LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO ATIVO
CÔNJUGE
Sumário


1 – Verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário activo se o cônjuge, desacompanhado do outro, pede na acção a resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel que constitui bem comum do casal e do qual ambos têm a administração.
2 – Se a ilegitimidade do autor, decorrente da ausência na acção do seu cônjuge, não for sanada depois do convite do tribunal, o réu é absolvido da instância.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. Z. M. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. F., M. A. e A. C., deduzindo os seguintes pedidos:
«A.1
a) Declarar-se resolvidos os contratos de compra e venda dos veículos automóveis, id. no item 18 deste articulado, celebrados entre a A. e os RR.;
b) Condenar-se os RR. a restituírem tudo a que estão obrigados a A.;
A.2
c) Sem prejuízo, e subsidiariamente, caso não sejam julgados procedentes os pedidos anteriormente formulados (A1 – a) e b)), deverão os RR. procederem ao pagamento de € 2.882,21 (dois mil oitocentos e oitenta e dois euros e vinte um cêntimos), a título de reparação do referido veículo automóvel.
B.
d) Condenar-se os RR. a indemnizar ainda a A. do montante nunca inferior a € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal a contar da citação até integral pagamento».
Para o efeito foi alegado que a Autora e o seu cônjuge, V. M., contactaram o 1º Réu com vista à aquisição do veículo automóvel de matrícula TD, tendo sido acordado que a Autora compraria o dito veículo ao 1º Réu, pelo preço de € 4.000,00, acrescido da entrega por parte daquela a este do veículo de matrícula NA, o que veio a suceder em 09.10.2018. Posteriormente, o veículo comprado começou a apresentar sucessivas avarias, as quais provinham de defeitos do veículo existentes antes da dita compra e venda, em cuja reparação despendeu as quantias de € 2.152,50 e de € 729,71. Após averiguações, a Autora descobriu que a quilometragem havia sido alterada, que o veículo que comprou pertencia à 2ª Ré e que esta vendeu o veículo por si entregue, de matrícula NA, ao 3º Réu.
Mais alega que todo o descrito lhe causou danos não patrimoniais – grande angústia e profunda tristeza.

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Contestaram os Réus M. F. e M. A., pugnando pela improcedência da acção.
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Com vista a aferir do pressuposto da legitimidade activa, foi proferido despacho a convidar a Autora:
«- a indicar qual o seu regime de bens de casamento e a juntar aos autos a respetiva certidão de casamento;
- a juntar aos autos a certidão do registo automóvel relativa ao veículo de matrícula NA, com todo o histórico de transmissões;
- a esclarecer por que motivo a fatura que junta com a petição inicial como doc. nº 4 (que sustenta o pedido subsidiário formulado) é dirigida a “V. M.”».

Correspondendo ao convite, a Autora esclareceu que é casada com V. M. no regime da comunhão geral de bens e que a factura junta à p.i. como doc. nº 4 é dirigida ao seu cônjuge, bem como juntou certidão do assento de casamento e certidão do registo automóvel relativa ao veículo de matrícula NA, com todo o histórico de transmissões.
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1.2. Foi então proferido despacho com o seguinte teor:
«Resulta da certidão de casamento junta pela autora que esta é casada com V. M. no regime da comunhão geral de bens.
Em face de tal, considerando os pedidos formulados nos autos e o disposto nos artigos 34º, nº 1, do C.P.C., e 1682º, do Código Civil, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº 3, do C.P.C., determino a notificação das partes para se pronunciarem quanto à eventual verificação da exceção dilatória de ilegitimidade da autora.
Ademais, com vista a promover o andamento mais célere dos autos, ao abrigo do disposto nos artigos 590º, nº 2, alínea a), e 6º, nº 2, do C.P.C., desde já convido a autora a requerer o que tiver por conveniente quanto ao suprimento da referida exceção de ilegitimidade que eventualmente se venha a verificar».
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Notificadas, as partes não apresentaram qualquer requerimento.
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1.3. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, onde se julgou procedente a excepção de ilegitimidade processual da Autora, por preterição de litisconsórcio necessário activo, com a consequente absolvição dos Réus da instância.
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1.4. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«A. Com o devido respeito, não se nos afigura correcta a decisão ora posta em crise, no que respeita à apreciação da matéria de Direito.
B. A decisão recorrida considerou a A. parte ilegítima para a causa, na consideração “A autora é casada com V. M. desde -/01/1995, no regime de comunhão geral de bens, pelo que se conclui que, tendo o negócio em causa nos autos sido celebrado em outubro de 2018, o veículo de matrícula TD é um bem comum do casal (…)”.
C. Dispõe o nº 1 do art. 34º, do Código de Processo Civil (CPC) que devem “ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.”
D. E a lei substantiva estabelece que carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns [art. 1682º-A, nº1, al. a) do Código Civil].
E. Relativamente à propositura da acção, vislumbra-se que não estão preenchidos os requisitos do litisconsórcio necessário, porquanto, os pedidos formulados podem ser exercidos por um dos cônjuges: - Declarar-se resolvidos os contratos de compra e venda dos veículos automóveis, id. no art. 18º da PI, celebrados entre A. e os RR e condenar-se os RR. a restituírem tudo a que estão obrigados; Subsidiariamente: - Deverão os RR. proceder ao pagamento de €2.882,21, a título de reparação do referido veículo automóvel.
F. Estamos perante a declaração de resolução de um contrato de um bem móvel, sujeito a registo, nomeadamente, um veículo automóvel, pelo que o objeto do processo em lide carece de a presente ação ser instaurada por ambos os cônjuges.
G. Perante a factualidade da Petição Inicial, a Autora é, ela própria, desacompanhada do seu cônjuge, a proprietária do veículo automóvel, motivo pelo qual tem, isoladamente, legitimidade e interesse processual para a acção.
H. Vislumbra-se do doc. nº 1 junto com a Petição Inicial, que a Autora é a única proprietária do veículo automóvel. De salientar que o veículo automóvel em discussão dos autos, constitui instrumento de trabalho da Autora, aqui Recorrente, sendo esta que tem a sua administração.
I. Nestas condições, e salvo respeito por entendimento contrário, a presente ação tem por objecto um direito que poderá apenas ser exercido por um dos cônjuges deve entender-se que, no tocante à propositura da acção, o litisconsórcio entre os cônjuges é voluntário.
J. De tudo isto, pode, portanto, retirar-se esta conclusão: a Autora é dotada de legitimidade para – sozinha, instaurar a presente ação, relacionado com veículo automóvel.
K. No caso dos presentes autos, não há um risco de perda que a ação envolve, sendo certo que, com uma eventual resolução do contrato de compra e venda dos veículos automóveis não resulta um prejuízo para o património comum do casal.
L. Aliás, de acordo com a petição inicial, existiu uma permuta de veículos automóveis entre a A. e o 1º R., pelo que, a aqui A. peticionou a resolução dos negócios.
M. Foram violadas, entre outras disposições legais, os arts. 34º do C.P.C., e artº 1682 do C.C.

NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência, deverá ser revogada a Douta Sentença, ordenando o prosseguimento dos autos».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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1.5. Questão a decidir
Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se a Autora, desacompanhada do seu cônjuge, é parte legítima na acção, por não ocorrer uma situação de litisconsórcio necessário activo.
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II – Fundamentação

2.1. Fundamentos de facto

Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório e ainda os que foram considerados provados na decisão recorrida:
a) A autora casou com V. M. em -/01/1995, no regime de comunhão geral de bens;
b) A propriedade do veículo de matrícula TD encontra-se registada a favor da autora desde 11/10/2018;
c) A propriedade do veículo de matrícula NA foi registada em nome da autora em 28/07/2010, sucedendo a tal registo o registo da propriedade a favor de H. M., datado de 22/10/2018.
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Na decisão recorrida, na parte relevante, consta o seguinte:

«Por via da presente ação, pretende a autora, a título principal, a resolução do contrato de compra e venda que alega ter celebrado com o 1º réu, que teve como objeto os veículos de matrícula TD e NA. Por via desse contrato, alega a autora ter adquirido a propriedade do veículo de matrícula TD e ter entregue, para pagamento de parte do preço, o veículo de matrícula NA.
Ora, a resolução tem como efeito a destruição da relação contratual e opera por ato posterior de vontade de um dos contraentes, fazendo regressar as partes à situação em que se encontrariam, se o contrato não tivesse sido celebrado - artigos 433º a 435º e 289º do Código Civil.
Assim, a procedência da pretensão da autora terá como efeitos a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Ou seja, por via da presente ação, a autora poderá deixar de ser proprietária do veículo de matrícula TD e readquirir a propriedade do veículo de matrícula NA.
Dispõe o artigo 34º, nº 1, do C.P.C., que devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.
Nos termos do artigo 1682º, do Código Civil, “1. A alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária. 2. Cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes.”
A autora é casada com V. M. desde -/01/1995, no regime de comunhão geral de bens, pelo que se conclui que, tendo o negócio em causa nos autos sido celebrado em outubro de 2018, o veículo de matrícula TD é um bem comum do casal, nos termos dos artigos 1732º e 1733º, do Código Civil, sendo a petição inicial omissa quanto à circunstância de a respetiva administração caber unicamente à autora.
Como tal, nos termos do referido artigo 1682º, nº 1, do Código Civil, a sua alienação ou oneração depende do consentimento de ambos os cônjuges, pelo que, nos termos do artigo 34º, nº 1, do C.P.C., consubstanciando a presente ação uma ação de que possa resultar a perda ou oneração de bens que só por ambos os cônjuges possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, nos termos supra expostos, terão de nela figurar como autores ambos os cônjuges.
Conclui-se, assim, que estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário ativo, tendo a ação de ser proposta pela autora e pelo seu cônjuge V. M., sob pena de se verificar a exceção de ilegitimidade processual ativa.
A autora foi notificada para se pronunciar quanto à eventual verificação da exceção dilatória de ilegitimidade ativa, mas nada disse nem esclareceu.
Ademais, a autora foi convidada, nos termos do disposto nos artigos 590º, nº 2, alínea a), e 6º, nº 2, do C.P.C., a requerer o que tivesse por conveniente quanto ao suprimento da referida exceção de ilegitimidade que eventualmente se viesse a verificar, mas nada disse nem requereu.
Como tal, verifica-se a referida exceção de ilegitimidade processual ativa, não suprida pela autora.
Em face do exposto, julgo procedente a exceção de ilegitimidade processual da autora, por preterição de litisconsórcio necessário ativo, em consequência do que determino a absolvição dos réus da instância, nos termos dos artigos 278º, nº 1, alínea d), 576º, nº 2, e 577º, alínea e), todos do C.P.C.».
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2.2. Do objecto do recurso

Na sentença considerou-se que a acção tinha de ser proposta pela Autora e pelo seu cônjuge, por se estar perante uma situação de litisconsórcio necessário activo.
De harmonia com o disposto no artigo 33º do CPC, o litisconsórcio diz-se necessário quando a lei, o negócio jurídico ou a própria natureza da relação jurídica controvertida exigirem a intervenção de todos os interessados na relação jurídica processual. Nesse enquadramento, classifica-se o litisconsórcio necessário em legal, convencional e natural, os dois primeiros definidos no nº 1 e o último nos nºs 2 e 3 do artigo 33º. Todos os interessados devem demandar ou ser demandados, em termos de a falta de qualquer deles constituir fundamento de ilegitimidade dos efectivamente intervenientes na acção enquanto desacompanhados dos restantes. Por conseguinte, os vários interessados têm o ónus de propor a acção conjuntamente (ou, se algum ou alguns deles não o quiser fazer, de promover a intervenção dos restantes interessados) ou que o autor tem o ónus de propor a acção contra todos os interessados.
A preterição de litisconsórcio necessário, traduzida na ausência de algum dos interessados que devesse ser parte, origina a ilegitimidade das partes presentes na acção, em conformidade com o disposto nos artigos 33º, nº 1, in fine, e 577º, al. e), do CPC.
Exemplo típico de litisconsórcio necessário legal é o das acções que têm de ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges – cfr. o artigo 34º do CPC, que distingue entre legitimidade activa (nº 1) e passiva (nº 3).
Nos termos do nº 1 da aludida disposição legal, «devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família».
Segundo Miguel Teixeira de Sousa (2), «[a] aplicação do preceito exige a consideração de ambos os resultados possíveis de uma acção: a procedência (efeito favorável) e a improcedência (efeito desfavorável)» e o «disposto no artigo tem de ser visto em estreita conexão com o regime substantivo, nomeadamente quanto à disposição de bens pelos cônjuges (art. 1682.º a 1683.º CC) e à responsabilidade pelas dívidas dos cônjuges (art. 1695.º e 1696.º CC). A função instrumental do pc obsta a que o processo possa ser utilizado como forma de modificar o regime substantivo».
Portanto, para verificar se uma dada situação é de litisconsórcio activo é indispensável que uma norma de direito substantivo exija a intervenção de ambos os cônjuges em negócios jurídicos de disposição, ou semelhantes, do direito a que a acção se reporta e, por outro, que considerado o objecto do processo, a eventual improcedência do pedido tenha um resultado equivalente à perda, oneração ou limitação desse direito, seja ele um direito real ou um direito de outra natureza.
Como explicitam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (3), «[e]stão neste caso as ações em que, não sendo o regime matrimonial o de separação de bens, se discuta a titularidade ou um ato de disposição de direitos reais, ou a constituição de direitos reais de gozo, sobre imóveis (art. 1682º-A-1-A CC), de direitos reais, ou a constituição, por locação, de direitos pessoais de gozo, sobre o estabelecimento comercial (art. 1682-A-1-b CC), de direitos reais sobre móveis comuns cuja administração caiba a ambos os cônjuges, móveis utilizados conjuntamente por ambos na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho ou móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge que não os administra (art. 1682 CC, nºs 1 e 3, alíneas a) e b)) (…). Dada a equiparação dos atos de administração extraordinária ao dos atos de disposição (art. 1678-3 CC), também se impõe o litisconsórcio ativo nas ações em que estejam em causa atos dessa natureza ou que possam conduzir a resultados semelhantes à prática desses atos».
Também Miguel Teixeira de Sousa (4) salienta que «[o] litisconsórcio conjugal activo é necessário sempre que o objecto do processo respeite a bens comuns ou a bens próprios de um dos cônjuges que, apesar disso, ele não possa dispor sozinho (art. 1682.º e 1682.º-A CC). A primeira situação é consequência da regra de que o que afecta os bens comuns do casal (que constituem uma comunhão de mão comum) só pode ser praticado por ambos os cônjuges. (…) Generalizando, pode dizer-se que o litisconsórcio conjugal activo é necessário sempre que o objecto respeite a bens ou direitos que só possam ser alienados por ambos os cônjuges».

A norma de direito substantivo mais relevante para a apreciação do caso vertente é a do artigo 1682º, nºs 1 e 2, do Código Civil (CCiv), onde se prevê:

«1. A alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária.
2. Cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes».
Decorrendo do apontado preceito uma tendencial coincidência entre a legitimidade (5) dos cônjuges para administrar bens móveis e a legitimidade para praticar actos de alienação e oneração dos mesmos, se a administração for comum a alienação pressupõe a intervenção dos dois cônjuges ou a intervenção de um com a prestação do consentimento pelo outro, salvo se o acto de disposição consubstanciar apenas a administração ordinária do bem, ou seja, quanto o acto se dirija à conservação ou frutificação normal de um bem, sem afectar a substancia do mesmo.
O regime da administração dos bens do casal encontra-se plasmado no artigo 1678º do Código Civil. No que respeita à administração extraordinária de bens comuns, ressalvada a aplicação de algum dos desvios previstos no nº 2, vigora a regra da administração conjunta; se o acto for administração ordinária, diferentemente, a regra é a da administração disjunta, em que cada um dos cônjuges pode praticá-lo sem necessidade de intervenção ou consentimento do outro.

Visto o regime legal, importa agora subsumir os factos ao direito aplicável.
Como a Autora é casada com V. M., desde -.01.1995, sob o regime da comunhão geral de bens, conclui-se que o veículo de matrícula TD, adquirido, em 09.10.2018, no âmbito do negócio cuja resolução peticiona, constitui indiscutivelmente um bem comum do casal – v. art. 1732º do CCiv. Ao contrário do alegado pela Recorrente, tratando-se de um bem adquirido na constância do casamento, é absolutamente irrelevante que o veículo se encontre registado em seu nome e que no registo não conste o nome do cônjuge. O bem não perde a qualidade de comum por tal circunstância.
Também o veículo de matrícula NA, por ela entregue para satisfação de parte do preço, constituía, antes da inerente alienação no âmbito do negócio alegado, um bem comum do casal. A proceder o pedido principal, o mencionado veículo reintegrará o património comum do casal.
Na petição inicial a Autora não alegou qualquer facto que permita afirmar que tem a administração do veículo de matrícula TD. Apenas nas alegações, na conclusão H), invocou que «constitui instrumento de trabalho da Autora, aqui Recorrente, sendo esta que tem a sua administração», pretendendo que se leve em conta o disposto no artigo 1678º, nº 2, al. e), do CCiv, mas essa é uma questão nova, não suscitada junto do Tribunal recorrido e sobre a qual não foi proferida decisão, pelo que se encontra subtraída ao objecto lícito do recurso, o qual, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso – o que não é o caso –, está delimitado pelo âmbito do acto recorrido. Aliás, nem sequer o supervenientemente alegado na apelação preenche o pressuposto da aludida norma, por não ter sido invocada a exclusividade da utilização do veículo como instrumento de trabalho.
Portanto, objectivamente, o veículo é um bem comum do casal cuja administração cabe aos dois cônjuges.
Com os concretos fundamentos alegados na petição inicial, a Autora pretende, a título principal, a resolução do contrato de compra e venda que alega ter celebrado com o 1º Réu, que teve como objecto os veículos de matrícula TD e NA. Também de harmonia com o alegado, a Autora adquiriu a propriedade do veículo de matrícula TD.
Caso se opere a resolução do contrato de compra e venda, como a resolução, nos termos do artigo 433º do CCiv, é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, em consequência da destruição da relação contratual com base num facto posterior à celebração do contrato, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art. 289º, nº 1, do CCiv). Por conseguinte, caso se julgue procedente a acção, a Autora deixará de ser proprietária do veículo de matrícula TD e terá que o restituir. Um tal acto, independentemente de qualquer consideração sobre se poderá ou não ser vantajoso para o casal, não consubstancia a administração ordinária do bem, pois não é dirigido à conservação ou frutificação normal do bem. Daí que tenha inteira aplicação a regra prevista na 1ª parte do nº 1 do artigo 1682º do CCiv e não a excepção ressalvada na parte final do preceito: é um acto que exige a intervenção de ambos os cônjuges ou de um deles com o consentimento do outro.
Como da procedência da acção pode resultar a perda de tal veículo, quando só por ambos os cônjuges pode ser alienado, a acção devia ser proposta por ambos. É um caso claro em que a acção respeita a um bem ou direito sobre este que só pode ser alienado por ambos os cônjuges.
Como não foi sanada a falta na sequência do convite formulado pelo Tribunal, a ausência na acção do cônjuge da Autora, origina a ilegitimidade desta, em conformidade com o disposto nos artigos 33º, nº 1, in fine, e 577º, al. e), do CPC.
Daí que nenhuma censura mereça a decisão recorrida ao absolver os Réus da instância por considerar a Autora parte ilegítima, que é a consequência decorrente do disposto no artigo 278º, nº 1, al. e), do CPC.

Termos em que improcede a apelação.
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2.3. Sumário
1 – Verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário activo se o cônjuge, desacompanhado do outro, pede na acção a resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel que constitui bem comum do casal e do qual ambos têm a administração.
2 – Se a ilegitimidade do autor, decorrente da ausência na acção do seu cônjuge, não for sanada depois do convite do tribunal, o réu é absolvido da instância.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
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Guimarães, 09.06.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Código de Processo Civil Online, vol. 1 (arts. 1º a 129º), versão de Maio de 2022, pág. 44.
3. Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, Almedina, pág. 101.
4. Ob. cit., pág. 45.
5. Substantiva.