CONTRAORDENAÇÃO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Sumário

- O Tribunal da Relação, em matéria contra-ordenacional, apenas conhece de questões de Direito como resulta do artº 75º nº 1 do RGCO;
- Não sendo assacado à decisão recorrida qualquer vício a que alude o artº 410º nº 2 do C.P.P. (vícios que se têm de manifestar no texto da própria decisão) e não se vislumbrando nenhum deles, não é possível ao Tribunal da Relação alterar a matéria de facto
- A mera negação, em sede de recurso, dos factos dados como assentes pelo Tribunal a quo não tem a virtualidade de alterar os factos tidos como provados.
( Sumário elaborado pelo relator )

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I- Relatório
Inconformada com a decisão judicial que negou provimento ao recurso por si interposto da decisão da Câmara Municipal de Sintra de 09.06.2021 que a condenou na coima de 1250 € por violação do disposto no art.º 20.º, n.º 1, 2 e 3, alínea f) e na alínea d) do nº 2 do art.º 52.º do Regulamento do Serviço Público de Recolha e Transporte de Resíduos Urbanos do Município de Sintra apresenta-se perante este Tribunal da Relação REVHA - Reviver Habitação Unipessoal, Lda., NIF 515026042, com sede na Estrada do Mirante, n.º 4, 3º Dtº, 2605-095 Belas, formulando, após motivações as seguintes conclusões:
“A. Sem ter sido possível identificar o alegado infractor, foi possível, pasme-se, concluir que a arguida é responsável pela contra-ordenação p.p. artigo 52.º, n.º 2, alínea d) do Regulamento n.º 15/2015 do Serviço Público de Recolha e Transporte de Resíduos Urbanos do Município de Sintra.
B. O infractor nunca fui identificado, muito menos foi identificada sua relação com arguida, donde que nunca, em momento algum, poderia a infracção pela qual vem arguida condenada ter-lhe sido imputada.
C. As pessoas colectivas são responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos ou agentes ou representantes no exercício das suas funções, tal como dita o n.º 2 do artigo 7.º do RGIMOS.
D. A responsabilização das pessoas colectivas opera, apenas e só, nos casos em que actuem por ela, mas, desde que, o acto seja praticado no exercício das suas funções, devendo ter-se por excluída quando o agente, órgão ou representante actue contra ordens ou instruções do ente colectivo tal como dita o n.º 2 do suprarreferido normativo legal.
E. Mesmo que se admitisse um modelo de imputação funcional, em detrimento do de imputação orgânica expressamente previsto na lei, em que o sentido da expressão "órgão no exercício das funções" abarcasse funcionários ou trabalhadores – o que de forma alguma se concede – e se tivesse demonstrado que o alegado infractor era colaborador da arguida – o que também não foi demonstrado – ainda assim sempre ficaria por demonstrar que este actuara no exercício das suas funções e seguindo as ordens e instruções da arguida.
F. Mesmo que se concebesse que a imputação da responsabilidade contraordenacional a uma pessoa colectiva não dependia da imputação do concreto comportamento a uma (ou mais) pessoas físicas concretamente individualizadas e identificadas – o que de forma alguma se concede – sempre ficaria por demonstrar que o alegado infractor estava funcionalmente ligado à arguida e que actuava no exercício das suas funções e seguindo as ordens e instruções da arguida, o que não foi sequer invocado quando mais demonstrado.
G. A existência de um nexo de imputação do acto ilícito típico a um elemento da sociedade constitui um pressuposto essencial para imputação do contra-ordenacional à pessoa colectiva e depende da "identificação funcional" do líder autor do facto concretamente ocorrido.
Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, bem assim, revogada a decisão recorrida e, em consequência, ser a arguida absolvida.”
Admitido que foi o recurso, o Ministério Público aprestou-se a responder formulando as seguintes conclusões.
“1. O modelo geral de imputação da responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas encontra-se previsto no nº 2 do art. 7º do RGCO, sendo que a doutrina e jurisprudência têm vindo a interpretar tal modelo de forma evolutiva, passando de um modelo de imputação orgânica para um modelo de imputação funcional – cfr. acórdãos TRP de 21/03/2013, 27/06/2012 e de 06/06/2012 e acórdão TRC de 09/11/2011. 
2. Assim, a responsabilidade autónoma da pessoa colectiva não fica dependente da imputação a um indivíduo em concreto, bastando que se saiba que o infractor foi alguém actuando por conta ou em representação da pessoa colectiva, por causa do exercício das suas funções e no interesse da pessoa colectiva. 
3. Ou seja, trata-se da consagração de um modelo de responsabilidade derivada ou por substituição, no qual a responsabilidade da pessoa colectiva depende da imputação a uma pessoa singular, nem que seja a título de “instigação como autoria” por via do seu “domínio da organização” - Vide Teresa Serra in “Contraordenações: responsabilidade de entidades colectivas - Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 9, Fascículo 2, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 189 e Teresa Quintela de Brito, in “A determinação…, cit., pág. 92. 
4. Nestes termos, a regra acolhida foi a da responsabilidade directa da pessoa colectiva, o que não se confunde com responsabilidade objectiva, por efeito da identificação das condutas dos seus órgãos e representantes juridicamente vinculantes, tal como definidos pelo ordenamento civil, como actos próprios do ente colectivo. 
5. Com efeito, a necessidade de garantir a efectivação da responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas, em sintonia com a neutralidade axiológica social da sanção contraordenacional, conduziu à consagração do princípio “societas delinquere potest”, em clara oposição ao princípio “societas delinquere non potest”  – cfr. Acórdão TRG de 25/01/2010, Proc. n.º 459/05.0GAFLG, in www.dgsi.pt. 
6. É exactamente este o entendimento de Figueiredo Dias quando afirma que “uma transferência total da responsabilidade, que verdadeiramente deva caber à pessoa coletiva qua tale, para o nome individual de quem actue como seu órgão ou representante poderia conduzir muitas vezes (…) à completa impunidade, por se tornar impossível a comprovação do nexo causal entre a actuação de uma ou mais pessoas individuais e a agressão do bem jurídico produzida ao nível da pessoa colectiva.” - “Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa”, in Jornadas de Direito Criminal, volume I, CEJ, obra colectiva, Lisboa, 1983, pág. 51. 
7. O próprio art. 7.º do RGCO adopta, ainda que não inequivocamente, um modelo de imputação autónoma, sendo que se este diploma tem como destinatários tanto pessoas singulares, como pessoas colectivas, não faz sentido fazer depender a responsabilidade das segundas da imputação às primeiras. 
8. Neste sentido, Frederico Lacerda da Costa Pinto dá um exemplo concreto: se uma pessoa colectiva tem de entregar uma declaração ou um documento e não o faz, incorre numa contraordenação, mesmo que não se identifique a pessoa singular a quem imputar essa omissão. Outra posição, que exigiria a identificação concreta da pessoa singular responsável, poderia acabar por não permitir a responsabilização da pessoa colectiva quando o dever omitido recai directamente sobre esta e não sobre um sujeito singular determinado - “A tutela dos mercados de valores mobiliários e o regime do ilícito de mera ordenação social”, in Direito dos valores mobiliários, volume I, obra coletiva, Coimbra editora, Coimbra, 1999, págs. 315 a
317. 
9. Esta posição é a que melhor se adequa a um conceito extensivo de autor, tal como consagrado no n.º 1 do art. 16.º do RGCO, que é o único que garante que não ocorram lacunas de punibilidade. 
10. Este conceito extensivo de autoria traduz-se no facto de se considerar suficiente para a imputação da infracção à pessoa colectiva que exista um nexo causal entre a conduta desta e o tipo de ilícito, conceito que é mais adequado à responsabilidade penal e contraordenacional das pessoas colectivas. 
11. Esta solução é, aliás, coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica da conduta, mas sim na violação de uma proibição legal. 
12. Em defesa da autonomia da imputação da responsabilidade contraordenacional às pessoas colectivas, não sendo, por isso, necessária a identificação das pessoas singulares, podem invocar-se diversos acórdãos de tribunais superiores: Acórdãos TRL de 16/03/2011 e de 6/11/2011; Acórdãos do TRP de 13/07/2011 e de 3/10/2001 e Acórdão do TRG de 17/11/2003. 
13. No mesmo sentido, veja-se o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, de
16/09/2013, em cujo Sumário se pode ler: “4. O preceito do número 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional (…) 5. A responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma (…). 7. O artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações adopta a responsabilidade autónoma, (...) pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infracção para que a mesma seja imputável à pessoa colectiva.” 
14. Face ao exposto, forçoso é concluir que não assiste qualquer razão à Recorrente.  
Pelo que, nos termos expostos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a douta sentença que negou provimento ao recurso interposto pela sociedade “Reviver Habitação, Unipessoal, Lda” . 
 V. E.as, contudo, decidindo farão como sempre JUSTIÇA!”
Os autos subiram os autos a este Tribunal tendo o Ministério Público lavrado parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso.
Os autos foram a vistos e à conferência.
*
Considerando as conclusões formuladas pela recorrente a única questão a decidir é a de se saber se a arguida pode ser responsabilizada pela comissão dos factos uma vez que contende não ser a agente do mesmo.
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II - Factualidade assente 
São os seguintes os factos provados e não provados considerados na decisão recorrida ( e respectiva motivação):
A) Factos Provados  
B) Da instrução e discussão da causa e com relevância para a boa decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos: 
1. Os SMAS de Sintra são a entidade gestora responsável pela recolha indiferenciada e selectiva e encaminhamento para destino final adequado dos resíduos urbanos, em toda a área do Município de Sintra. 
2. No dia 26 de Março de 2021, pelas 8 horas, a arguida proceda ao despejo dentro do contentor de indiferenciadas (ID 4907), de resíduos de entulho, madeiras, serradura, plásticos, luvas de trabalho provenientes de obra. 
3. Durante a acção de fiscalização regressou de novo junto ao ID4907, onde tinha efectuado o despejo acima mencionado e colocou outros resíduos com aspecto de serem domésticos. 
4. A arguida é a responsável pelos resíduos dentro do contentor de indiferenciadas ID 4907. 
5. Ao actuar nos termos acima mencionados, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada enquanto detentora dos resíduos.
6. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida. 
7. A conduta da arguida causa impacto no meio ambiente.
8. A arguida não tem averbada condenação pela prática de contraordenações. Mais se provou: 
9. A arguida está inscrita no Siliamb desde 18 de Abril de 2019. 
10. A arguida procedeu à deposição em vazadouro de três toneladas de resíduos em 19 de Março de 2021 e 30 de Março de 2021.
11. A arguida tem 18 pessoas ao seu serviço.
12. A arguida tem um rendimento anual ilíquido de 180.000,00. 
B) Factos não provados:  
Não resultaram por provar quaisquer factos com interesse para a decisão da causa. C) Motivação da decisão de facto  
O Tribunal formou a sua convicção, quando aos factos provados, pela análise crítica e global de toda a prova produzida. Assim, atendeu-se aos documentos juntos aos autos, como seja, o auto de notícia por contraordenação. Atendeu-se ainda aos depoimentos das testemunhas inquiridas, designadamente, os agentes autuantes, GR___, que, com isenção, imparcialidade e conhecimento dos factos relataram ao Tribunal os factos de que teve conhecimento na sequência de acção de fiscalização levada a efeito, como referiu, “em flagrante delito”, na Rua da Alemanhã-Bairro Campinas, Xetaria em Belas, uma pessoa que se recusou a ser identificado, tendo apresentado um comportamento agressivo, e estava numa viatura com o logotipo da empresa REVHA-Reviver Habitação Unipessoal, Lda. motivo pelo qual, não tendo dúvidas sobre quem era o infractor, levantou o respectivo Auto de Participação por Contraordenação que aquela pessoa se recusou a assinar.
 Mais esclareceu que a pessoa que despejou o lixo foi a pessoa que falou com o agente autuante e que entrou no veículo da sociedade arguida. 
Esclareceu também que não é possível armazenar resíduos no local mencionado pelo representante legal da sociedade arguida, relato que aliás foi corroborado pelo depoimento da testemunha _______, que trabalha para a arguida e que conhecimento dos factos, disse que para dentro do armazém só levava pequenas quantidades de resíduos, em sacos. 
A testemunha ________, que também trabalha para a arguida veio introduzir um elemento novo a que ninguém se referiu e que foi a existência de um contentor à porta das instalações da sociedade arguida para onde transportavam os resíduos da obra.
 Ora todos estes depoimentos por contraditórios entre si e por violarem as regras da experiência comum, não infirmaram minimamente o depoimento isento e claro prestado pelo agente autuante, motivo pelo qual se deram por provados os factos supra elencados. 
O elemento subjectivo resulta da prova dos demais factos dos quais é possível retirar a ilação de que a sociedade arguida com os conhecimentos que tem, face à actividade que desenvolve, tem necessariamente conhecimento de que não podia ter agido como agiu.  
Quanto às condições económicas da Recorrente atendeu-se às declarações do seu representante legal.”
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III - Enquadramento jurídico
As questões a conhecer no presente recurso são as elencadas supra.
Sem delongas vamos conhecer das mesmas.
Pretende a recorrente a alteração da matéria de facto assente.
Na verdade, a recorrente refere que “O infractor nunca fui identificado, muito menos foi identificada sua relação com arguida, donde que nunca, em momento algum, poderia a infracção pela qual vem arguida condenada ter-lhe sido imputada.” Ora, não é isto que está provado.
O que está provado é que “a arguida proceda ao despejo dentro do contentor de indiferenciadas (ID 4907), de resíduos de entulho, madeiras, serradura, plásticos, luvas de trabalho provenientes de obra.”
Não se diz que alguém o fez. Quem o fez o foi a arguida.
Esta conclusão foi retirada da prova produzida (aliás explicada na motivação da decisão).
Acontece que nesta instância a questão não pode ser suscitada.
Esquece ou parece esquecer a recorrente que este Tribunal em matéria contraordenacional apenas conhece de questões de Direito como resulta inequívoco do artº 75º nº 1 do RGCO.
Assim, não sendo assacado à decisão recorrida qualquer vício a que alude o artº 410º nº 2 do C.P.P. (vícios que se têm de manifestar no texto da própria decisão) e não se vislumbrando nenhum deles, mantém-se inalterada a matéria de facto
Assim, temo como base que foi a arguida quem colocou o lixo no contentor.
É certo que se poderia dizer que existia uma nulidade da decisão por não indicar quem, em concreto, colocou o lixo. Seria uma omissão de pronúncia, mas para que tal fosse possível seria necessário que a recorrente tivesse alegado tal facto em sede de recurso, o que não fez. 
Analisado o recurso para o Tribunal a quo temos que a recorrente se limitou a negar o sucedido. Tudo o alegado pela recorrente no seu recurso foi apreciado pelo Tribunal pelo que nenhuma nulidade existe.
Assim sendo, o recurso improcede, pois, que está perfeitamente assente que foi a recorrente quem despejou o lixo.
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IV - Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem esta 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente que se fixam em 5 (cinco) U.C. - art.°s 513.°, n.° 1, do C.P.P. e 8.°, n.° 9, do R.C.P. e Tabela III ao mesmo anexa).
Notifique.
 
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Veneranda. Juíza Adjunta.  
Lisboa e Tribunal da Relação, 4 de Maio de 2022   
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Cristina Almeida e Sousa