SOCIEDADE COMERCIAL
QUOTA SOCIAL
PENHORA
Sumário

I - Na sociedade por quotas havendo um capital que se acha dividido em quotas que são uma fracção do capital da sociedade pela qual se afere a medida dos direitos e obrigações de cada um dos sócios, existe também uma característica que é a de os sócios, em principio (salvo o estipulado no artº 198º do CSC), não responderem perante os credores sociais ,com as suas respectivas quotas sociais.
II - Os sócios poderão responder para com os credores sociais até determinado montante, em termos solidários ou subsidiários, se isso for estipulado no contrato, como resulta do nº 1 do artº 198º do CSC.
III - Contudo do artº 197º nº 3 resulta expressamente que “só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, salvo o disposto no artº seguinte (que aqui não está em causa)”.
IV - Aceitar que pudessem ser nomeadas em penhora todas as quotas sociais da sociedade, ou seja, todo o seu capital social, corresponderia na prática a reconhecer que a sociedade executada não tem qualquer outro valor patrimonial e então ficaria em situação de insolvência, já que a lei não prevê para esta situação mecanismos de possibilidade de aquisição de quotas próprias e de amortização pela sociedade, fora do disposto nos artºs 220º e 233º do CSC.

Texto Integral

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

No processo de execução instaurado por B.........., LDª contra a executada C.........., LDª, foi aquela exequente notificada de que lhe fora devolvido o direito de nomeação de bens à penhora.
Nessa sequência veio a exequente, conforme requerimento de fls. 13 destes autos informar que após várias diligências efectuadas, no sentido de nomear outros bens à penhora, na sede da executada, todas elas se mostraram infrutíferas, porquanto, e ao que parece, a executada alterou a sua sede social, não alterando o pacto social e não fazendo constar esse facto na respectiva Conservatória do Registo Comercial.
Desse modo a exequente alegando desconhecer, de momento, qual o novo domicilio da executada e à cautela, nomeou à penhora, para pagamento da quantia vencida, bem como dos respectivos juros, vencidos e vincendos, as quotas sociais da executada, C.........., Ldª, pessoa colectiva n.° ........., com a matricula n.° ...../....., da Conservatória do Registo Comercial da .......... .

Perante esta nomeação de bens à penhora foi proferido despacho nestes termos:
“Indefiro a requerida penhora de quotas sociais, uma vez que só podem ser penhorados nesta execução bens pertencentes à executada “C.........., LDª”.
Ora, como é bom de ver, as quotas sociais naquela sociedade hão-de pertencer a outras pessoas, com personalidade distinta juridicamente da executada. Notifique.”

Inconformada com esta decisão, a exequente recorreu, tendo concluído as suas alegações, pela forma seguinte:

1ª - A executada/agravada, C.........., LDª, é devedora à agravante, da importância de € 44.630,37, relativa a capital e juros legais, na sequência de diversas transacções comerciais, sendo que, à excepção das quotas sociais, não tem esta quaisquer outros bens que possam responder pela dívida.
2ª - As quotas sociais podem ser objecto de penhora (cfr. art.s 822º a 824-A e 862º, todos do C.P.C. e art.º 239º, do C.S.C.), quer quando a sociedade é executada, quer quando os seus sócios são, de per si, executados.
3ª - Do pacto social da executada, matriculada com o n.º ...../....., conforme respectiva certidão a fls. 18 dos autos consta:
“Artigo Alterado: 3º - Capital: 1.002.410$00, após o reforço de 602.410$00, em dinheiro, subscrito pelos sócios na proporção e a acrescer às respectiva quotas; CAPITAL redominado: € 5.000,00; SÓCIOS E QUOTAS: D.......... - € 2.375,00; E.......... - € 2.375,00; e F.......... - € 250,00.”
4ª - Ora, o capital da executada é o valor ou cifra representativa das entradas dos sócios, ou seja, numa expressão numérica, de uma quantia num valor contabilístico, que representa a soma dos valores das entradas dos sócios, sendo, por conseguinte, o seu capital social, somatório daquelas quotas susceptíveis de penhora (cfr. art.º 20º, alínea a), do C.S.C.)
5ª - Tendo, por conseguinte, errado, o douto despacho, do Meritíssimo Juiz “a quo”, ora em crise, por violar o disposto nos art.s 822º a 824º-A e 862, do C.P.C. e art.º 20º, alínea a), do C.S.C., deverá o mesmo ser revogado e substituído por outro que defira a penhora das quotas da sociedade pertencentes aos sócios D.........., E.......... e F.........., os dois primeiros sócios, cada um deles, com uma quota de € 2.375,00 e a última sócia com uma quota de € 250,00.
TERMOS EM QUE deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência revogar-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que defira a penhora das quotas da sociedade pertencentes aos sócios D.........., E.......... e F.........., tendo os dois primeiros sócios, uma quota de € 2.375,00 e a última sócia uma quota de € 250,00,
ASSIM DECIDINDO, FARÃO V. EX.AS A MELHOR JUSTIÇA.

Não houve contra-alegações onde se sustenta o decidido em sentença.

O despacho recorrido foi sustentado.

Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)- A matéria de facto a tomar em conta na apreciação deste agravo é constituída pelos factos acima relatados, todos certificados documentalmente nos autos.

b)-O recurso de agravo.

É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º, nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado.
Vejamos, pois, do seu mérito.

1-Em primeiro lugar importa referir que este Tribunal só poderá conhecer da decisão recorrida proferida com os pressupostos que a exequente apresentou em 1ª instância aquando da requerida penhora.
Todas as nuances introduzidas nas alegações, designadamente quanto à identificação do montante das quotas que agora se faz relativamente a cada um dos sócios na sociedade executada, são elementos que não estavam presentes no requerimento, em que pura e simplesmente se nomeou à penhora as quotas sociais da executada C.........., Lda.

2-Argumenta a agravante que as quotas sociais podem ser objecto de penhora (cfr. art.s 822º a 824-A e 862º, todos do C.P.C. e art.º 239º, do C.S.C.), quer quando a sociedade é executada, quer quando os seus sócios são, de per si, executados.

Com respeito por opinião contrária, não se pode acolher esta afirmação.
Desde logo nela se confunde a personalidade jurídica da sociedade executada com a de cada um dos sócios da mesma sociedade.
As sociedades gozam de personalidade jurídica própria e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem… (artº 5º CSC) e é a sociedade que responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários (nº 5 do artº 6º do CSC).
Ferrer Correia no Estudo que escreveu em Separata da Revista Scientia Iyridica-Tomo XXXV, nºs 199-204, Janeiro-Dezembro de 1986, sob o Título “a Nova sociedade por quotas de responsabilidade limitada do Direito Português”, lembra-nos (pág.341) que existe um único elemento essencial que permite destrinçar a pessoa jurídica (inerente por tradição a todas as sociedades comerciais) de figuras mais ou menos próximas (património autónomo, comunhão de mão-comum…) o qual reside ,em os direitos que existem em cada momento na esfera jurídico-patrimonial do suposto «sujeito» colectivo não pertencerem aos indivíduos que o constituem ou lhe formam o substracto, mas a ele próprio. Na teoria da sociedade-pessoa jurídica, o património social não é um sujeito distinto de qualquer daqueles e do corpo por eles constituído: o património da pessoa jurídica pertence-lhe a ela mesma, não a qualquer outro sujeito que lhe seja exterior. O direito dos sócios não recai, portanto, nos bens sociais, mas só pode construir-se como um direito em face da corporação: direito ou, antes, posição jurídica complexa (conjunto de direitos e deveres), que exprime justamente a qualidade de ser membro do corpo social”.
Esta mesma ideia já o autor a expressara nas suas Lições de Direito Comercial, 2º volume, pág., 83 e ss onde sintetizou que se se entende que o (antigo) artº 108º das sociedades comercias obrigava a considerar toda e qualquer sociedade comercial, nas relações com terceiros, como individualidade jurídica distinta dos sócios, a mesma qualificação terá de valer também para a esfera das relações entre a sociedade e os sócios.

3-Mas o que importa neste recurso não é tanto discutir a distinta individualidade jurídica da sociedade relativamente aos sócios, que se afigura não merecer contestação, mas sim saber se a exequente pode ou não indicar em penhora (como fez) as quotas sociais que constituem o seu capital social como sociedade.
A resposta a esta questão também não resulta do artº 239º do CSC, porquanto aí se trata da execução da quota do sócio, o que é possível (havendo apenas divergência quanto ao alcance dos direitos patrimoniais a ela inerentes, conforme nos referem Raul Ventura, Sociedade por quotas, volume I, 2ª edição, pág. 766/772) conforme também resulta claramente do disposto no artº 862º nº 6 do CPC.

Do facto de no artº 20º a) do CSC constar que “todo o sócio é obrigado a entrar para a sociedade com bens susceptíveis de penhora…”, não se pode extrair daí que as entradas de capital ,quotas de cada um dos sócios, possam ser penhoradas quando a dívida é da sociedade.

Nestas disposições dos artºs 20º e ss do CSC apenas se definem as obrigações e direitos dos sócios nas sociedades em geral, estipulando-se aí a obrigação de entrada de cada um, para efeitos de aferir do respectivo cumprimento dessa obrigação.
A expressão “bens susceptíveis de penhora” tem de ser entendida no domínio das normas processuais e substantivas que indicam quais os bens que podem ou não ser penhorados, como são as dos artºs 821º e ss. do CPC.
De resto no tocante às sociedades por quotas ,como é o caso da executada, as entradas estão limitadas a dinheiro (artº202º, nº 2 do CSC), já que não são admitidas contribuições de “industria” [-“indústria “significa aqui a contribuição para a sociedade com bens e serviços, a qual pode consistir (nos tipos de sociedade em que seja admissível) em bens de qualquer natureza, tudo quanto seja redutível a um valor pecuniário]

4-No tocante às sociedades por quotas, são os artºs 197º e ss do CSC que dos indicam como podem ser estabelecidas as suas características, contrato e obrigação de entradas de capital e mesmo a responsabilidade directa dos sócios para com os credores sociais (artº 198º do CSC).

Cremos que é o próprio artº 197º do CSC que define as características da sociedade por quotas que no seu nº 3 nos dá a resposta à questão colocada no agravo:

Aí se dispõe que “Só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, salvo o disposto no artigo seguinte” (situação que aqui não se impõe analisar uma vez que não foi colocada a questão de o contrato de sociedade estipular a responsabilidade directa dos sócios para com os credores, que aliás não estão demandados como executados).

Ora importa aqui ter presente as noções de património social e capital social apontadas por Ferrer Correia, nas Lições de direito comercial, 2º volume, 1968, pág. 218:
Capital social é a cifra (factor ideal constante) representativa da soma das entradas dos sócios e serve de base para o cálculo dos resultados da exploração, dos lucros e perdas e ainda para a distribuição dos lucros aos sócios.
Património social (deixando aqui de considerar as suas vertentes de património bruto e ilíquido) liquido, no sentido mais comummente empregado (valor do activo depois de descontado o passivo), é o fundo real variável que só em determinados momentos, ao levantar-se o balanço, é possível concretizar numa cifra.

A coincidência entre património social e capital social poderá existir no momento da constituição da sociedade, já que a intenção da lei, sobretudo nas sociedades de responsabilidade limitada (agora designadas por quotas) é que a pessoa colectiva nasça com um património correspondente ao capital fixado no contrato.
Contudo como refere o mesmo autor e agora resulta dos artºs 199º-b) e 202º, nº2 do CSC é possível o diferimento de entradas em dinheiro dos sócios relativamente a metade, o que afasta a possibilidade de acontecer sempre essa coincidência.
5-Isto leva-nos desde já a concluir que na sociedade por quotas havendo um capital que se acha dividido em quotas que são uma fracção do capital da sociedade pela qual se afere a medida dos direitos e obrigações de cada um dos sócios, existe também uma característica que é a de os sócios, em principio (salvo o estipulado no artº 198º do CSC), não responderem perante os credores sociais ,com as suas respectivas quotas sociais.
Os sócios poderão responder para com os credores sociais até determinado montante, em termos solidários ou subsidiários, se isso for estipulado no contrato, como resulta do nº 1 do artº 198º do CSC.
Contudo do artº 197º nº 3 resulta expressamente que “só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, salvo o disposto no artº seguinte (que aqui não está em causa)”.

Mas, como se referiu o património social da aqui executada não se confunde com o capital social correspondente às entradas dos sócios.
Esse património social que será susceptível de penhora é aquilo a que acima referimos, ou seja, os valores concretos e reais do património que compõem a sociedade integrada de todos os seus elementos, designadamente as suas instalações e outros objectos ou dinheiros.
As quotas sociais constituem a cifra representativa da soma das entradas dos sócios e no seu conjunto é que constituem o capital social da sociedade convencionado no contrato para a constituição da sociedade.
Este capital social não se confunde, pois, com o património social que a lei diz responder para com os credores pelas dívidas da sociedade.
O capital social para além de ter as funções acima referidas no domínio das relações da sociedade para com os sócios constitui também (como refere Ferrer Correia, volume 2º, da obra citada, pág.224) uma garantia de terceiros, isto é, para com os credores da sociedade, porque a lei não permite a distribuição pelos sócios de quantias ou valores necessários para manter intacto esse fundo, já que o capital social é intangível.

6-Mas essa intangibilidade não significa que possa ocorrer a penhora de todas as quotas sociais da sociedade enquanto soma desse capital social.
“O capital social é simplesmente uma cifra- uma cifra abaixo da qual o património da empresa não poderá descer em virtude de atribuições aos sócios (enquanto tais e não enquanto terceiros) de valores de qualquer natureza.
Só nesta medida é que o capital social desempenha as funções de uma segurança para terceiros”.

Se a sociedade, mercê do seu giro comercial, se coloca numa situação (delapidando mesmo as cifras das entradas dos sócios) de não estar em condições de ter património social concretizado capaz de responder pelo pagamento de dívidas aos credores, resta a estes fazer uso das disposições previstas nos artºs 3º e 20 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Aceitar que pudessem ser nomeadas em penhora todas as quotas sociais da sociedade, ou seja, todo o seu capital social, corresponderia na prática a reconhecer que a sociedade executada não tem qualquer outro valor patrimonial e então ficaria em situação de insolvência, já que a lei não prevê para esta situação mecanismos de possibilidade de aquisição de quotas próprias e de amortização pela sociedade, fora do disposto nos artºs 220º e 233º do CSC.

Nestes termos não assiste razão à agravante, não sendo possível a penhora de das quotas sociais da sociedade, quando é executada a própria sociedade.

III- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em negar provimento ao recurso de agravo, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.
Porto, 3 de Novembro de 2005
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo