PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
PRESTAÇÃO ESPONTÂNEA DE CAUÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
Sumário

I - Dada a razão de ser da concessão do direito de retenção ao credor/retentor, compreende-se que esse direito real de garantia cesse ou se considere excluído quando o devedor preste caução suficiente nos termos previstos na alínea d) do artigo 756º do Código Civil, já que, uma vez caucionado o crédito, aquele passa a possuir uma garantia de cumprimento, razão pela qual, nessas circunstâncias, a retenção da coisa deixa de ser legítima.
II - Daí que a prestação de caução nos referidos moldes constituía não só um pressuposto negativo do direito de retenção, como também uma causa de extinção deste direito.
III - Na prestação espontânea de caução, se o requerido impugnar o valor e/ou a idoneidade da caução, caberá ao juiz decidir sobre tais matérias, após a realização das diligências probatórias necessárias.
IV - Deste modo, ainda que o juiz considere que a garantia oferecida e que o valor indicado pelo requerente é insuficiente, tal não dá lugar ao indeferimento do pedido de prestação de caução mas antes à prolação de decisão a fixar quer o valor a caucionar, quer o modo de o prestar, permitindo, assim, àquele reforçar a garantia oferecida com o valor que seja entendido pelo tribunal.
V - Somente após a satisfação, ou não, dessa determinação jurisdicional fará sentido julgar ou não prestada a caução.
VI - A nulidade de que a decisão padeça torna-se irrelevante nas situações em que esse vício formal não constitua o único fundamento da apelação e esta venha a ser julgada em sentido favorável ao recorrente que o arguiu.

Texto Integral

Processo nº 5920/19.6T8PRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo Central Cível, Juiz 4
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

AA e BB, por apenso à ação declarativa com processo comum que movem contra a sociedade “E..., Ldª.”, vieram deduzir incidente de prestação (espontânea) de caução de molde a, por essa via, ser declarado cessado, para os efeitos do disposto no art.º 756º, alínea d) do Código Civil, o direito de retenção sobre o imóvel que constitui objeto mediato da relação arrendatícia que vigora entre as partes e que a demandada invocou como garantia da satisfação do seu direito creditório por benfeitorias que, na qualidade de arrendatária, alegadamente realizou no mesmo.
Peticionam, por isso, que sejam admitidos a prestar caução, no montante de €223.383,37 (correspondente ao valor das alegadas benfeitorias [€ 199.449,44], acrescido do montante de € 23.933,93 a título de juros moratórios calculados à taxa legal de 4%, esperados para um prazo estimado de três anos) e na modalidade de hipoteca voluntária a constituir a favor da requerida e incidente sobre o prédio urbano composto por casa de três andares, águas furtadas e quintal, sito na Rua ..., no Porto, inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ..., do concelho do Porto sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ....
Notificada a requerida deduziu oposição, sustentando, para além do mais, que o valor da pretendida garantia é manifestamente insuficiente para acautelar a totalidade do direito de crédito de que é titular e que beneficia de direito de retenção sobre o identificado imóvel.
Realizou-se prova pericial com vista a apurar o valor do imóvel oferecido em garantia, tendo-se procedido à inquirição das testemunhas arroladas.
Seguidamente foi proferida decisão com o seguinte teor: «(…) sustenta a requerida, em síntese, que a caução oferecida através da hipoteca é inidónea, não só pelo seu valor mas pela existência de hipoteca registada anteriormente, considerando também a inadmissibilidade legal da substituição do direito de retenção que defendem por hipoteca.
Vejamos então os argumentos apresentados, que não foram rebatidos pelos requerentes.
Começaremos por este último.
Sustenta a requerida que os requerentes ao pretenderem a substituição do direito real de retenção (invocado e exercido pela requerida) por hipoteca voluntária, estão seguramente a pretender uma diminuição da garantia de que dispõe a requerida, nomeadamente em sede executiva.
É inquestionável que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que tenha sido registada anteriormente, de harmonia com o preceituado no art. 759.º, n.º 2, do CC. (neste sentido, entre muitos Ac STJ de 20.10.2011 in www.dgsi.pt), portanto a realidade descrita pela requerida é emergente.
Em caso de execução, e ao concurso de credores, a atender-se à hipoteca registada anteriormente, ao valor de mercado do imóvel, à venda forçada do mesmo (- 20% do valor), às despesas inerentes, o valor de mercado do imóvel poderá não ser suficiente para liquidar o crédito reclamado com os legais acréscimos.
Com efeito, os requerentes pretendem prestar caução através de hipoteca sobre coisa imóvel, e lançando mão do presente incidente pretendem excluir “ipso iuris” ao abrigo do disposto no artº 756º do Código Civil a possibilidade de a requerida invocar ou exercer o direito de retenção e posse que reclama na ação.
Significaria também, neste caso, que ao ser substituída o direito de retenção por hipoteca, deixaria a ré de exercer o direito de retenção e o seu alegado crédito reclamado na ação só poderá ser pago depois do crédito da Banco 1....
A ré sustenta que a quantia é insuficiente por considerar que o valor pelo qual se pretende prestar a garantia é desfasado da actualidade (não teve em conta os juros).
Sobre tal problemática já se pronunciou a jurisprudência pátria em diversos arestos, sufragando o entendimento de que o montante da caução que a parte tem a faculdade de prestar para obter o efeito pretendido, deve corresponder ao quantitativo provável do crédito, abrangendo quer a parte líquida quer a parte ilíquida da condenação.
Como é evidente, a consideração dos juros de mora vincendos, justifica-se. Destinando-se a caução a garantir a satisfação do crédito, o valor daquela deverá corresponder ao montante previsível do crédito para que cumpra plenamente a função de garantia. Aliás, em sede de recursos, a lei equipara a caução à hipoteca judicial como garantias do apelado estabelecendo o art. 710º do Código Civil relativamente à hipoteca judicial, que a sentença que condenar o devedor à realização de uma prestação em dinheiro ou outra coisa fungível é título bastante para o registo de hipoteca sobre bens do obrigado mesmo que não haja transitado em julgado e que, se a prestação for ilíquida, pode a hipoteca ser registada pelo quantitativo provável do crédito.
No caso sob apreciação, o montante da caução a prestar em substituição do direito de retenção, deve corresponder ao quantitativo provável do crédito da requerida, abarcando a parte líquida e a parte ilíquida, pois de contrário veria diminuída a sua garantia reconhecida decorrente do invocado direito de retenção sobre o imóvel.
Para o cálculo da parte ilíquida do crédito, ou seja, dos juros de mora vincendos, temos então de ponderar qual o tempo provável de pendência da ação principal desde a sua interposição até ao trânsito em julgado da eventual decisão condenatória, o que se estima num prazo superior a dois anos.
Para o cálculo da idoneidade da garantia também não pode, quando pretendem os requerentes, atender-se ao pedido indemnizatório formulado pelos AA. na ação.
Ocorre assim que o montante máximo assegurado registado pelos requerentes não cobre o quantitativo provável do crédito da Requerida, pois não inclui os juros de mora vincendos nos termos atrás expostos, com o tempo provável de duração da ação de dois anos. Note-se que a decisão dos requerentes de limitar o montante máximo garantido pelo valor de € 223.383,37 sai reforçada na data de 09/02/2021 (doc. de fls. 34v e 35), quando a requerida já tinha deduzido oposição e tinha sido clara quanto à insuficiência de tal valor, por o mesmo não contemplar os juros vincendos e tempo de duração média do processo. Perante tal posição, é evidente para o tribunal que os requerentes não acolhem tal entendimento (a obrigação a garantir corresponde ao valor do crédito de € 199.449,44 + €23.933,93 [juros moratórios estimados para 3 anos, tendo presente que a interpelação para o pagamento ocorre em 31 de dezembro de 2018], quando só em juros moratórios vincendos numa projeção a 2 anos temos uma quantia acrescida de € 39.911,75 sobre o valor reclamado, pelo que nada mais resta do que concluir pela insuficiência da garantia oferecida.
Pelo exposto, julga-se improcedente o incidente deduzido, não admitindo a substituição do direito de retenção invocada pela requerida por caução».
Não se conformando com o assim decidido, vieram os requerentes/caucionantes interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1ª- Dispõe o artigo 607º, nº 4 do C.P.C. que “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
2ª- Ora, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, enumera, tão só e apenas, quais os factos que julgou provados, sendo totalmente omissa quanto aos factos não provados.
3ª- Desde logo, não relevou a matéria de facto alegada no requerimento inicial pelos Recorrentes relativamente ao uso que a Recorrida continua a dar à coisa arrendada e que é susceptível de configurar um exercício abusivo do direito de retenção, através do uso da coisa destinando-a à manutenção da sua actividade comercial, e assim susceptível de originar um contracrédito dos Recorrentes por força do disposto no art.º 1045º do Cód. Civil.
4ª- Matéria de facto relativamente à qual depôs a testemunha CC, cujo depoimento foi registado na aplicação informática Habilus Media Studio, pelo que deveria ter sido dada por provada, ou assim se não entendesse o Tribunal não poderia deixar de a fazer consignar como não provada.
5ª- A omissão por completo do elenco dos factos não provados, consubstancia nulidade, nos termos dos arts. 607º, nº 4, e 615º, nº 1, als. c) e d) do Código de Processo Civil.
6ª- Além disso, a deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art.º 20º da Constituição da República, não podendo, por isso, deixar a decisão omissa de ser declarada nula nos termos do artigo 615º, nº 1 alínea b) do CPC.
7ª- Nulidades da sentença que expressamente se deixam arguidas com todas as demais e legais consequências.
Sem prescindir,
8ª- A decisão recorrida não elucida de forma clara na sua fundamentação as operações de cálculo a que recorre para concluir que o valor de previsão que faz para o cálculo dos juros prováveis é de € 39.911,75, pois não indica a data a que atendeu para o início da contagem dos juros, como nem sequer esclarece qual a taxa de juro a que se baseou.
9ª- O que torna a decisão obscura ao ponto de tornar ininteligível a decisão proferida de insuficiência de garantia por falta de fundamentação concretizada.
10ª- Caberia ao Tribunal recorrido apurar e fundamentar o valor da caução bem como o valor dos juros a caucionar, para assim fixar o valar da garantia a prestar, e porque assim não o fez, também por este motivo essa omissão consubstancia uma nulidade da sentença recorrida, ao abrigo disposto no artigo 615º, nº 1 alínea c) do C.P.C..
Ainda sem prescindir,
11ª- Acresce que da fundamentação da sentença recorrida consta a afirmação de que “…a interpelação para o pagamento ocorre em 31 de Dezembro de 2018…”, sem que da matéria de facto tida por provada resulte demonstrado este facto.
12ª- Ou seja, o Tribunal a quo sustentou a sua decisão num facto que não integra o elenco dos factos Provados. Logo, a factualidade dada como provada na decisão é insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada, ocorrendo por isso erro de julgamento na qualificação da matéria de facto apurada.
13ª- Da análise da decisão não é possível descortinar de forma minimamente segura como é que o Julgador formou a sua convicção para decidir que a interpelação para o pagamento ocorre em 31 de Dezembro de 2021.
14ª- Pelo que, também por este motivo deverá ser declarada a nulidade da decisão recorrida, por contradição entre os fundamentos e a decisão (cfr. art.º 615º, nº 1 alínea c) do CPC).
Por fim, ainda sem prescindir
15ª- Sendo a caução uma garantia especial das obrigações e que visa satisfazer o interesse do credor, a caução a prestar para ser eficaz tem de ser idónea e suficiente, ao abrigo do disposto no artigo 623º e seguintes do Cód. Civil.
16ª- No caso concreto, em face do valor do bem dado em garantia, mesmo que a hipoteca registada a favor da Recorrida fosse de valor superior, o produto obtido por uma eventual venda forçada do imóvel sempre será suficiente para liquidar o crédito reclamado pela Recorrida com os legais acréscimos, pelo que a garantia na modalidade de hipoteca é uma garantia idónea.
17ª- Os Recorrentes nunca anunciaram que, na eventualidade do Tribunal a quo fixar o valor da caução em montante superior ao que consta daquele por si indicado e que deu origem à hipoteca já constituída, não iriam reforçar o valor da hipoteca, nem sequer foram notificados para esse efeito.
18ª- O juiz deve, na mesma decisão, determinar se a caução oferecida é ou não idónea e sendo idónea mas havendo divergência sobre o “quantum” pode e deve fixar o valor da caução.
19ª- Pelo que essa divergência não daria lugar à improcedência do requerimento com fundamento na sua insuficiência, mas antes à prolação de despacho de aperfeiçoamento que permitisse aos requerentes reforçar a garantia prestada com o valor que fosse entendido pelo Tribunal recorrido e, apenas se tal não ocorresse, se justificaria julgar inidónea, por insuficiente a caução prestada.
20ª- Pelo que ao não decidir diferentemente, errou a decisão recorrida, consubstanciando uma errada aplicação da lei, devendo pois a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que declare qual o valor da caução a prestar nos presentes autos e, se for caso disso, convidar os Recorrentes a reforçar o valor da garantia hipotecária constituída, sob pena de improcedência ou rejeição.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
. da nulidade da decisão por omissão dos factos não provados e por contradição/obscuridade;
. saber se no caso de o tribunal entender que o valor de caução oferecido pelo caucionante é insuficiente para garantir o direito de crédito a caucionar, tal facto consubstancia, ou não, fundamento para o indeferimento do pedido de prestação de caução.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Os AA. (ora requerentes) intentaram ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum em 13.03.2019, em que pedem a condenação da ré (ora requerida) a desocupar o arrendado livre de pessoas e bens no mesmo estado de conservação em que deles o recebeu, bem com a indemnização moratória a que alude o artº 1045º nº2 do CPC.
2. A Ré contestou a ação a que se alude em 1º, pedindo a sua improcedência, a procedência da exceção que obsta à concretização imediata do pedido de entrega do imóvel formulado pelos AA. fruto do direito de retenção de que goza a ré e deduziu ainda pedido reconvencional, que foi admitido.
3. Os requerentes ofereceram como caução a hipoteca voluntária a constituir sobre o prédio urbano composto por casa de três andares, águas furtadas e quintal, sito na Rua ..., no Porto, inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ..., no concelho do Porto sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ....
4. A aquisição de tal prédio mostra-se efetuada a favor dos requerentes pela A. 31 de 2006.18.16 (provisória), convertida em definitiva pela Ap. ... de 2006/11/22.
5. Sobre o prédio id. estão constituídas as seguintes hipotecas voluntárias:
- através da Ap. ... de 2006/08/16 com registo provisório – montante máximo assegurado de €337.771,20, sendo sujeito ativo a Banco 1... e sujeito passivo os ora requerentes (conversão em definitiva pela A. 5 de 2006/11/22);
- através da Ap. ... de 2021 /02/09 – montante máximo assegurado de €223.383,00, sendo sujeito ativo a ora requerida e sujeito passivo os ora requerentes.
6. O imóvel a que se alude nos autos tem o valor patrimonial de € 221.886,23 determinado no ano de 2019.
7. O imóvel a que se alude nos autos tem um valor de mercado superior a € 1.164.800,00.
8. A requerida encontra-se na posse do imóvel.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como emerge dos autos principais, no articulado de defesa que aí apresentou, alegou a ré, para além do mais, ter realizado diversas obras no locado o que, segundo advoga, lhe conferirá o direito de retenção sobre o mesmo como garantia da satisfação do direito de crédito resultante dessas benfeitorias.
Ora, dada a razão de ser[2] da concessão desse direito real de garantia ao arrendatário[3], compreende-se que esse direito cesse ou se considere excluído quando o senhorio/devedor preste caução suficiente nos termos previstos na al. d) do art. 756º do Cód. Civil, já que, uma vez caucionado o crédito, o retentor passa a possuir uma garantia de cumprimento pelo que, nessas circunstâncias, a retenção da coisa deixa de ser legítima. Daí que se venha entendendo[4] que a prestação de caução constitui não só um pressuposto negativo do direito de retenção, como também uma causa de extinção deste direito.
Tal foi o desiderato dos requerentes/apelantes que, por apenso à ação declaratória que moveram contra a ré/caucionada[5], lançaram mão do incidente de prestação espontânea de caução, oferecendo como caução hipoteca (voluntária) a constituir sobre o identificado imóvel, indicando como valor a caucionar o montante de €223.383,37 (correspondente ao valor das alegadas benfeitorias [€ 199.449,44], acrescido do montante de € 23.933,93 a título de juros moratórios calculados à taxa legal de 4%, esperados para um prazo estimado de três anos).
O decisor de 1ª instância julgou, no entanto, improcedente o presente incidente com fundamento no facto de o valor indicado não se revelar suficiente para garantir o direito creditório de que a requerida será titular.
Os apelantes rebelam-se contra esse sentido decisório argumentando, fundamentalmente, que “caberia ao tribunal recorrido apurar e fundamentar o valor da caução bem como o valor dos juros prováveis (…), não fazendo sentido que o benefício que os recorrentes pretendem alcançar com a prestação da caução seja inviabilizado pela mera indicação insuficiente desse valor, ainda para mais quando nem sequer convida os requerentes a alterar o valor dessa hipoteca constituída, aumentando-lhe o valor da garantia, proferindo desse modo uma decisão surpresa”.
Que dizer?
Vejamos, antes do mais, em que termos se mostra desenhada na lei adjetiva a tramitação processual da prestação espontânea de caução.
No presente caso, por a prestação de caução se fundar na possibilidade legal de os devedores/requerentes prestarem caução para extinção/exclusão do direito de retenção invocado pela credora/requerida, o processo de caução reveste natureza incidental, sendo processado por apenso a uma causa pendente, embora com aplicação das regras próprias de processo autónomo (nomeadamente art. 913º, para a prestação espontânea de caução), com as especialidades previstas no art. 915º.
Segundo o nº 1 do art. 913º, cabe ao autor/requerente “indicar na petição inicial, além do motivo por que a oferece e do valor a caucionar, o modo por que a quer prestar”. E se o requerido, notificado para impugnar o valor ou a idoneidade da garantia, deduzir oposição, “aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 908º e 909º”.
Assim, de acordo com o nº 1 do art. 908º (adaptado conforme a remissão do nº 3 do art. 913º), perante a oposição do requerido, “o juiz, após realização das diligências probatórias necessárias, decide da procedência do pedido e fixa o valor da caução devida”, e, porque o requerente já teve de indicar o modo como pretende prestar a caução (art. 913º, nº 1, in fine) e o requerido já teve de se pronunciar sobre a idoneidade da garantia (art. 913º, nº 2), o juiz deve, na mesma decisão, determinar se a caução oferecida é ou não idónea. Vale aqui o mesmo raciocínio que LOPES DO REGO[6] formula a propósito da situação em que, na prestação provocada de caução, o caucionante declare logo como pretende prestar a caução, impugnando apenas o valor da caução, e o beneficiário da caução já se tenha pronunciado sobre a idoneidade da garantia (hipótese prevista no nº 3 do art. 908º): nesse caso, segundo esse autor, a lei consente, por «razões de celeridade» e de «concentração dos termos do litígio», que a mesma decisão judicial fixe qual o valor a caucionar (controvertido entre as partes) e, ao mesmo tempo, determine se a caução oferecida é ou não idónea.
Perante tal quadro normativo, a questão que então se coloca é a de saber se as invocadas determinações legais foram observadas na situação sub judicio.
Como se referiu, os requerentes formularam a pretensão de prestar caução por hipoteca a constituir sobre imóvel de que são proprietários, indicando como valor a caucionar a quantia de €223.383,37 (correspondente ao somatório do valor do alegado crédito da requerida [no montante de € 199.449,44] e dos juros moratórios [no montante de € 23.933,93], calculados à taxa legal, referentes a três anos). Foi, assim, dado cumprimento ao disposto no art. 913º, nº 1.
Por sua vez, a requerida tomou posição no sentido de o valor da caução a prestar dever ser superior ao indicado pelos requerentes e de a hipoteca não constituir meio idóneo para garantir o seu crédito dado que “ao pretenderem a substituição do direito real de retenção, por hipoteca voluntária, estão seguramente a pretender uma diminuição da garantia de que dispõe”. Houve, pois, impugnação do valor e da idoneidade da garantia (que abrange o modo de a prestar), nos termos do art. 913º, nºs 2 e 3, 2ª parte.
Deveria, portanto, ter-se seguido a tramitação prevista nos arts. 908º e 909º, com as devidas adaptações, por mor do disposto no art. 913º, nº 3, in fine. Ou seja, deveria, após realização das diligências necessárias (mormente, como foi o caso, através da avaliação do imóvel dado de hipoteca e da inquirição das testemunhas arroladas pelas partes), ter sido proferida pelo tribunal de 1ª instância decisão que apreciasse da procedência do pedido, fixasse o valor da caução devida e julgasse da idoneidade da caução oferecida (pelo modo que os requerentes se dispunham a prestá-la).
Ora, não é uma decisão com estas características aquela que foi proferida nos autos e que se apresenta sob impugnação no presente recurso.
A decisão recorrida é uma decisão de indeferimento do pedido de prestação espontânea de caução, cujo sentido decisório se ancora fundamentalmente no facto de ser insuficiente o valor que os requerentes pretendem prestar como caução.
Salvo o devido respeito, não se nos afigura que seja de acolher essa motivação, não se explicando a razão de um pedido de prestação espontânea de caução ser indeferido apenas porque os requerentes indicaram um valor insuficiente.
O tribunal a quo, ao aludir, a propósito do indeferimento do pedido de prestação de caução, à natureza espontânea do pedido e à indicação pelos requerentes de um valor considerado insuficiente, parece sugerir a ideia de que a procedência do pedido dependeria de os requerentes indicarem o valor de caução julgado adequado. Mas o certo é que não o afirma expressamente: em ponto algum esse tribunal justifica o indeferimento operado com um qualquer efeito cominatório da indicação do valor (improcedência do pedido por efeito da indicação de valor insuficiente) ou com uma qualquer limitação decorrente do princípio do pedido (impossibilidade de fixação de valor superior ao indicado pelos requerentes). E, com efeito, esse condicionamento não teria aqui qualquer razão de ser: como vimos supra, o regime legal não contempla tais efeitos; e não faria sentido que o benefício que os requerentes pretendem alcançar com a prestação de caução fosse inviabilizado pela indicação insuficiente desse valor, numa circunstância em que é de presumir que aqueles terão – tal como expressamente o manifestaram - todo o interesse (para obter a extinção do direito real de garantia que onerará o seu imóvel) em prestar caução pelo valor que for fixado pelo tribunal, mesmo que superior ao por si indicado.
É que, em consonância com o que se dispõe nos arts. 908º e 909º (ex vi do art. 913º, nº 2) e bem assim no nº 3 do art. 623º do Cód. Civil, não se registando acordo entre as partes, incumbirá ao tribunal ajuizar da idoneidade e suficiência da garantia oferecida, sendo que, para esse efeito, a suficiência do valor da caução se afere através do montante do crédito a caucionar, o qual, conforme se vem decidindo[7], deve englobar o capital, juros e despesas (dado que esse juízo tem que ser formulado numa dupla perspetiva: a da sua suficiência pecuniária e a da sua suficiência temporal), enquanto que a idoneidade[8] da caução deve ser avaliada em função das finalidades que lhe estão associadas.
Perante as razões assinaladas, de natureza legal e lógica, e ainda por, no caso concreto, os requerentes terem manifestado a sua disponibilidade para prestar caução pelo valor que for fixado pelo tribunal, não se encontra justificação consistente para o tribunal a quo extrair da indicação espontânea de um valor considerado insuficiente a consequência do indeferimento do pedido de prestação de caução.
Deste modo, como nos parece[9], ainda que o tribunal considerasse que a garantia prestada e que o valor oferecido era insuficiente, tal não daria lugar ao indeferimento do requerimento mas antes à prolação de decisão a fixar quer o valor a caucionar, quer o modo de o prestar, permitindo, assim, aos requerentes reforçar a garantia prestada com o valor que fosse entendido pelo tribunal. É que, como acima se sublinhou – e deflui do regime vertido nos arts. 908º, nºs 1 e 3 e 911º e art. 623º, nº 3 do Cód. Civil -, na ausência de acordo entre as partes, compete ao tribunal (e não ao caucionante) fixar o valor a caucionar e ajuizar da suficiência da garantia oferecida para então notificar os requerentes para prestarem caução pelo modo e valor indicados, sendo que somente após a satisfação, ou não, de tal determinação jurisdicional fará sentido julgar ou não prestada a caução.
Impõe-se, pois, a revogação do ato decisório sob censura, o qual deve ser substituído por decisão que cumpra a função que lhe está assinada pelas disposições legais aplicáveis, isto é, deverá pronunciar-se sobre a procedência (ou não) do pedido de prestação espontânea de caução, sendo que, em caso de resposta afirmativa a essa questão, terá ainda de proceder à fixação do valor da caução e tomar posição sobre a idoneidade (ou não) da garantia oferecida.
Procedem-se, por conseguinte, as conclusões 15ª a 20ª.
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IV.2. Das (alegadas) nulidades da decisão

Nas conclusões de recurso arguem ainda os apelantes a nulidade da decisão, argumentando que a mesma enferma dos vícios formais cominados nas als. b) e c) do nº 1 do art. 615º, já que nela se omitiu a indicação dos factos não provados e por se revelar obscura na medida em que não “elucida na sua fundamentação as operações de cálculo a que se recorreu para concluir pela insuficiência da garantia prestada”.
Ora, independentemente da ocorrência, no caso vertente, dos apontados vícios, haverá que registar que nem sempre o tribunal ad quem tem de se pronunciar sobre nulidade de sentença como condição prévia do conhecimento do objeto do recurso.
Com efeito, como a este propósito sublinha TEIXEIRA DE SOUSA[10], nos casos (como o presente) em que o apelante, além de basear o recurso num dos seus fundamentos específicos, invoque a própria nulidade da decisão recorrida, admite-se que o tribunal de recurso possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, designadamente, quando ao tribunal hierarquicamente superior, malgrado a decisão impugnada se encontre ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada.
Na esteira de tal entendimento e atentas as implicações neste domínio do princípio da limitação dos atos plasmado no art. 130º, não haverá, por conseguinte, que apreciar as suscitadas nulidades (e extrair as inerentes consequências do reconhecimento da sua ocorrência), posto que, perante a procedência do recurso - com a consequente revogação da decisão recorrida -, o seu conhecimento se tornou concretamente irrelevante ou espúrio.
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, em consequência do que, revogando a decisão recorrida, se determina que o juiz de 1ª instância substitua essa decisão por outra que se pronuncie sobre o valor a caucionar e idoneidade da garantia oferecida.
Custas pela parte vendida a final, na proporção em que o for.

Porto, 23.5.2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] A este propósito a doutrina (cfr., por todos, CALVÃO DA SILVA, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, págs. 345 e seguintes e ANA TAVEIRA DA FONSECA, em anotação ao artigo 756º do Cód. Civil, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 1016) vem defendendo que o direito de retenção, mais do que uma função compulsória ou coercitiva, desempenha primordialmente uma função de garantia, destinada - passe o pleonasmo - a garantir que o retentor não ficará obrigado a restituir a coisa retida sem receber a prestação a que tem direito.
[3] Que resulta da concatenação dos arts. 754º, 1046º e 1273º, todos do Cód. Civil.
[4] Cfr., por todos, na doutrina, ANA TAVEIRA DA FONSECA, in Da recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito – em especial na exceção de não cumprimento, no direito de retenção e na compensação, Almedina, 2015, pág. 388; na jurisprudência, acórdão desta Relação de 12.10.2009, CJ, ano XXXIV, tomo 4º, pág. 187.
[5] Na qual formulam pedido de condenação da ré a “(i) desocupar o arrendado [correspondente ao rés-do-chão, incluindo o logradouro e meio piso do 1º andar, com entrada pelo n.º ... a ... da Rua ..., no Porto, inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...] entregando-o aos autores livre de pessoas e bens no mesmo estado de conservação em que deles o recebeu; (ii) a pagar aos autores, até à data da efetiva restituição do locado, a indemnização moratória a que alude o art.º 1045º, nº 2 do Cód. Civil”.
[6] In Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, 2ª edição, Almedina, pág. 178.
[7] Cfr., por todos, acórdão do STJ de 9.07.1998 (processo nº 98A682), acórdão desta Relação de 19.01.2006 (processo nº 0536815) e acórdãos da Relação de Lisboa de 24.11.2004 (processo nº 9543/2003) e de 11.09.2018 (processo nº 2485/17.7T8OER.L1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Quanto a essa idoneidade, sempre que a lei não especifique a espécie que a caução deve revestir, o nº 1 do art. 623º do Cód. Civil determina que a garantia pode ser prestada por meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária.
[9] Em idêntico sentido se pronunciaram, entre outros, o acórdão do STJ de 14.02.1995 (processo nº 026567), os acórdãos da Relação de Évora de 13.03.2008 (processo nº 483/08-2) e de 22.03.2018 (processo nº 2738/13.3TBTVD-B.E1) e o acórdão da Relação de Guimarães de 14.02.2013 (processo nº 133/04.4TBCBT-D.G1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] In Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 471; em análogo sentido milita PAULA COSTA E SILVA (Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no direito interno português, in Revista da Ordem dos Advogados, 56 [1996], pág. 199), embora referindo-se apenas à hipótese de o recorrente poder obter uma decisão de mérito favorável.