RECUSA A DEPOR
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO TIPO
Sumário

I - No crime de recusa a depor previsto no art. 360º nº2 do CP a expressão legal “sem justa causa” integra os pressupostos típicos de punição, devendo constar na acusação, sob pena da mesma dever ser rejeitada nos termos do art.311º do CPP ou determinar a absolvição a jusante.
II - A receção no tipo legal da causa de justificação delimitando a ilicitude e negativamente o tipo, impõe que o MP investigue em inquérito da ausência de justa causa e descreva na acusação essa circunstância.”.

Texto Integral

Processo n º 1955/19.7T9GDM.P1


Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No processo comum que correu termos no Juízo Local Criminal de Gondomar da Comarca de Porto, procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, após o que foi proferida sentença que julgando totalmente improcedente a acusação decidiu-se “Absolver o arguido AA da prática do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução p. e p. pelo art. 360º, nºs 2 e 3, do Código Penal, de que se encontrava acusado

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Não se conformando com a decisão, o Ministério Público veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes conclusões:
1- O Ministério Público não se conforma com a sentença recorrida, que decidiu absolver o arguido da prática do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.º 2 e 3, do Código Penal.
2- Dos factos provados na douta sentença recorrida resulta, indubitavelmente, que o Tribunal a quo não duvidou que a conduta do arguido se reconduz à prática do crime de que vinha acusado.
3- Contudo, entendeu o Tribunal a quo que falta, pois, ao libelo em questão a narração de um facto que constitui elemento do tipo e sem o qual a conduta do arguido não pode reputar-se de ilícita: a inexistência de justa causa para a recusa.
4- Não concordamos com tal entendimento, por se entender que a expressão “justa causa” configura uma causa de exclusão de ilicitude e não um elemento do tipo de crime, pelo que, não tem a acusação de fazer referência a tal circunstância na narração dos factos, alegando que o arguido atuou “sem justa causa”.
5- O artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código Processo Penal, impõe a narração na acusação de factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que, referir na acusação que o arguido atuou “sem justa causa” consubstancia a utilização de um conceito de direito. E, na acusação devem ser narrados factos e não conceitos de direito.
6- Não seria exigível à acusação, atento o carácter geral e abstrato dos tipos justificadores, bem como o leque de situações passíveis de consubstanciar causas de justificação, narrar factos destinados a demonstrar a inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude.
7- No caso concreto, resulta da motivação da sentença, que o arguido não quis identificar a pessoa que lhe dava boleia por não considerar correto fazê-lo sem o informar antes, resultando, assim, evidente, que o motivo invocado pelo mesmo para a recusa não constitui qualquer “justa causa”, pelo que deveria ter sido condenado pela prática do crime em questão.
8- Nesse âmbito, da factualidade provada resultam preenchidos os elementos objectivos e subjetivos do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução previsto e punido pelo artigo 360.º, n.º 2 e 3, do Código Penal, pelo qual o arguido vinha acusado.
9- O Tribunal a quo, ao decidir absolver o arguido da prática do crime de que vinha acusado por entender que não se encontravam verificados os respetivos elementos objetivos do crime, violou o disposto no artigo 360.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução previsto e punido pelo artigo 360.º, n.º 2 e 3, do Código Penal, assim se fazendo a INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA.
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A este recurso não respondeu o arguido.
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Neste tribunal de recurso o Digna Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, pugna pela improcedência do recurso. No essencial, o objeto do recurso interposto pelo Ministério Público ancora na questão de saber se a expressão «sem justa causa», constante do artigo 360.º, n.º 2, do Código Penal, integra o tipo objetivo do crime de recusa de depor ou configura uma causa de exclusão de ilicitude.
Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a posição da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, aderindo-se à correta e muito bem fundamentada argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por transcrita, na sua Motivação e Conclusões do Recurso interposto. Assim, e não se desconhecendo que a questão que cumpre decidir não tem merecido resposta unânime por parte dos tribunais, designadamente da Relação, e ponderando as diversas correntes jurisprudenciais mencionadas na Motivação de Recurso, e sempre com o salvo e devido muito respeito por diferente entendimento, nesta matéria, aderese ao entendimento jurisprudencial sufragado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/01/2015, processo n.º 354/13.9TAMDL.G1, tendo sido relator o Exmo. Senhor Juíz Desembargador, Dr. Fernando Monterroso e, posteriormente, também sufragado, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/05/2020, processo n.º 6399/18.5T9CBR.C1, tendo sido relatora a Exma. Senhora Juíza Desembargadora, Dra. Maria José Nogueira, bem como se acolhe a posição sustentada por Paulo Pinto de Albuquerque no «Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», 3.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 1131. A ser assim, também sustentamos que a expressão «sem justa causa» configura uma causa de exclusão de ilicitude e não um elemento do tipo de crime, pelo que, não tem a acusação de fazer referência a tal circunstância na narração dos factos, alegando que o arguido atuou «sem justa causa». Daí que a sentença absolutória proferida deverá ser revogada e substituída por outra que condene o arguido AA pela prática de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal.
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Pelo exposto, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, a sentença proferida deverá ser revogada e substituída por outra que condene o arguido AA pela prática de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.ºs 2 e 3, do Código Pena
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada mais foi acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

Deste modo integram o objecto do recurso:
- a questão de direito respeitante à integração típica do crime pelo qual o arguido estava acusado.
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Do enquadramento dos factos.
Da sentença recorrida resultaram provados os seguintes os factos, com relevância para a causa:
“Em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação contra AA, casado, operário da construção civil, nascido a .../.../1972, filho de BB e de CC, natural da freguesia ..., Concelho ..., titular do C.C. nº ..., residente na Rua ..., ..., imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução p. e p. pelo art. 360º, nºs 2 e 3, do Código Penal.
O arguido não apresentou contestação.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.
Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância que presidiram à prolação do despacho que designou dia para julgamento, não subsistindo nem sobrevindo quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
II. Fundamentação
Matéria de facto
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. Correu termos pelo Juízo de Família e Menores – Juiz 3, do Tribunal Judicial de Gondomar, o processo de regulação das responsabilidades parentais n.º 1029/17.5T8GDM, em que figurava como requerente DD e como requerido EE.
2. Nesse processo era testemunha o aqui arguido EE.
3. No decurso da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 4 de março de 2019, durante a manhã, quando a Mma. Juiz lhe perguntou se jurava dizer a verdade, o arguido jurou fazê-lo.
4. Posteriormente foi-lhe perguntado várias vezes pelo Digno Procurador da República o nome do colega que lhe dava boleia de carro e o arguido respondeu que não podia dizer o seu nome.
5. A determinada altura, a Mma. Juiz, ao ver que o arguido mantinha a sua recusa em responder àquela pergunta, interveio e disse ao arguido que ele estava a praticar um crime.
6. O arguido entendeu o significado e alcance dessa advertência, bem como das consequências penais que lhe poderiam advir se mantivesse a sua recusa em responder àquela pergunta.
7. Não obstante, o arguido persistiu em não lhe responder.
8. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que não podia recusar-se a responder a tal pergunta.
9. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que:
10. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
11. O arguido está desempregado, trabalhava na construção civil, recebe €180,00 de RSI, vive com a mulher, dois filhos e a sogra, uma das filhas contribui economicamente para as despesas domésticas, paga €235,00 de renda de casa, “mal sabe ler e escrever” (sic).
Factos não provados
Inexistem.

III. Convicção do Tribunal
A convicção do tribunal assenta na análise dos seguintes meios de prova:
- Declarações prestadas pelo arguido, tanto em sede de julgamento como em inquérito, estas porque precedidas da advertência constante dos artºs 141º, nº 4, alª e) ex vi artº 144º, nº 1, ambos do CPP.
- Certidão da ata da audiência de julgamento do dia 4.3.2019 (fls. 1 a 9).
- Transcrição do depoimento do aqui arguido na referida audiência (fls. 19 a 52).
Ora,
O arguido confessou de forma livre integral e sem reservas a sua conduta na audiência de julgamento do tribunal de família e menores na qual interveio como testemunha. Referiu que não quis identificar a pessoa que lhe dava boleia por não considerar correto fazê-lo sem o informar antes.
A ata atrás enunciada identifica o ato processual aqui em questão, a data da sua realização e a ajuramentação do ora arguido.
A transcrição de fls. 19 a 52 ilustra a dinâmica da sua inquirição e a sua postura perante as perguntas que lhe foram feitas a respeito da identificação do indivíduo que lhe dava boleia.
Na verdade, há um ponto ao qual tem que ser dado o devido enfoque. Na realidade, se virmos as linhas 8 a 19 de fls. 23, na ajuramentação do arguido a Mma. Juiz fez-lhe notar apenas que tinha que falar com verdade, mas não que era obrigado a responder às perguntas que lhe foram feitas. Porém, como decorre das linhas 15 e 16 e 21 a 24 de fls. 38, a Mma. Juiz, confrontada com a recusa do arguido em responder a uma específica pergunta que lhe vinha sendo feita pelo Digno Procurador da República, fez-lhe notar expressamente que esse seu comportamento o fazia incorrer na prática de um crime. Como se vê, nomeadamente das suas respostas posteriores, o mesmo manteve a sua recusa.
Ora, salvo o devido respeito, para melhor se perceber o objeto do processo, nomeadamente o conhecimento por parte do arguido da consequência penal da sua conduta, é preciso descer a este detalhe. Por isso entendeu o Tribunal concretizar nos factos provados esta sequência cronológica de comportamentos.
Como pode ver-se da referida transcrição, maxime das sucessivas referências à necessidade de responder àquela pergunta e ao modo como o arguido se foi demitindo de o fazer, o mesmo percebia o ato a que estava presente e o que de si ali se esperava. Tinha, por isso, capacidade de querer e entender bastante para compreender a ilicitude da sua conduta.
De resto, em qualquer dos momentos em que prestou declarações, o arguido deu nota disso mesmo. Foi, assim, fundado nos meios de prova referidos e no exame crítico feito nos termos acabado de enunciar que o tribunal considerou demonstrados os factos constantes da acusação (com a concretização de alguns deles nos moldes e pelas razões acima referidos).
Os seus antecedentes criminais conhecem-se do CRC de fls. 123.
As suas condições de vida motivos para descrer.
IV. Apreciação jurídica da factualidade assente
Artigo 360.º
1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou
fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar
relatório, informação ou tradução.

O bem jurídico protegido com a sobredita incriminação é “essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado” –Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, p. 460.
Trata-se de um crime de mera actividade, já que se concretiza na efectivação da conduta proibida-sendo indiferente ao seu cometimento os resultados que dela advenham (relevantes apenas em sede de agravação) - e de mão própria, pois erige-se sobre uma acção pessoal do seu autor.
Sem que, por ora, sejam necessárias muitas divagações teóricas, parece-nos resultar incontornável que o arguido, sabendo que era obrigado a responder às perguntas que lhe fossem feitas e das consequências penais da sua recusa, não quis, mesmo assim, fazê-lo. Pelo menos depois da intervenção da Mma. Juiz referida no ponto 5) dos factos provados, o arguido tinha ao seu dispor toda a informação necessária para ajustar a sua conduta ao dever-ser jurídico.
Porém, há uma questão à qual não pode fugir-se- e aqui sim, é necessário algum aprofundamento teórico sobre o tipo de crime em causa- qual seja a da inexistência de justa causa para a recusa constituir elemento do tipo do crime e não vir referido no texto da acusação.
Debruçando-se sobre esta exata questão, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.4.2014, explica que:
«Na verdade, poder-se-ia dizer apenas que “na mesma pena incorre quem se recusar a depor”; mas, ao consignar, entre vírgulas, que tal só ocorre quando a recusa for sem justa causa, tal significa que a existência de justa causa retira a ilicitude à recusa. Nesta medida, a existência de justa causa constitui um obstáculo à ilicitude da conduta. Ou, dito de outro modo, a falta de causa é que transforma a conduta/acção em ilícita. É a inexistência de justa causa que constitui a causa de justificação da ilicitude da conduta. Portanto, a expressão sem justa causa, constante do nº 2 do art. 360º do CP, só pode conceber-se como um elemento objetivo do crime de recusa a depor».
Nesse aresto, alude-se também à lição de A. Medina de Seiça, quando refere que «Decisivo, para a realização do tipo, é não haver uma justa causa para a recusa. Por justa causa entendem-se todos os fundamentos legítimos de recusa, maxime os privilégios consignados na lei processual para os familiares do arguido (cf. art. 134° do CPP; art. 618° do CPC), para os portadores de segredo (cf. art. 135° do CPP; art. 618° do CPC), para a não incriminação (cf. art. 132°, no 2, do CPP).» (s.n.) - Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 1999, pág. 478, § 43.
E também à lição do Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, A Teoria Geral do Crime, tomo I, 2ª edição, 2ª reimpressão, Coimbra Editora, pág. 269, § 56), na qual aborda as diversas conceções das relações entre tipo e ilícito: «A referida concretização, (...) serve-se em todo o caso, para a sua realização, de dois instrumentos diferentes ou mesmo de sinal contrário, mas em todo o caso funcionalmente complementares. Um deles é o que aqui se chama tipos incriminadores, isto é, o conjunto de circunstâncias fácticas que directamente se ligam à fundamentação do ilícito e onde, por isso, assume primeiro papel a configuração do bem jurídico protegido e as condições, a ele ligadas, sob as quais o comportamento que as preenche pode ser considerado ilícito. O outro são os tipos justificadores ou causas de justificação que, servindo igualmente a concretização do conteúdo ilícito da conduta, assumem o carácter de limitação (“negativa”) dos tipos incriminadores. Também os tipos justificadores constituem, no seu modus particular, formas delimitadoras do conteúdo do ilícito (e, na verdade, formas que possuem os seus elementos constitutivos, os seus pressupostos, mesmo uma certa descrição fáctica e são assim elas próprias, em suma, susceptíveis de tipificação e podem por isso ser vistos como verdadeiros (contra)tipos, funcionalmente complementares dos tipos incriminadores.».
Assim o entendeu também o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão tirado em 14.05.2002, onde, num caso em que um arguido referiu, falsamente, não se recordar de determinado facto para, desse modo, se esquivar a responder a uma pergunta, explica que «O referido motivo fictício preenche, pois, a falta de justa causa, elemento constitutivo do crime imputado ao arguido» (consultado online no seguinte endereço http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/74a517d00fff9065802).57de1005747bc?Ope nDocument.
Ora, percorrendo o texto da acusação pública, verificamos que em lado algum vem qualquer referência à inexistência de justa causa para a recusa, ainda que de modo genérico, com recurso a uma fórmula sacramental ou remetendo para o arguido esse ónus, dizendo, v.g., que o arguido não indicou qualquer causa para tanto. Embora tecnicamente imperfeita, se houvesse qualquer destas referências, sempre poderia a produção da prova modelá-las, ainda que com recurso ao mecanismo do artº 359º do CPP. Só que, salvo o devido respeito, a acusação omite absolutamente a referência à inexistência de justa causa para a recusa.
Falta, pois, ao libelo em questão a narração de um facto que constitui elemento do tipo e sem o qual a conduta do arguido não pode reputar-se de ilícita: a inexistência de justa causa para a recusa.
Terá, desse modo, de ser absolvido.
V. DECISÃO (…).”.
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Cumpre apreciar.
Sobre o ponto central da questão discutida nos presentes autos, desde já se adianta que, este Tribunal de recurso, à semelhança do que defende a corrente jurisprudencial citada pelo Tribunal “A Quo”, igualmente considera que, a ausência de justa causa, constitui um elemento do tipo de ilícito, devendo, por isso, o MP descrever esse elemento negativo na acusação.
A par do Ac da RC de 30/04/2014, processo 245/13.3TACTB.C1, in www.dgsi.pt citado pelo Tribunal “A Quo”), constando do seu sumário “I - O inciso “sem justa causa”, constante do nº 2 do art. 360.º do CP, integra o tipo objectivo do crime de recusa a depor. II - Consequentemente, a acusação, para que não seja manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, als. b) e d), do CPP, deve descrever os factos consubstanciadores daquela expressão.”; em sentido oposto, podem ver-se os Ac.da RG de 26/01/2015, processo 354/13.9TAMDL.G1, in www.dgsi.pt e in CJ, Ano XL, tomo 1, pg. 310; também no Ac da RC de 13/05/2020, processo 6399/18.5T9CBR.C1, in www.dgsi.pt, consta no respetivo sumário “I - A referência normativa “sem justa causa” constante do n.º 2 do artigo 360.º do CP não integra o tipo objectivo do crime de “recusa a depor”, constituindo a “justa causa” dessa recusa uma circunstância dirimente da ilicitude. II – Tendo presente o carácter geral e abstracto dos tipos justificadores, bem como o leque de situações passíveis de consubstanciar causas de justificação, não é exigível que a acusação tenha de narrar factos destinados a demonstrar a inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude. III – A recusa de o arguido prestar, enquanto testemunha, perante um agente da PSP, declarações em processo no qual se investigava a prática de um crime de ofensa à integridade física e onde então era arguido um recluso, sob invocação de se ter de “proteger no estabelecimento prisional” onde também estava preso, não legitima (justifica) a referida omissão. IV – Não obstante as dificuldades acrescidas na vivência no interior de estabelecimento prisional, designadamente quanto aos “diferendos” que se podem gerar, compete às instâncias formais, designadamente à Direcção daquela instituição e, afinal, ao Estado, prover à segurança/protecção dos reclusos.”
Com efeito, o conteúdo do que seja “justa causa” para a recusa em depôr, tem sempre tradução normativa, onde se inscrevem todos os fundamentos legítimos de recusa, designadamente “os privilégios consignados na lei processual para os familiares do arguido (cf. art. 134° do CPP; art. 618° do CPC), para os portadores de segredo, de sigilo profissional (cf. art. 135° do CPP; art. 618° do CPC), para a não incriminação (cf. art. 132°, no 2, do CPP)”, os quais na sua maioria são de conhecimento oficioso, mas também as causas de exclusão de ilicitude e da culpa, também oficiosamente aferidas.
Nas questões sobre a importância e credibilidade dos depoimentos na produção da prova testemunhal, o legislador impõe ao julgador o redobrar da atenção na aferição sobre as suas condições, por forma a que esse meio de prova possa ser válido, enquanto tal, devendo o Tribunal aferir oficiosamente junto da testemunha sobre a causa da recusa que sobrevenha no curso do seu depoimento, pois, se a considerar justificada, a recusa é “validada”, mas no caso contrário, consuma-se o delito. Portanto, a justa causa, é inerente à verificação do tipo de ilícito. Com efeito, uma testemunha a certa pergunta pode recursar-se a responder, contudo, esta atitude sem mais, pode não representar um comportamento ilícito, cabendo à autoridade judiciária indagar a causa da recusa.
Nas questões do sigilo profissional, muitas vezes, são profusamente aferidos os seus requisitos, para se poder concluir sobre a sua (i)licitude. Como ponto central na resolução desta questão temos as exigências impostas pelo art.283º nº3 alínea b) do CPP o qual determina que na descrição do objeto de uma acusação, o MP narre e afirme os “factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”. Ora esta exigência que não se restringe ao tipo, e que torna indiscutível a obrigação de descrever na acusação a circunstância “sem justa causa”, torna inútil a discussão sobre se a menção de “sem justa causa” respeita tão só ao requisito negativo de ilicitude ou de elemento típico da acção, daí ser muito oportuna a citação de doutrina feita pelo Tribunal “A Quo” sobre a relevância e oportunidade dos “tipos justificadores” (que delimitem negativamente e que por isso definam o campo de ilicitude).
Há muito que a doutrina discute se os elementos típicos têm prioridade teleológica e funcional sobre a ilicitude e se os elementos do tipo de delito têm de reflectir a ilicitude, vindo a concluir que as circunstâncias descritas no tipo são em última análise sempre fundamentadoras da ilcitude, e nos casos, como no delito dos presentes autos, em que consta da redacção do tipo elementos das causas de justificação negativas delimitadoras do ilícito, os quais assumem a mesma função dos elementos do tipo fundamentadores do ilícito, a necessidade dessa distinção ainda mais se desvanece [1]. Depois, a importância das distinções também perde relevo, quando e apesar de todos os tipos serem de ilícito (em obediência ao princípio da legalidade), a doutrina em razão de tipos especiais, confronta-se com as distinções entre tipos de ilícito e tipo de culpa, onde nestes a impressão do tipo é marcadamente determinada pela receção de desvalores da atitude, por contraponto aos desvalores da acção ou do resultado.
Roxin embora defenda a separação entre tipo e ilicitude, admite ser difícil em certos crimes separar tipo e ilicitude “Às vezes só se pode formar um tipo delitivo incluindo a ilicitude, seja por razões linguísticas (p.exemplo no abuso de chamadas de emergência, já que o uso ordenado não dá lugar a nenhum tipo delitivo); seja porque se protegem direitos cuja lesão não é possível sem afirmar que há ilicitude.” (in “Derecho Penal Parte General”, Tomo I, p.289, Madrid, 1997).

De notar que, não obstante o dever da testemunha de responder e com verdade, a recusa em depor, por si só, não corporiza o ilícito. A recusa, de per si, não implica um juízo desvalioso, somente se o for sem justa causa. O juízo de desvalor de ilicitude só se estabelece depois de aferida as condicionantes de sigilo invocadas, ou os parâmetros legais da recusa. A recusa pode ser possível, e em boa verdade integra a normalidade judiciária do curso das audiências de julgamento nos Tribunais. Com efeito, em numerosos casos (alguns já enumerados), é uma variável constantemente verificável nos julgamentos, estando presente em muitos depoimentos de todos os julgamentos, seja no sigilo profissional, seja nas relações familiares com cobertura legal a essa recusa; seja no conflito ou cumprimento de deveres conflituantes (causa de exclusão da ilicitude); a que se podem somar causas de exclusão da culpa, mas aqui, poderá não haver “justa causa” stricto sensu”, continuando a verificar-se a ilicitude, mas no plano da culpa, ser excluída a responsabilidade por falta de culpa. Daí que o tipo de ilícito só se consuma quando a recusa é sem justa causa.
Também deve sublinhar-se que a amplitude da aferição de “justa causa” é um campo de largo espectro, verificável muito além das situações previstas nos arts.134º, 135º e 132º nº2 do CPP, onde as motivações para uma recusa podem implicar numerosas situações da vida, e emergir da feroz colisão de interesses relevantes, cuja divulgação de certa informação pode colocar em sério risco bens jurídicos relevantes, podendo admitir-se a existências de causas justas atípicas (considerando as típicas, as supra indicadas) tornando-se casuisticamente importante aferir os critérios legais previstos no nº3 do art.135º do CPP tipicados para o sigilo profissional, mas extrapoláveis para causas atípicas, aferindo-se da prevalência do interesse preponderante; da imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade; da gravidade do crime e da necessidade de proteção de bens jurídicos[2].
Se o Ministério Público acusa um arguido, descrevendo um mero comportamento de recusa a responder uma questão no curso do seu depoimento, fica por saber “ab initio”, o porquê dessa recusa e portanto se a mesma será ilícita, podendo existir múltiplas razões que a tornem lícita, daí que, a ausência de justa causa, integra o corpo do delito previsto no nº2 do art.360º do CP.
Portanto, dogmaticamente, se falta este requisito negativo de justificação da ilicitude, está excluída a verificação do tipo de ilícito. O Ministério Público não só deve investigar em inquérito da atitude subjetiva do arguido (a sua motivação), concretamente sobre se os fundamentos da sua recusa contém, ou não, uma justa causa, e em caso negativo, fazer constar da acusação essa circunstância típica “sem justa causa”, que exclui a justificação e delimita e fundamenta o ilícito.

Muito mais que um elemento normativo do tipo, por contraponto aos elementos descritos do tipo, o juízo de ilicitude intromete-se expressamente na tipicidade definindo como requisito negativo da justificação, como forma de delimitação do campo de ilicitude, não sendo suficiente a mera descrição positiva da conduta de recusa para consumar o tipo, constituindo os elementos de “exclusão do ilícito .. somente fragmentos parciais de uma unidade superior” cfr. Roxin in “Derecho Penal Parte General”, Tomo I, p.285, Madrid, 1997.
Deste modo, incumbe ao Ministério Público descrever na acusação a ausência de justa causa no ato de recusa, ou até a inexistência de invocação de uma qualquer razão justificativa da recusa, só assim se cumpre o disposto no art.283º nº3 alínea b) do CPP, e se respeita a opção do legislador quando fez inscrever na tipicidade do delito o requisito negativo da justificação da ilicitude .
Assim, todas as conclusões improcedem, devendo ser negado provimento ao recurso.

DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso penal totalmente improcedente e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos, manter a Douta sentença do Tribunal a quo, nos seus exatos termos.

Notifique.

Sumário.
(recusa a depor; sem justa causa; ilicitude; tipo legal)
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Porto, 8 de Junho de 2022.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
Francisco Marcolino
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[1] A este respeito Figueiredo Dias remata “..num sistema teleológico-funcional da doutrina do crime, não há lugar a uma construção que separe, em categorias autónomas, a tipicidade e a ilicitude.” in Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, A Teoria Geral do Crime, tomo I, 2ª edição, 2ª reimpressão, Coimbra Editora, pág. 270, § 57).
[2] Por vezes, v.g. as testemunhas agentes de autoridade solicitam a possibilidade de não responderem a determinadas questões sobre a concreta habitação de onde realizaram as vigilâncias policiais (apenas descrevendo as distâncias em causa), por forma a não comprometer a segurança das pessoas que habitam na mesma, face aos arguidos e à comunidade local presente em audiência.