DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
PROVA PERICIAL
OBJECTO DA PERÍCIA
INUTILIDADE
Sumário

I - A fundamentação de um despacho deve, de um modo geral, expressar as razões decisórias (ratio decidendi), ou seja, tal como a sentença, exige a descrição das circunstâncias factuais respeitantes ao objeto do litígio (caso factual), assim como a sua fundamentação de direito (caso jurídico), mediante a indicação da lei (dimensão analítica) e a sua sustentação racional (dimensão argumentativa).
II - Não se verifica a extinção do poder jurisdicional a que se refere o artigo 613.º do CPCivil se o juiz, depois de admitir a prova pericial requerida por uma das partes e com o objecto por ela proposto, vem depois restringir o seu âmbito considerando que parte da autenticidade das assinaturas apostas em alguns documentos já havia sido verificada no âmbito de um processo crime.
III - Nestes casos o que se verifica é uma ocorrência processual posterior ao despacho que admitiu a prova pericial, que determina a inutilidade do seu prosseguimento, pois que definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos actos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
IV - Se o objecto da perícia solicitado pela parte incidia sobre o exame às assinaturas apostas em determinados documentos, o exame pericial realizado no âmbito do processo sobre o veracidade ou falsidade desses mesmos documentos, não torna inútil aquele, mesmo que neste se conclua pela falsidade (viciação) dos documentos em causa.

Texto Integral

Processo nº 2872/17.0T8PNF.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Central Cível de PenafielJ2

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra


Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, residente no Largo ..., concelho ... e BB, residente no Largo ..., concelho ..., intentaram ação declarativa de condenação contra:
CC residente na rua ..., ..., em Penafiel, DD, residente na rua ..., na União de freguesias ..., ... e ..., EE, e FF, residentes na Rua ..., freguesia e concelho ...., com sede na Avenida ..., ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses nos termos e pelos fundamentos vertidos na petição inicial.
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Na petição inicial os AA requereram a título de prova pericial: “(…) a realização de exame pericial às assinaturas apostas nos documentos juntos com os n.ºs 6, 7 e 12, (respetivamente, procuração e termo de autenticação, ratificação e termo de autenticação, procuração e termo de autenticação) a efetuar por organismo oficial (público ou privado), consubstanciando-se o objeto da perícia na resposta aos seguinte quesitos:
- As assinaturas apostas na procuração e termo de autenticação (doc.6) do dia 11 de agosto de 2015 forem feitas pelos punhos dos AA?
- As assinaturas apostas na ratificação e termo de autenticação (doc.7) do dia 22 de setembro de 2015 forem feitas pelos punhos dos AA?
- As assinaturas apostas nas procuração e termo de autenticação (doc. 12) de 7 de abril de 2015 forem feitas pelos punhos dos AA?”
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Na acta de Audiência Prévia de 1 de Março de 2018 (Ata c/saneador), consta o seguinte:
Requer-se nos termos dos art.ºs 467.º e seguintes do CPC a realização de exame pericial às assinaturas apostas nos (originais) dos documentos que serviram de título aos negócios que originaram as hipotecas registadas pela apresentação 309 de 02-12-2014, em nome de GG e pela apresentação 40 de 21-03-2015, em nome de HH, hipotecas estas realizadas sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o número ... e inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., documentos originais estes que os AA protestam juntar aos autos no prazo de vinte (20) dias, por forma a apurar se as assinaturas ali feitas o foram pelo punho dos autores”.
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Nessa mesma acta foi proferido o seguinte despacho:
“C) Fique nos autos a prova documental já junta e, atenta a selecção dos temas da prova que antecede, com referência à defesa excepcional na réplica à matéria da reconvenção (quanto à não constituição pelos AA das hipotecas entretanto extintas, como facto impeditivo do enriquecimento sem causa convocado), concede-se aos autores o prazo de vinte (20) dias para junção aos autos dos originais dos documentos sobre os quais haverá de incidir a requerida perícia, sendo que, nessa parte, a determinação de exame, como requerida, aguardará o prazo de 10 dias para contraditório/pronúncia pelo 2º Réu, a quem importa.
D) Defere-se, por se constituir, de resto, o único meio prova directa da aduzida falsidade das mesmas a prova pericial requerida pelos autores na petição inicial e com o objecto ali proposto, sendo-o ao Laboratório de Polícia Científica. A tomada/recolha de assinaturas aos autores aguardará a decisão sobre a ampliação do objecto da perícia a realizar a outros documentos, nos termos que antecedem.
I) Considerando que o exame pericial a realizar deverá incidir sobre os originais dos documentos cuja assinatura vem posta em causa, aqueles apensos por linha ao procedimento cautelar, manter-se-ão até ao termo final desta acção.
Dê nota ao Exm.º remetente.
Solicite ao Ex.mo Solicitador melhor identificado nos documentos sob os ns.º 11 e 12 juntos com a petição o original do documento ali junto sob o n.º 12 (procuração e autenticação de assinatura), posto que destes autos e do apenso apenas constando cópia, insuscetível, pois, de bastar à perícia”.
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Por requerimento de 2/6/2018 os Autores juntaram aos autos “certidão extraída dos autos do processo n.º102/16.1TRPRT que corre seus termos no Juízo de Instrução Criminal do Marco de Canaveses (Juiz 1), pretendendo com esta fazer prova da falsidade do documento junto pelo solicitador Dr. II no seu último requerimento”.
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Por requerimento de 13/6/2018 o 2.º Réu veio aos autos dizer, em síntese, que o teor do documento não permite concluir que as procurações em causa nos presentes autos, incluindo as cópias certificadas que foram juntas pelo solicitador Dr. II, são falsas, razão pela qual a perícia requerida no âmbito os presentes autos mostra-se assim, e ainda, imprescindível para o apuramento da verdade dos factos.
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Em 23/06/2021 os Autores apresentaram requerimento nos autos, expondo que: “No Processo Comum Singular com o n.º 1960/17.8T9PNF que corre termos no Juízo Local Criminal de Felgueiras, encontra-se já devidamente consolidado o resultado do relatório pericial referente ao exame grafológico efectuado às assinaturas dos AA. e do réu, CC e que teve como objecto a procuração em causa nos presentes autos. Também no processo com o n.º 102/16.1TRPRT, do Juízo Central Criminal de Penafiel–Juiz 1, encontram-se dois exames grafológicos às assinaturas dos referidos AA. E Réu e os respectivos relatórios”, em consequência do que requereram que fosse ordenada a junção aos autos das certidões dos resultados de tais exames e, também, dos relatórios realizados naqueles supra identificados processos para que os presentes autos possam prosseguir para julgamento.
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O ora recorrente opôs-se à junção dos relatórios.
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A 15/9/2021 foi proferido o seguinte despacho: “Solicite aos autos melhor identificados no requerimento do Autor certidão de teor integral dos relatórios de exame pericial realizados às assinaturas constantes das procurações em apreço nos autos. Juntos aqueles, notifiquem-se as partes, decidindo-se, oportunamente, caso seja reiterada a oposição à consideração respectiva, da necessidade de realização ainda de perícia nestes autos”.
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Após a junção da citada certidão foi então, em 15/02/2022, proferido o despacho recorrido com o seguinte teor:
Verificados agora os documentos quanto aos quais foi efectivamente realizada nos autos de processo comum já id., a verificação pericial da autoria das assinaturas pelos AA de documentos, importa concluir que o exame pericial ali realizado apenas se debruçou sobre o artigo 4º dos temas da prova e por isso que apenas e só sob os documentos sob a alínea D) dos factos assentes.
Nessa parte, pois e independentemente de alguns dos RR não terem tido intervenção na definição do objecto da perícia, sendo que esta tem exactamente aquele ordenado nestes autos e sempre foi realizada pela entidade oficial legalmente competente, cabe atender ao exame já realizado, que conclui pela falsidade das assinaturas naquela ratificação e termo de reconhecimento, restringindo-se o objecto da perícia nestes autos a levar a cabo, que, por desnecessária ou redundante, não abrangerá a verificação da autenticidade daquelas assinaturas.
No mais, inexistindo coincidência com os documentos quanto aos quais houve lugar naquele processo comum a exame (o que, lamentavelmente e por razões que nos são alheias demorou tempo a elucidar, sendo certo que sequer os AA terão alcançado a manifesta ausência de sincronismo quanto às procurações objecto de averiguação de autenticidade naqueles e nestes autos?!), cabe determinar a realização da prova pericial tal e qual já ordenada. Isto quanto à perícia ordenada com referência à petição inicial, conforme alínea D) da decisão sobre a instrução da causa em sede de audiência prévia/saneador.
É que, quanto agora à perícia referida sob a alínea C) da mesma decisão sobre os meios de prova, a que era a incidir sobre a autenticidade das assinaturas constantes das procurações que serviram/fundaram a outorga das hipotecas, a mesma está realizada/cumprida/executada, no sentido da respectiva falsidade, nos pontos XVII e XIX do relatório pericial levado a cabo no processo crime respectivo. Reitera-se a supra afirmada suficiência e atendibilidade neste processo e a inexistência de qualquer contraditório a salvaguardar que invalide a respectiva validade e consideração. Por isso que, também nessa parte inútil a realização de nova perícia, pela mesma entidade e com o mesmo objecto, sem que se anteveja qual a “intervenção” postergada a que apelam os RR que pugnam pela desconsideração da perícia levada a cabo no processo crime… Por isso que, concluindo, a perícia a realizar apenas terá por objecto a determinação da autoria pelos AA das assinaturas das procurações aludidas nas alíneas C) e H) da matéria assente.
Notifique e DN à realização célere da perícia.
Penafiel, d.s.”.
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Não se conformando com o assim decidido vem agora o 2ª Ré interpor recurso, concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o despacho recorrido padece das nulidades que lhe vêm assacadas;
b)- saber se quando foi proferido o despacho recorrido já se havia extinto o poder jurisdicional, relativamente ao objecto da prova pericial requerida;
c)- saber se houve erro de julgamento, quando o tribunal recorrido restringiu a prova pericial às alíneas C) e H) da matéria assente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual que importa considerar para a decisão das questões supra enunciadas é que a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se a decisão padece da nulidade estatuída nas al. b) e d) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil.
Nas conclusões XVII, XVIII e XXIII alega o recorrente que o despacho recorrido padece, ainda de falta de fundamentação, ao não aduzir qualquer facto que identifique os documentos sobre a qual, alegadamente, terá incidido a verificação pericial da autoria das assinaturas dos AA, bem como, o fundamento técnico que tenha permitido concluir pela dita falsidade.
Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A referida está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.[1]
No que se refere aos despachos, aplica-se a mesma disciplina por força do disposto no artigo 613.º, nº 3 CPCivil, razão pela que a fundamentação de um despacho exige a descrição das circunstâncias factuais respeitantes ao objeto do litígio (caso factual), assim como a sua fundamentação de direito (caso jurídico), mediante a indicação da lei (dimensão analítica) e a sua sustentação racional (dimensão argumentativa).
Na situação concreta trazida em apelação, por mais críticas que possa merecer a sua frugalidade, tem de reconhecer-se que a fundamentação da decisão não é inexistente nem padece de insuficiência que impossibilite os seus destinatários de apreender as razões justificativas–independentemente de ser deficiente, incompleta e/ou não convincente, não pode considerar-se que a fundamentação apresentada seja, de todo em todo, inexistente ou que padeça de deficiência que comprometa a exposição das razões para a decisão tomada (ou que a justificação seja incompreensível).
Reconhecendo-se que a decisão apelada não elencou, autónoma e separadamente (como exigido pela estrutura assinalada para as sentenças e despachos-artigos 607.º, nº 3 e 4 e 613º, nº 3 do CPCivil) os factos que teve por provados e relevantes para a questão a apreciar, não pode recusar-se que a eles aludiu, ao referir-se, logo no início do despacho, à verificação dos documentos que foram objecto de perícia no âmbito do processo comum e, mais à frente, quanto à inexistência de coincidência com os restantes documentos que também foram objecto de tal perícia e, por último, no se refere à autenticidade das assinaturas constantes das procurações que serviram/fundaram a outorga das hipotecas.
Igual conclusão (suficiência e inteligibilidade) vale para a fundamentação jurídica da decisão apelada ao apresentar a argumentação que teve por pertinente para restringir o objecto da perícia às alíneas C) e H) da matéria assente (fixada, bem entendido, no âmbito audiência prévia).
À apreciação da nulidade da decisão por falta de fundamentação não interessa curar do acerto e justeza dos fundamentos elencados na decisão (do seu desacerto, da sua deficiência ou da sua incompletude–ou seja, não está em causa o erro do julgamento, a injustiça da decisão e/ou a sua não conformidade ao direito)–importa é apurar se a decisão se mostra fundamentada, ou seja, alicerçada em argumentos que a suportem, independentemente de eles se mostrarem incompletos, deficientes, não convincentes ou mesmo desacertados.
Ora, a decisão recorrida aludiu a factualidade que teve por relevante e aduziu (bem ou mal, não interessa) que a situação justificava a restrição do objecto da perícia, concluindo que, por desnecessária ou redundante, não abrangeria a verificação da autenticidade das assinaturas constantes da al. D) dos factos assentes, por já ter sido objecto de perícia no âmbito do referido processo comum, assim como à autenticidade das assinaturas constantes das procurações que serviram/fundaram a outorga das hipotecas que ruações .
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Conclui-se, assim, que a decisão se mostra fundamentada na aludida justificação – fundamentação intrinsecamente coerente (convincente ou não, procedente ou não, tal não releva).
Decorre do exposto não se verificar a arguida nulidade no concernente à cita al. b) do nº 1 do já citado artigo 615.º.
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No que se refere à al. d) do nº 1 do mesmo preceito, o recorrente não especifica, em concreto, o fundamento para a invocada nulidade, ou seja, em que se traduz a omissão ou excesso de pronúncia, nem, aliás, refere em qual dessas vertentes se verificaria.
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Improcedem, desta forma, as formuladas conclusões.
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A segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se quando foi proferido o despacho recorrido já se havia extinto o poder jurisdicional, relativamente ao objecto da prova pericial requerida;
Nos termos do artigo 613.º, nº 1 do CPCivil proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de rectificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença (cfr. nº 2 do mesmo preceito).
Da rectificação dos erros materiais ocupa-se o preceito imediato (artigo 614.º, o qual autoriza o juiz, por sua iniciativa, a corrigir por simples despacho os “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, rectificação que pode ter lugar a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz e a todo o tempo no caso de nenhuma das partes recorrer da decisão.
Este desvio ao princípio da intangibilidade da decisão consagrado no n.º 1 do citado artigo 613.º, válido para o erro de cálculo e quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, justifica-se pela circunstância da vontade declarada na sentença (ou despacho) não corresponder à vontade do juiz, por não fazer sentido “que subsista vontade diversa daquela que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho”,[2] ficando obviamente de fora o erro de julgamento.
Acentua-se, pois, que a possibilidade de modificação oficiosa da sentença está prevista para o erro material ou de cálculo, exigindo a lei que o mesmo seja manifesto, sendo pois necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro ou engano, tendo escrito uma coisa quando, de forma evidente, queria escrever outra.[3]
Ampliando o âmbito de reforma da sentença, o artigo 616.º prevê ainda a sua alteração quando eivada de manifesto e inquestionável erro de julgamento devido a lapso, em dois casos escolhidos: quando tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (al. a); quando constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida-vg. o juiz desconsiderou documento dotado de força probatória plena que, por si só, era bastante para inverter o sentido do decidido- hipótese considerada na al. b).
Todavia, e como decorre clara e inequivocamente do preceito que se analisa, a iniciativa dessa reforma cabe exclusivamente às partes, exigindo ainda a lei que da decisão não caiba recurso.
Portanto, fora das situações previstas nos referidos preceitos legais, não tem o Tribunal o poder jurisdicional para alterar a decisão proferida, já que o mesmo se esgotou com a prolação de tal decisão (cfr. citado artigo 613.º, nº 1).
Com efeito, escreve Amâncio Ferreira[4], “editada a sentença (ou o despacho ou o acórdão) fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (artº 666º, nº 1). Não pode consequentemente o Juiz, por sua iniciativa, alterar a sentença depois de proferida, quer na parte da decisão, quer na parte dos fundamentos que a suportam. Mesmo que após a sua prolação, no imediato ou algum tempo depois, adquira a convicção de que errou ou se torne para ele evidente que a decisão desrespeitou o quadro legal vigente, não a pode já emendar. A decisão torna-se intangível para o seu autor”.
A razão pragmática do princípio da extinção do poder jurisdicional, do qual decorre, como se referiu, a impossibilidade do juiz, por sua iniciativa, proceder à modificação da decisão proferida “consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional (…) sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”. [5]
Acontece que, respeitando-se, entendimento diverso, no caso em apreço, não se nos afigura que a decisão recorrida consubstancie violação da extinção do poder jurisdicional.
Efectivamente, segundo entendimento do tribunal recorrido, o que se verifica é uma ocorrência processual posterior ao despacho proferido na audiência prévia que admitiu a prova pericial nos moldes referidos no relatório supra, que determina a inutilidade do seu prosseguimento por desnecessária ou redundante no que que tange à verificação da autenticidade das assinaturas constantes da al. D) dos factos assentes, bem como sobre os as procurações a que se refere a al. C) da decisão sobre os meios de prova (acta da audiência prévia).
Inutilidade essa, que adviria de a verificação das referidas assinaturas já ter sido objecto de perícia no âmbito do processo comum nº 102/16.1TRPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este–Juízo Central Criminal de Penafiel–J2.
Ora, definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor[6] cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos actos inúteis.
O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes–desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611.º do CPCivil, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608.º n.º 2 do mesmo diploma legal, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Isto dito e chamando à colação o citado princípio, torna-se evidente que se verificaria a sua violação, se o tribunal recorrido entendendo que, relativamente aos documentos constantes da al. D) da matéria assente e procurações a que se refere a al. C) da decisão sobre os meios de prova, os mesmos já haviam sido objecto de perícia no mencionado processo crime e nos moldes requeridos nos presentes autos, não restringisse o objecto da perícia a levar a cabo nestes autos, que também abarcava os citados documentos.
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Diante do exposto, respeitando-se entedimento diverso, não existe violação da extinção do poder jurisdicional a que se refere o artigo 613.º do CPCivil, improcedendo, assim, as conclusões I a XIII formuladas pelo recorrente.
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A terceira questão colocada no recurso consiste em:
c)- saber se houve erro de julgamento, quando o tribunal recorrido restringiu a prova pericial às alíneas C) e H) da matéria assente.
Como se referiu no relatório supra, na petição inicial os Autores solicitaram a realização da prova pericial às assinaturas apostas nos documentos juntos com os n.ºs 6, 7 e 12, (respetivamente, procuração e termo de autenticação, ratificação e termo de autenticação, procuração e termo de autenticação) a efetuar por organismo oficial (público ou privado), consubstanciando-se o objeto da perícia na resposta aos seguinte quesitos:
- As assinaturas apostas na procuração e termo de autenticação (doc.6) do dia 11 de agosto de 2015 forem feitas pelos punhos dos AA?
- As assinaturas apostas na ratificação e termo de autenticação (doc.7) do dia 22 de setembro de 2015 forem feitas pelos punhos dos AA?
- As assinaturas apostas nas procuração e termo de autenticação (doc. 12) de 7 de abril de 2015 forem feitas pelos punhos dos AA?
Perícia essa que, como acima se referiu, foi admitida e com o referido objecto.
A Srª juiz do processo no despacho recorrido considerou que o exame pericial realizado no processo comum nº 102/16.1TRPRT, incidiu sobre o documento 7 junto à petição inicial datado de 22 de Setembro de 2015- denominado “ratificação” e no termo de autenticação da ratificação [referidos em D) dos factos assentes no despacho saneador]) onde se conclui pela falsidade das assinaturas aí apostas.
Não se pode, salvo o devido respeito, sufragar este entendimento.
Na verdade, o exame realizado no citado processo nº 102/16.1TRPRT não incidiu sobre o documento 7 (Ratificação e Termo de Autenticação) junto à petição inicial, nem sobre as assinaturas aí apostas.
Com efeito, a ratificação e termo de autenticação que foram objecto de exame realizado no citado processo mencionados em 08 e 09 (fls. 137 e 138) do respectivo relatório reportam-se a:
08 – Um “Termo de Autenticação” de um documento denominado de ratificação, emitido por JJ, onde constam os nomes dos outorgantes AA e BB e a data 11 de Agosto de 2015 (Doc. a fls. 137);
09 – Uma “Ratificação” a qual ratifica um contrato, onde constam os nomes dos declarantes AA e BB, o local Penafiel e a data 21 de Setembro de 2015 (Doc. a fls. 138)”.
Ora, comparando estes dois documentos, que foram juntos aos autos a 19/01/2022 Ref. Citius 7647261-cópias de fls. 137 e 138, com o documento 7 junto à petição inicial e sobre os quais deveria incidir a perícia, verifica-se:
Do Termo de Autenticação
O Termo de Autenticação do Relatório do processo 102/16 (a fls. 137) foi “registado na Ordem dos Advogados sob o n.º ..../... e tem data de 11 de Agosto de 2015.
Já o Termo de Autenticação constante do documento 7 da petição inicial indica “registado na Ordem dos Advogados sob o n.º ..../... e tem data de 22 de Setembro de 2015”.
Da Ratificação
A Ratificação do Relatório do processo 102/16 (a fls. 138) tem a data de 21 de Setembro de 2015;
A Ratificação constante do documento 7 da petição inicial tem a data de 22 de Setembro de 2015.
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Por outro lado, o exame realizado sobre os documentos que constam de 08 e 09 do Relatório do processo 102/16, refere expressamente:
“VIII. O “Termo de Autenticação” descrito na alínea 08 (Doc. a fls. 137) é uma reprodução integral, obtida por electrofotografia monocromática, do documento da alínea 15 (Doc. a fls. 144), com excepção dos traços manuscritos a lápis de carvão.
VIII.1 O documento não revela vestígios nítidos de viciação.
IX. A “Ratificação” descrito na alínea 09 (Doc. a fls. 138) é uma reprodução integral, obtida por electrofotografia monocromática, do documento da alínea 12 (Doc. a fls. 141), com excepção dos traços manuscritos a lápis de carvão.
IX.1 O documento não revela vestígios nítidos de viciação”.
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Diante do exposto, sem margem para qualquer tergiversação, que os documentos que foram objecto de perícia no citado processo comum e os juntos com a petição inicial (doc. 7), não são os mesmos, além de que tal perícia não incidiu sobre as assinaturas aí apostas.
Na verdade, a referida perícia foi realizado sobre o teor dos documentos e não sobre as assinaturas aí apostas, não constando, aliás, do referido relatório que tenham sido recolhidos autógrafos para esse efeito, razão pela qual não se divisa como é que o tribunal recorrido chegou à conclusão de que as assinaturas apostas nesses documentos eram falsas.
É que o documento é falso quando não corresponde à realidade, o que tanto pode ocorrer com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica).
Diferente, é falsidade da assinatura, ou seja, a assinatura aposta no documento não foi feita pelo punho do seu titular, mas por um terceiro.
Ora, no caso em apreço, o relatório nem sequer conclui pela falsidade de tais documentos, pois que nele se refere que os mesmos não apresentam vestígios de qualquer viciação.
Como afirmar então que as assinaturas neles apostas são falsas.
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Analisemos agora a questão das procurações.
Como resulta do relatório supra, na audiência prévia os Autores ditaram para o seguinte requerimento:
Requer-se nos termos dos art.ºs 467.º e seguintes do CPC a realização de exame pericial às assinaturas apostas nos (originais) dos documentos que serviram de título aos negócios que originaram as hipotecas registadas pela apresentação 309 de 02-12-2014, em nome de GG e pela apresentação 40 de 21-03-2015, em nome de HH, hipotecas estas realizadas sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o número ... e inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., documentos originais estes que os AA protestam juntar aos autos no prazo de vinte (20) dias, por forma a apurar se as assinaturas ali feitas o foram pelo punho dos autores”.
Nessa sequência a Srª juiz do processo ditou para a o seguinte despacho:
“C) Fique nos autos a prova documental já junta e, atenta a selecção dos temas da prova que antecede, com referência à defesa excepcional na réplica à matéria da reconvenção (quanto à não constituição pelos AA das hipotecas entretanto extintas, como facto impeditivo do enriquecimento sem causa convocado), concede-se aos autores o prazo de vinte (20) dias para junção aos autos dos originais dos documentos sobre os quais haverá de incidir a requerida perícia, sendo que, nessa parte, a determinação de exame, como requerida, aguardará o prazo de 10 dias para contraditório/pronúncia pelo 2º Réu, a quem importa”.
No despacho recorrido considerou-se em relação à perícia a que alude a antecedente al. C), a incidir sobre a autenticidade das assinaturas constantes das procurações que serviram/fundaram a outorga das hipotecas, a mesma está realizada no sentido da respectiva falsidade tendo em conta o afirmado nos pontos XVII e XIX do relatório pericial levado a cabo no processo crime.
Também aqui, salvo o devido respeito, se não pode concordar com semelhante asserção.
Com efeito, o que se afirma no apontado relatório pericial é que as procurações em causa são falsas, nele não se conclui que as assinaturas aí aposta sejam falsas, valendo aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações feitas a propósito da al. D) da matéria assente, isto é, as assinaturas apostas nos referidos documentos não foram objecto de perícia.
Aliás, diga-se, isso mesmo é referido pelos próprios Autores no requerimento que impetraram nos autos em 29/06/2018 cujo excerto se transcreve:
“1. O exame pericial levado a cabo no processo n.º 102/16.1TRPRT, e do qual foi extraída certidão junta pelos AA., teve por objeto a determinação da autenticidade ou falsidade dos documentos alvo de buscas;
2. Não teve, pois, como objeto apurar da veracidade ou falsidade da letra ou assinatura dos AA, junto dos quais jamais houve qualquer recolha de autógrafos”(negritos e sublinhados nossos)
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Procedem, desta forma, as conclusões XIV, XV, XVI, XX a XXIV e, com elas o respectivo recurso, em razão do que, a prova pericial deverá incidir sobre as assinaturas aos documentos referidos nas alíneas C), D) e H) da matéria assente, assim como sobre as assinaturas constantes dos originais das procurações que serviram de título aos negócios que originaram as hipotecas registadas pela apresentação 309 de 02-12-2014.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, determina-se que a prova pericial incida sobre as assinaturas os documentos referidos nas alíneas C), D) e H) da matéria assente, assim como sobre as assinaturas constantes dos originais das procurações que serviram de título aos negócios que originaram as hipotecas registadas pela apresentação 309 de 02-12-2014, tudo nos moldes requeridos pelos Autores.
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Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 23 de Maio de 2022.

Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Neste sentido, ver Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 140 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 669.
[2] Cfr. A. dos Reis, CPC anotado, vol. V, pág. 130.
[3] Cfr. autor e ob. cit. na nota anterior , pág. 131/132.
[4] In Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, Almedina, 2009, p. 47.
[5] Professor Alberto dos Reis, obra citada pág. 127.
[6] Cfr. Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág. 11.