obstar à perseguição criminal, inviabilizando ou, pelo menos, reduzindo substancialmente a tutela do bem jurídico protegido pelo artigo 107.º do RGIT. Note-se que o que está em causa no crime de abuso de confiança contra a segurança social não é a mora, mas sim a conduta daquele que, perante a segurança social, assume uma posição fiduciária quanto às quotizações retidas aos trabalhadores e omite culposamente o cumprimento dos seus deveres de entrega, interesse público de primeira grandeza, pois afeta um dos elementos nucleares do Estado de direito social, assegurado pela Lei Fundamental (artigo 63.º da Constituição).
Assim, independentemente de ter sido ou não autorizado o pagamento da dívida em prestações, persiste aplicável o comando normativo constante da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, com a consequência da punibilidade da conduta criminal uma vez decorrido o prazo legal estatuído na norma sem ter sido efetuado o pagamento integral das quotizações em dívida, acrescidas dos juros respetivos, assim como do valor da coima aplicável.
11. À interpretação normativa que se vem de acolher, afastando o relevo do preenchimento do conceito de situação contributiva regularizada, para efeitos da condição objetiva de punibilidade estatuída na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, não se opõe o princípio da boa-fé, invocado no despacho recorrido, nem os outros princípios constitucionais retores da atuação do Estado-Administração, consagrados no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição. Isto porque, quer os requisitos para a autorização para o pagamento a prestações, quer a notificação para pagamento integral, integram normas imperativas de fonte legal, que a administração pública está obrigada a respeitar, por força do princípio da legalidade, e a fazê-lo com pleno respeito pelas injunções do princípio da igualdade.
Na verdade, nos termos do artigo 190.º do Código Contributivo, encontram-se os funcionários e agentes da segurança social obrigados a tratar igualmente todos os sujeitos legitimados normativamente a requerer o pagamento em prestações, devendo autorizar o pedido quando reunidos os requisitos legais, mesmo que o contribuinte seja passível de responsabilidade criminal. Outra solução normativa poderia mesmo suscitar dúvidas de legitimidade constitucional, na conjugação do princípio da igualdade com os princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade, todos com sede constitucional (artigos 13.º, 32.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 da Constituição), em atenção aos efeitos restritivos que a condição de não regularização da situação tributária comporta.
O despacho recorrido invoca também o princípio da confiança, sem explicitar em que consiste a pretendida infração do mesmo. Não merece contestação que, enquanto princípio estrutural do Estado de Direito, ínsito no artigo 2.º da Constituição, o princípio da tutela da confiança legítima vincula todos os poderes públicos, incluindo o Estado-legislador; mas não se vê em que medida pode o contribuinte autorizado a pagar em prestações uma dívida contributiva, no âmbito e com os limites do sistema normativo do Código Contributivo, reclamar a proteção de uma posição de confiança objetivamente legitimada –  só essa é merecedora de tutela -, quanto ao concomitante afastamento da punibilidade criminal.
 Como se referiu, a norma alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é clara na estipulação de que a condições objetiva de punibilidade exige o pagamento integral, não só das contribuições em dívida, como também dos juros e coimas, inexistido uma qualquer alteração legislativa ou mutação do contexto normativo idóneas a fundar racionalmente uma convicção do sujeito do contrário. Nem mesmo no plano da inconstância de atuação do Instituto recorrente, ou da alteração inesperada de orientação jurisprudencial consolidada na matéria, que não existem, pode o entendimento acolhido no despacho recorrido encontrar qualquer amparo.
Também não merece adesão a conclusão do tribunal recorrido de que se impunha que a notificação em causa fosse efetuada aquando da prática dos factos, o que remete para o momento da consumação do crime de abuso de confiança contra a segurança social - a ultrapassagem do termo final para a entrega das contribuições devidas, pois trata-se de crime omissivo puro -, pois não existe norma legal que caucione esse entendimento, sendo certo que as condições objetivas de punibilidade se situam, por regra, à margem da conduta ilícita, alheias ao local e tempo do facto. Nem um qualquer retardamento da notificação poderia ter como consequência o incumprimento do comando legal e fundar a ficção de um pagamento que não existiu. Haveria tão somente que sanar o vício e determinar a notificação prescrita na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, extraindo as devidas consequências do pagamento ou não pagamento no prazo legal de 30 dias.
Não colhe igualmente o argumento avançado pelo recorrido ..., no sentido que a dívida se encontra reduzida pelo pagamento de algumas prestações. Como se disse, os montantes pagos anteriormente à notificação para pagamento integral serão necessariamente contabilizados (deduzidos) no momento da liquidação do montante total a pagar, a requerer pelo arguido junto da entidade credora. Pedido que nenhum dos arguidos formulou.
Em suma, o despacho de não pronúncia enferma de erro de julgamento, pois mostra-se in casu assegurado o pressuposto de punibilidade estatuído na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
12. Procede, assim, o recurso, devendo a decisão instrutória recorrida ser revogada e determinada a sua substituição por outra que retire as devidas consequências da ultrapassagem do prazo estabelecido na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, em conformidade com o decidido no presente acórdão, sem prejuízo da apreciação da outra questão identificada no despacho (preenchimento dos pressupostos de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo), cuja apreciação foi tida implicitamente por prejudicada.

III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação em:
Julgar procedente o recurso, revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por decisão instrutória que retire as devidas consequências da ultrapassagem do prazo estabelecido na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, em conformidade com o decidido no presente acórdão, sem prejuízo da apreciação da outra questão identificada no despacho - preenchimento dos pressupostos de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo -, cuja apreciação foi tida por prejudicada.
Sem custas.
Notifique.

Texto elaborado em computador e revisto pelo relator (art.º 94.º, n.º 2 do CPP).          Lisboa, 26 de abril de 2022
Fernando Ventura
Maria José Machado