INVENTÁRIO
(EX)CÔNJUGE DO HERDEIRO
INTERESSE DIRETO NA PARTILHA
LEGITIMIDADE
Sumário


I – Até à partilha, o herdeiro é apenas titular de uma quota ideal, indivisa, à herança e não de uma fracção em cada um dos bens da herança em concreto.
II – Só após a partilha, transmutando-se o direito à herança em direito sobre coisas concretas, é que esses bens podem integrar a comunhão conjugal, e só a partir daí é que a sua alienação e oneração está dependente de consentimento conjugal.
III – Embora o direito à herança apresente um conteúdo também patrimonial que se comunica ao cônjuge do herdeiro, por via do art. 1732.º do C.C., tal advém do conteúdo pessoal respeitante à qualidade de herdeiro que não se transmite, por forma a conferir-lhe legitimidade para requerer ou intervir a título principal no processo de inventário.

Texto Integral


ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

Nos autos de inventário, por morte de J. P., ocorrida a 21/01/2005, requeridos por M. F., nomeada cabeça-de-casal, pela mesma foi alegado existir acordo das herdeiras quanto à partilha, sem que, contudo, tenham logrado proceder à sua formalização por o seu ex-cônjuge se recusar a assinar a respectiva escritura, apontando, quer, no seu requerimento inicial, quer em sede de declarações, como interessadas:
- a própria, que foi casada com B. C. sob o regime da comunhão geral de bens até 27/01/2009;
- C. F., casada com J. B. sob o regime de comunhão geral de bens;

Ambas sobrinhas do inventariado.
Apresentou ainda, a cabeça-de-casal, relação de bens, constituída por três prédios rústicos e uma sepultura.
Realizadas as citações, foi o indicado B. C., citado na qualidade de interessado do inventário, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art.º 1104.º do Código do Processo Civil, para, no prazo de 30 dias, contados da data da assinatura do aviso de recepção:
· Deduzir oposição ao inventário;
· Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
· Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
· Apresentar reclamação da relação de bens que se junta cópia;
· Impugnar os créditos e as dívidas da herança.
Assim, em 11/10/2021, veio o referido B. C. reclamar contra a relação de bens apresentada sustentando, em suma, que falta relacionar um direito de crédito resultante da venda, há cerca de dois ou três anos, dos pinheiros e eucaliptos existentes num dos prédios rústicos relacionados, mais requerendo que fosse ouvida a cabeça-de-casal em declarações de parte, uma testemunha e fosse realizada a avaliação da madeira cortada.
Em 25/11/2021 a cabeça-de-casal respondeu sustentando que esse crédito inexiste e que, ainda que existisse, sempre teria de ser discutido em sede de acção de prestação de contas, por ter a venda alegadamente ocorrido já após a morte do inventariado e, nessa medida, caber nos poderes de administração da cabeça-de-casal.
Por despacho de 6/01/2022, a fim de aferir da legitimidade de B. C., foi a cabeça-de-casal notificada para, no prazo de dez dias, esclarecer se já foi feita a partilha dos bens do ex-casal constituído por si e por aquele, considerando que o divórcio foi decretado em 27 de Janeiro de 2009, e para juntar a respectiva prova documental.
Nesta sequência, a cabeça-de-casal juntou um documento particular autenticado de partilha, de 27/02/2009, no âmbito do qual a cabeça-de-casal e o reclamante declararam que “foram casados sob o regime da comunhão geral de bens, e por sentença já transitada em julgado, proferida no processo n.º 324/07.6TBVNC, que correu seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Cerveira, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento e dissolvido o casamento.”, declarando, ainda, pretenderem proceder à partilha dos dois referidos bens imóveis identificados (um urbano e um rústico), e que o valor líquido do património comum do casal é de 130.500,00 euros, do qual corresponde a cada meação, respectivamente, o valor de 65.250,00 euros. Mais foi dito pelos interessados “Que, desta forma dão a partilha por realizada.”.
Notificado o reclamante, para se pronunciar, sem impugnar o referido documento particular autenticado de partilha, veio o mesmo alegar que o referido documento apenas procede a uma partilha parcial, tendo permanecendo indivisos outros bens, concretamente os que são objecto de partilha nos presentes autos.

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Após, foi proferida decisão que, a propósito da posição do cônjuge do interessado herdeiro, considerando estar o ex-casal divorciado desde 27/01/2009, realizada a partilha desde 27/02/2009, e não tendo sido realizada qualquer partilha adicional (cfr. artigo 1129.º do CPC), encontrarem-se absolutamente cessadas as relações e os efeitos patrimoniais que existiam entre os dois cônjuges, não se tendo, em consequência, admitido a reclamação apresentada por B. C. em 11/10/2021 contra a relação de bens.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando, veio B. C., interpor recurso, nele concluindo nos seguintes termos:

Considerou-se no douto despacho recorrido que o cônjuge meeiro do herdeiro do inventariado não é interessado directo na partilha na medida em que não tem um direito próprio, contudo, considera o Apelante que não é este o entendimento mais acertado acerca de tal questão.
Esta assente que o Apelante foi casado no regime de comunhão geral de bens com a ora cabeça de casal M. F., casamento dissolvido por divórcio por mutuo consentimento decretado nos autos de processo nº 324/07.TTBVNC.
Na vigência do referido veículo matrimonial, faleceu J. P. autor da herança, tendo deixado disposição de última vontade vertida em testamento, pelo qual instituiu como herdeira testamentária, alem do mais, a sua sobrinha ora cabeça de casal. Consequentemente direito sucessório ilíquido e indiviso a tal herança, passou a integrar, desde então, o património comum do casal formado pelo Apelante e pela cabeça de casal, tudo por efeito do disposto no art. 1732º do CC.
Na sequência de tal divórcio por mútuo consentimento, o Apelante e a cabeça de casal, outorgaram partilha de bens comuns do extinto casal que expressamente constam desse acto de partilha, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls…
Contudo, para alem dos concretos bens então partilhados existiam outros bens e direitos indivisos que integravam o património comum do extinto casal nos termos do art. 1732º do CC, e que por decisão dos ex-cônjuges, se mantiveram indivisos, mormente os direitos que estão a ser partilhados nos presentes autos.
Assim, é indiscutível e ponto assente que o Apelante é titular de metade indivisa daquele quinhão hereditário que adveio á acervo comum dos dissolvido casamento por óbito de J. P., direito que se está a partilhar nos presentes autos.
Sendo titular de tal direito o Apelante é necessariamente interessado direito na presente partilha dos bens que compõem o quinhão hereditário do qual o Apelante é legitimo titular na proporção de metade indivisa, sendo que a outra metade pertence ao seu ex-cônjuge a ora cabeça de casal.
Se assim não fosse, estaria quarquetado ao Apelante o direito de defender a sua parte no património comum ainda que indiviso, quando é certo e seguro que subsiste conflito entre os ex-cônjuge herdeiro testamentário, o que traduziria a negação do direito do Apelante, não juridicamente admissível.
Assim, salvo melhor entendimento e ao contrário do que foi decidido no douto despacho recorrido, o Apelante é parte legitima nos presentes autos, uma vez que também é cotitular, juntamente com a cabeça de casal por força do regime de comunhão geral de bens que vigorou durante o casamento, do direito indiviso ao quinhão hereditário, cuja partilha foi requerida nestes autos, para cujos termos foi citado nos termos do art. 1085º do CPC.
10ªAcresce que é certo que os ex-cônjuges estão divorciados desde 27/01/2009, no âmbito do processo nº 324/07.TTBVNC e por conseguinte o regime jurídico aplicável ao divórcio é o regime anterior á Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, regime que não é aplicável aos processos pendentes nos termos do art. 9º.
11ªConsiderou-se no doutodespacho recorrido queporque ocorreu partilha dos bens que dela constam, «estão absolutamente cessadas as relações e efeitos patrimoniais que existiam entre os dois cônjuges», contudo tal conclusão carece de fundamento, constituindo uma violação dos direitos dos cônjuges a totalidade do património Comum do dissolvido casal.
12ºCom efeito é consabido que os ex-cônjuges não tem qualquer obrigação e proceder a partilha integral dos bens comuns, podendo por acordo dispor cada um desses bens de per si, ou fazer a partilha parcial ou limitada ou fazê-la na sua totalidade.
13ªAcresce ainda que os ex-cônjuges gozam sempre da faculdade de a todo o tempo procederem a partilha adicional de outros bens e direitos comuns que não tenham ainda sido partilhados entre eles, mormente os bens moveis e imoveis que venham a caber-lhes para reenchimento do seu quinhão nos presentes autos de partilha.
14ªÉ assim seguro que o direito indiviso pertencente a ambos os ex-cônjuges referente ao quinhão na herança aberta, nunca foi por qualquermodo entre eles partilhado, pelo que carece de fundamento a conclusão que vem consignada no douto despacho recorrido acerca da cessação dos efeitos patrimoniais que existiam á data do divórcio. É que relativamente a este direito indiviso pertencente a ambos os ex-cônjuges o mesmo mantem-se na sua esfera jurídica inalterável tal qual foi adquirido na constância do matrimónio.
15ªOra, conforme flui da partilha realizada pelos ex-cônjuges, a mesma apenas corresponde á partilha de dois prédios, um prédio urbano comporto por cada de habitação e um prédio rustico, dela não constando qualquer outro bens ou direito, o que quer significar que os ex-cônjuges não pretenderam partilhar a totalidade dos bens que integravam os bens comuns do casal, mormente os direitos hereditários, mas apenas parte desses bens. Tal opção estava na sua livre disposição, pelo que tal menção não teria de constar da partilha outorgada.
16ª Ou dito de outro modo, na partilha que outorgaram os ex-cônjuges outorgantes apenas teriam de especificar expressamente os bens que pretendiam partilhar, como especificaram, já não os demais bens que se manteriam indivisos, sem que daí resultasse qualquer limitação desse direitos.
17ª Ora assim sendo, o douto despacho recorrido, quando faz consignar que estão cessadas as relações relativamente às relações patrimoniais que existiam, corresponde nesta parte a uma declaração de extinção do direito do Apelante a metade do quinhão hereditário integrante do acervo comum do dissolvido casal, que por vontade dos ex-cônjuges nunca foi partilhado, o que, salvo o devido respeito, é de todo inadmissível.
18ª Os direitos dos ex-cônjuges ao acervo comum do dissolvido casal não se extingue, a não ser, nos termos da lei, designadamente ou por acto de disposição dos próprios ou em sede de partilha, pelo que a douta decisão recorrida padece de manifesta falta de fundamento, quando nega ao Apelante o direito ao quinhão hereditário que está a ser partilhado nos presentes autos, violando o disposto no art. art.º 1732ª do Cód. Civil.
19ª Do mesmo modo o Apelante, tem interesse processual em agir, na qualidade de cotitular de bens e direitos que integravam os bens comuns do extinto casal, bens e direitos indivisos adquiridos por via sucessória na constância do matrimónio.
20ª Tendo o Apelante celebrado casamento sob o regime de comunhão geral de bens com a herdeira e cabeça de casal, e tendo a herança sido aberta na pendencia desse casamento, tem interesse direto na partilha, já que o direito à herança faz parte do património comum, conforme art.º 1732ª do Cód. Civil.
21ª O Apelante cônjuge meeiro do herdeiro será de considerar interessado direto na partilha para efeitos do art. 1104 nº 1, o que depende do regime de bens do casamento, que neste caso era o regime de comunhão geral de bens.
22ª Pelo exposto mal andou o Tribunal “a quo” quando considerou que o Apelante não é titular de interesse directo na partilha e por conseguinte não admitiu a reclamação apresentada por este contra a relação de bens, operando uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art. 1732ª do Cód. Civil, e 1104º nº 1 do CPC, pelo que deverá o douto despacho ser revogado e substituído por outro que, considerando o Apelante como interessado direto na partilha e por conseguinte dotado de legitimidade e de interesse em agir, admita a reclamação á relação de bens apresentada com todos os efeitos legais.

Termos em que se requer a v. exas. concedam provimento ao presente recurso de apelação e consequentemente revoguem o douto despacho que considerou que o apelante não tem interesse direto na partilha e consequentemente não admitiu a reclamação contra a relação de bens, substituindo-o por outro que admita a reclamação e ordene o normal prosseguimento dos autos, como é de inteira JUSTIÇA
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Não consta ter sido apresentada resposta às alegações.
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III- O Direito

Como resulta do disposto nos arts.º 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração o objecto do recurso cumpre apreciar e decidir sobre o interesse directo do recorrente na partilha susceptível de admitir a sua reclamação contra a relação de bens.
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Fundamentação de facto

- a matéria jurídico-processual constante do ponto I.
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Fundamentação jurídica

In casu, apresentada a relação de bens pelo cabeça de casal, foi citado o ex-cônjuge da requerente, por indicado como interessado, vindo este apresentar a sua reclamação à relação de bens, o que não foi admitido, por se ter julgado não ser o mesmo interessado directo na partilha.

Dispõe-se no art. 1104.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, na redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, entrada em vigor a 1.1.2020, para o caso que agora nos interessa, que os interessados directos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação:

a) Deduzir oposição ao inventário;
b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
d) Apresentar reclamação à relação de bens;

Por sua vez, diz-nos o art.º 1110.º, do mesmo diploma, que também são notificados para a conferência de interessados os cônjuges dos interessados directos que não sejam casados em regime de separação de bens e, se entre os bens a partilhar constar a casa de morada de família de algum dos interessados, o respetivo cônjuge, ainda que casado em regime de separação de bens, esclarecendo-se, no seu n.º 5, que ‘o[O]s interessados directos na partilha e respectivos cônjuges são notificados com a obrigação de comparência pessoal ou de se fazerem representar, sob cominação de multa’, podendo fazer-se representar por mandatário com poderes especiais ou confiar o mandato a qualquer outro interessado (n.º 6, desse mesmo preceito).
Especificando, ainda, o seu n.º 7, que ‘s[S]e faltar algum dos convocados, a conferência de interessados pode ser adiada, por determinação do juiz, uma só vez e desde que haja razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões com a presença de todos os interessados’.
Por sua vez, preceitua-se no art. 1129.º, n.º 1, do mesmo diploma que ‘q[Q]uando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se a partilha adicional no mesmo processo’.
Por outro lado, no art.1133.º, n.º 1, do citado diploma, para o caso que agora nos interessa, refere-se que decretado o divórcio qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.
Importa, ainda, considerar que, como decorre do disposto no art.º 1732.º do Código Civil que “[s]e o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão geral de bens, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei”.
Acontece que, ocorrendo o divórcio o casamento dissolve-se, fazendo cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, o que implica que, sendo o casamento celebrado sob um qualquer regime de comunhão de bens (comunhão geral ou comunhão de adquiridos), se torna necessário proceder à partilha dos bens comuns do casal.
Os efeitos do divórcio quanto a estas relações retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio (art.ºs 1788.º, 1688.º e 1789.º, n.º 1, todos do Código Civil).
Citando os Profs.. P. Lima e A. Varela in C. Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed. pag. 561“com a ressalva de que os efeitos do divórcio, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, se retroagem à data da proposição da acção, a lei pretende evitar” que “um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha praticar, desde a proposição da acção sobre os valores do património comum”.
A composição do património comum é, portanto, aquela que existia na data da proposição da acção e não em momento anterior e, só os bens (todos) existentes nesse momento devem ser objecto de partilha.
Como tal, na fase processual do relacionamento dos bens, importa definir os bens que devem ser relacionados.
Já o que cada um dos cônjuges pode receber é determinado posteriormente.

No presente caso, os ex-cônjuges celebraram o seu casamento segundo o regime da comunhão geral de bens e o divórcio foi decretado a 27.1.2009, mas instaurado em 2007, como se percebe pelo ano do respectivo processo, pelo que, à data de 21.1.2005, data do falecimento do inventariado, o quinhão hereditário da cabeça de casal constituía um bem comum do casal, face ao regime de bens que vigorava entre eles, dado que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele, tal como decorre do disposto no art. 2031.º, do Cód. Civil.
Pois, nos termos do art. 1733.º, n.º 1, als. a), b) e c), do Cód. Civil, apenas são exceptuados da comunhão os bens doados ou deixados, com a cláusula de incomunicabilidade ou com a cláusula de reversão ou fideicomissária, a não ser que a cláusula tenha caducado, bem como o usufruto, o uso ou habitação, e demais direitos estritamente pessoais, embora os cônjuges não necessitem do consentimento um do outro para aceitar doações, heranças ou legados – cfr. 1683.º, do Cód. Civil.
Posto isto, há que ter em conta que o princípio aferidor do conceito de legitimidade se encontra plasmado no processo de inventário, ao referir mesmo no novo regime do processo de inventário, no art. 1097.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, que o requerimento inicial apresentado pelo cabeça de casal deve identificar os interessados directos na partilha, os respetivos cônjuges e o regime de bens do casamento, os legatários e ainda, havendo herdeiros legitimários, os donatários.
Daqui decorre, como tal, face ao preceituado nos já citados normativos, que os cônjuges dos herdeiros, não são englobados na categoria de interessados directos.
De igual forma no artigo 1327.º, n.º 1, al. a), anterior, referente à legitimidade para requerer ou intervir no inventário, previa-se que quem tinha legitimidade para requerer que se procedesse a inventário e para nele intervir, como parte principal, em todos os actos e termos do processo, eram os interessados directos na partilha.
Acresce que, revestindo o requisito de legitimidade dos interessados a natureza de pressuposto processual, e tratando-se de questão objecto de conhecimento oficioso, sobre a mesma não se constitui caso julgado formal enquanto não for alvo de apreciação concreta por parte do juiz, sendo que as declarações do cabeça de casal não beneficiam de qualquer presunção de fidedignidade e só subsistem enquanto não forem impugnadas (Neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRG de 23-10-2008 (relatora: Rosa Tching), p. 2072/08-2, disponível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, destinando-se o processo de inventário, em primeira linha, a pôr termo à comunhão hereditária, resulta manifesto que o interesse directo na partilha tem de ser aferido ponderando os factos jurídico-sucessórios relevantes para o efeito.
Esta questão da legitimidade do cônjuge do herdeiro tem sido debatida há muito, tendo-se formado essencialmente duas teses da doutrina e na jurisprudência.
Por um lado, sumariamente, temos a posição dos que afirmam a legitimidade do cônjuge do herdeiro para intervir, a título principal, no processo de inventário (e mesmo requerer a sua instauração), invocando não apenas questões substantivas de legitimidade para a alienação ou oneração de bens ou direitos que carecem do consentimento do cônjuge (arts. 1682.º e 1686.º-A do C.C., incluindo nesse âmbito a transmissão mortis causa), mas também motivações de protecção da família (atribuindo relevo aos bens que possam vir a ser transmitidos por sucessão para a economia familiar), e a redacção do art. 2101º, nº 1, do C.C., ao mencionar o cônjuge meeiro (que pretendem também identificar com o cônjuge do herdeiro, e não apenas com o cônjuge do de cuius ou inventariado). Invocam ainda os defensores desta posição que da intervenção do cônjuge herdeiro no processo de inventário pode decorrer a necessidade de pagamento de tornas ou dívidas, designadamente com dinheiro comum, com a inerente afectação do património comum conjugal. Afirmam, assim, os defensores desta tese que o cônjuge tem interesse directo na partilha. Seguindo este entendimento, veja-se João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, respectivamente in “Partilhas Judiciais”, 4ª ed., Almedina, 1990, Vol. I, pp. 93 e 18 e “Partilhas Judiciais”, 6ª ed., Almedina, 2015, Vol. I, pp. 302 e 303.
Ainda nesta linha de pensamento, alguns autores reconhecem essa legitimidade ao cônjuge do herdeiro apenas quando vigore o regime de bens da comunhão geral, baseando-se no facto de os bens a adquirir por sucessão se virem a integrar na comunhão, ou no entendimento de que o direito à herança (não sendo excluído pelo art. 1733º do C.C.) se comunica ao cônjuge por via matrimonial – Neste sentido, veja-se as posições de Rabindranath Capelo de Sousa, in ‘A Posição sucessória do cônjuge sobrevivo…’, pp1186 e 1187, Manuel Augusto Gama Prazeres, in ‘Manual do processo de inventário obrigatório (ou orfanológico) e facultativo (ou de maiores), 1965, pp.47 e 48, entre outros (estes também conferem essa legitimidade ao cônjuge do herdeiro se a casa de morada de família se situar em imóvel integrado na herança), e o decidido pelos Acórdãos da Relação de Coimbra de 03-07-2012, proferido no proc. 45/10.2TJCBR-B.C1, disponível em dgsi, e da Relação de Guimarães de 23-10-2008, in CJ, T.IV, pg.299.
Discordando dessa linha de pensamento, alguma jurisprudência tem negado ao cônjuge do herdeiro legitimidade para requerer e intervir, a título principal, no processo de inventário. Seguindo esta posição, veja-se os Acórdãos da Relação de Évora de 23-03-1999, proferido no processo nº 798/98-3, da Relação do Porto de 09-02-1999, proferido no processo nº 9821477, de 19-09-2000, proferido no processo nº 0020813, e de 14-02-2013, proferido no processo nº 1625/09.4TBPNF-A.P1, e negando essa legitimidade mesmo no regime da comunhão geral, o da Relação de Lisboa de 09-03-2000, proferido no processo nº 0079076, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Passemos nós a tomar posição, levando em conta o já exposto quanto ao teor literal das normas que imperam sobre o inventário e que distinguem interessados directos dos cônjuges destes, bem como ao que infra se exporá.
Como é sabido, pelo casamento, estabelecem-se, além do mais, relações de afinidade entre o cônjuge e os parentes do outro cônjuge – art. 1584º do C.C. Essa fonte de relações familiares não confere, porém, ao afim a qualidade de herdeiro dos parentes do cônjuge, pois esse estatuto não se transmite pelo casamento. Como tal, apenas por via dos efeitos do casamento, a nível patrimonial, se poderá questionar a recondução do cônjuge do herdeiro ao conceito de interessado directo na partilha.
Ora, até à partilha, o herdeiro é apenas titular de uma quota ideal, indivisa, à herança e não de uma fracção em cada um dos bens da herança em concreto, pelo que não revestindo qualquer natureza imóvel não se lhe pode aplicar o regime do art. 1682º-A do C.C., contrariamente ao que é defendido pela primeira tese enunciada.
Pois, só após a partilha, transmutando-se o direito à herança em direito sobre coisas concretas, é que esses bens podem integrar a comunhão conjugal, e só a partir daí é que a sua alienação e oneração está dependente de consentimento conjugal.
Acresce que, como se disse, embora o direito à herança apresente um conteúdo também patrimonial que se comunica ao cônjuge do herdeiro, por via do art. 1732º do C.C., tal advém do conteúdo pessoal respeitante à qualidade de herdeiro que não se transmite, por forma a conferir-lhe legitimidade para requerer ou intervir a título principal no processo de inventário.
Perante as citadas normas, entendemos, pois, que a apontada comunicabilidade patrimonial, ou seja, o regime de bens do casamento, ainda que de comunhão geral, não habilita o cônjuge com essa legitimidade processual de interessado directo na partilha, a não ser como interessado a intervir nos actos e termos que a lei adjectiva prevê e que não contempla o acto praticado pelo recorrente de apresentação à reclamação de bens.
Comunga-se, assim, do entendimento sufragado pelo tribunal a quo, que não admitiu a reclamação apresentada, nos termos e pelos fundamentos expostos na decisão recorrida.
Nestes termos, deve, pois, improceder o recurso interposto.
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IV. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes que integram esta 2ª Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Notifique.
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Guimarães, 9 de Junho de 2022
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária sem observância do acordo ortográfico, à excepção das transcrições efectuadas)