PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
ENTREGA DO IMÓVEL
APRECIAÇÃO DA PROVA
OBJECTO DO RECURSO
PRAZO
Sumário

I - A indevida apreciação crítica da prova não constitui uma nulidade processual e apenas justifica a reapreciação da decisão de facto, nos termos do art. 640º CPC, que será de rejeitar quando não se faz a indicação da concreta matéria de facto a reapreciar.
II - Ao tribunal de recurso apenas cumpre reapreciar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal “a quo“ ficando por isso vedado a apreciação de novos fundamentos de sustentação da defesa, matéria não anteriormente alegada.
III - Nos termos do art. 368º/2, conjugado com o art. 376º/3 CPC, considera-se adequado o prazo fixado na sentença para entrega do imóvel à sua proprietária, com 97 anos, que dele carece para habitação própria, quando o requerido ocupava o imóvel numa situação de favor, não tem outra habitação, tem 78 anos e os factos ocorreram em plena situação epidemiológica causada pela pandemia da doença COVID -19.

Texto Integral

ProvdCautNEspecificada-1975/21.1T8PRT-B.P1

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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente procedimento cautelar não especificado, com pedido de decretamento de inversão do contencioso em que figuram como:
- REQUERENTE: AA, viúva, portador do Bilhete de Identidade n.º ..., emitido em 5/6/2006, pelo arquivo do Porto, vitalício, Contribuinte Fiscal n.º ..., residente na ... Porto; e
- REQUERIDOS: BB e CC, casados entre si, residente na ... Porto
pede a requerente que seja determinada a entrega de imóvel sua propriedade.
Alegou para o efeito e em síntese que, a pedido dos requeridos, autorizou que estes utilizassem, por um curto período de tempo, o referido imóvel sua propriedade, o qual, à data se encontrava desocupado.
Mais alegou que, atualmente, carece do referido imóvel, dado que não tem outro local onde residir, sendo que os requeridos se recusam a restituí-lo.
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Os requeridos deduziram oposição, alegando a existência de um acordo celebrado com a requerente nos termos do qual seria celebrado, no futuro, um contrato de arrendamento que titulasse a sua permanência no imóvel, sendo que tal contrato nunca veio a ser celebrado, aguardando os requerentes que a requerida o faça.
Alegou que a requerida mulher, por motivos de doença - Parkinson - e perante a impossibilidade do requerido prestar os devidos cuidados, passou a residir em ..., na companhia de um filho.
O requerido BB permaneceu na habitação e não tem outro local onde residir, tem 78 anos e sofre de doença do foro oncológico.
Pede, assim, a improcedência do procedimento.
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Procedeu-se à nomeação do requerido como curador provisório da requerida, após promoção do Digno Ministério Público.
O curador provisório outorgou procuração, em representação da requerida sua mulher a favor do advogado, por si, já constituído nos autos e renovou os termos da oposição.
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O Ministério Público foi notificado, nos termos do art. 325º/1 CPC.
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Procedeu-se à inquirição das testemunhas indicadas.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, determino que os requeridos BB e CC restituam à requerente AA o imóvel sito na rua ..., ..., Porto, correspondente ao primeiro andar “...” do prédio aí situado constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ... do Porto e descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto – freguesia ... - sob o nº .../... , no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias a contar do trânsito em julgado desta decisão.
Mais dispenso a requerente do ónus da propositura da ação principal e declaro invertido o contencioso, nos termos e para os efeitos previstos no art. 371º do CPC.
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Porque integralmente vencidos – na medida em que foi determinada a restituição do imóvel, ainda que não com efeitos imediatos -, as custas deste incidente de procedimento cautelar ficam a cargo dos requeridos (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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Fixo ao presente procedimento cautelar o valor de 19 830 €, correspondente ao valor do imóvel em causa, nos termos da certidão matricial junta à petição (arts. 296º, nº 1, 302º, nº 1, e 304º, nº 3, al. d), do CPC).
Oportunamente, após o trânsito em julgado desta decisão, notifique os requeridos nos termos e para os efeitos previstos no art. 371º, nº 1, do CPC”.
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Os requeridos vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes formularam as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso e que se declare nulo o despacho que deu provimento à providência cautelar.
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Na resposta ao recurso, a apelada considera que a sentença não merece censura, não estando ferida de nulidade.
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A requerida CC veio a falecer em 13 de abril de 2021.
Promovido o incidente de habilitação de herdeiros, por apenso, foram habilitados para prosseguir na ação em representação da requerida BB, DD e EE (marido e filhos respetivamente).
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- conclusões excessivas;
- reapreciação da decisão de facto;
- nulidade da sentença;
- nulidade da prova;
- dos novos fundamentos de sustentação da defesa;
- prazo razoável para entrega do imóvel sito na rua ..., ..., Porto, correspondente ao primeiro andar “...” do prédio aí situado constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ... do Porto e descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto – freguesia ... - sob o nº .../....
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1 - No ano de 1956, a requerente AA tomou de arrendamento um prédio sito na rua ..., ..., na cidade do Porto.
2 - Foi nessa casa que a requerente, desde que a tomou de arrendamento, viveu com a sua família, criou os seus filhos e nela constituiu a sua habitação própria e permanente, até aos dias de hoje.
3 - No dia 1-6-2011, por escritura pública de compra e venda, a requerente AA adquiriu a referida fração autónoma designada pela letra “J”, casa vinte e nove, correspondente ao primeiro andar “...”, do prédio em regime de propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ... do Porto e descrita na Conservatória de Registo Predial do Porto – freguesia ... - sob o nº .../....
4 - Com a celebração da escritura de compra e venda a requerente deixou de residir na fração como arrendatária e nela passou a residir como sua única proprietária e legitima possuidora.
5 - O que sempre fez, de boa-fé, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, com plena consciência do seu direito, primeira como arrendatária e depois como legitima proprietária.
6 – A aquisição do referido imóvel a favor da requerente encontra-se registada pela Apresentação nº ... de 1-6-2011.
7 - No início de 2015, a requerente sofreu uma queda, tendo fraturado o braço esquerdo, o que, aliada à sua provecta idade, lhe dificultou a mobilidade e obrigou a cuidados permanentes de uma terceira pessoa.
8 - A pedido da requerente, com o acordo dos restantes irmãos, e também porque à data já se encontrava reformado, foi o filho da requerente FF quem passou a prestar todo o acompanhamento e cuidados à requerente.
9 - Durante os primeiros meses após a queda, fê-lo em casa da requerente, na fração referida supra.
10 - Porém, a gravidade da fratura foi tal ordem que ainda hoje não se encontra totalmente consolidada, a ponto de a requerente não se conseguir levantar sozinha, cozinhar, comer ou simplesmente fazer a sua higiene diária.
11 - Pelo que necessita de estar acompanhada praticamente vinte e quatro horas por dia.
12 - O que começou a acarretar alguns problemas familiares ao filho cuidador, nomeadamente com a sua companheira, uma vez que este passou a viver praticamente em casa da sua mãe, só se deslocando à habitação do casal, por curtos períodos de tempo, quando a mãe se encontrava acompanhada por um dos outros irmãos.
13 - Face aos problemas que tal situação estava a provocar na relação pela ausência do filho, o casal decidiu trazer a requerente para a casa onde habitam.
14 - Assim, em Junho de 2015, a requerente veio para a casa onde o seu filho FF vive com a sua companheira, para estarem juntos e poderem assim prestar os cuidados de que a requerente necessitava.
15 - Acontece que a requerente apenas recuperou parcialmente da fratura, pelo que, apesar dos seus pedidos para regressar a casa, nem este filho, nem os outros irmãos, se sentiam tranquilos que a sua mãe fosse viver novamente sozinha para a residência onde sempre viveu, dadas as limitações físicas com que ficou.
16 - Razão pela qual o regresso a sua casa tem vindo a ser adiado e a requerente foi continuando na casa do seu filho FF e da companheira, ao seu cuidado.
17 - A requerente tem uma filha de nome CC, aqui requerida.
18 - Na data em que a requerente teve o acidente, esta filha encontrava-se a residir no Brasil juntamente com o seu marido.
19 - De onde regressaram definitivamente, em Setembro de 2016.
20 - Quando chegaram a Portugal, a casa da sua requerente, mãe daquela requerida, encontrava-se desabitada, pelos motivos expostos.
21 – Quando regressaram a Portugal, os requeridos pediram à requerente, sua mãe e sogra, se os deixavam permanecer na sua habitação.
22 – A requerente, após concordância dos restantes filhos, acedeu a esse pedido.
23 – Os bens pertença da requerente, à exceção da roupa que usa diariamente, permaneceram no referido imóvel, designadamente, mobílias, eletrodomésticos, louças e roupas de cama.
24 – Os contratos de fornecimento de água, energia elétrica, televisão e telefone encontram-se em nome da requerida.
25 – A requerida CC sofre de doença de Parkinson.
26 – Há cerca de 8 meses, a referida requerida CC passou a viver em ..., em casa de um seu filho, que lhe presta os cuidados necessários em virtude da doença de que padece.
27 – A relação que o filho da requerente FF tinha com a sua companheira GG foi-se degradando ao longo do tempo.
28 - Encontra-se atualmente num estado de rotura, sem qualquer possibilidade de reconciliação entre o casal.
29 - O contrato de arrendamento da casa onde o referido casal ainda vive foi celebrado pela companheira de FF, em 6-6-2014.
30 - Pelo facto de se irem separar, a companheira de FF decidiu colocar termo ao contrato de arrendamento da casa onde vivem e arrendar outra apenas para si.
31 – Para esse efeito, por carta datada de 28-12-2020, recebida pelo destinatário em 30-12-2020, a referida companheira de FF comunicou ao senhorio que “pretende rescindir, a partir desta data, o contrato de arrendamento, cumprindo os prazos legais”.
32 – O requerido BB continua a residir na casa da requerente.
33 – Face à denúncia do referido contrato de arrendamento, a requerente e o seu filho FF solicitaram ao requerido BB que entregasse a casa à requerente, com o objetivo de esta aí passar a residir.
34 – A requerente nasceu em .../.../1924.
35 – O requerido BB nasceu em .../.../1942.
36 – A requerida CC nasceu em .../.../1942.
37 – Aquando da entrada dos requeridos para o imóvel, estes informaram a requerente e os restantes filhos que pretendiam pagar uma renda.
38 – Tendo a requerente e seus filhos rejeitado que os requeridos procedessem ao pagamento de renda.
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– Factos não provados:
1 – A Requerente autorizou os requeridos a ficar na sua habitação apenas durante uns dias, até arrendarem uma casa para viver.
2 – Aquando da entrada dos requeridos para o imóvel, estes e a requerente acordaram que, quando achassem oportuno, celebrariam contrato de arrendamento tendo por objeto o referido imóvel.
3 – O requerido BB padece de doença oncológica.
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3. O direito
- Conclusões excessivas-
Nas alegações de recurso o apelante reproduz na íntegra toda a motivação do recurso.
Apesar de se vir entendendo na jurisprudência deste Tribunal da Relação[2] que tal situação equivale à falta de conclusões importando, por isso, a rejeição do recurso, o Supremo Tribunal de Justiça[3] tem entendido que o vício se enquadra na tipologia de “conclusões complexas”, mostrando-se excessivo rejeitar o recurso com tal fundamento, sugerindo, por isso, que deve ser formulado um convite no sentido do apelante sintetizar as conclusões.
Temos adotado esta interpretação, por se nos afigurar mais consentânea com o princípio da cooperação e que melhor garante o princípio da igualdade, quando está em causa aferir da regularidade formal das alegações, já que a lei prevê expressamente o aperfeiçoamento das conclusões deficientes, obscuras e complexas ( art. 639º/3 CPC).
Contudo, por se tratar de processo com caráter urgente e porque as questões colocadas não revelam particular complexidade, dispensou-se tal formalidade aceitando-se a peça processual sem aperfeiçoamento.
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- Reapreciação da decisão de facto –
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 22, 56, 57 e 61, o apelante questiona a forma como foi livremente apreciada a prova pelo juiz do tribunal “a quo”, face ao depoimento prestado pelos filhos da requerente, procedendo à transcrição de excertos do depoimento da testemunha FF.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[4].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar - delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da indicação da prova a reapreciar que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto não se mostram preenchidos os ónus de impugnação, porque o apelante não indicou nas conclusões (que reproduzem a motivação) os concretos pontos de facto a reapreciar e a decisão que sugere.
Faz uma apreciação crítica do depoimento das testemunhas, questionando o valor probatório, atribuído a certos meios de prova, mas tal via de argumentação não preenche os ónus previstos na lei para proceder à reapreciação da decisão de facto.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC não se consideram reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, o que determina a rejeição do recurso nesta parte.
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- Nulidade da sentença -
O apelante termina as conclusões por pedir que se declare nula a sentença.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[5].
As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites“ considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art. 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[6].
O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art. 668º CPC, e atual art. 615º CPC, advertia que: “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”[7].
A sua arguição é feita de harmonia com o nº2, 3, 4 do art. 615º, uma vez no próprio tribunal em que foi proferida a decisão, e outras vezes, em via de recurso, no tribunal ad quem.
Estas nulidades são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.
As causas de nulidade da sentença estão taxativamente previstas no art. 615º CPC e a discordância quanto à solução de direito não configura qualquer das nulidades ali previstas.
O apelante não indica os concretos motivos que justificam o vício que aponta à sentença, sendo certo que o seu conhecimento não é de caráter oficioso.
Desta forma, não estando demonstrado o vício de que padece a sentença improcede a pretensão deduzida.
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- Nulidade da prova -
No ponto 27 das conclusões de recurso considera o apelante que se verifica uma nulidade nos termos do art. 195º CPC, considerando que na fundamentação da decisão o juiz fez uso de presunções partindo da interpretação de depoimentos das testemunhas com interesse direto na causa.
A lei prevê as nulidades processuais que “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais”[8].
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como refere o Professor ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[9].
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez, as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art. 196º a 199º CPC.
A indevida valoração de um meio de prova não constitui uma nulidade processual, porque a lei não prevê tal vício. O erro na apreciação da prova apenas justifica a reapreciação da decisão de facto, com tal fundamento, nos termos do art. 640º CPC.
A prova por presunções deve ser considerada na fundamentação da decisão de facto, como se prevê no art. 607º/4 CPC, pois cumpre ao juiz proceder a uma análise crítica da prova, “extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
A prova por presunções judiciais assenta em factos concretos e provados (art. 349º CC). A utilização de presunções naturais ou judiciais é lícita, mas tem como limite a exigência de uma congruência com a matéria de facto fixada através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, em audiência, não podendo conduzir, nem a uma alteração direta das respostas dadas aos pontos de facto que integravam a base instrutória, nem a um desenvolvimento da base factual do litígio, suscetível de criar contradições com o julgamento da matéria de facto que formalmente tenha permanecido como inalterado ou imodificado.
Com efeito, como se refere no Ac. STJ de 02 de dezembro de 2010, Proc. 1/04.0TBCPV.P1.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “as instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas.
Mas essas deduções hão-de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes. Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida. Quando tal aconteça a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no art. 349º C.Civil”.
O recurso a presunções judiciais constitui um meio de prova legal, sendo lícito ao juiz fazer uso do mesmo para fundamentar a decisão de facto, com os limites apontados. Porém, o apelante não indica em que medida se fez um uso indevido de tal meio de prova, sendo certo que no confronto dos factos provados e fundamentação de direito, não se anota qualquer contradição motivada pela indevida aplicação de tal meio de prova.
Acresce que tal contradição a existir não se reconduz a uma nulidade processual, mas a uma irregularidade que é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 662º/2 c) CPC.
O apelante faz, ainda, menção à existência de um interesse direto das testemunhas indicadas pela requerente. Os laços familiares entre a requerente e as testemunhas por si indicadas, pois são seus filhos, não permite só por si considerar que as testemunhas têm interesse direito na causa, ou que foi cometida qualquer irregularidade que invalide tais depoimentos.
Da conjugação do art. 396º CC, com o art. 607º/5 CPC, resulta que o depoimento testemunhal é livremente apreciado pelo tribunal e em confronto com os demais elementos de prova.
Como bem ensinou o Professor ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”.[10]
A livre apreciação da prova baseia-se na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, ou seja, em regras da ciência e do raciocínio e em máximas de experiência. Estas podem conduzir à prova direta do facto controvertido ou à ilação desse facto através da prova de um facto indiciário: neste último caso, a prova fundamenta-se numa presunção natural ou judicial (art. 351º CC)[11].
O simples facto de existir entre as testemunhas indicadas e a requerente uma relação de parentesco não desvaloriza o seu depoimento, nem pode só por si servir para questionar a credibilidade do depoimento da testemunha, pois a própria lei admite a depor como testemunhas quem com a parte mantém uma relação de parentesco, face ao que dispõe o art. 497º CPC.
O alegado interesse das testemunhas na discussão da causa também não é só por si determinante, para retirar credibilidade aos depoimentos.
A testemunha é um terceiro em face da relação jurídica processual, ainda que não perante a relação jurídica material ou os interesses que no processo se discutem[12].
Daqui se conclui, que o interesse na causa, só por si, não desvaloriza o depoimento da testemunha, nem impede a sua audição nessa qualidade. O interesse da testemunha na causa releva como um dos fatores a ter em conta na apreciação do seu depoimento.
Resta referir que conforme consta da ata de julgamento, as testemunhas foram previamente advertidas da faculdade de poderem recusar-se a depor, pelo que o respetivo depoimento se mostra regular.
O erro na apreciação da prova não é por esta via que pode ser suscitado, como já se deixou dito na apreciação da anterior questão.
Improcedem, assim, as conclusões de recurso sob o ponto 27.
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- Dos novos factos e fundamentos de sustentação da defesa-
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 10, o apelante transcreve os factos que se julgaram provados. Porém, sob os pontos 11 a 15, 17, 19 a 21, 23 a 25, 49 a 55, 58 a 60, 63 o apelante enuncia um conjunto de factos e argumentos que não foram oportunamente alegados na oposição, nem constam do enunciado dos factos provados, circunstância que a apelada salienta na resposta ao recurso.
O recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer[13]. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[14]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[15] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida.
Podemos concluir que os recursos destinam-se em regra a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se excetuando: o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC); a existência de questão de conhecimento oficioso; a alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 272º do CPC); e a mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.
Verifica-se que os factos e novos argumentos que os apelantes vêm introduzir nas conclusões do recurso não podem ser considerados, pois constituem factos novos, já que em sede de oposição não foram alegados, nem se julgaram provados.
Se os novos factos e os novos fundamentos de sustentação da defesa resultaram da discussão da causa, recaía sobre as partes ao abrigo do art. 5º/3 CPC, suscitar junto do tribunal “a quo“, a sua consideração em sede de decisão, o que também não ocorreu.
Conclui-se, assim, nos termos do art. 627º CPC que nenhuma relevância merece, nesta sede, os factos novos que os apelantes vêm alegar e bem assim, os novos fundamentos de sustentação da sua defesa, pois os mesmos não foram considerados na decisão objeto de recurso e não são de conhecimento oficioso, sendo certo que ao tribunal de recurso apenas cumpre reapreciar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal “a quo” ficando por isso vedado a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa (matéria não anteriormente alegada). Tal como o juiz da 1ª instância, em sede de recurso, o tribunal “ad quem“ está limitado pelo pedido e seus fundamentos e pela defesa tal como configurados na ação, motivo pelo qual está impedido de conhecer do objeto do recurso nesta parte.
Improcedem, assim, as conclusões de recurso sob os pontos 11 a 15, 17, 19 a 21, 23 a 25, 49 a 55, 58 a 60, 63.
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- Do prazo razoável para entrega do imóvel sito na rua ..., ..., Porto, correspondente ao primeiro andar “...” do prédio aí situado constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ... do Porto e descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto – freguesia ... - sob o nº .../... -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 28 a 48 e 62, insurge-se o apelante contra o segmento da decisão que fixou em 45 dias, a contar do trânsito em julgado da decisão, o prazo para entrega do imóvel.
Na decisão sob recurso julgaram-se verificados os pressupostos para ser decretada a providência, nos termos do art. 368º, nºs. 1 e 2, do CPC, com referência ao artigo 362º, nº 1, e ainda ao nº 2 do artigo 365º do citado Código, a saber:
- a probabilidade séria da existência do direito;
- o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável desse direito;
- a adequação da providência requerida para evitar a lesão.
Em relação ao último dos pressupostos previstos na lei – “não resultar do decretamento da providência prejuízo consideravelmente superior ao dano que se pretende evitar” – em vez de se atender à pretensão da requerente, que peticionava a entrega imediata do imóvel, entendeu-se fixar um prazo para entrega do imóvel.
Na fundamentação da decisão ponderou-se, como se passa a transcrever:
“Neste âmbito, dispõe o art. 368º, nº 2, do CPC, que “A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.
Impõe este requisito, portanto, que não poderá resultar do decretamento da providência prejuízo consideravelmente superior ao dano que se pretende evitar.
Conforme refere ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III volume, 3ª edição revista e atualizada, pág. 242, este preceito “contém a consagração da proporcionalidade que deve ser garantida em qualquer Estado de Direito e que encontra acolhimento, embora não expresso, na própria Constituição.”.
Este preceito visa colocar um travão a decisões formalmente adequadas (atento o preenchimento daqueles três primeiros requisitos gerais) mas substancialmente injustas.
Esta exigência de proporcionalidade resulta, desde logo, do disposto no art. 362º, nº 1, do CPC, quando determina que a medida requerida deve ser a “adequada” a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
Impressivamente, escreve aquele autor, in op. cit., págs. 243 e 244, que “De acordo com a situação de facto apurada e demais circunstâncias atendíveis pelo Tribunal, dentro do leque das medidas típicas ou das medidas atípicas deve buscar-se aquela que, permitindo alcançar melhores resultados, implique os menores custos possíveis, reduzindo aos justos limites o risco de soluções inadequadas.”.
Assim, na impossibilidade de medir e comparar os interesses em disputa, deve o juiz orientar-se por padrões de razoabilidade quanto aos riscos suportados pelo requerente e aos inconvenientes que para o requerido podem advir da medida cautelar.
Contudo, sublinha aquele autor, a fls. 245, que “uma vez provado o perigo de lesão séria de direitos do requerente, só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa de providência”.
Retomando o caso em concreto, importa sublinhar que o requerido BB tem 78 anos de idade.
Não terá, no imediato, outra habitação onde possa residir.
Mais: no presente contexto pandémico, a angariação de nova habitação, designadamente, através de celebração do respetivo contrato de arrendamento, surge manifestamente dificultada. Tal constitui um facto notório que não carece de prova nem de alegação, nos termos do art. 412º, nº 1, do CPC.
Em contrário, a requerida CC não se encontra sujeita a tal circunstancialismo, dado que reside em casa de um seu filho, em ....
Por seu turno, a requerente AA tem 97 anos de idade.
Como vimos, o contrato de arrendamento relativo à casa habitada pelo seu filho, com quem a requerente residia, cessou (ou está prestes a cessar) os seus efeitos.
Entendo, ainda assim, que o decretamento total da medida, nos exatos termos peticionados pela requerente, gerará um prejuízo para o requerido que excede consideravelmente o dano que com ela a requerente pretende evitar.
Com efeito, nada nos permite afirmar que a requerente fique, de imediato, numa situação de absoluta falta de habitação. Note-se que a requerida ainda se encontra a ocupar a casa onde vive o seu filho (ainda que o respetivo arrendamento esteja na iminência de cessar), tendo ainda outros descendentes a quem poderá temporariamente, por período curto, recorrer.
Já o requerente ver-se-á, caso sejam fixados efeitos imediatos à providência, numa situação de absoluta indisponibilidade do local onde tem vindo a residir há mais de quatro anos.
Desconhece-se, neste ponto, em que data o requerido foi intimado, antes da interposição da presente providência, a desocupar o imóvel; portanto, não é de afastar que estes dois eventos tenham ocorrido em momento muito próximo.
Assim, entendemos ser de rejeitar o deferimento total da providência.
Porém, também não se justifica a sua integral rejeição, dado que a A. também tem necessidade da habitação – da qual, não é demais sublinhar, é sua exclusiva proprietária.
Assim, entendemos que deverá ser diferida a data de produção dos efeitos da providência requerida, concedendo ao requerido algum tempo para arranjar outra habitação.
Nesta sequência, em vez de se decretar a imediata entrega do imóvel, decretar-se-á tal restituição dentro do prazo de 45 dias, considerando-se este como o período de tempo necessário para o requerido diligenciar pela obtenção de outra residência.
Refira-se que esta concreta providência a decretar constitui um “minus” relativamente à peticionada pela A., conduzindo a uma solução de efeitos menos gravosos para o requerido.
Note-se, desde logo, que, nos termos do art. 376º, nº 3, do CPC, o Tribunal nem sequer está adstrito à providência concretamente requerida.
Esta possibilidade de restrição da medida é defendida pelo autor acima referido, a fls. 245 e 246. Aqui se lê, designadamente, que “Entre a rejeição total da medida, por verificação de efeitos consideravelmente mais gravosos na esfera do requerido, e a sua total admissão, por se verificar o justo receio de lesão grave e dificilmente reparável, o princípio da proporcionalidade impõe que o juiz, uma vez na posse dos necessários elementos, ajuste a providencia à concreta situação de perigo”.
Pelo exposto, deverá ser determinado aos requeridos que, no prazo de 45 dias a contar do trânsito em julgado desta decisão, entreguem à requerente o imóvel em causa”.
Não se questiona a necessidade de fazer apelo ao critério da proporcionalidade, pois a requerente não se insurgiu contra a decisão. Apenas está em causa, na questão colocada pelo apelante, se o prazo de mostra adequado para minorar o prejuízo para o requerido com o decretamento da providência.
O apelante defende que o prazo não se mostra adequado e para justificar tal posição faz apelo à idade, à doença de que padece e às dificuldades criadas pelo estado de pandemia.
Desde logo cumpre ter presente que a sentença foi proferida em 15 de março de 2021[16] e apenas por motivos de natureza processual, relacionados com a tramitação de incidentes veio o processo a ser remetido para o Tribunal da Relação em janeiro de 2022.
Por outro lado, a sentença fez uma cuidada ponderação dos aspetos salientados pelos apelantes, pois atendeu-se à idade do requerido – 78 anos à data em que foi decretada a providência – e ainda, ao facto da requerida não residir no imóvel, por motivos de doença, encontrando-se a residir em .... De igual forma, considerou-se não ser de relevar o estado de saúde do requerido, porque não se provou que sofria de doença do foro oncológico (ponto 3 dos factos julgados não provados). Acresce que se ponderou a situação epidemiológica causada pela pandemia pela doença Covid 19 existente à data e as condicionantes e dificuldades que o requerido poderia ter para obter uma habitação no imediato.
Ponderou-se de modo particular o facto de não estar provado se em data anterior à instauração do procedimento, o requerido tomou conhecimento que a requerente carecia de casa para habitação e foi exigida a entrega da casa.
Ainda que não expresso, foi a tutela da dignidade da pessoa humana, que presidiu ao critério seguido pelo tribunal e justificou o limite estabelecido ao direito exercido e reconhecido à requerente.
É de referir, ainda, que o apelante apesar de se insurgir contra o prazo fixado, não indica qualquer outro prazo que considere razoável para permitir arranjar uma nova habitação.
O apelante não indica novos ou diferentes argumentos para justificar a alteração do prazo.
Desta forma, ponderados os factos apurados no concreto contexto em que foi proferida a decisão, o prazo fixado revela-se adequado e suficiente para o requerido diligenciar por uma nova habitação, no mercado da habitação, ou, através dos serviços sociais competentes, caso se justifique.
O apelante tece ainda considerações sobre o princípio da igualdade, com fundamento no art. 13º da CRP.
No domínio do processo civil o princípio da igualdade está consagrado no art. 4º CPC.
Os princípios processuais servem para sustentar e congregar normas dispersas, para auxiliar o intérprete e aplicador do direito na adoção das soluções mais ajustadas ou para impor aos diversos sujeitos determinadas regras de conduta processual[17].
O art.4 CPC, sob a epígrafe “Igualdade das Partes“, determina:
“O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais. “
Em comentário a este preceito refere o Professor LEBRE DE FREITAS:“[t]rata-se de garantir a ambas as partes, ao longo do processo, a identidade de faculdades e meios de defesa e a sua sujeição a ónus e cominações idênticos. Como, porém, é da natureza do próprio processo alguma diversidade das posições das partes […], à ideia de identidade formal absoluta de meios e efeitos substitui-se a de um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, sempre que a desigualdade objetiva intrínseca de certas posições processuais leve a atribuir a uma parte meios ou a sujeitá-la a efeitos não atribuíveis à outra[18].
No caso concreto, a decisão proferida ponderou a posição expressa pelas partes nos respetivos articulados, dando a mesma oportunidade às partes de se manifestarem sobre o objeto da causa. A decisão proferida integra-se no âmbito dos poderes do juiz que proferiu decisão fundamentada sobre esta matéria.
O princípio da igualdade não se manifesta no teor da decisão a proferir, mas na atitude e conduta do juiz na promoção dos termos e atos processuais.
Questão diferente consiste em saber se as decisões merecem censura. Só pela via do recurso podem ser impugnadas as decisões judiciais.
O apelante limita-se a censurar a conduta do juiz à luz dos princípios que regem o processo civil. Contudo, o tribunal de recurso não julga a conduta do juiz, mas as decisões por este proferidas.
Numa segunda ordem de argumentos, considera o apelante que a decisão viola o art.65º da CRP, que consagra o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família.
Cumpre determinar se estão reunidos os pressupostos para apreciar da inconstitucionalidade suscitada e adiantando respostas somos levados a considerar que não estão reunidos os requisitos que permitam aferir da conformidade da interpretação das normas com a Lei Fundamental.
A respeito da conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere GOMES CANOTILHO:“[o] princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”[19].
A inconstitucionalidade deve ser suscitada de forma processualmente adequada junto do tribunal que proferiu a decisão, de forma a obrigar ao seu conhecimento (art. 72º LTC).
Recai sobre o recorrente o ónus de colocar a questão de inconstitucionalidade, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível e segundo os requisitos previstos na lei.
Por outro lado, pretendendo questionar certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou preceitos que tem por violador da Constituição, enunciando com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Esta tem sido a interpretação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, como disso dá nota, entre outros, o Ac.do Tribunal Constitucional nº 560/94 (acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) quando observa:”[d]e facto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e percetível.
Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão da constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo.
A exigência de um cabal cumprimentos do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois –[…]-, uma “mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se, sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julga-la em via de recurso, proceda ao reexame ( e não a um primeiro julgamento) de tal questão”.
No caso presente o apelante indica os preceitos constitucionais que considera violados. Contudo, não enuncia o segmento interpretativo adotado que contraria tais preceitos constitucionais, o que impede a apreciação da constitucionalidade.
Por outro lado, a mera afirmação que a decisão viola o art. 65º CRP não equivale a suscitar, validamente, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
A válida imputação de inconstitucionalidade a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspetiva da sua compatibilidade com normas ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que considera inconstitucional, o que também não ocorre no caso concreto. A indevida aplicação da lei não configura só por si uma violação de preceitos constitucionais.
Nesta perspetiva, considera-se que o apelante não suscitou, validamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que, improcedem, nesta parte as conclusões de recurso, sob os pontos 30 e 31.
Conclui-se que a decisão que fixou o prazo de entrega do imóvel em 45 dias a contar da data do trânsito em julgado da decisão, não merece censura.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 28 a 48 e 62.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e nessa conformidade:
- rejeitar a reapreciação da decisão de facto;
- confirmar a decisão.
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Custas a cargo do apelante.
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Porto, 23 de maio de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Ac. Rel. Porto 08 de março de 2018, Proc. 1822/16.6T8AGD.P1 e Ac. Rel. Porto 23 de abril de 2018, Proc. 6818/14.0YIPRT.P1, ambos em www.dgsi.pt
[3] Ac. STJ 13 de outubro de 2016, Proc. 5048/14.5TENT-A.E1.S; Ac.STJ 25 de maio de 2017, Proc. 2647/15.1T8CSC.L1.S1; Ac. STJ 06 de abril de 2017, Proc. 297/13.6TTTMR.E1.S1; Ac. STJ 13 de julho 2017, Proc. 6322/11.8TBLRA-A.C2.S1, todos em www.dgsi.pt
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho 2013, pag. 126.
[5] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pag. 297.
[6] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pag. 308.
[7] ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 686.
[8] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 156
[9] ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 357
[10] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, Coimbra Editora, Coimbra, pag. 569
[11] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pag. 347
[12] JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum- Á Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, pag. 279
[13] CASTRO MENDES Direito Processual Civil – Recursos, ed. AAFDL, 1980, pag. 5.
[14] CASTRO MENDES, ob. cit., pag. 24-25 e ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil , vol V, pag. 382, 383.
[15] Cfr. os Ac. STJ 07.07.2009, Ac. STJ 20.05.2009, Ac. STJ 28.05.2009, Ac. STJ 11.11.2003 Ac. Rel. Porto 20.10.2005, Proc. 0534077 Ac. Rel. Lisboa de 14 de maio de 2009, Proc. 795/05.1TBALM.L1-6; Ac. STJ 15.09.2010, Proc. 322/05.4TAEVR.E1.S1 (http://www.dgsi.pt)
[16] Página 47 da certidão que instruiu o processo eletrónico
[17] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, vol.I, 2ª ed. revista e ampliada, Almedina, Coimbra, 1999, pag. 23
[18] JOSÉ LEBRE DE FREITAS Código de Processo Civil – Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, setembro 2014, pag.11
[19] J.J.GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, (7ª Reimpressão) Coimbra, Almedina, 2003, pág.1226.