RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
IDENTIDADE DE FACTOS
Sumário


I - A oposição de julgados supõe que os arestos em conflito, operando sobre um quadro factual substancialmente idêntico, aplicando a mesma norma ou bloco normativo e decidindo sobre a mesma questão de direito, tenham chegado a soluções, explícitas, opostas ou, pelo menos, divergentes.
II - In casu, (i) os dois acórdãos incidem sobre a mesma questão de direito de saber se é legalmente inadmissível o pedido de abertura de instrução de arguido que se propõe, não obter decisão de não pronúncia relativamente a todos crimes acusados, mas apenas discutir a qualificação jurídica dos factos em vista da sua alteração, pretendendo pronúncia por crime menos grave; (ii) os dois acórdãos fundaram, no mais decisivo, as suas respostas nas mesmas normas – art. 286.º, n.º 1 e 287.º, n.os 1, al. a), e 3, e do art. 32.º, n.os 1 e 5, da CRP; (iii) os dois acórdãos responderam contraditoriamente à pergunta enunciada, o Recorrido pela positiva – por isso que confirmou a rejeição do requerimento de instrução com base em inadmissibilidade –, e o fundamento pela negativa – por isso que, revogando a decisão de rejeição, mandou que se abrisse a instrução; (iv) as respostas foram, nos dois acórdãos, expressas e tomadas a título principal; e (v) a vexata quaestio não foi objecto de anterior fixação de jurisprudência.
III - Contudo, relativamente ao critério da identidade substancial das situações facto-procedimentais, os acórdãos em conflito denotam a, irrecusável, diferença qualitativa de, não obstante questionada em ambos os casos, a indiciação dos factos sob acusação, ela simplesmente apoiar, no acórdão recorrido, a pretensão da não pronúncia por um dos crimes jogando-se a(s) requalificação(ões) criminal(ais) no estrito domínio do juízo subsuntivo típico, ao passo que, no acórdão-fundamento, ela apoia, num primeiro momento, o pedido de alteração da base factual e, só depois e em função desta, a requalificação jurídica.
IV - Saber qual teria sido a posição de cada um dos acórdãos se confrontado com a situação com que se deparou o outro é pura especulação, nada garantido que tivessem chegado às mesmas soluções a que chegaram, o que definitivamente compromete a verificação do, imprescindível, requisito da oposição de julgados, pelo que o recurso extraordinário não poderá prosseguir para a fase subsequente.

Texto Integral




Autos de Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência
Processo n.º 538/19.6JACBR.C1-A
5.ª Secção

acórdão
Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. relatório.
1. AA, arguido – doravante, Recorrente – veio em 5.8.2021 interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.6.2021, proferido nos Autos de Instrução n.º 38/19.6JACBR do Juiz 3 do Juízo de Instrução Criminal de Coimbra – doravante, Acórdão Recorrido – que, confirmando despacho do Senhor Juiz de Instrução de 15.9.2020, rejeitou requerimento de abertura de instrução que apresentou relativamente a despacho de acusação do Ministério Público de 22.6.2020 que lhe imputara a comissão, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de abuso sexual de crianças – um, p. e p. pelo art.º 171º n.º 3 al. b) do Código Penal (CP); o outro, pelo art.º 171º n.º 3 al.ª b) do CP, – e de dois crimes de pornografia de menores – um, p. e p. pelos art.os 176º n.º 1 al.ª b) e 177º n.º 7 do CP; o outro, p. e p. pelos art.os 176º n.os 1 al.ª c) e 5 e 177º n.º 7 do CP.

Diz que o Acórdão Recorrido se opõe nos termos previstos no art.º 437º n.os 1 a 3 do Código de Processo Penal (CPP) ao Acórdão Tribunal da Relação de Évora de 20.3.2018, proferido no Proc. n.º 3/17.6GASLV.E1 – doravante, Acórdão-Fundamento –, acessível em www.stj.pt.

Identifica a oposição no ponto em que os arestos cuidaram da questão da admissibilidade de pedido de abertura de instrução deduzido por arguido, dizendo que, não obstante debruçados sobre quadros factuais essencialmente idênticos, divergiram substancialmente na aplicação do direito, entendendo, o primeiro, não ser legalmente admissível o requerimento que vise a alteração da qualificação jurídica dos factos sob acusação em vista da imputação de tipo criminal menos gravoso – e por isso que o rejeitando nos termos do art.º 287º n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP), por da instrução nunca poder resultar, contra o que sempre cumpriria, decisão de não pronúncia quanto a todos os crimes acusados –, decidindo, o segundo, pelo cabimento legal de tal pretensão – por isso que deferindo a abertura da instrução.

Quer que se dirima o conflito mediante a adopção do entendimento do Acórdão-Fundamento para os efeitos, e com as consequências, do art.º 445º do CPP [1].

E sintetiza a motivação nas seguintes conclusões:
─ «1. O acórdão ora recorrido encontra-se em oposição de julgados com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora a 20/03/2018 no processo n.° 3/17.6GASLV.E1 em que foi relator o Exmo. Desembargador José Proença da Costa, e disponível em www.dasi.pt (hiperligação directa para o acórdão).
2. Ambos os acórdãos encontram-se transitados em julgado, debruçando-se de forma completamente oposta sobre a mesma e importante questão de direito, jurisprudencialmente controversa, com decisões proferidas no domínio da mesma legislação, questão essa que é a de saber se o arguido, mesmo não pugnando pela sua não-pronúncia, pode ou não requerer a abertura da instrução para ver discutida a qualificação jurídica dada aos factos acusatórios, tendo em vista a sua alteração, nomeadamente, quando pugna pela sua imputação por crime(s) menos grave(s).
3. O acórdão recorrido entende que não; o acórdão fundamento, entende que pode.
4. A questão aqui objecto de uniformização é da maior importância pois que se debruça sobre o alcance, e ao fim e ao cabo, fins e utilidade teórica e prática de uma fase facultativa, prevista no nosso processo penal.
5. Devendo ser o presente recurso admitido e fixada jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, a saber, que "O arguido pode requerer a abertura da instrução, mesmo querendo ver discutida, e apenas, a questão da qualificação jurídica dos factos, em vista à sua alteração, nomeadamente, quando pretender a imputação por crime menos grave."
[…].»


2. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra respondeu doutamente ao recurso.
Diz que nada obsta à sua admissão do ponto de vista dos pressupostos formais.
E concorda em que se verifica o pressuposto substancial da oposição de julgados previsto no art.º 437º n.º 3, pronunciando-se pela admissão e seguimento do recurso extraordinário em vista da fixação de jurisprudência.
Entende, porém, que a interpretação a adoptar deverá ser a do Acórdão Recorrido, é dizer, a de que «a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados».

3. Também o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal é pela admissão e seguimento do recurso, conforme douto parecer emitido ao abrigo do art.º 440º n.º 1, de que, por mais salientes, se transcrevem os seguintes passos:
─ «[…].
6. O prazo de interposição deste recurso extraordinário é, […], de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
Resulta da certidão disponível que a notificação do acórdão recorrido foi efectuada ao Ministério Público, por termo nos autos, em 30.06.2021 e aos sujeitos processuais, electronicamente, na mesma data.
Presumindo-se notificados a 5 de Julho de 2021 (primeiro dia útil seguinte), e por não admitir recurso ordinário, nem ter sido objecto de reclamação, aquela decisão transitou em julgado decorridos 10 dias sobre aquela notificação, ou seja, no dia 15 de Julho de 2021.
Assim, o recurso interposto em 6 de Agosto de 2021 é tempestivo.
7. Mostram-se, pois, verificados os pressupostos processuais comuns de legitimidade e de tempestividade.
8. O mesmo se diga dos pressupostos substantivos.
Dos artigos 437.º, n.º 1, 2 e 4, e 438.º, n.º 2, do C.P.P., acima transcritos, resulta que são pressupostos deste recurso extraordinário, que devem necessariamente constar do respectivo requerimento de interposição:
- A oposição referir-se a acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por um Tribunal da Relação;
- A indicação de um acórdão fundamento, transitado em julgado.
A doutrina do Supremo Tribunal de Justiça considera que se verifica oposição de julgados quando:
a) - as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;
b) - as decisões em oposição sejam expressas;
c) - as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.
A expressão «soluções opostas» pressupõe que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos, se nas decisões em confronto se consideraram idênticos factores, mas é diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do artigo 437.º do C.P.P. (cfr. acórdão de 2 de Outubro de 2008, processo n.º 08P2484, disponível in www.dgsi.pt/).
Na situação vertente, o Tribunal da Relação de Évora decidiu no acórdão de 20 de Março de 2018, proferido no processo n.º 3/17.6GASLV.E1, o acórdão fundamento, transitado em julgado em 26.04.2018, que o arguido pode requerer a abertura da instrução, mesmo querendo ver discutida, e apenas, a questão da qualificação jurídica dos factos, em vista à sua alteração, nomeadamente, quando pretender a imputação por crime menos grave.
Oposta foi a decisão firmada no acórdão recorrido, que rejeitou a possibilidade de instrução em caso idêntico, no pressuposto de que o arguido não deixaria de ser traduzido a julgamento, sendo que só uma decisão de não pronúncia, quanto à totalidade dos crimes em causa, poderá justificar a instrução.
Constata-se, assim, que a situação de facto é similar em ambos os acórdãos e estes foram proferidos no domínio da mesma legislação, sendo, porém, expressamente oposta a decisão proferida em cada um deles.
9. Assim, e pelo que antecede, entende-se que se verificam todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto, pelo que deverá o mesmo prosseguir, nos termos previstos nos artigos 440.º e 441.º, n.º 1, do C.P.P.
[…].».

4. Neste Tribunal, complementou-se a instrução do recurso, juntando-se certidão da nota de trânsito do Acórdão-Fundamento.
E providenciou-se pela disponibilização de acesso ao processo principal – o, ora, PCC n.º 538/19.6JACBR, do Juiz 3 do Juízo Central Criminal de Coimbra – na aplicação CITIUS.

5. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

A. Da natureza e dos pressupostos de admissibilidade e seguimento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
6. O recurso extraordinário para fixação regulado nos art.os 437º a 448º, visa a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
«[C]onstitui uma espécie de recurso classificado como "recurso normativo"», que tem no seu objecto e finalidade as notas mais salientes, a saber, a «determinação do sentido de uma "norma", com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a benefício directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de uma norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente» [2].
E são essas notas que mais facilmente o distinguem do recurso hierárquico ou ordinário que, destinado à reapreciação em grau superior de jurisdição de uma causa, ou de elementos de uma causa, julgada por instância subalterna, tem por objecto e finalidade a «discussão de uma acusação penal dirigida contra uma pessoa para determinação da culpabilidade (os factos) e eventualmente da sanção que vai ser aplicada (o direito)» [3].

7. O recurso de fixação está estruturado em duas fases, a preliminar [4] – a em que este procedimento se encontra –, destinada à apreciação dos requisitos ou pressupostos respectivos enunciados nos art.os 437º e 438º, culminada na conferência prevista no art.º 441º que decide sobre admissibilidade e seguimento do recurso; a subsequente [5], que, admitido o recurso, cuida, tendencialmente [6], do julgamento do seu objecto em pleno das secções criminais, que dirimirá a divergência jurisprudencial mediante a adopção de uma determinada interpretação da norma – uma das em confronto ou, quiçá, uma terceira –, válida não só para o caso sob julgamento – por isso que o acórdão sob recurso é confirmado, revisto ou, se necessário, reenviado em conformidade com a proposição interpretativa, nos termos do art.º 445º n.º 3 –, como de adopção recomendada aos tribunais judiciais no julgamento futuro de casos similares, nos termos do art.º 445º n.os 1 e 2.
 
8. Os art.os 437º – «Fundamento do recurso» [7] – e 438º – «Interposição e efeito» [8] – enunciam, como referido, os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário, uns formais, outro, substancial.
Entre os primeiros, contam-se os seguintes:
─ Os acórdãos em conflito serem de tribunais superiores, ambos do Supremo Tribunal de Justiça, ambos de Tribunal da Relação, ou um – o acórdão recorrido – de Relação, mas de que não seja admissível recurso ordinário, e o outro – o acórdão-fundamento – do Supremo – art.º 437º n.os 1 e 2.
─ O trânsito em julgado dos dois acórdãos – art.os 437º n.º 4 e 438º n.º 1.
─ A interposição do recurso em 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido) – art.º 438º n.º 1
─ A identificação do aresto com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão-fundamento) – art.º 438º n.º 2.
─ A indicação, caso se encontre publicado, do lugar de publicação do acórdão-fundamento – art.º 438º n.º 2.
─ A indicação de apenas um acórdão-fundamento – art.os 437º n.os 1, 2 e 3 e 438º n.º 2.
─ A legitimidade do recorrente, restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis – art.º 437º n.º 5.
─ A justificação/fundamentação da oposição – art.º 438º n.º 2, última parte [9].

O pressuposto substancial, esse, é a oposição de julgados propriamente dita entre os acórdãos em presença – art.º 437º n.º 1 e 3 –, a qual na lição, pacífica, deste Supremo Tribunal de Justiça se verifica, e só se verifica, quando:
─ Os dois acórdãos em conflito incidam sobre a mesma questão de direito, tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação e adoptem soluções opostas ou, pelo menos, divergentes.
─ A questão decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos e tomada a título principal, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas ou de contraposição de fundamentos ou de afirmações.
─ As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam substancialmente idênticos, por só assim ser possível aferir se para a mesma questão jurídica foram adoptadas soluções opostas.
─ A vexata quaestio não tenha sido objecto de anterior fixação de jurisprudência [10].

B. Apreciação.
9. Posto isto, cumpre, então, indagar a verificação dos requisitos de admissibilidade, e de seguimento, do recurso.
Assim:

a. Pressupostos formais.
10. Do ponto de vista da forma nada obsta à admissão do recurso:
─ O Recorrente, arguido e requerente da abertura de instrução recusada, tem legitimidade e interesse.
─ Transitado o Acórdão Recorrido em 15.6.2021 pelas razões de que o Senhor Procurador-Geral Adjunto dá correcta nota no seu parecer – notificação ao Ministério Público, ao Recorrente e à assistente em 30.6.2021, a do primeiro por termo nos autos, as do segundo e terceira por ofício electrónico presumivelmente recebido em 5.6.2021; irrecorribilidade do acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do art.º 400º n.º 1 al.ª c); inexistência, nos dez dias seguintes, de reclamação ou de pedido de reforma por nulidade, erro material ou custas, ou de recurso para o Tribunal Constitucional –, o recurso, interposto em 6.8.2021, foi-o em tempo por dentro do prazo de 30 dias prescrito no art.º 438º n.º 1.
─ O Recorrente identificou um – e só um – acórdão fundamento, transitado em julgado em 26.4.2018;
─ O Recorrente fundamentou a oposição de julgados.

11. Nada impedindo, assim, a admissão do recurso do ponto de vista da forma, veja-se o que acontece quanto ao requisito substancial, ao requisito da oposição de julgados.

b. Requisito substancial – a oposição de julgados.
12. A oposição de julgados supõe, então, que os arestos em conflito, operando sobre um quadro factual substancialmente idêntico, aplicando a mesma norma ou bloco normativo e decidindo sobre a mesma questão de direito, tenham chegado a soluções, explícitas, opostas ou, pelo menos, divergentes.

Veja-se se, como afirma Recorrente, se verifica esse pressuposto do recurso, começando por recensear nos arestos em confronto os passos facto-procedimentais e de direito mais significativos.

13. Como já afirmado, o Acórdão Recorrido foi tirado sobre despacho do Senhor Juiz de Instrução que rejeitou requerimento de abertura de instrução (RAI) do Recorrente relativamente a acusação pública que lhe imputava a comissão, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de abuso sexual de crianças – um, p. e p. pelo art.º 171º n.º 3 al. b) do Código Penal (CP); o outro, pelo art.º 171º n.º 3 al.ª a) do CP; ambos por referência ao art.º 170º do CP e ambos puníveis com prisão até 3 anos – e de dois crimes de pornografia de menores agravados – um, p. e p. pelos art.os 176º n.º 1 al.ª b) e 177º n.º 7 do CP; o outro, p. e p. pelos art.os 176º n.os 1 al.ª c) e 5 e 177º n.º 7 do CP; ambos puníveis com prisão de 1 ano e 6 meses a 7 anos e 6 meses.
Peticionava no RAI o Recorrente a sua não pronúncia quanto ao crime de pornografia p. e p. pelos art.os 176º n.os 1 al.ª c) e 5 e 177º n.º 7 do CP, por inexistência de «quaisquer indícios» de «ter efectivamente procedido à divulgação de material pornográfico com menores por terceiros, devendo esta factualidade ser pura e simplesmente retirada da acusação e em consequência, ser rectificada a qualificação jurídica dada», sendo que, quanto a esse tipo de condutas, tudo se reconduzia, afinal e apenas, à comissão de um crime de detenção de ficheiro de conteúdo pornográficos com menores, p. e p. pelo art.º 176º n.º 5 do CP, punível com prisão até 2 anos.
Já quanto aos crimes de abuso sexual de crianças, não questionava nem os factos acusados nem a sua indiciação, concordando, aliás, com a imputação do crime p. e p. pelo art.º 171º n.º 3 al.ª a) do CP. Não assim, contudo, quanto crime ao previsto na respectiva al.ª b) por entender que a conduta não sustentava a sua previsão – actuação sobre menor de 14 anos por meio de conversa de teor pornográfico – antes sim a do art.º 176º-A do CP – aliciamento de menores para fins sexuais, punível com prisão até 1 ano –, por isso que devendo ser despronunciado por aquele e pronunciado por este.
E finalizava dizendo que «dever[ia] a […]instrução ser aberta, e uma vez realizado o debate instrutório, dever[ia] a acusação ser expurgada da factualidade não indiciada quanto à intenção concretizada de divulgação de material pornográfico contendo menores e a final ser o arguido pronunciado, em concurso efectivo, de:
• um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, todos do CP, punível até 3 anos de prisão;
• um crime de aliciamento de menores para fins sexuais, p.p. pelo artigo 176.º- A, n.º 1 do CP, com pena de prisão até 1 ano
• um crime de pornografia de menores, p.p. pelo artigo 176.º, n.º 5 do CP, com pena de prisão até 2 anos.».

O Senhor Juiz de Instrução, como também já dito, rejeitou o RAI com fundamento na inadmissibilidade legal prevista no art.º 287º n.º 3, que interpretou no sentido de se acolher nesse conceito a situação em que, como no caso, se requeria instrução não para o efeito de lograr a não pronúncia relativamente a todos os ilícitos sob a acusação, mas apenas para conseguir pronúncia parcial ou por crimes de menor gravidade.
E do mesmo entendimento foi o Acórdão Recorrido que louvando-se, entre o mais, nos Ac´sTRE de 8.5.2012 [11], de 6.12.2016 [12] e de 8.10.2019 [13] , afirmou que «o critério da submissão, ou não, da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito (art. 286°, n.º 1) impõe, a um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo»; que «a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados»; que «[s]e essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível»; que «pela análise do RAI apresentado pelo arguido» se verifica «que este não deixaria de ser submetido a julgamento»; e que, assim sendo, se está «perante uma fase instrutória inútil, por redundar, necessariamente, numa ida do arguido a julgamento, com vista à discussão dos factos que lhe foram imputados na acusação pelo MP.».
E, apoiado em tais premissas, concluiu que o despacho recorrido não tinha violado as normas do art.º 286º n.º 1 e 287º n.º 1 al.ª a) e 3 [14] e 32º n.os 1 e 5, este da CRP, de que o acusara o Recorrente, negando provimento ao recurso.

14. Diferente, como igualmente antecipado, foi o entendimento do Acórdão-Fundamento.
No seu caso, perante acusação pela comissão de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1 – punível com prisão de 4 a 12 anos –, requereu o arguido a abertura de instrução, «com o objectivo de 'aprimorar' a factualidade vertida na acusação com vista a ser "seguramente proferida douta decisão instrutória de pronúncia", mas mediante a "requalificação do tipo penal" que seria, no máximo, o previsto no artigo 25.º, al. a)» do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1 – punível com prisão de 1 a 5 anos.
E ponderando o Senhor Juiz de Instrução que o RAI «mais não visa[va] do que "aprimorar” a factualidade vertida na acusação, "amput[ando-a]" parcialmente, ou seja, almeja[va] uma alteração no plano dos factos que se repercut[isse] sobre a qualificação jurídica daqueles sem que, no entanto, daí algo sobrev[iesse] que obst[asse] à submissão da causa a julgamento», considerou que «o recebimento do requerimento frustraria a realização das finalidades legais da instrução previstas no artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal», por isso que decidiu pela rejeição do pedido, por inadmissibilidade legal, nos termos do art.º 287º n.º 3 do CPP.

Também aí o arguido/requerente não se conformou com o decidido, recorrendo para o Tribunal da Relação de Évora, apontando violação do art.os 287º n.º 3 e interpretação dessa norma, e da do art.º 262º n.º 1, desconforme aos princípios da plenitude das garantias de defesa criminal e da estrutura acusatória e contraditória do processo penal, previstos no art.º 32º n.os 1 e 5 da CRP.
E considerando o Acórdão-Fundamento que no conceito de inadmissibilidade legal da instrução previsto no art.º 287º n.º 3 não cabe a hipótese em que o arguido requer a instrução mesmo que para o singelo efeito da requalificação dos factos em tipo penal menos grave e, mais do que isso, que o princípio da plenitude das garantias de defesa em processo criminal impõe uma tal interpretação daquela norma – e da do art.º 286º – por «o arguido não se defender apenas dos factos mas também do direito», por «um exercido efectivo do direito de defesa não pode[r] deixar de ter um enquadramento jurídico-criminal preciso» e por ser «da essência» de tais garantias «que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados actos seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido», considerando tudo isso, dizia-se, concluiu que o «arguido poder vir requerer a abertura da instrução, mesmo querendo ver discutida, e apenas, a questão da qualificação jurídica dos factos, em vista à sua alteração, nomeadamente, quando pretender a imputação por crime menos grave».
E nesse contexto, e não vendo fundamento de rejeição do RAI – mormente, o de inadmissibilidade legal do art.º 287º n.º 3 –, decidiu pela procedência do recurso, mandando substituir o despacho recorrido por outro que ordenasse a abertura da instrução.

15. Cotejando, então, os arestos, não se duvida do preenchimento de vários dos critérios aferidores da oposição de julgados enunciados em 8. supra, parte final, sendo, v. g., muito evidente que (i) os dois acórdãos incidem sobre a mesma questão de direito de saber se, sim ou não, é legalmente inadmissível o pedido de abertura de instrução de arguido que se propõe, não obter decisão de não pronúncia relativamente a todos crimes acusados, mas apenas discutir a qualificação jurídica dos factos em vista da sua alteração, pretendendo pronúncia por crime menos grave; que (ii) os dois acórdãos fundaram, no mais decisivo, as suas respostas nas, mesmas, normas – que, aliás, nenhuma sofreu alteração entre 2018 e 2021 – dos art.os 286º n.º 1 [15] e 287º n.os 1 al.ª a) e 3 [16] e do art.º 32º n.os 1 e 5 da CRP [17]; que (iii) os dois acórdãos responderam contraditoriamente à pergunta enunciada, o Recorrido pela positiva – por isso que confirmou a rejeição do requerimento de instrução com base em inadmissibilidade –, e o Fundamento pela negativa – por isso que, revogando a decisão de rejeição, mandou que se abrisse a instrução; que (iv) as respostas foram, nos dois acórdãos, expressas e tomadas a título principal; e que (v) a vexata quaestio não foi objecto de anterior fixação de jurisprudência.
Já não assim, porém, quando ao critério da identidade substancial das situações facto-procedimentais sobre que um e outro laboraram que denotam a, irrecusável, diferença qualitativa de, não obstante questionada em ambos os casos, a indiciação [18] dos factos sob acusação, ela simplesmente apoiar, no Acórdão Recorrido, a pretensão da não pronúncia por um dos crimes [19] jogando-se a(s) requalificação(ões) criminal(ais) no estrito domínio do juízo subsuntivo típico, ao passo que, no Acórdão-Fundamento, ela apoia, num primeiro momento, o pedido de alteração da base factual e, só depois e em função desta, a requalificação jurídica do tráfico de estupefacientes do tipo base do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, para o tipo privilegiado do art.º 25º al.ª a).

Ora, como se acaba de dizer, trata-se de diferença e de diferença qualitativa ou substancial, que, se no primeiro caso e quanto à questão, fulcral neste recurso extraordinário, da requalificação criminal no Acórdão Recorrido tudo se passa no estrito domínio da aplicação do direito, já no Acórdão-Fundamento é dependência de processo, complexo, que envolve, primo, o apuramento dos factos e, secundo, a aplicação do direito.
E, a partir daqui, saber qual teria sido a posição de cada um dos acórdãos se confrontado com a situação com que se deparou o outro é pura especulação, nada garantido que tivessem chegado às mesma soluções a que chegaram.
O que definitivamente compromete a verificação do, imprescindível, requisito da oposição de julgados, pelo que o recurso extraordinário não pode prosseguir para a fase subsequente.

III. decisão.
16. Termos em que, nos termos art.º 441º n.º 1, primeira parte, do CPP, acordam os juízes desta 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência movido pelo Recorrente AA.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC's (art.º 8.º n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).
*
Digitado e revisto pelo relator (art.º 94.º n.º 2 do CPP).
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Supremo Tribunal de Justiça, em 7.4..2022.

Eduardo Almeida Loureiro (Relator)

António Gama (Adjunto)

Helena Moniz (Presidente).


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[1] Diploma a que pertencerão os preceitos que a seguir se citarem sem menção de origem.
[2] AcSTJ de 5.12.2012 - Proc. n.º 105/11.2TBRMZ.E1-A.S1, in www.dgsi.pt.
[3] AcSTJ referido na nota procedente.
[4] Terminologia proposta por Simas Santos e Leal-Henriques, in "Recurso Penais", 9ª ed., 2020, p. 201 e ss..
[5] Idem, ibidem, nota precedente p. 217 e ss..
[6] E diz-se tendencialmente pois que, de acordo com a jurisprudência consolidada neste STJ, o Pleno pode reexaminar os pressupostos de admissibilidade do recurso e, infirmando a decisão da conferência, determinar a sua rejeição nos termos do art.º 441º n.º 1 e 692º n.º 4, este do CPC, aplicável ex vi do art.º 4º – neste sentido e por se tratar dos mais recentes, veja-se o Acórdão do Pleno das Secções Criminais de 8.7.2021 - Proc. n.º 3/16.3PBGMR-A.G1-A.S1.
[7] «1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, do proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5. O recurso previsto nos n.º 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.».
[8] «1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.».
[9] Para tudo, e entre muitos outros, AcSTJ de 12.7.2018 - Proc. n.º 1059/15.1IDPRT.C1-A.S1, sumariado em www.stj.pt.
[10] Para tudo, e entre muitos outros, Ac'sSTJ de 10.2.2010 - Proc. n.º 583/02.0TALRS.C.L1.A.S1 e de 19.6.2013 - Proc. n.º 140/08.8TAGVA.L1-A.S1.
[11] Proc. n.º 226/09.1PBEVR.E1, in www.dgsi.pt.
[12] Proc. n.º 169/14.7GBSLV-A.E1, in www.dgsi.pt.
[13] Proc. n.º 1003/17.1GBABF-A.E1, in www.dgsi.pt.
[14] No acórdão refere-se o n.º 4 – «No despacho de abertura de instrução o juiz nomeia defensor ao arguido que não tenha advogado constituído nem defensor nomeado» – mas, decerto, por lapso, que se trata de norma alheia à discussão.
[15] «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
[16] «1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; […] 3- O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.»
[17] «1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. […] 5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
[18] Cfr. art.os 283º n.º 2 e 308º n.º 2.
[19] O de pornografia de menores p. e p. pelos art.os 176º n.os 1 al.ª c) e 5 e 177º n.º 7 do CP.