ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
PENA PARCELAR
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário


I - A operação de determinação da medida concreta da pena tem de ser realizada em função da culpa do agente – que funciona, também, como limite inultrapassável – e das necessidades de prevenção, geral e especial.
II - Ademais, terão de ser consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as elencadas no n.º 2, do art. 71.º, do CP, bem como as exigências de prevenção.
III - In casu, estamos perante a prática de crimes cujo bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual, ou seja, a vítima é, precisamente, aquela que não é livre para se decidir ao nível do relacionamento sexual, nem dar o seu consentimento válido, em função da sua idade. Trata-se de um ilícito consideravelmente grave e que gera repúdio e alarme por parte da sociedade.
IV - A pena única determina-se, assim, dentro de uma moldura penal, casuisticamente encontrada após a fixação de todas as penas parcelares integrantes de uma determinada soma jurídica de penas. E, na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes aos crimes concorrentes, o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77.º, n.º 1, do CP), o que exige uma especial fundamentação na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção” (Processo n.º 1667/19.1T8VRL.S1, disponível em www.dgsi.pt).
V- Desta forma, para a determinação da pena conjunta deverá ter-se em consideração uma visão global dos factos, a fim de ser possível apurar a gravidade desse ilícito único (o grande facto), tendo sempre por base as necessidades de prevenção.
VI- Assim, ponderadas as exigências de prevenção especial e geral, já referidas em sede de determinação da medida concreta da pena, o grau elevado de culpa com que agiu, o facto global e a personalidade revelada no cometimento do concurso dos crimes cometidos, conclui-se que a pena única de 7 anos e 6 meses encontrada na primeira instância se encontra ao nível do sexto inferior da moldura penal de 4 anos a 25 anos (art. 77.º, do CP) e mostra-se conforme ao critério especial estabelecido no art. 77.º, n.º 2, do CP, não pecando por excesso.
VII - Ao contrário do invocado pelo recorrente em sede de recurso, as circunstâncias de não ter antecedentes criminais, se encontrar social e profissionalmente integrado, ter admitido a prática dos factos e demonstrar consciência do desvalor da sua conduta, foram devidamente tidas em consideração para fixação da medida conjunta da pena, o que, aliás, justifica que a pena única tenha sido fixada bem mais próximo do limiar inferior da respetiva moldura penal (4 anos) e muito distante do seu limite máximo, pelo que terá que considerar-se que a pena encontrada revela equilíbrio adequado entre todas as necessidades em confronto.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. Por acórdão proferido em 17 de Dezembro de 2021, no Juiz ... do Juízo Central Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi decidido:

“I. Absolver o arguido AA;

a) - Da prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efectivo, de 3 (três) crimes de pornografia de menores agravados, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 176.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.ºs 1, al. a) e 6, todos do Código Penal, pelos quais vinha acusado.

b) – Da prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efectivo, de 144 (cento e quarenta e quatro) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, por referência ao art. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, pelos quais vinha acusado.

II. Condenar o arguido AA:

a) - Como autor material na prática, na forma consumada e em concurso real e efectivo, de 20 (vinte) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, por referência ao art. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, por cada um.

b) – E, em cúmulo jurídico das penas parcelares, mencionadas em II. a), na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.”


2. Inconformado com o acórdão proferido, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1 - Pelo Ministério Público - Procuradoria da República da Comarca ... - Departamento de Investigação e Ação Penal - 1ª Secção de ..., vinha o ora recorrente acusado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efetivo, dos seguintes crimes

- 144 (cento e quarenta e quatro) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e p. pelos art.ºs 14º, n.º 1, 172º, n.º 1, por referência ao art.º 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, e

- 3 (três) crimes de pornografia de menores agravados, p. e p. pelos art.ºs 14º, n.º 1, 176º, n.º 1, al. b) e 177º, n.ºs 1, al. a) e 6, todos do Código Penal.

2 - O recorrente não ofereceu contestação nem arrolou testemunhas.

3 - Pelo Acórdão ora recorrido, foi julgada procedente e provada a acusação deduzida pelo Ministério Público, e, consequentemente foi o ora recorrente:

Absolvido da prática e 3 (três) crimes de pornografia de menores agravados, p. e p. pelos art.ºs 14º, n.º 1, 176º, n.º 1, al. b) e 177º, n.ºs 1, al. a) e 6, todos do Código Penal

Condenado pela prática de 20 (vinte) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e p. pelos art.ºs 14º, n.º 1, 172º, n.º 1, por referência ao art.º 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um dos crimes.

Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi o recorrente condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis meses de prisão.

4 - As penas parcelares em que o recorrente foi condenado foram exageradas e injustas, face à total ausência de antecedentes criminais, e à postura assumida pelo recorrente desde a fase de inquérito e na audiência de discussão e julgamento.

5 - O recorrente encontra-se sujeito a prisão preventiva desde 22 de Dezembro de 2020, tendo refletido, interiorizando o desvalor das suas condutas ilícitas, e assumido as suas consequências e responsabilidades.

6 - A sua reintegração e ressocialização a nível social, familiar e profissional serão possíveis imediatamente logo que reposta à liberdade;

7 - Para determinar e fundamentar a condenação da recorrente, o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações do arguido, prestadas em audiência de discussão e julgamento.

8 - O tribunal não considerou e relevou as declarações da recorrente, como confissão, retratação e arrependimento.

9 - A participação do recorrente nos factos pelos quais vinha acusado, foi, pelo mesmo, confessada, livre e espontaneamente, assumindo a sua responsabilidade.

10 - Devendo, por isso, aferir-se a medida da pena proporcional à medida da culpa do recorrente, situando-se a mesma junto ao seu limite mínimo.

11 - O recorrente não possui quaisquer antecedentes criminais.

12 - Encontra-se reintegrado e ressocializado, social, familiar e profissionalmente.

13 – A sua reintegração e ressocialização serão possíveis imediatamente logo cumprida a pena em que ficar condenado, e seja reposto à liberdade;

14 - Por todas estas razões, e outras que V. Exas., suprirão, deveria o recorrente ser condenado, pela prática, na forma consumada e em concurso real e efetivo, pelos crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e pelos art.ºs 172º, n.º 1, por referência ao art.º 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, em pena de prisão inferior ou igual a 5 (cinco) anos.

15 - Pena essa que deverá ficar suspensa na sua execução por igual período, sujeita a um adequado e prolongado regime de prova – art. 50.º, n.º 1 e 51.º, do Código Penal.”


3. O Ministério Público na 1ª instância respondeu, defendendo a correção da dosimetria das penas e pugnando pela improcedência do recurso.


4. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se pelo parcial provimento do recurso no que respeita, apenas, à determinação da medida concreta das penas parceladas, invocando que:

(…) Contudo, a moldura penal a ter em linha de conta deverá ser, antes, a de 1 a 8 anos de prisão estabelecida no artigo 172.º, n.º 1, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo por força da previsão do artigo 177.º, n.º 1, alínea a), todas estas disposições do Código Penal, do que resulta uma moldura penal abstractamente aplicável ao tipo legal de crime em causa de 1 ano e 4 meses de prisão a 10 anos e 8 meses de prisão.

Será este, afigura-se, o único reparo que suscita a decisão recorrida, o que justificará a correcção da medida das penas parcelares aplicadas, ainda que, na prática, acabe por não ter repercussão na medida da pena única fixada.

Com efeito, sendo de admitir, por força de tal circunstância, uma redução da concreta medida das penas parcelares a impor ao arguido/recorrente – nunca, porém, para um quantum abaixo dos 2 (dois) anos de prisão por cada um dos 20 crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, para tanto apontando os factores enunciados na decisão recorrida (a fls. 33 e 34), em conformidade com os critérios legais fixados nos artigos 40.º e 71.º, do Código Penal – daqui resultará, agora na perspectiva da fixação da pena única, como é de lei (artigo 77.º do Código Penal), a colher o entendimento expresso, uma moldura abstracta de 2 anos (a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso) a 40 anos de prisão (correspondente à soma das penas concretamente aplicadas), ainda que com o limite de 25 anos de prisão, cfr. artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.

Deverá o Tribunal considerar, na determinação da medida concreta da pena única a aplicar, para além da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal), o conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, procedendo-se a uma avaliação da gravidade da ilicitude global dos mesmos, tendo em conta o tipo de conexão entre os factos em concurso, e a avaliação global da personalidade do autor de tais factos, de forma a aferir em que termos é que a mesma se projecta nos factos por si praticados, havendo ainda que apurar se a sua conduta traduz uma tendência para prática de crimes, ou apenas se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sendo que só no primeiro caso se justificará atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta, sem esquecer, por outro lado, a avaliação do efeito previsível da pena a aplicar sobre o comportamento futuro do agente, face às exigências de prevenção especial de socialização.

In casu, e sendo de acolher a compreensão do Tribunal a quo no que concerne ao conjunto dos factos não ultrapassar uma pluriocasionalidade, entende-se ser justa, adequada, proporcional e conforme aos critérios legais definidos nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, afinal a mesma a que já se encontra o recorrente condenado.”


5. Cumprido o disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta ao parecer e não tendo sido requerida audiência, os autos seguiram para conferência.


II. Fundamentação


1. O acórdão recorrido, na parte que interessa ao recurso, tem o seguinte teor quanto aos factos provados:

“1. Desde data não concretamente apurada, em Março de 2017, até 25 de Maio de 2020, o arguido viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com BB, na residência desta sita em Estrada ..., ....

2. O arguido partilhava ainda a habitação com as duas filhas menores de sua companheira, CC, nascida em .../.../2002 e DD.

3. O arguido casou-se com BB, tornando-se padrasto das duas filhas daquela.

4. Contribuindo para o sustento e formação pessoal das duas filhas menores de BB.

5. Como trabalhava durante todo o dia, BB confiou ao arguido, que trabalhava por turnos, a assistência das suas duas filhas menores, sobretudo de CC, tendo em conta o horário escolar desta.

6. Desde data não concretamente apurada, a partir de Junho de 2019, até 25 de Maio de 2020, o arguido praticou um número não concretamente determinado de actos sexuais de cópula, coito anal e coito oral com CC.

7. Em data não concretamente apurada, a partir do mês de Junho de 2019, altura em que faltava cerca de 1 mês para CC perfazer 17 anos, o arguido deitou-se sobre CC, e introduziu-lhe o seu pénis erecto na vagina, fazendo vários movimentos sequenciais, para cima e para baixo, até ejacular.

8. Tal aconteceu por número de vezes não concretamente apurado.

9. Quando se encontravam na residência, o arguido dizia para CC ir ter com ele ao quarto.

10. CC, em cumprimento do solicitado pelo arguido, dirigia-se ao quarto deste.

11.  Nessas ocasiões, o arguido introduzia o seu pénis erecto na vagina desta.

12. E fazia vários movimentos sequenciais, alternadamente, em sentido ascendente e descendente, até ejacular.

13. O arguido pedia também a CC para lhe fazer sexo oral.

14. CC pegava com a sua mão no pénis erecto do arguido, fazendo movimentos rotativos para cima e para baixo, e também colocava a sua boca no pénis do arguido.

15. Noutras ocasiões, o arguido também introduziu o seu pénis erecto no ânus de CC até ejacular.

16. O arguido pedia a CC para não contar a ninguém o sucedido.

17. Entre o mês de Junho de 2019, e 25 de Maio de 2020, o arguido praticou condutas semelhantes às supra descritas com a menor CC, em número de vezes não concretamente apurados.

18. Ao longo do período de tempo referido, o arguido praticou actos sexuais de cópula, coito anal e coito oral com CC, por um número de vezes concretamente não apuradas, em pelo menos, 20 distintas ocasiões.

19. Estes episódios aconteceram, essencialmente, quando o arguido se encontrava sozinho em casa com CC, circunstancialismo que aconteceu várias vezes por aquele trabalhar por turnos.

20. O arguido sabia perfeitamente que CC era menor de 16/17 anos, pois era seu padrasto e viviam na mesma casa.

21. O arguido aproveitando-se do facto de ficar sozinho em casa com CC, sua enteada, uma vez que a mãe desta se encontrava a trabalhar fora da habitação durante todo o dia, praticou com e sobre a menor actos de natureza sexual, concretamente cópula, coito anal e coito oral, satisfazendo exclusivamente os seus desejos libidinosos.

22. O arguido, enquanto padrasto de CC, sabia que esta lhe tinha sido confiada pela sua mulher, a fim de lhe prestar todos os cuidados de assistência, na sua ausência.

23. O arguido sabia que à menor, legalmente, em razão de sua idade, não lhe era atribuída a capacidade e discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente.

24. Mais sabia o arguido que um relacionamento sexual com a menor era em abstracto adequado a molestar a sua integridade psicológica e emocional, a prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade e o seu crescimento integral e harmonioso.

25. O arguido agiu, assim, de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de praticar actos sexuais de relevo de cópula, coito anal e coito oral, com a sua enteada, CC, menor de 16/17 anos, para cuja assistência contribuía.

26. O arguido conhecia a proibição e punição de todas as suas condutas.

(…) do CRC do arguido, junto aos autos a fls. 674, “nada consta.

(…) Do relatório social do arguido (…) consta designadamente:

(…) Natural de ..., AA é o mais novo de dois filhos de um casal de progenitores que aparenta ter-se esforçado por lhe proporcionar um ambiente familiar equilibrado, quer a nível afetivo, quer a nível normativo e que dispunha de uma razoável condição económica, assente no desempenho profissional do progenitor como ... e da mãe como ... num … em ....

O arguido iniciou a frequência escolar em idade regular, no entanto, registou a primeira retenção no 1º ano de frequência escolar, aparentemente por não ter sido compreendida uma limitação que já tinha sido diagnosticada relacionada com …. Depois de mudar de estabelecimento de ensino, realizou um percurso escolar regular até ao 8º ano de escolaridade, momento em que voltou a ficar retido na transição de ano, devido ao elevado absentismo que registou, por privilegiar o convívio com grupo de iguais. Aos 18 anos, depois de ter concluído o 10 º ano de escolaridade teve de interromper a aprendizagem para cumprir o Serviço Militar Obrigatório.

Após cumprir o S.M.O., AA ainda tentou retomar os estudos, mas considera que já não se conseguiu adaptar, tendo iniciado o seu percurso profissional com 20 anos por conta da empresa "M..." como …, desempenho que manteve durante aproximadamente um ano, período em que frequentou também cursos de formação profissional em regime noturno (na …; … e …) que lhe permitiram obter equivalência ao 12º ano de escolaridade. Posteriormente, trabalhou ainda cerca de dois anos como … por conta da empresa "S...", vindo a abandonar essas funções na sequência de um incidente que ocorreu no exercício da referida função, em que considera ter corrido risco de vida.

Durante aproximadamente um ano permaneceu desempregado e a receber o subsídio de desemprego, período em que aproveitou para frequentar um curso de …, ministrado no ..., que considera ter facilitado que fosse contratado para trabalhar numa loja especializada em …, a "...", em ..., onde trabalhou cerca de um ano, vindo a ficar desempregado devido ao encerramento da mesma. Pouco tempo depois voltou a trabalhar noutra loja ……, desta feita, por conta da "...", localizada num ..., onde permaneceu durante cerca de dez anos.»


2. Já quanto à fundamentação das penas aplicadas, do acórdão recorrido releva o seguinte:

(…)

“V – ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA PENA E DA SUA MEDIDA

Dos 20 crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, por referência aos artigos 171.º 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal aplicável à data dos factos.


As circunstâncias com relevo na determinação da medida concreta da pena, numa moldura abstracta como a referida, são fundamentalmente as seguintes:

O grau de ilicitude dos factos, traduzido na prática por banda de um homem com 41 anos na sua própria casa, de coito vaginal, anal e oral, com uma jovem com 16 anos, a perfazer 17 anos de idade, num período de tempo que vai até aos 17 (a perfazer 18 anos de idade) desta, é significativo.

Tanto mais, quanto entre ambos existia uma relação de afinidade, sendo então o arguido pessoa que providenciava também, pela assistência da menor (e nessa exacta medida, encontra-se na apurada actuação, a ilicitude compatível com o tipo de crime em apreço).

Actuou o arguido com dolo directo, que é por regra a forma mais grave de manifestação da vontade criminosa, ponderando-se neste conspecto a circunstância do comportamento ter sido praticado sobre menor que é sua enteada, sendo de esperar que essa ligação de proximidade constituísse uma barreira suplementar, impeditiva da respectiva prática (que o arguido quebrou), enfatiza o grau de voluntariedade da conduta criminosa.

Quanto às gravidades das consequências:

É algo de difícil mensuração.

Com efeito, a conduta é empreendida a coberto de um dilema em que forçosamente se coloca a menor, pois que sendo o arguido marido da sua mãe, a vivência de sentimentos de culpa, não só é de supor, como é objectivamente evidenciada nas declarações prestadas para memória futura, e de sentimentos contraditórios, que emergem da circunstância de se ser objecto de comportamentos sexuais empreendidos pelo padrasto, dos quais acaba por gostar, e dos quais vem a retirar prazer.

Contudo, tais actos acontecem já no terço superior da menoridade de CC, numa ocasião em que a líbido desta se mostra já plenamente desenvolvida, e em que, não obstante a situação de menoridade, não se poderão desprezar os sentimentos de gratificação sexual da própria, sendo indubitável que estes existiam no relacionamento ocorrido.

Não havendo notícias nos autos de que a actuação do arguido a tenha condicionado, do ponto de vista do estabelecimento de relações afectivas. E tanto assim é que, presentemente, CC se autonomizou, e já é mãe.

Assim, e sem embargo na vivência dos sentimentos de culpa, acima anotada, não se têm por sensivelmente gravosas, as consequências da impetrada conduta.

As exigências de prevenção geral são deveras elevadas, pela profusão de crimes desta natureza e pelo alarme social que provocam, indo ao encontro da sedimentação da sua gravidade na consciência social, que rejeita veementemente este tipo de actuação a qual, a todos, impressiona.

O arguido confessou os factos apurados, assumindo a sua prática de uma forma que revelou responsabilidade na assunção das consequências da conduta, o que a seu favor se pondera.

Em abono do arguido (ainda que não de forma muito ponderosa, por se tratar do padrão de conduta), vai ainda a circunstância de o mesmo ser delinquente primário, e de até ao momento em que foi preso preventivamente, sempre ter estado social, e laboralmente integrado.

E assim, tudo visto, considerando a moldura penal abstracta dos crimes ora em apreço, tem-se como adequado aplicar ao arguido uma pena de 4 (quatro) anos de prisão, pela prática de cada um dos apurados crimes.


Da pena única:

Quando alguém pratique vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles – e no que ora interessa - é condenado numa pena única que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas e como limite mínimo, a mais elevada das penas aplicadas aos vários crimes.

Na medida da pena, são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente (respectivamente, nºs 1 e 2 do artº 77º do C. Penal).

Nos autos, o limite máximo da pena a ponderar é de 25 anos de prisão, sendo de 4 anos de prisão, o seu limite mínimo.

Na determinação em concreto da pena única, desde logo se pondera que o princípio da proibição da dupla valoração impede que se considerem novamente como factores agravantes ou atenuantes, as circunstâncias que anteriormente alcançaram o mesmo desiderato na fixação das penas parcelares.

Sendo que na correspondente operação, tem-se vindo a entender que “na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante” (neste sentido Figueiredo Dias, “Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 291”).

Ora, nos autos, os factos praticados pelo arguido (contra a mesma menor) decorrem num período que apesar de tudo, não é muito dilatado no tempo (tudo se terá passado em cerca de um ano) sendo que nele, arguido e vítima tiveram entre si, um relacionamento sexual, em tudo (excepto, naturalmente, no que tange à idade da última e à situação de dependência que estrutura o tipo penal dos crimes cuja prática se apura), semelhante às que se estabelecem num casal “comum” (por assim dizer).

Ou seja, o número elevado de actos sexuais que se apura terem sido praticados, inscrevem-se justamente nessa matriz relacional, e nessa exacta medida, não ultrapassam a antedita pluriocasionalidade, o que deverá ser adequadamente reflectido na pena única a aplicar.

Que, tudo ponderado, se fixa em 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.”


1. Foi o arguido condenado, pelo Juízo Central Criminal ..., nos seguintes termos:

“a) - Como autor material na prática, na forma consumada e em concurso real e efectivo, de 20 (vinte) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, por referência ao art. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, por cada um.

b) – E, em cúmulo jurídico das penas parcelares, mencionadas em II. a), na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.”


3. O âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões do recorrente, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal. As conclusões da alegação do recurso definem o seu objeto e delimitam os poderes de cognição do tribunal ad quem, pelo que, in casu, tendo em consideração as conclusões apresentadas, a questão a apreciar respeita à medida das penas, parcelares e única, em que o recorrente foi condenado.


4. Alega, o arguido que a pena aplicada é “severa, injusta e excessiva”, tendo em conta a sua postura colaborante, humilde e responsável, bem como a sua admissão na participação nos crimes pelos quais vinha acusado. Entende ainda que, uma vez que não tem antecedentes criminais e se encontra socialmente integrado, a medida das penas parcelares foi excessiva. Como tal, deverão as mesmas ser reduzidas, a par da pena única, a qual deverá ser fixada no máximo de 5 anos de prisão, sendo suspensa na sua execução.


5. Entende o Senhor Procurador Geral Adjunto no STJ que o acórdão recorrido padece de um lapso no que respeita à medida abstrata aplicável aos crimes em causa, que se situa entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses de prisão. Nesta medida, deverá operar-se uma redução da concreta medida das penas parcelares a impor ao arguido/recorrente – nunca, porém, para um quantum abaixo dos 2 (dois) anos de prisão por cada um dos 20 crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados – mantendo-se a pena única aplicada, de 7 anos e 6 meses, por ser a pena justa, adequada, proporcional e conforme aos critérios legais definidos nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal.

6. Ora, o recorrente foi condenado pela prática de vinte crimes de abuso sexual de menores agravado, previstos e punidos pelo artigo 172.º, n.º 1, por referência ao artigo 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.


7. O artigo 171.º do Código Penal estabelece que:

“1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”


8. Por sua vez, dispõe o artigo 172.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal que “Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.os 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos em relação ao qual exerça responsabilidades parentais ou que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”.


9. Finalmente, o artigo 177.º, n.º 1, alínea a) desse mesmo diploma legal, prevê que a referida pena será agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente.


10. Nesta medida, em face da referida agravação, a medida abstratamente aplicável a cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado (artigo 172.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal) é de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.


11. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal consagra-se uma conceção preventivo-ética da pena, aí se estabelecendo que a sua aplicação tem como objetivos essenciais a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, poderá a pena ultrapassar a medida da culpa.

12. Nesta medida, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena”[1].


13. Por seu turno, o artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal preceitua que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” e, no n.º 2, que “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”


14. Como tal, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”[2].


15. Assim, a operação de determinação da medida concreta da pena tem de ser realizada em função da culpa do agente – que funciona, também, como limite inultrapassável – e das necessidades de prevenção, geral e especial.


16. Ademais, terão de ser consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as elencadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, bem como as exigências de prevenção.


17. As necessidades de prevenção geral positiva visam estabilizar as expectativas comunitárias na validade da norma violada. Desta forma, “(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”[3].


18. Por sua vez, no que respeita à prevenção especial, a mesma divide-se em prevenção especial positiva, visando a reintegração do agente na sociedade, e negativa, com vista a evitar a nova prática de ilícitos penais. Assim, “Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...). A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena»[4].


19. In casu, estamos perante a prática de crimes cujo bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual, ou seja, a vítima é, precisamente, aquela que não é livre para se decidir ao nível do relacionamento sexual, nem dar o seu consentimento válido, em função da sua idade. Trata-se de um ilícito consideravelmente grave e que gera repúdio e alarme por parte da sociedade.


20. As necessidades de prevenção geral são particularmente intensas, atendendo à elevada frequência com que este tipo de crimes ocorre, em especial em ambiente familiar, com consequências extremamente gravosas para as vítimas, muitas das vezes irreversíveis, contribuindo deste modo para a degradação da sociedade em geral e para a insegurança dos cidadãos[5].


21. Paralelamente, as necessidades de prevenção especial são médias altas, militando a favor do arguido as circunstâncias de não ter averbada qualquer condenação no seu certificado do registo criminal, a sua integração social e profissional e o desvalor assumido perante os factos, manifestando, nomeadamente, vergonha, reduzida autoestima e uma acentuada instabilidade emocional.


22. No que respeita à culpa do arguido, encarada como reflexo da ilicitude dos factos, resulta a mesma consideravelmente elevada, tendo em atenção que não podia, de forma nenhuma, desconhecer a gravidade da sua conduta, atendendo, em particular, que tinha uma relação familiar com a vítima, sendo seu padrasto, sendo-lhe particularmente exigido que atuasse de forma protetora no desenvolvimento harmonioso e saudável da vítima, com quem vivia.


23. Mas o arguido agiu com dolo direto, o mais grave, tendo atuado com total intenção de praticar os ilícitos provados nos presentes autos tal como, com clareza, expressamente refere o acórdão recorrido “a circunstância do comportamento ter sido praticado sobre menor que é sua enteada, sendo de esperar que essa ligação de proximidade constituísse uma barreira suplementar, impeditiva da respectiva prática (que o arguido quebrou)” o que “enfatiza o grau de voluntariedade da conduta criminosa”.

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24. Ademais, a ilicitude é relativamente grave, gravidade que a moldura penal respetiva bem evidencia, ainda que os factos tivessem decorrido quando a ofendida tinha entre os 16 e os 17 anos, encontrando-se, assim, já no terço superior da sua menoridade.


25. No entanto, os contactos ocorreram durante um considerável período temporal (praticamente 1 ano), tendo os atos sexuais ocorrido por um número de vezes concretamente não apurado, mas, pelo menos, em 20 (vinte) distintas ocasiões.


26. Paralelamente, o arguido aproveitou-se do circunstancialismo de a sua mulher se encontrar a trabalhar e de ficar na casa de morada família sozinho com a menor, o que lhe permitia não se expor e não ser visto e descoberto para encetar tais contactos sexuais, que passaram por cópula, coito anal e coito oral.


27. Efetivamente o arguido cometeu os crimes no interior da casa de morada da família alargada, que deve ser o último reduto de total segurança e proteção das menores aí residentes e, concretamente, no próprio quarto do casal, que formava com a mãe da menor, num claro quadro de abuso da dependência desta.


28. Acresce que o arguido sempre tomou a iniciativa, buscava a ocasião para a prática dos factos tendo, por algumas vezes, chamado a menor ao quarto onde a instruía e lhe indicava os atos sexuais a praticar.


29. E tão ciente estava da censurabilidade da sua conduta que, ao longo do tempo, pediu à menor para manter segredo, comportamento seguro de que, segundos as regras da experiência, pretendia prolongar o abuso sexual da enteada.


29. Houve, desta forma, um aproveitamento da situação familiar em que a ofendida, a sua irmã e a sua mãe se encontravam, tirando partido da ausência da progenitora, num ambiente que deveria ser de cuidado, de proteção e de segurança para a menor vítima.


29. Acresce que o arguido tinha 41 anos à data dos factos, sendo manifesta a diferença de idades entre si e a vítima.


30. Há-de, portanto, concordar-se que o arguido sabia que os atos praticados por si são aptos a molestar a integridade psicológica e emocional da menor, de prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade e o seu crescimento integral e harmonioso.


31. Por seu turno, como bem se sumaria no acórdão do STJ, de 19.01.2022,[6] (…) II A culpa na execução do facto, estabelece o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente.

III - Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de individualização da pena judicial completa-se com a finalidade de prevenção especial de socialização.

IV O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e do harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal.


32. Tendo em conta todas as referidas circunstâncias, entende-se ser adequada e proporcional às necessidades de prevenção, a pena fixada no acórdão recorrido de 4 anos de prisão para cada um dos 20 crimes de abuso sexual de menor dependente.


33. No que respeita à pena única aplicada em cúmulo jurídico das várias penas parcelares, preceitua o artigo 77.º do Código Penal que:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”


34. Segundo Figueiredo Dias que “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente e político-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena (…) a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização[7].


35. A pena única determina-se, assim, dentro de uma moldura penal, casuisticamente encontrada após a fixação de todas as penas parcelares integrantes de uma determinada soma jurídica de penas. E, na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes aos crimes concorrentes, o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal), o que exige uma especial fundamentação na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção[8].


36. Assim, e conforme referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de julho de 2020[9]:

“I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente.

II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente- exigências de prevenção especial de socialização.”

37. Acresce que “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo”[10].


38. Desta forma, para a determinação da pena conjunta deverá ter-se em consideração uma visão global dos factos, a fim de ser possível apurar a gravidade desse ilícito único (o grande facto), tendo sempre por base as necessidades de prevenção.



39. Ora, em conformidade com o disposto no artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, a moldura abstratamente aplicável ao cúmulo jurídico tem um mínimo de 4 anos e um máximo de 25 anos, sendo que o cúmulo material das penas em concurso atingiria os 80 anos.


40. Assim, ponderadas as exigências de prevenção especial e geral, já referidas em sede de determinação da medida concreta da pena, o grau elevado de culpa com que agiu, o facto global e a personalidade revelada no cometimento do concurso dos crimes cometidos, conclui-se que a pena única de 7 anos e 6 meses encontrada na primeira instância se encontra ao nível do sexto inferior da moldura penal de 4 anos a 25 anos (artigo 77º do CP) e mostra-se conforme ao critério especial estabelecido no art.º 77º n.º 2 do Código Penal, não pecando por excesso.


41. Ao contrário do invocado pelo recorrente em sede de recurso, as circunstâncias de não ter antecedentes criminais, se encontrar social e profissionalmente integrado, ter admitido a prática dos factos e demonstrar consciência do desvalor da sua conduta, foram devidamente tidas em consideração para fixação da medida conjunta da pena, o que, aliás, justifica que a pena única tenha sido fixada bem mais próximo do limiar inferior da respetiva moldura penal (4 anos) e muito distante do seu limite máximo, pelo que terá que considerar-se que a pena encontrada revela equilíbrio adequado entre todas as necessidades em confronto.


42. Nesta senda, como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 27/05/2021[11], na “avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado”.


43. Portanto, partindo das finalidades e dos princípios enunciados, olhando o acórdão, constata-se que o tribunal seguiu os passos legais de ponderação, identificando corretamente as exigências de prevenção geral e especial. E, atendendo às circunstâncias a que o tribunal atendeu, é de reconhecer que a pena aplicada não excede o necessário para assegurar as finalidades da punição, mostrando-se proporcionada e contida no limite da culpa.


44. Face de todo o exposto, a pena única de sete anos e seis meses de prisão obedece ao critério especial do artigo 77º n.º 1 e 2 (o conjunto dos factos e a personalidade do arguido) não valora, de novo, os critérios que serviram para individualizar as penas parcelares, revelando-se adequada às exigências de prevenção geral e de prevenção especial exigidas no caso concreto, encontrando-se, como referido, contida no limite da culpa do arguido.

45. Em conformidade, atenta a medida da pena aplicada e confirmada, está legalmente excluída a suspensão da respetiva execução, não se verificando o pressuposto formal consistente em não ser superior a 5 anos de prisão (artigo 50º do CP).


III. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido recorrente, que se fixam em 6 UC (artigos 513º nº 1 e 514º nº 1 do CPP e 8º nº 9 e Tabela III RCJ)


Lisboa, 18 de maio de 2022


Maria Helena Fazenda (relatora)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Seção)

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[1] DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, página 227.
[2] SILVA, Germano Marques da Siva “Direito Penal Português”, Verbo, Parte Geral, Volume III, página 130.
[3] SANTOS, Manuel Simas e LEAL-HENRIQUES, Manuel, “Noções Elementares de Direito Penal”, Rei dos Livros, 2.ª edição, página 169.
[4] DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, página 241.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de abril de 2022, Processo n.º 308/20.9JAPDL.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Processo 327/17.2T9OBR.S1 - Relator Juiz Conselheiro Nuno Gonçalves
[7] Ob. cit., página 280.
[8] Ob. cit., página 291.
[9] Processo n.º 1667/19.1T8VRL.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de julho de 2020, Processo n.º 74/14.7JAPTM.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Processo 1032/15.0PCSTB.S1. Cf. ainda acórdãos do STJ de 21.11.2012 - Proc. 86/08.0GBOVR.P1. S1, e de 16/06/2016 - Proc.2137/15.2T8EVR.S1, ambos disponíveis em dgsi.pt