RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO
Sumário


I - A única questão que o recorrente podia ver reapreciada neste recurso para o STJ era a relativa à medida da pena única que lhe foi imposta, por ser superior a 8 anos de prisão mas, não a tendo colocado, estamos impedidos de dela conhecer.
II - Os recursos destinam-se a apreciar a decisão de que se recorre (neste caso o acórdão do tribunal da Relação impugnado) e não para apreciar questões novas que não foram colocadas no tribunal recorrido (ressalvado aquelas que devam ser conhecidas oficiosamente, o que não é o caso), nem para voltar a reapreciar as mesmas questões que já foram colocadas em anterior recurso (neste caso relativos ao acórdão da 1.ª instância) e decididas definitivamente, por se verificar o condicionalismo previsto nos art. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP (e, por isso, não sendo admissível recurso para o STJ).
III - Quanto a eventuais nulidades cometidas pela Relação, como agora é invocado em sede de recurso para o STJ, não sendo este recurso admissível (face à opção da defesa, de não recorrer da pena única que era superior a 8 anos), deveria as ter antes arguido em requerimento autónomo, perante o tribunal competente para as conhecer, que era o tribunal da Relação, dentro do prazo legal, sob pena de ficarem sanadas.
IV - Os recursos interlocutórios, que foram julgados improcedentes pela Relação e que não se debruçam sobre o objeto do processo, não admitem recurso para o STJ, face ao disposto nos art. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Texto Integral




Proc. n.º 36/19.8JELSB.L1.S1

Recurso

    

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 36/19.... do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., comarca ..., por acórdão de 14.07.2020, entre outros, o arguido AA foi, além do mais (no que aqui interessa),

condenado:

- pela prática em co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-B, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 7 (sete) anos de prisão,

- pela  prática em co-autoria material de um crime de associação criminosa p. e p. no art. 28.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22.01, na pena de 6 (seis) anos de prisão;

- em cúmulo jurídico na pena única de 9 (nove) anos de prisão;

- e, na pena acessória de afastamento do território nacional, prevista nos artigos 22.º, nºs 1 e 2, e 23.º da Lei 37/2006, de 9.08 e art. 34.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.01, pelo período de 5 (cinco) anos.

II. Inconformado com o acórdão da 1ª instância, recorreu (entre outros) o mesmo arguido AA para o Tribunal da Relação ..., o qual por decisão de 26.01.2022, negou total provimento aos recursos apresentados (por todos os arguidos recorrentes) do acórdão da 1ª instância, bem assim como negou provimento aos recursos interlocutórios (no que se relaciona com o aqui recorrente, sendo um relativo ao despacho proferido na sessão de julgamento de 24.06.2020, que indeferiu a sugerida inquirição da testemunha BB, ao abrigo do art. 340,º, n.º 4, al. a), do CPP e, o outro, relativo ao despacho de 8.05.2020, que indeferiu requerimento apresentado pelo mesmo arguido/recorrente por inexistir qualquer questão prejudicial cuja validade ou interpretação, no domínio do direito comunitário, importasse ser esclarecida), mantendo o acórdão recorrido nos seus precisos termos.

III. Inconformado com esse Acórdão do TR.… de 26.01.2022, veio o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:

1-a Justiça Portuguesa não pode ser assim!!!! estamos na Europa, Portugal é membro da Comunidade Europeia mas os Tribunais nacionais ostracizam Tratados e Convenções Internacionais!

2-os Senhores Juízes de Estrasburgo (Cour Europeenne Droits de L´Homme) já censuraram o modo como o arguido AA foi preso, em condições indignas, em cela sobrelotada, sem higiene e sem respeito pelo artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no affaire 59239/19 de 31-10-2019. Portugal reconheceu as más condições de detenção, de conhecimento oficioso por ter sido notificado à Procuradoria-Geral da República Portuguesa;

3-urge que Vossas Excelências ordenem a remessa da QUESTÂO PREJUDICIAL aos Senhores Juízes do Tribunal de Justiça da União Europeia (Luxemburgo) pois só aí o JUIZ LEGAL pode decidir da in-(compatibilidade) da nossa ordem jurídica com as regras da CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÂO EUROPEIA; na verdade,

4- o TR.… denegou o envio das Questões Prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia; incorreu no vicio de privação de acesso ao Juiz Legal, imposto nos artigos 32º-9 e 202º da CRP; o Juiz Legal ou Natural é o Juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia, sito no Luxemburgo; os artigos 32º-1 e 9, 202 e 205 da CRP e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem impõem a acesso a um Juiz e foram violados ostensivamente pelo TR.… e I Instancia;

5-a  fls 62 o Acórdão recorrido limita-se a decidir que não há censura ao decidido pela I Instancia sob o despacho de 8-5-2020; os artsº 3º da CEDH e 4º da CARTA foram suscitados em tempo e foi interposto recurso atempado pelo que a interpretação inconstitucional do TR... constitui ostensiva violação do Principio do Juiz Natural e denegação de Justiça por privar o arguido de acesso ao JUIZ LEGAL do Tribunal de Justiça da União Europeia.

6- Nota de perplexidade e de angústia:

a)- em 30-1-2019 arguido foi preso; em 14-7-2020 foi condenado a 9 anos de prisão; em 26-1-2022 o Tribunal ... proferiu Acórdão; entre a detenção e condenação decorreu UM ANO e SETE MESES; entre a detenção e o Acórdão recorrido decorreram quase TRÊS ANOS; em 7-10-2020 o recurso subiu ao TR... que em 26-1-2022 tudo rejeita aos arguidos presos em celas frias e húmidas; a fls 57 do ... inicia o conhecimento dos recursos; a fls 65 repete os factos provados na I instancia; a fls 82 – 88 aprecia o recurso para lhe negar provimento; a fls 88 e ss aprecia os demais recursos com invocação de algumas normas e pouco mais..

b)-em 113 paginas do Acórdão produzido em UM ANO E TRÊS MESES, com 3 ou 4 adiamentos para publicação, o TR... arrazoou da sua lavra cerca de trinta (30) páginas…..e assim vai a Justiça Portuguesa em 2022…!!!!!!!!

c)- em 1984, o Julgamento da “...”         com Jurados demorou 1 (um) ano; o ... ... ouviu o Mº Público, os 57 arguidos, mil e oitocentas ( 1800) testemunhas…e cerca de 50 advogados; no espaço de UM (1) ANO julgou-se, condenou-se e absolveu-se!!!!…a Acusação demorou 4 (quatro) meses ( querela provisória) !!!..em 1984 no tempo do papel selado azul, da maquina de escrever, sem meios, sem computadores, os Senhores Juízes trabalhavam em velhos gabinetes e decidiam em prazos curtos; o caso “...” foi investigado, instruído e acusado em 7 meses e julgado em UM ANO…

d)-hoje, sob os tempos do Citius, Simplex e em computadores “top” o TR.… demorou 15 (quinze) meses, sem Audiência pública, a rejeitar em escassas 30 páginas o futuro do recorrente e demais co-arguidos….

7- o arguido requereu que fossem entregues à defesa todos os documentos e provas na posse do MAOC ... e originaram a informação à PJ sobre o ..., o que o foi rejeitado; foi violada a Directiva 2012/13/UE – artº 7º- 5, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem- artº 6º-1 e o Principio do Contraditório;

8- o Tribunal a quo rejeitou a inquirição de uma testemunha crucial para apurar da “origem” do caso, a testemunha BB, Inspector da PJ.

O Tribunal de Instância rejeitou e o TR.… secundou a recusa.

O julgamento não foi equitativo pelo que foi violado o artº 6º-1 da CEDH

9- o TR.… não realizou Audiencia Publica nem viu nem ouviu o dos arts 6º e 13º da Convenção Europeia o que traduz nulidade do Acórdão;

10-este Alto Tribunal pode e deve examinar, ao abrigo dos poderes consignados pelo artigo 434º CPP, o erro notório na apreciação da prova e a matéria de direito quanto ao pseudo- crime de Associação Criminosa; inexistem os elementos objectivos e volitivos do plano criminoso;

11-sob generalidades e Juizos de valor conclusivos a I Instancia e o TR.… partiram de generalidades para a “associação” quando o recorrente AA não conhecia o co-arguido CC nem os demais co-arguidos….

Deve ser julgado neste Alto Tribunal que inexistem os requisitos dos crimes e o arguido ABSOLVIDO. A conclusão, face aos vícios e erro notório só pode ser a ABSOLVIÇÃO NESTE ALTO TRIBUNAL e a revogação do Acórdão do TR....

Foram violados:

- art. 6º- 1 da CEDH, pois o TR.… não realizou a Audiência Publica.

- arts 32º-1 e 9, 202 e 205 da CRP e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem pois o TRL violou o acesso ao Juiz Legal no Tribunal Justiça União Europeia;

-art. 7º- 5, da Directiva 2012/13/UE

– art. 6º-1 e o Princípio do Contraditório a Convenção Europeia dos Direitos do Homem- pois o Tribunal de julgamento recusou o acesso a provas essenciais

- art. 21-1 do DL 15/93;

- art. 28º do DL 15/93 pois não existe exame crítico das provas; nem o TR.… nem a I Instância explicitam em concreto o raciocínio sobre os factos e submissão ao cometimento dos crimes;

- art. 379- a) CPP e 32º da CRP o Acórdão é NULO por omissão de fundamentação em matéria de facto.

Termina pedindo que seja deferida a remessa da questão prejudicial ao TJUE e, ou, declarando a nulidade do Acórdão do TR.… e, ou, a absolvição dos crimes de associação criminosa e de tráfico.

IV. O recurso foi admitido, por despacho de 22.02.2022, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

V. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1.  O acórdão recorrido fundamentou, exaustivamente, as razões porque confirmou o acórdão condenatório proferido em 1ª Instância, relativamente ao ora recorrente, em todas as questões suscitadas.

2.  Relativamente à matéria de facto, podendo haver divergências relativamente ao que foi dado como provado, é uma questão de convicção do julgador que não se mostra abalada por qualquer meio de prova apresentada que imponha decisão diversa, em cumprimento do disposto na al. b), do n.º 3, do art. 412º, do Código de Processo Penal.

3.  Não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios a que se reporta o n.º 2, do artigo 410.º, do Código Processo Penal e que podem ser conhecidos oficiosamente.

4.  A inquirição do Coordenador de Investigação Criminal da PJ BB, pretendida pelo recorrente, tratava-se de uma diligência que não era, efectivamente, indispensável à descoberta da verdade material, nos termos do disposto no artigo 340.º, n.º 1, do C. P. Penal, respeitando o princípio equitativo, pelo que foi correctamente indeferida.

5.  Inexiste qualquer questão prejudicial cuja validade ou interpretação, no domínio do direito comunitário, importe ser esclarecida, assim carecendo de fundamento legal a pretensão do recorrente do reenvio do processo, atinente às alegadas condições prisionais existentes no Estabelecimento Prisional ....

6.  Não se mostram violadas nenhumas das normas legais, constitucionais e convencionais indicadas pelo recorrente.

Termina, assim, pedindo que seja julgado improcedente o recurso e confirmado o acórdão da Relação impugnado.

VI. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer suscitando a questão prévia da irrecorribilidade da decisão firmada pelo TR..., pugnando pela rejeição do recurso, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, al. f), 417.º, n.º 6, al. b), 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, por o ac. do TR... ter confirmado integralmente o acórdão da 1ª instância e, assim haver dupla conforme, não sendo admissível o recurso para o STJ de todas as questões relacionadas com os crimes de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, pelos quais o recorrente foi condenado, considerando as penas individuais que lhe foram aplicadas (inferiores a 8 anos), a que acresce que apesar de a pena única, atento o seu quantum (9 anos de prisão) ser a única que era passível de recurso para o STJ, como o recorrente não a questiona por qualquer forma (por antes ter optado por pugnar pela absolvição dos crimes pelos quais foi condenado), prejudicado fica o seu conhecimento e, por isso, impondo-se a rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, a tanto não obstando o despacho que o admitiu.

VII. Na Resposta ao Parecer do Sr. PGA o recorrente mantém o sustentado no recurso, reafirmando que incumbe ao STJ apreciar o erro crasso da condenação, absolver o arguido ou ordenar a remessa da questão prejudicial ao TJUE.

VIII. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais com o envio das peças processuais que fossem solicitadas, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

Factos


IX. Resulta do acórdão da 1ª instância a seguinte decisão sobre a matéria de facto, que foi confirmado pelo Ac. do TR.… de 26.01.2022:

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes Factos:

“1. Os arguidos CC e AA, juntamente com outros indivíduos não identificados, faziam parte de um grupo organizado, que se dedicava à aquisição e transporte para a Europa, através de Portugal, de produtos estupefacientes, com vista à sua entrega a terceiros, a troco de quantias monetárias, formado para essa finalidade;

2. Para o efeito, no seio daquele grupo foi arquitectado um plano, que se traduzia na introdução na Europa, através de Portugal e por via marítima, de toneladas de cocaína;

3. Na prossecução do apontado projecto competia aos arguidos CC e AA proceder ao transporte de cocaína, por via marítima, na embarcação, do tipo rebocador, denominada “...”, com pavilhão do ..., com as identificações ...52 e ...00, com 41,5m de comprimento, construída em 1985, desde o ...;

4. No mês de Julho de 2018 o navio foi adquirido pela empresa “L.…”, pelo valor de € 900.000,00 à empresa alemã “S.…”;

5. No dia 27.09.2018 o arguido CC aceitou o navio ..., em representação da empresa L.…, saindo a embarcação da disponibilidade da anterior proprietária a partir dessa data;

6. Posteriormente, os arguidos DD, EE, FF, GG, HH, II e CC, bem como os indivíduos JJ, KK e LL, deslocaram-se para o porto de ..., na ..., onde o ... se encontrava atracado;

7. Os arguidos referidos em 6. tinham a missão de tripular a embarcação na viagem de ida e volta da ... e de a carregar com cocaína;

8. Assim, e nomeadamente, o arguido DD era o capitão do navio, ao passo que os arguidos EE e FF desempenhavam as funções de primeiro e segundo imediato, respectivamente;

9. O arguido CC dava ordens aos arguidos DD, EE e FF e assegurava que toda a logística do navio, designadamente as suas condições de navegabilidade e de abastecimento de combustível, víveres e de sistemas de comunicações, estava operacional;

10. Os restantes arguidos referidos em 6. constituíam a restante tripulação do navio;

11. Durante o período em que a embarcação esteve atracada no porto de ... os arguidos realizaram serviços de manutenção e reparação a bordo e abasteceram o navio de mantimentos e combustível;

12. No dia 01.12.2018 a embarcação zarpou do porto de ..., na ..., tripulada pelos referidos arguidos DD, EE, FF, GG, HH, II e CC, bem como pelos indivíduos JJ, KK e LL;

13. Os arguidos declararam como destino a cidade ..., no ..., com data prevista de chegada a 22.12.2018;

14. Após o que, no dia 13.12.2018, quando o navio já navegava ao largo das ..., os arguidos alteraram o porto de destino, passando então a indicar o porto de ..., em ..., onde atracou no dia 18.12.2018;

15. Depois, a embarcação zarpou de ... e, na madrugada do dia 04.01.2019, atracou no ancoradouro da ..., em ..., no ..., onde permaneceu até ao início da noite dessa data;

16. Após, o navio seguiu com destino a ..., no ..., chegando junto à costa dessa cidade na madrugada de 08.01.2019;

17. Entre os dias 09 e 11.01.2019, a embarcação esteve atracada no porto da empresa ..., situado no braço do ..., após passar o centro de ...;

18. Na manhã do dia 11.01.2019 a embarcação zarpou do porto da ..., navegando até às coordenadas marítimas ..., situadas a cerca de 40 milhas da entrada do ...;

19. A embarcação manteve-se nesse local até às 06h00 do dia 12.01.2019, altura em que recomeçou a navegar rumo a Este, declarando ... como destino final, tendo, posteriormente, alterado novamente o destino final indicando outros locais em Portugal;

20. De acordo com o combinado entre todos, em data não concretamente apurada, mas que se situa no período imediatamente anterior à sua partida com destino à Europa, os arguidos, em conjugação de vontades e esforços com terceiros, passaram a transportar no interior da aludida embarcação 82 fardos, que para aí foram carregados, que continham cocaína;

21. No momento do carregamento da cocaína no navio entrou a bordo o arguido AA, que seguiu viagem com os restantes co-arguidos em direcção à Europa, no ...;

22. Os aludidos 82 fardos continham as seguintes quantidades de cocaína (cloridrato):

- 213 placas de cocaína, com o peso líquido de 245.150g; 329 placas de cocaína, com o peso líquido de 330.661,05 kg; 444 placas de cocaína, com o peso líquido de 443.757,256g; 300 placas de cocaína, com o peso líquido de 301.725,873g; 229 placas de cocaína, com o peso líquido de 229.286,564g; 73 placas de cocaína, com o peso líquido de 73.440,588g; 267 placas de cocaína, com o peso líquido de 275.085,342; 204 placas de cocaína, com o peso líquido de 203.497,317g; 28 placas de cocaína, com o peso líquido de 27.581,622g; 385 placas de cocaína, com o peso líquido de 380.380,053g; Uma placa de cocaína, com o peso líquido de 997,007g.

23. Foi assim carregada para o navio cocaína (cloridrato), com o peso líquido total de 2.511.562,673g;

24. Os referidos 82 fardos que continham a cocaína foram colocados num compartimento, situado no convés da embarcação, a meio das escadas exteriores que davam acesso à ponte de comando, tendo duas portas de entrada e diversas janelas em redor do mesmo, perfeitamente visível e acessível a todos os membros da tripulação;

25. Após, os arguidos, tripulando a aludida embarcação, e em execução do plano previamente acordado entre todos, encetaram a viagem de regresso, com destino à Europa, transportado a cocaína que havia sido introduzida no navio;

26. No dia 30.01.2019, pelas 05h13m, a referida embarcação foi interceptada pela Marinha Portuguesa, nas coordenadas marítimas ..., a cerca de 150 milhas náuticas do ...;

27. Nas apontadas circunstâncias, os 82 fardos que continham a apontada quantidade de cocaína encontravam-se armazenados no compartimento supra referido em 24, localizado no convés do navio; 

28. No interior da ponte de comando do navio encontravam-se, entre outras coisas, os seguintes objectos: Um monitor de radar; Um aparelho de GPS marítimo; Dois telefones de satélite; Um computador portátil; Três telemóveis.

29. No camarote do arguido DD encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: a quantia de € 1250; Um telemóvel ...; Um computador portátil; Um rol de tripulação do ..., emitido pela autoridade marítima do ....

30. No camarote do arguido AA encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: Dois telemóveis; Dois carregadores de telefone de satélite.

31. No camarote do arguido CC encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: a quantia de € 18.200,00; Quatro folhas com pesquisas sobre a venda do ..., com data de 21.06.2018; Dois telemóveis; Um computador portátil.

32. No camarote do arguido EE encontrava-se, entre outras coisas, a quantia de € 950.

33. No camarote do arguido FF encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: Um disco externo; Um telemóvel; a quantia de € 1000.

34. No camarote ocupado pelo indivíduo JJ encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: Dois telemóveis; Dois computadores portáveis.

35. No camarote do arguido GG encontrava-se, entre outras coisas, um telemóvel e documentação diversa;

36. No camarote do arguido HH encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: a quantia de € 1000; Dois tablets; Um telemóvel;

37. No camarote ocupado pelo indivíduo LL encontrava-se, entre outras coisas, o seguinte: Um computador; Um telemóvel.

38. No camarote do arguido II encontrava-se, entre outras coisas: Um computador portátil; A quantia de $861 (...); A quantia de € 1200,00; Um telemóvel; Um tablet.

39. No camarote ocupado pelo indivíduo KK encontrava-se, entre outras coisas, a quantia de € 1.200;

40. Os referidos computadores e telefones serviam para os arguidos estabelecerem os contactos necessários relativos ao transporte da cocaína;

41. As aludidas quantias monetárias destinavam-se a custear as despesas da viagem dos arguidos e da sua estadia na Europa;

42. A cocaína é vendida em Portugal, em média, por 42,52 €/grama;

43. Todos os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços, no desenvolvimento de um plano por todos previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo, desde o ... para Portugal, o supracitado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam, com o fito de o entregar a terceiros, a troco de quantias monetárias;

44. Os arguidos CC e AA actuaram em conjugação de vontades e esforços, com o desígnio conseguido de integrar o referido grupo constituído com o fito de receber e transportar o aludido produto estupefaciente, do continente americano para a Europa e de o entregar a terceiros a troco de quantias monetárias, sabendo que faziam parte desse conjunto de pessoas e que o cumprimento das respectivas tarefas era indispensável à prossecução dos objectivos do grupo a que aderiram, fazendo-os seus;

45. Para tanto, os referidos arguidos CC e AA quiseram e lograram acrescentar os seus meios individuais à estrutura do grupo, através de laços de disciplina e hierarquia definidos, para melhor levar a cabo os objectivos acima aludidos e, conseguir assim, daí retirar as mencionadas vantagens pecuniárias;

46. Todos os arguidos agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

47. Os arguidos não nasceram em Portugal.

48. Os arguidos HH, MM, EE, FF, DD e II são cidadãos da ...;

49. O arguido CC é cidadão dos ...;

50. O arguido AA é cidadão de ...;

51. Os arguidos não residem em Portugal e não têm quaisquer familiares, amigos ou emprego neste país, onde apenas se deslocaram para praticar a factualidade acima narrada;

Mais se apurou que:

52. Natural dos ..., o arguido CC é oriundo de um agregado familiar com boa dinâmica relacional e sem qualquer problemática ao nível económico, constituído pelo progenitor, ..., que desempenhava funções na ..., pela progenitora, ..., e por dois irmãos, actualmente com 76 e 80 anos de idade, ambos a residir na ...;

53. Os progenitores do arguido faleceram há cerca de vinte e seis anos;

54. O arguido iniciou a escolaridade em idade apropriada, tendo concluído a escola primária em ... e o 9º ano de escolaridade na ..., com 16 anos de idade;

55. Aos 16 anos de idade candidatou-se à ..., tendo sido admitido, e cumpriu o serviço ... por um período de seis anos, até aos 22 anos de idade;

56. Em 1968 casou com a sua actual mulher, que tem actualmente 70 anos de idade, sendo ...;

57. Após o abandono da vida ..., o arguido trabalhou em várias empresas na área das ... e posteriormente na área da ...;

58. Em 1969, após o arguido ter saído do serviço ..., foi habitar com a mulher para a cidade ...; em 1976 frequentou um curso de formação na escola ... da ... obtendo qualificações para dirigir um ... e em 1981 fundou uma empresa de ... na ...;

59. Após regressar ao seu agregado na ..., em 1985, desenvolveu várias actividades, tais como a venda de ...;

60. O arguido e a sua mulher têm dois filhos, com 50 e 47 anos de idade, que são independentes e residem na ..., perto dos progenitores;

61. No Estabelecimento Prisional não apresenta qualquer registo disciplinar, interagindo com os pares e demais funcionários normativamente e teve, até à data, uma visita da mulher, dos filhos e de um amigo;

62. O arguido encontra-se a frequentar aulas de português para falantes de outra língua; 

63. O arguido apresenta défice de competências pessoais e denota dificuldades ao nível do raciocínio crítico e pensamento consequencial, evidenciando fraco juízo crítico e de auto-censura;

64. Natural de ..., o arguido AA é filho único da relação dos progenitores, de ascendência ..., que se separaram logo após o seu nascimento;

65. Após a separação dos progenitores o arguido foi levado pelo pai para ..., onde esteve entregue aos avós paternos até aos 11/12 anos de idade, regressando nessa altura a ... para se juntar ao agregado da progenitora; tem quatro irmãos uterinos e dois consanguíneos;

66. Iniciou o seu percurso escolar com a idade regulamentada, em ..., onde concluiu o 4o ano de escolaridade; em ... manteve-se a estudar até aos 15 anos de idade no ensino normal, tendo posteriormente frequentado um curso de formação profissional ... durante dois anos;

67. Iniciou o percurso laborai aos 18 anos de idade, como ..., função que exerceu até aos 27 anos de idade, tendo passado por várias ...; posteriormente trabalhou como ...;

68. Contraiu casamento em 2009 e da união o casal tem uma filha, actualmente com quatro anos de idade; entretanto, estabeleceu nova relação afectiva da qual nasceu um filho, em .../.../2019;

69. À data dos factos supra descritos o arguido vivia no agregado familiar da progenitora, em ..., com a actual companheira, e trabalhava numa empresa de ... em “part-time”; 

70. Em meio prisional não tem registo de medidas disciplinares, mantém uma atitude adequada e cumpre as regras institucionais;

71. Encontra-se inscrito e a frequentar aulas de Português para Estrangeiros, leccionadas por uma associação que presta voluntariado no estabelecimento prisional;

72. Recebe visitas da actual companheira e do filho de ambos, bem como da ex- mulher, da filha e de um irmão;

73. Apresenta fraco juízo de auto-censura e de interiorização dos valores ético- jurídicos vigentes;

74. O arguido HH é natural de ..., ..., tendo nascido quando os pais frequentavam a faculdade (o pai ... e a mãe ...); após terminarem a faculdade foram viver para um meio mais rural, onde o progenitor passou a explorar uma ..., praticando actos ... e venda de ..., auxiliado pela mãe do arguido;

75. O arguido realizou o seu processo de desenvolvimento num ambiente sociofamiliar funcional, estruturado e de entreajuda; o arguido tem uma irmã mais nova que actualmente vive em ...;

76. Iniciou o sistema de ensino em idade regulamentar, tendo concluído com 17 anos de idade o ensino secundário, altura em que se muda para ... para frequentar a faculdade ...; em “part-time” trabalhava na ...;

77. Do ponto de vista profissional, o arguido começou a trabalhar numa empresa ... e em simultâneo fez um curso de ...; após a conclusão do curso passou a trabalhar como ... para empresas de ...; 

78. Do ponto de vista afectivo, iniciou ainda na faculdade a relação com a actual mulher, com quem casou no terceiro ano e dessa relação tem dois filhos, actualmente com 15 e 10 anos de idade;

79. À data dos factos supra descritos, o arguido encontrava-se a residir com a mulher, que mantinha actividade na área ..., e os dois filhos;

80. No estabelecimento prisional o arguido revela uma postura adequada e colaborante no contacto interpessoal, quer com os pares, quer com os serviços técnicos e de vigilância, não registando até a data nenhum averbamento no seu registo disciplinar; encontra- se a aguardar colocação laborai.

81. Em meio prisional não tem suporte ou apoio da família uma vez que a mesma se encontra no país de origem, mantendo apenas contacto através de correspondência e telefone;

82. Apresenta fraco juízo crítico e de auto-censura face aos factos supra descritos;

83. Natural de ... (...), o arguido GG é casado há dezanove anos e tem duas filhas, com 18 e 14 anos de idade;

84. O arguido é o primeiro de uma fratria de três elementos, um ... e outro uterino; os progenitores encontram-se separados desde a infância do arguido;

85. Após a separação dos progenitores ficou a cargo da mãe, que entretanto formou novo agregado; a progenitora exercia funções ... e o pai comparticipava nas despesas do arguido, residindo em habitação própria e sem restrições económicas;

86. Integrou o sistema de ensino em idade própria, mantendo um percurso escolar regular, sem dificuldades de adaptação ao sistema académico, tendo concluído o equivalente ao 12° ano de escolaridade, através de curso técnico-profissional relacionado com a actividade ...; em 2012 frequentou um curso de ..., que concluiu;

87. No período que antecedeu a prática dos factos supra descritos residia com a cônjuge e as duas filhas do casal em habitação própria;

88. No Estabelecimento Prisional mantém uma postura consentânea com as regras e normas vigentes na Instituição, não registando medidas disciplinares; beneficia do apoio de familiares através de depósitos regulares no seu fundo de uso pessoal, de contactos telefónicos e de recepção de encomendas;

89. O arguido evidencia fraco juízo crítico e de auto-censura;

90. É descrito, pelos seus conhecidos, como pessoa séria e pacata;

91. O arguido EE é proveniente de um agregado familiar composto pelos pais, os avós, tios e primos; tem dois irmãos de uma anterior relação afectiva do progenitor e uma irmã germana;

92. Iniciou o seu percurso escolar aos sete anos de idade e posteriormente obteve formação universitária nas áreas do ...;

93. A nível profissional iniciou-se aos dezasseis anos de idade em negócios ... e aos dezoito anos passou a explorar uma loja ... em conjunto com a progenitora;

94. Iniciou funções profissionais ..., como segundo imediato, aos dezanove anos de idade;

95. Evidencia fraco juízo crítico e de auto-censura;

96. E tido, pelos seus familiares, como pessoa honesta; 

97. O arguido FF é natural da ..., sendo o único filho de um agregado de situação socioeconómica estável, composto pelos progenitores, que se dedicavam a actividades ligadas ao ... e de...;

98. O seu percurso académico foi regular até concluir o ensino secundário, tendo depois frequentado o ensino universitário na ..., que suspendeu por não poder fazer face às despesas do curso; posteriormente ingressou no ensino técnico-profissional, num curso ..., que concluiu com sucesso;

99. Iniciou o seu percurso laboral aos 17 anos de idade, numa ... onde realizou estágio, e em 2013 iniciou actividade profissional como ...;

100. Em 2007 iniciou uma relação afectiva que culminou em casamento em 2018, não tendo filhos dessa relação;

101. Desde que se encontra preso no Estabelecimento Prisional ... apresenta um comportamento adequado, sem registo de sanções ao nível disciplinar, encontrando-se a aguardar colocação para trabalhar; não beneficia de quaisquer visitas;

102. O arguido apresenta dificuldades ao nível da capacidade crítica e do raciocínio consequencial, possuindo fraco juízo de auto-censura;

103. O arguido DD é natural da ..., sendo proveniente de um agregado familiar dotado de boas relações afectivas, sem dificuldades económicas, constituído pelos progenitores e um irmão ...;

104. O pai do arguido era ... numa fábrica de máquinas destinadas à ..., tendo falecido há cerca de quatro anos de problemas cardíacos; a mãe era ..., tendo falecido há dois anos; 

105. Iniciou o percurso escolar em idade apropriada, terminando o ensino secundário sem registo de reprovações, tendo concluído posteriormente cursos superiores de engenharia ... e de ... de ...;

106. Em 1981 iniciou uma relação afectiva com a sua primeira mulher, de quem tem uma filha, actualmente com 36 anos de idade, com quem não mantém relacionamento próximo;

107. O arguido iniciou o percurso laborai em 1981 tendo durante uma década desempenhado diversas profissões, nomeadamente, ..., ... e ... nos ... e ... numa fábrica de materiais perigosos;

108. Em 1991 fez a sua primeira viagem ..., tendo progredido na carreira ... até chegar a capitão.

109. Em 1988 iniciou nova relação afectiva, com a actual mulher, de quem tem uma filha, actualmente com 19 anos de idade, estudante numa academia de linguística em ...;

110. Em termos profissionais, e por referência aos factos supra descritos, encontrava- se há cerca de um ano sem trabalhar, usufruindo do dinheiro que tinha amealhado ao longo do seu percurso laborai;

111. No Estabelecimento Prisional teve, até à data, uma visita da mulher e do irmão; encontra-se integrado institucionalmente, não tendo qualquer registo disciplinar, interagindo normativamente com os pares e demais funcionários;

112. Encontra-se a frequentar aulas de português para falantes de outra língua;

113. O arguido denota défices ao nível do raciocínio crítico e do pensamento consequencial, apresentando fraco juízo de auto-crítica;

114. É considerado, no seu meio social, como pessoa séria; 

115. O arguido II. de 33 anos, é cidadão ... e o mais novo de uma fratria de dois irmãos;

116. A sua infância e adolescência decorreram dentro dos parâmetros normais, sendo o ambiente familiar descrito como de interajuda entre os vários elementos; os progenitores, ambos ..., proviam uma situação económica sem restrições;

117. Quanto ao percurso escolar, o arguido iniciou os estudos em idade regulamentar, tendo estudado até ao equivalente ao 12° ano de escolaridade, sem registo de retenções; apresenta ainda no seu percurso formativo dois cursos: um de ... e outro de ...;

118. Aos dezanove anos frequentou o serviço militar, com duração anual;

119. Manteve um percurso laboral na área da ... e na ...;

120. A partir de 2012, em virtude do seu casamento e com vista à constituição de família, apenas trabalhou na ...;

121. Tem um filho, actualmente com 6 anos de idade, tendo-se divorciado da progenitora deste em 2017;

122. À data dos factos supra descritos o arguido encontrava-se a residir sozinho na ..., perto da fronteira com a ...;

123. Em meio prisional regista uma repreensão escrita por posse de objecto proibido e encontra-se inscrito em bolsa de trabalho, a aguardai- colocação laborai;

124. Não apresenta qualquer registo de visitas ou contactos com o exterior;

125. O arguido possui fraco juízo crítico e de auto-censura face aos factos supra descritos;

126. Este arguido é considerado, pelos seus conhecidos, como pessoa séria;

127. Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguidos.”

FACTOS NÃO PROVADOS:

Da acusação, para a qual remete o despacho de pronúncia, e com relevo para a decisão da causa, não resultou provado que:

a) Os arguidos NN, GG, EE, FF, DD e II fizessem parte do grupo organizado supra referido em 1., 2., 44 e 45;

b) A embarcação supra referida em 3. tenha, nos últimos cinco anos, operado no norte da Europa, sempre com rotas situadas entre ..., ..., ... e ...;

c) Durante o período em que a embarcação esteve atracada no porto de ... o arguido II e o indivíduo LL tenham desmontado equipamentos de exercício físico, sob as ordens dos arguidos CC e EE, que se encontravam no compartimento supra referido em 24.;

d) Durante esse período tenha sido instalado a bordo um sistema de transmissão de dados, por via satélite, de forma a permitir o acesso à internet em alto mar, através de wift, pela empresa ... «C.…»;

e) Aquando do descrito em 20., supra, tenham sido os arguidos quem colocou no interior da embarcação os fardos contendo a cocaína;

f) A entrega a terceiros do produto estupefaciente carregado na embarcação proporcionaria aos arguidos a obtenção de uma quantia monetária não inferior a 

Das contestações apresentadas pelos arguidos GG, FF, DD e II, e com relevo para a decisão da causa, não resultou provado que:

g) Os referidos arguidos apenas se encontrassem, no contexto dos factos supra descritos, no desempenho de funções decorrentes dos contratos de trabalho que celebraram”.

2.2. Da fundamentação da matéria de facto o Tribunal consignou o seguinte (transcrição):

“Nos termos do art 125° do Código de Processo Penal (CPP), são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, sendo a respectiva apreciação feita, nos termos do art. 127° do mesmo código, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.

Sob o impulso da Constituição da República Portuguesa, que exige, no seu art. 205°, n° 1, a fundamentação dos actos jurisdicionais decisórios, o CPP consagra a obrigação de fundamentar a sentença (art. 97°, n° 4), exigindo no art. 374°, n° 2, que sejam especificados os motivos, de facto e de direito, que sustentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para determinar a convicção do tribunal.

Tal dever de fundamentação constitui, efectivamente, um meio de controlo, por parte dos seus destinatários e da própria comunidade, da opção por uma determinada solução, possibilitando o conhecimento da racionalidade e coerência da argumentação utilizada pelo Tribunal, através da enunciação das razões de facto e de direito que motivaram a decisão.

Ora, para formar a sua convicção, o Tribunal baseou-se no conjunto da prova constante dos autos e na produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento, depois de sujeita à respectiva análise crítica.

Desde logo, foram tidos em conta, e devidamente valorados pelo Tribunal, os seguintes elementos que constam dos autos e que, conjugadamente, se analisaram com os depoimentos e declarações prestadas em audiência, tendo em conta as regras da lógica e da experiência comum:

-Os documentos de fls. 43 a 53, que consubstanciam o auto de busca e apreensão do produto estupefaciente encontrado na embarcação, os autos de teste rápido e pesagem efectuados ao mesmo e respectiva reportagem fotográfica, todos realizados no dia 30.01.2019 na sequência de alerta emitido em 27.01.2019 pelo “Maritime Analysis and Operations Centre (Narcotics)” - MAOC - direccionado para a Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária, que consta a fls. 11 e 12;

-O auto de apreensão do ..., constante de fls. 246, contendo os dados de identificação da embarcação e a descrição das correspondentes características, tal como os autos de apreensão de fls. 248 (e documentos de fls. 253 a 363), 410 (e documentos de fls. 414 a 456) e 474 (e documentos de fls. 477 a 511), dos quais resulta a identificação dos documentos, quantias e objectos apreendidos. Nesta parte, refira-se que foi por alguns dos arguidos sustentada, através dos respectivos Mandatários, em sede de alegações finais produzidas em audiência de julgamento, a nulidade dos autos de apreensão realizados por não terem sido traduzidos para a língua falada pelos arguidos e porque os mesmos não consentiram na realização dessas buscas. Ora, a este respeito cumpre esclarecer que de parte alguma do regime legal vigente se impõe a obrigatoriedade de observação de tais procedimentos, sendo certo que da sua não realização não decorre qualquer nulidade (arts. 199° e 120° do CPP), nem qualquer vício foi suscitado pelos interessados nos prazos de para o efeito dispunham, caso tais vícios fossem efectivamente atendíveis (arts. 120°, n° 3, al. c), e 123°, n° 1, do CPP), o que não se verifica, pelo que os autos de busca e apreensão constantes dos autos constituem meios de prova validamente produzidos e susceptíveis de valoração pelo Tribunal;

-Do referido alerta do MAOC de fls. 11 e 12 consta, entre o mais, a identificação da tripulação a bordo do ..., excluindo o arguido AA, tal como resulta da lista de tripulantes encontrada e apreendida no interior da ponte de comando no dia 30.01.2019, e que se encontra a fls. 261;

-O exame pericial e correspondente relatório efectuado ao estupefaciente encontrado a bordo da embarcação, constante a fls. 944 a 947;

-O trajecto do ..., desde que zarpou do porto de ..., na ..., a 01.12.2018, até ao dia 30.01.2019, documentado a fls. 980 e 981, de acordo com as coordenadas registadas na plataforma European Maritime Safety Agency (EMSA), devidamente conjugadas com os apontamentos de coordenadas de navegação marítima encontrados a bordo, constantes de fls. 1047, em consonância com o auto de apreensão de fls. 248 e com a já referida informação/ alerta do MAOC, de fls. 11 e 12;

-Da informação extraída dos registos públicos da ..., a fls. 843 e 844, resulta a constituição de duas sociedades, com sede na ..., por OO, em Julho de 2018; uma das sociedades, a L..., adquiriu o ..., nesse mesmo mês, por € 900.000 (novecentos mil euros) à sociedade alemã S..., conforme nesta parte resultou do depoimento prestado em audiência, de forma isenta, pela testemunha PP, seu funcionário, e a que infra se fará referência mais detalhada; a outra das sociedades constituídas pelo referido indivíduo, a Le..., celebrou com os arguidos tripulantes do ... contratos de trabalho referentes a funções a exercer pelos mesmos naquela embarcação (à excepção do arguido AA), conforme exemplificativamente decorre do teor dos documentos de fls. 356, 359, 438, 440 e 502 e foi confirmado, em audiência, pelos arguidos, nas declarações que nessa sede prestaram;

-As fotografias de fls. 138, 1030, 1031 e 1905 a 1914 retratam, por um lado, o estupefaciente encontrado no ..., em 30.01.019, e as condições do seu armazenamento nesse local; por outro, patenteiam as características do próprio local (compartimento) onde o estupefaciente, distribuído por 82 fardos, se encontrava armanezado e a ser transportado.

Sucede que, em audiência de discussão e julgamento, todos os arguidos prestaram declarações, negando a sua participação e responsabilidade nos factos de que se mostram pronunciados.

Quanto ao arguido CC, afirmou, de relevante, que desempenhava, na  embarcação ..., as funções de superintendente, sendo (nesse navio) o responsável pela empresa “L...”, sedeada na ..., titular da embarcação, e tendo sido contratado por OO, dono daquela empresa, para desempenhar tais funções e para, previamente, fazer um “estudo” tendente à compra da mesma, tendo aceite o navio em 27.09.2018 em representação daquela empresa titulada pelo referido OO. Declarou que a viagem que veio a ser interrompida por intervenção da Marinha Portuguesa foi organizada pelo “escritório” da dita sociedade ucraniana, desconhecendo a sua finalidade, e que, à medida que a viagem progredia, ia recebendo instruções quanto ao trajecto que a embarcação deveria seguir, tendo confirmado que o percurso realizado é o que supra consta descrito no elenco de factos provados, tal como os destinos que foram sendo declarados ao longo do percurso. Mais referiu que, no total, esteve a bordo do ... durante sete meses, tendo este zarpado do porto de ..., na ..., no dia 01.12.2018 com destino a ..., no ..., e que durante o tempo em que esteve atracado naquele porto polaco foram feitas intervenções tendentes a assegurar as condições de navegação e o aprovisionamento de mantimentos, bem como realizados os procedimentos respeitantes à regularização dos documentos da embarcação. Acrescentou que na madrugada de 12.01.2019, quando o ... se encontrava a pairar ao largo do ..., foi subitamente acordado por elementos da sua tripulação que, em pânico, o alertaram para a presença a bordo de indivíduos desconhecidos, armados; verificou, então, que se tratava de indivíduos de ..., que falavam entre si num idioma que não conhece, encontrando-se armados e a transportar para o interior do ... os fardos que vieram a ser apreendidos, contendo a cocaína. Esclareceu que tais fardos foram carregados para o interior do ... por tais indivíduos e depositados no local onde vieram a ser encontrados pelos elementos da Polícia Judiciária que procederam à respectiva apreensão, acrescentando que não lhe havia sido dado conhecimento prévio, por parte do “escritório”, de que tal carregamento iria acontecer nem que a bordo da sua embarcação entraria qualquer outra pessoa. Mais afirmou que os referidos indivíduos se fizeram transportar num barco mais pequeno que ficou a pairar, durante o dito carregamento, junto ao ..., e que o arguido AA entrou a bordo desta embarcação no decurso de tal carregamento, aí tendo permanecido e seguido viagem. Por fim, acrescentou que desconhecia o conteúdo dos fardos introduzidos no ... e que, em momento posterior ao carregamento, recebeu instruções do “escritório” para seguir para ... ou ... e esperar por outro barco que deveria recolher os fardos.

O arguido AA, em declarações que prestou em audiência, afirmou que entrou a bordo do ... na noite de 11 para 12.01.2019, não fazendo parte da sua tripulação inicial, porquanto deveria seguir nessa embarcação até uma outra, da mesma empresa, onde iria trabalhar na manutenção, limpeza e “bricolage”. Afirmou desconhecer o nome do navio para o qual iria trabalhar, bem como o local onde seria concretizado o seu desembarque com destino à outra embarcação. Acrescentou que a embarcação na qual se deslocou, desde o porto de ..., até ao ..., era de menores dimensões e que realizou essa viagem na companhia de cinco indivíduos de ..., cuja identidade desconhece, tendo quatro deles carregado sacos para o interior do ..., desconhecendo, no entanto, o que os mesmos continham. Esclareceu que os ditos indivíduos que fizeram o carregamento dos sacos não se encontravam armados e que, na manhã seguinte à sua entrada no ..., ao pequeno-almoço, foi saudado pelo arguido CC, que, na qualidade de superintendente, lhe deu as boas-vindas a bordo, o que o fez pressupor que era por este esperado naquela embarcação.

O arguido HH declarou ter sido contratado, na ..., para trabalhar como ... no ..., e que aquando dessa contratação se encontrava sem trabalhar; foi estabelecido que o contrato teria a duração de quatro meses e que lhe seria pago o salário mensal de 1,100 dólares, tendo recebido apenas três meses de retribuições que foram sendo entregues em ..., à sua mulher, que se deslocava ao escritório da empresa titular da embarcação para esse fim. Declarou que, antes de iniciar a viagem com destino ao ..., o ... esteve atracado durante dois meses no porto de ..., na ..., onde, tal como outros membros da tripulação, procedeu a reparações a bordo necessárias à viagem. Afirmou desconhecer, em absoluto, qualquer plano relativo ao transporte de produtos estupefacientes pela referida embarcação e que apenas teve conhecimento de que existira um carregamento de “mantimentos” durante a noite ao falar, no dia seguinte, com outros elementos da tripulação, tendo-se apercebido nesse momento a presença do arguido AA. Mais declarou que recebia do arguido DD, capitão da embarcação, dinheiro para as despesas, e que as quantias monetárias apreendidas no seu camarote lhe pertenciam, destinando-se a assegurar os gastos que tivesse de suportar.

O arguido GG, igualmente em declarações prestadas em audiência de julgamento, afirmou ter enviado currículos para várias empresas ..., com vista a trabalhar como mecânico naval, tendo sido contactado por um indivíduo de nome “QQ” que o veio a contratar para, no ..., desempenhar actividade como mecânico de 3º nível, durante quatro meses, mediante o salário mensal de 1.200 dólares. Afirmou que chegou ao porto de ..., na ..., em 07.10.2018, onde o ... se encontrava ancorado, e que, até ao início da viagem com destino ao ..., em 01.12.2018, executou a bordo reparações necessárias e providenciou, desse modo, pelas condições de navegação. Esclareceu que desconhecia a finalidade da viagem pois fora informado de que iria ser realizado um trabalho, sem contudo saber do que se tratava, e que no decurso da viagem a embarcação não realizou a actividade para a qual estava vocacionada e que, segundo afirmou, consistia no apoio a outros barcos (com mantimentos, petróleo ou máquinas) em alto mar. Afirmou desconhecer em que circunstâncias os fardos de cocaína apreendidos pela Polícia Judiciária foram colocados na embarcação e que apenas foi informado, por outros membros da tripulação, de que sucedera durante a noite um carregamento de mantimentos, enquanto o ... 1 esteve ancorado em alto mar, após ter zarpado do ..., tendo tal carregamento sido acompanhado pelo arguido AA, que entrou a bordo e prosseguiu viagem na mesma embarcação.

O arguido EE afirmou, em audiência, ter sido contactado, na ..., por um indivíduo de nome “RR”, que lhe propôs trabalhar para o ... pelo período de quatro meses, como imediato, mediante o salário mensal de 4.000 dólares. A data desse contacto dedicava-se a um pequeno negócio de venda de ... e ..., que explorava em casa, e possuía também uma .... Tendo, segundo afirmou, aceitado a referida proposta de trabalho, assinou o respectivo contrato de trabalho num aeroporto da ... e a 08.10.2018 chegou ao porto de ..., na ..., onde o ... se encontrava ancorado, aí tendo permanecido até ao início do mês de Dezembro por ser necessário efectuar, durante esse período, a preparação da viagem, incluindo reparações na embarcação e regularização dos respectivos documentos, com destino ao .... Referiu que desconhecia, em concreto, a duração da viagem, tendo sido informado que a mesma seria realizada a título experimental. Mais afirmou que, no porto de ... o ... recebeu mantimentos, ventoinhas e bidões de combustível e que obteve a informação, através do arguido FF, de que, em alto mar, novos mantimentos seriam recebidos. Mais declarou que, na madrugada em que foi efectuado o dito carregamento de mantimentos se encontrava a trabalhar na ponte de comando, não tendo, no entanto, visto quem o efectuou ou o que foi transportado para o interior do ..., assegurando, no entanto, que tal carregamento durou cerca de uma hora e que tinha instruções, que igualmente lhe haviam sido fornecidas pelo referido arguido FF, para acordar o arguido CC quando o carregamento ocorresse, o que veio efectivamente a fazer. Esclareceu, ainda, que ficou surpreendido ao notar a presença do arguido AA no navio e que, tendo confrontado o arguido CC com esse facto, foi por este informado que aquele foi quem acompanhou o referido carregamento de mantimentos e que continuaria a bordo a partir desse momento. Afirmou desconhecer, em absoluto, que foi introduzida a bordo do ... a cocaína que veio a ser apreendida, nomeadamente, quando e quem o fez e onde foi a mesma acondicionada, uma vez que nunca viu tais produtos no interior da embarcação. Do mesmo modo, rejeitou conhecer qualquer plano que tenha sido delineado com esse objectivo, uma vez que o trajecto realizado pelo ..., desde a saída da ..., lhe pareceu normal, pese embora o navio apresentasse avarias e deficiências,

O arguido FF afirmou, em julgamento, ter sido contactado, na ..., em 04.10.2018, por um indivíduo de nome “RR”, que lhe propôs trabalhar para o ... pelo período de quatro meses, como 2º imediato, mediante o salário mensal de 2.900 dólares. À data desse contacto encontrava-se sem trabalhar há cerca de um mês. Tendo, na sequência daquele contacto, aceitado a referida proposta de trabalho, assinou o respectivo contrato de trabalho num aeroporto da ... e a 08.10.2018 chegou ao porto de ..., na ..., onde o ... se encontrava ancorado, aí tendo permanecido até 01.12.2018 por ser necessário efectuar, durante esse período, a preparação da viagem, incluindo reparações na embarcação e regularização dos respectivos documentos, com destino ao .... Referiu ter sido informado pelo arguido CC, superintendente da embarcação e representante da empresa titular da mesma, que o destino da viagem que iriam realizar, a título experimental, era o ..., não tendo no entanto sido informado da respectiva duração. Mais declarou desconhecer qualquer plano de transporte de produtos estupefacientes a bordo do ..., tendo tido a informação, por parte do arguido CC, de que em alto mar, durante a noite, seriam entregues mantimentos. Na sequência do carregamento desses mantimentos, que afirmou não ter presenciado nem saber do que se tratava, notou, no dia seguinte, a presença a bordo do arguido AA, tendo confrontado o arguido CC com esse facto, por se sentir surpreendido, e foi por este informado que o arguido AA foi quem acompanhou a introdução dos mantimentos a bordo e que continuaria no ... a partir desse momento, estando no entanto previsto que saísse entretanto. Mais declarou que o trajecto realizado desde a saída do porto polaco lhe pareceu normal, pese embora o ... apresentasse diversas avarias técnicas e não tenha realizado, em momento algum da viagem, a actividade a que se destinava.

O arguido DD declarou que recebeu, na ..., no início de Outubro de 2018, um contacto telefónico de um indivíduo de nome “RR” que lhe propôs trabalhar, como capitão, no .... À data encontrava-se sem trabalhar, tendo aceitado a proposta. Nessa decorrência, afirmou ter assinado um contrato de trabalho num aeroporto da ..., no dia 07.10.2018, cuja duração era de quatro meses e mediante o salário mensal de 5.000 dólares. Afirmou que a 08.10.2018 chegou ao porto de ..., na ..., onde o ... se encontrava ancorado, aí tendo permanecido até 01.12.2018 por ser necessário efectuar, durante esse período, a preparação da viagem, incluindo reparações na embarcação e regularização dos respectivos documentos. No referido porto polaco foi recebido pelo arguido CC, que se apresentou como superintendente da embarcação, e por um mecânico alemão, de nome “SS”, também representante do dono do navio. Entretanto, recebeu do arguido CC a informação que o ... era o destino da viagem. Acrescentou que, ao longo do trajecto, era deste arguido que recebia todas as informações relativas ao percurso a realizar, pese embora competisse a si próprio, enquanto Capitão, designadamente, providenciar pela condução do navio, assegurar-se das condições de navegabilidade, declarar a identificação dos passageiros e administrar o dinheiro que se encontrava depositado no cofre existente no seu camarote. Segundo afirmou, as informações respeitantes ao trajecto e percurso a realizar pela embarcação eram recebidas pelo arguido CC através de contactos que este, por seu turno, ia recebendo do “escritório” da empresa dona do navio. Mais declarou desconhecer qualquer plano de transporte de produtos estupefacientes a bordo do ..., tendo tido a informação, por parte do arguido CC, de que em alto mar, durante a noite, a 12.01.2019, seriam recebidos mantimentos. Na sequência do carregamento desses mantimentos, que afirmou não ter presenciado nem saber do que se tratava, notou, no dia seguinte, a presença a bordo do arguido AA, tendo confrontado o arguido CC com esse facto, por se sentir surpreendido, e foi por este informado que o arguido AA acompanhou a introdução dos mantimentos a bordo e continuaria no ... a partir desse momento, estando no entanto previsto que saísse entretanto, acompanhado da dita mercadoria, e em local que desconhece, por ser tripulante de outro barco da mesma empresa. Mais afirmou desconhecer quem introduziu no ... a cocaína objecto dos presentes autos e em que momento tal terá sucedido, do mesmo modo que afirmou não saber em que local da embarcação a mesma foi acondicionada, já que em momento algum viu tal produto estupefaciente.

Quanto ao arguido II, declarou em audiência de julgamento ter recebido um telefonema de uma agente de nome “TT”, em Novembro de 2017, que lhe propôs trabalhar no ... na área da pintura e limpezas em substituição de dois marinheiros que haviam sido despedidos por consumo excessivo de álcool. Tendo aceitado tal proposta, por não se encontrar a trabalhar, e pese embora a sua actividade fosse na ..., assinou o contrato de trabalho respectivo a 16.11.2018, num escritório em ..., ..., e no dia seguinte chegou ao porto de ..., na ..., onde o ... se encontrava ancorado. Realizou trabalhos de pintura e reparações na embarcação até que esta, a 01.12,2018, zarpou do porto polaco com destino ao ..., tendo sido informado de que o ... tinha como actividade prestar auxílio, ..., a outros .... Afirmou que a embarcação apresentava várias anomalias e que, no ..., toda a tripulação, incluindo o próprio, se mostrava descontente, ao ponto de ter sido falada a hipótese de se demitirem.

Acrescentou que desconhecia qualquer propósito de transporte de estupefacientes e se este se concretizou ou não, pois nunca viu nada que lhe sugerisse que se encontravam tais produtos a bordo, desconhecendo em absoluto quem e em que circunstâncias os mesmos possam ter sido introduzidos na embarcação. Por fim, afirmou ter sabido de um abastecimento de mantimentos em alto mar, durante a noite, mas que não presenciou, e que nessa decorrência o arguido AA passou a fazer parte da tripulação.

Ora, adiante-se desde já que as declarações dos arguidos, cuja súmula acabou de se deixar expressa, devidamente conjugadas entre si e analisadas à luz das regras normais da experiência, foram concatenadas com os demais meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, seja com os já supra referidos elementos documentais, seja com os depoimentos prestadas pelas testemunhas UU, VV, WW e PP.

Tais testemunhas prestaram, em audiência, depoimentos credíveis, consistentes, imparciais e dotados da credibilidade necessária para que o Tribunal deles se pudesse socorrer para formar a sua convicção.

Do depoimento prestado por UU, Inspector da Polícia Judiciária, resultou sem margem para dúvidas que a abordagem ao ... foi motivada pelo alerta de risco transmitido pelo MAOC (fls.11 e 12), dando conta do trajecto suspeito que a embarcação vinha efectuando no Oceano Atlântico, especialmente desde que zarpou do ..., encontrando-se a mesma associada a OO, conotado com o tráfico internacional de estupefacientes. Face a esta comunicação, foram mobilizados meios da Força Aérea e da Marinha Portuguesa com vista a interceptar a embarcação, o que veio a suceder na madrugada de 30.01.2019, a 150 milhas do .... Embora a testemunha não tenha estado presente na abordagem concretizada ao navio, no mar, veio a aceder ao seu interior quando a mesma atracou no porto de ..., tendo participado nas buscas e apreensões documentadas a fls. 248, 410 e 474, cujo teor confirmou. Mais resultou do seu depoimento isento e imparcial que na embarcação se encontravam instalados sistemas de internet, com acesso por “wi-fi”, e de comunicação via satélite, que permitiam realizar comunicações, incluindo por telemóvel, quer em terra quer em alto mar. Do mesmo modo, revelou, com isenção e de forma clarividente, face à experiência profissional que possuí no domínio da investigação ao tráfico de estupefacientes, o valor médio pelo qual é correntemente transaccionado o grama de cocaína, nos termos que supra se exararam provados sob o ponto 42.

Também VV e WW, inspectores da Polícia Judiciária, prestaram os respectivos depoimentos com rigor, imparcialidade e isenção, tendo feito a abordagem ao ..., na madrugada de 30.01.2019, com o auxílio de forças especiais da Marinha Portuguesa. Concretamente, resultou do que declararam que, por motivos de segurança, foram os elementos da Marinha que primeiramente se introduziram na embarcação, a fim de prevenir eventuais actos de resistência por parte da tripulação, tendo obtido desses elementos a confirmação de que efectivamente se encontravam no navio, acondicionados no compartimento retratado a fls. 138, 1030 e 1031 diversos sacos pretos suspeitos de conter estupefaciente. Cerca de duas horas após a entrada na embarcação das referidas forças especiais da Marinha, e acauteladas as necessárias condições de segurança, designadamente após a tripulação ter sido reunida na zona do refeitório, as testemunhas acederam ao interior do navio e, através dos vidros circundantes do já referido compartimento, existente na parte superior da ponte de comando, situada no convés, puderam constatar a presença dos sacos pretos já referidos (fardos), nas condições retratadas a fls. 138, uma vez que, apesar das cortinas pretas que tapavam os vidros, havia frestas por entre elas que permitiam observar a presença dos sacos. Por conseguinte, e na medida em que o mencionado compartimento se encontrava fechado à chave, não tendo esta sido localizada, teve que ser desmontado o vidro da porta estanque a fim de ser possível aceder ao interior do compartimento. Nesse local foram recolhidas, pela testemunha VV, as fotografias constantes de fls. 43, que retratam os fardos aí encontrados, sendo certo que os mesmos consistiam em sacos estanques e impermeáveis, contendo a cocaína no seu interior, nos exactos termos retratados a fls. 49. Mais resultou dos depoimentos das testemunhas VV e WW que na ponte de comando se encontravam afixados os códigos de utilização dos aparelhos wi-fi, constantes de fls. 1034, perfeitamente acessíveis a quem aí se deslocasse, e que no balcão da ponte de comando se encontravam telemóveis encriptados que receberam comunicações quando a embarcação se encontrava ainda em alto mar, sendo certo que, em alto mar, o sistema de satélite existente no navio permitia receber comunicações.

Quanto a PP, geofísico da empresa alemã “S...”, anterior proprietária do ..., depôs igualmente com segurança e imparcialidade, afirmando que por duas vezes se encontrou na ..., mais concretamente em ..., com o arguido CC, que se apresentou como capitão e representante de OO com vista à aquisição do ..., tendo aquele arguido inspeccionado a embarcação e verificado a respectiva documentação com vista à compra da mesma por parte da empresa detida pelo referido OO, negócio que veio a ser efectivamente concretizado no mês de Julho de 2018 pelo preço de € 900.000,00. Mais resultou do seu depoimento que, quando foi vendida, a embarcação dispunha dos necessários sistemas de comunicação por internet e do sistema de localização mundial designado AIS.

Ora, constata-se que o ..., com pavilhão do ..., foi adquirido, no segundo semestre de 2018, pela empresa ucraniana L..., constituída em Julho de 2018 por OO; este, igualmente em Julho de 2018, constituiu a Le..., com sede na ..., que foi utilizada como entidade empregadora dos arguidos tripulantes do navio. Tal resulta dos elementos documentais a que já supra se fez referência.

O arguido CC admitiu ter sido incumbido pelo referido OO de efectuar um estudo de mercado tendente à aquisição de uma embarcação, tendo sido apreendido na sua posse (no camarote que ocupava na embarcação) quer um anúncio de venda do ..., por um milhão de euros, quer pesquisas feitas na internet relativas a embarcações para compra (fls. 326 a 328). Decorre dos meios de prova a que já se aludiu que o arguido CC demonstrou empenho no negócio de que foi incumbido por OO e que ao sucesso da efectiva concretização desse negócio não foi alheia a inspecção que o mesmo arguido realizou ao navio, deslocando-se à ... para tal fim e apresentando-se como representante do comprador. Inclusivamente, o arguido CC aceitou a embarcação em representação da já mencionada L.... Tal dedicação e empenho do arguido CC outra explicação não têm senão a de que este arguido actuou concertadamente com aquele indivíduo (OO), e eventualmente com outros cuja identidade se desconhece, com a finalidade de proceder ao tráfico da cocaína que veio a ser apreendida. Na verdade, para além das tarefas que realizou com vista à compra da embarcação, era o arguido CC quem recebia diariamente instruções do “escritório” quanto às rotas a seguir e aos destinos a declarar, sobrepondo as suas indicações e informações à restante tripulação. Na verdade, escaparia às regras da lógica e do bom senso aceitar a declaração deste arguido de que desconhecia a natureza da carga introduzida no ... na noite de 12.01.2019, quando é certo que havia dado ordens para ser acordado quando o carregamento acontecesse e, posteriormente, veio a esclarecer a tripulação quanto aos motivos da chegada a bordo do arguido AA.

Também o arguido AA, por seu turno, necessariamente se encontrava concertado com o proprietário da embarcação com vista à introdução dos fardos de cocaína no seu interior. De facto, revelam as regras da experiência, sem margem para dúvidas, que, atento o modo como surgiu a bordo (em momento contemporâneo ao do carregamento dos fardos), e atento o facto de não fazer parte da tripulação oficialmente conhecida, encontrando-se indocumentado e ter como missão sair em determinado ponto do percurso para outra embarcação, acompanhado da carga cuja introdução no ... igualmente lhe competiu acompanhar, era quem, no seio daquele grupo organizado, desempenhava a função de zelar pelo transporte seguro do estupefaciente até ao momento em que se consumaria a sua transferência para outra embarcação. Esta participação do arguido AA no plano delineado era do conhecimento do arguido CC, pois perante a surpresa aparentemente manifestada pelos demais arguidos quanto ao seu aparecimento na embarcação soube informar prontamente que se tratava de um empregado da empresa, encarregado de acompanhar os “mantimentos” até outra embarcação. Dúvidas não há, pois, de que os arguidos CC e AA, de forma concertada, aderiram à organização liderada por indivíduos que detinham a disponibilidade do ..., através da empresa L..., com a finalidade de proceder ao tráfico marítimo de cocaína, tendo sido incumbidos de tarefas específicas, que efectivamente desempenharam, com vista à finalidade pretendida.

Já, porém, quanto aos arguidos HH, GG, EE, FF, DD e II, da prova produzida em audiência, resultante, desde logo, conjugadamente, das suas próprias declarações, não pôde o Tribunal retirar a convicção segura e inequívoca de que tenham tido conhecimento prévio quer da existência daquele grupo organizado, quer vontade esclarecida de adesão ao mesmo, grupo esse de que faziam parte, como já se referiu, entre outros indivíduos, os arguidos CC e AA, e que tinha a finalidade de transportar para a Europa o produto estupefaciente apreendido. Na verdade, atendendo ao modo como foram recrutados na ..., designadamente subscrevendo contratos de trabalho, é de admitir que a sua vontade não haja sido direccionada para a adesão, logo nesse momento, a qualquer plano criminoso, sendo porém indiscutível, face às normais regras da experiência, que em momento indeterminado da sua permanência na embarcação vieram a tomar conhecimento do projectado carregamento da cocaína e do seu transporte com destino à Europa, de que necessariamente vieram a aceitar tomar parte. Efectivamente, decorre das máximas da lógica e da experiência comum que um grupo com a capacidade económica e de organização como aquele de que faziam parte os arguidos CC e AA jamais correria o risco de introduzir numa embarcação, numa viagem transatlântica, tripulantes que, sem saberem em momento algum dos propósitos dessa viagem, fossem surpreendidos com uma actividade ilícita que os pudesse responsabilizar criminalmente, podendo, com o fito de se demarcarem dessa actividade e da responsabilidade daí para si resultante, lançar ao mar o estupefaciente, com os inerentes prejuízos avultados que tal acarretaria ao dono do estupefaciente (que tão grande investimento económico efectuara no sentido da concretização do seu propósito), denunciar tal actividade ilícita às autoridades (relembre-se que existiam a bordo meios técnicos de comunicação por internet e satélite, aptos a funcionar em terra e no mar) e, mesmo, revoltar-se violentamente contra os dois membros da organização presentes na embarcação, face à sua superioridade numérica em relação a estes.

De resto, falando estes arguidos a mesma língua, ainda que não se conhecessem entre si antes da chegada ao porto polaco, conforme por todos foi afirmado, não é defensável, à luz das regras da experiência de que dispõe o cidadão médio, que não tivessem visto o estupefaciente, e comentado a sua presença no navio, atenta a subida a bordo de um elemento desconhecido (o arguido AA) que surgiu no momento da introdução dos fardos na embarcação. Por conseguinte, não pode merecer credibilidade alguma a tese, sustentada pelos arguidos, de que não viram o que se encontrava no interior do compartimento (os fardos da cocaína) ou que não souberam da actividade ilícita que estava em curso. Nesta medida, a sua apregoada “inocência” cai por terra desde logo porque, tendo tido necessariamente conhecimento do que sucedera na madrugada em que ocorreu quer o “carregamento”, quer o aparecimento para si inesperado do arguido AA, tinham à sua disposição os meios técnicos e físicos aptos a impedir o progresso do transporte da cocaína. Na verdade, não foram encontradas armas a bordo e os arguidos CC e AA encontravam-se em franca inferioridade numérica em relação aos arguidos HH, GG, EE, FF, DD e II, pelo que facilmente podiam ser controlados. Do mesmo modo, tinham à sua disposição meios de comunicação que poderiam ter utilizado para solicitar a intervenção das autoridades e denunciar a actividade ilícita que se encontrava em curso. Ora, nenhuma destas opções tendo sido tomada por qualquer dos referidos arguidos, inevitavelmente se constata que aceitaram o transporte da cocaína, o que se explica pelo desejo de obter proventos dessa actividade ou, pelo menos, de que lhes continuassem a ser pagos os vencimentos estabelecidos nos contratos de trabalho que haviam celebrado.

Reforça-se que os fardos, para além do mais, foram acondicionados num compartimento a todos acessível e de cujo exterior era possível observar o que aí se encontrava, através dos vidros que circundavam o dito compartimento, pese embora as cortinas pretas aí existentes, que, conforme resultou dos depoimentos de VV e WW, não tapavam totalmente tais vidros. De resto, o capitão do ..., o arguido DD, a quem competia, designadamente, assegurar-se da carga transportada e declarar a identidade dos membros que compunham a tripulação (conforme resultou do depoimento prestado, com isenção, pela testemunha XX, inspetor da Marinha Mercante), tinha o dever acrescido de se inteirar do que se encontrava no interior da embarcação (já que obtivera, inclusivamente, a notícia de um carregamento ocorrido de madrugada) e da regularidade da permanência de um elemento estranho (o arguido AA), o que reforça a convicção segura de que, tal como os demais arguidos, obteve conhecimento de que se encontrava a ser transportado produto estupefaciente na embarcação e aceitou o propósito de viabilizar o sucesso de tal transporte, empregando nesse propósito os seus conhecimentos como capitão e continuando a desempenhar o cargo para o qual havia sido contratado.

Para dar como provados os factos relativos à situação pessoal, familiar e profissional de cada um dos arguidos, teve o Tribunal em conta o que, a tal respeito, pelos mesmos foi declarado, na parte que se afigurou credível, devidamente conjugadas com o teor dos relatórios sociais de fls. 2236 (arguido FF) 2357 (arguido II), 2378 (arguido AA), 2392 (arguido HH), 2408 (arguido DD), 2451 (arguido CC), 2481 (arguido GG) e com os depoimentos a tal respeito prestados de forma que se afigurou credível pelas testemunhas YY e ZZ (respectivamente, amigo e cônjuge do arguido GG), AAA e BBB (respectivamente, irmão e amigo do arguido II), CCC e DDD (cunhados do arguido DD) e EEE e FFF (respectivamente, pai e cônjuge do arguido EE).

A observação directa do Tribunal ao comportamento corporal dos arguidos, incluindo as expressões faciais que exibiram, bem como ao seu modo de apresentação em audiência e à forma como prestaram declarações permitiram dar como assente que não exerceram auto-censura quanto aos factos que praticaram, nem apresentam qualquer sentido crítico dos respectivos comportamentos, para além de nenhum arrependimento terem demonstrado.

Para dar como provado que os telemóveis, computadores e demais material informático e de comunicações, bem como as quantias monetárias, apreendidos aos arguidos, se destinavam aos contactos relacionados com o transporte ilícito que se encontravam a realizar na embarcação, teve-se em conta que, segundo resulta das regras básicas da experiência, tais equipamentos de comunicação são meios preferenciais de contacto utilizado pelos protagonistas deste tipo de actividade, sendo certo que, como é inequívoco, teriam que receber instruções quanto aos ulteriores comportamentos que teriam de adoptar tendo em vista a entrega da cocaína aos destinatários finais. Quanto às quantias monetárias, as mesmas, face à factualidade que resultou provada, necessariamente resultaram da actividade ilícita em que os arguidos estiveram envolvidos, dada a grande envergadura de meios económicos postos à disposição do transporte efectuado, que envolveu o pagamento de salários e outras despesas e carecia de acautelar todas as que se mostrassem necessárias ao sucesso do plano delineado.

No concernente à ausência de antecedentes criminais conhecidos aos arguidos teve-se em conta o teor dos certificados de registo criminal constantes de fls. 3595 a 3602, bem como as declarações emitidas pela Embaixada da ... em Portugal, constantes de fls. 795, 797, 798 e 799.

Os factos julgados não provados tiveram por base a circunstância de, quanto aos mesmos, nenhuma prova ter sido produzida que permitisse a respectiva sustentação, sendo certo que não foram incluídos no elenco da factualidade provada ou não provada os factos destituídos de interesse para decisão da causa, conclusivos ou de carácter jurídico”.

Direito

X. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os  poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP ou, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21.12, visto o disposto no art. 5.º do CPP (ou seja, desde que da aplicabilidade imediata da lei nova não haja um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Vejamos, então, o recurso do arguido AA.

Analisadas as conclusões do recurso apresentado pelo arguido AA para o STJ, verifica-se que coloca as seguintes questões:

- saber se o STJ deve ou não dar ordem de remessa de questão prejudicial ao TJUE, por tal ter sido negado pelo TR.…, incorrendo este no vício da privação de acesso ao Juiz Legal ou Juiz Natural (que entende ser o Juiz do TJUE), quando julgou improcedente o recurso interlocutório relativo ao despacho judicial da 1ª instância de 8.05.2020;

- por o TR.… ter julgado improcedente o recurso interlocutório relativo ao despacho judicial da 1ª instância proferido na sessão de julgamento de 24.06.2020, o julgamento não terá sido equitativo (por entender o recorrente que existiu violação do art. 6.º, n.º 1 da CEDH);

- apurar se o Acórdão do TR.… padece de nulidade por (na perspetiva do recorrente) não ter sido realizada audiência pública, não ter sido visto ou ouvido o arguido ao abrigo dos arts. 6.º e 13.º da CEDH, não ter sido observado o contraditório e também por falta de fundamentação e falta de exame crítico das provas, além de não haver julgamento de facto e de direito;

- determinar se ocorre o vício do erro notório na apreciação da prova quanto ao crime de associação criminosa e inexistem elementos relativos ao plano criminoso, uma vez que, segundo o recorrente, o mesmo não conhecia os demais co-arguidos.

De notar que, no recurso que o mesmo arguido apresentou da decisão da 1ª instância para o Tribunal da Relação, formulou as seguintes questões, conforme ali foram identificadas:

“Da Impugnação da matéria de facto:

-Dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, do CPP:

 a) Do vício do acórdão prevista no art.º 410°, n.° 2, alínea a), do CPP, por violação do disposto no art.º 28°, n.° 2, do Decreto - Lei 15/1993, de 22 de Janeiro, por a matéria dada como provada não concretizar/especificar quem integrava a associação, como a mesma funcionava, quando se criou e onde, bem como, quem a chefiava?

Conclui que o ponto 45. da factualidade assente é vago e genérico.

b) Do vício prevista no art.º 410°, n.° 2, alínea b), do CPP, por existir contradição entre os factos dados como provados relativos à associação criminosa e o teor do documento junto a fls. 41, onde consta a lista da tripulação.

c) Da violação do princípio do in dubio pro reo, uma vez que face à contradição de testemunhos, se optou por dar credibilidade à descrição dos factos, prejudicial à situação do arguido.

Conclui assim pela sua absolvição dos crimes pelos quais vem acusado.”

Acrescente-se que, no recurso interlocutório do despacho judicial proferido na sessão de julgamento de 24.06.2020, que indeferiu a sugerida inquirição da testemunha BB, ao abrigo do art. 340,º, n.º 4, al. a), do CPP, conforme foi referido pelo TR..., “o arguido AA veio requerer, ao abrigo do disposto  o art.º 340º, nº 1, do CPP, a inquirição do Inspector Coordenador da Polícia Judiciária BB, visando que o mesmo venha explicar o funcionamento do MAOC (N) no caso dos autos, invocando que o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem assegura que “qualquer pessoa tem o direito a que a sua causa seja examinada equitativamente”, e de “a montante do processo, se apurar como funciona o MAOC (N) que forneceu informações, importando saber como, em que data e por que meio foram obtidas, pois os dizeres apostados a fls. 2 a 11, 39 e 40 dos autos não revelam como e por que forma foram dadas informações ao MACO (N), e sob que circunstâncias como o impõe o processo que se quer transparente e sob o princípio do fair trial”.

Por seu turno, no recurso interlocutório do despacho judicial de 8.05.2020, que indeferiu requerimento apresentado pelo mesmo arguido/recorrente por inexistir qualquer questão prejudicial cuja validade ou interpretação, no domínio do direito comunitário, importasse ser esclarecida, conforme foi referido pelo TR..., “veio o recorrente suscitar a questão de saber se o tribunal a quo era, ou não, competente para avaliar ou tomar posição quanto às condições da cela onde o arguido se encontra detido.”

Pois bem.

Compulsado o teor do acórdão do Tribunal da Relação sob recurso verifica-se que o mesmo analisou e decidiu (além do mais), as questões essenciais acima referidas colocadas pelo recorrente no recurso para o STJ, sendo integralmente confirmado o acórdão da 1ª instância, bem como sendo negado provimento aos dois recursos interlocutórios relativos aos despachos de 8.05.2020 e de 24.06.2020.

Portanto, resulta do Acórdão do TR.… sob recurso que existe dupla conforme, isto é, houve um duplo juízo condenatório quanto às questões de facto e de direito que a defesa entendeu colocar no seu recurso, sendo inclusivamente mantida a pena única que lhe foi imposta.

A existência de dupla conforme, significa (como sucede neste caso) que a decisão da Relação confirma o acórdão da 1ª instância, não tendo alterado a situação do condenado.

Esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

Isto significa, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), apenas podendo ser apreciado quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão, mas desde que houvesse recurso nessa parte, o que não aconteceu neste caso, uma vez que o recorrente nada alegou nessa matéria e apenas pugnou pela absolvição dos crimes (como bem referiu o Sr. PGA).

Aliás, decidiu-se no Ac. do TC (plenário) n.º 186/2013[1], “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.”

Portanto, não pode o recorrente pretender uma terceira apreciação das questões colocadas, nos casos em que há limitações legais.

Assim, se o recorrente pretendia impugnar o acórdão do Tribunal da Relação, deveria ter apresentado as razões pelas quais discordava dessa decisão, na parte em que era suscetível de recurso (que neste caso era apenas quanto à pena única, o que, porém, não fez), de forma que as questões que suscitasse pudessem ser apreciadas por este Tribunal.

A repetição de questões e argumentação que estavam já definitivamente decididas, por haver dupla conforme (por se verificar o condicionalismo previsto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP) não impõem a sua reapreciação.

Com efeito, o acórdão da Relação ... é definitivo quanto às questões que apreciou e que o recorrente volta a colocar (sob diversas formas) no recurso para o STJ.

Como se disse, a única questão que podia ver reapreciada no recurso para o STJ era a relativa à medida da pena única que lhe foi imposta, por ser superior a 8 anos de prisão, mas não a colocou e, por isso, estamos impedidos de dela conhecer.

Assim, as questões de facto, as questões processuais, as questões de direito, suscitadas nesse âmbito em que não é admissível o recurso para o STJ (como sucede com as questões sobre as quais o Acórdão do TR.… já se pronunciou e decidiu definitivamente) não podem ser conhecidas, nem sindicadas por este Supremo Tribunal.

De resto, esqueceu o recorrente que os recursos destinam-se a apreciar a decisão de que se recorre (neste caso o acórdão do Tribunal da Relação ... impugnado) e não para apreciar questões novas que não foram colocadas no Tribunal recorrido (ressalvado aquelas que devam ser conhecidas oficiosamente, o que não é o caso), nem para voltar a reapreciar as mesmas questões que já foram colocadas em anterior recurso (neste caso relativos ao acórdão da 1ª instância) e decididas definitivamente, por se verificar o condicionalismo previsto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Quanto a eventuais nulidades cometidas pelo TR.…, como agora chega a invocar, não sendo admissível recurso (face à sua opção de defesa, de não recorrer da pena única), deveria as ter antes arguido em requerimento autónomo, perante o tribunal competente para as conhecer, que era o TR..., dentro do prazo legal, sob pena de ficarem sanadas.

Relativamente à matéria em questão nos recursos interlocutórios que o recorrente pretende ver reapreciada no recurso para o STJ, importa ter presente o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Segundo o art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

 E, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP:

 “Não é admissível recurso:

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo (…)”.

Ora, como resulta da jurisprudência deste STJ, os despachos impugnados acima referidos (proferidos respetivamente em 8.05.2020 e 24.06.2020) que foram alvo dos respetivos recursos interlocutórios não constituem uma decisão sobre o objeto do processo.

Com efeito, tem-se entendido que o objeto do processo é definido pelos factos que constam da acusação ou da pronúncia, sendo esses os que são imputados ao arguido e que delimitam os poderes de cognição do tribunal.

Nesta perspetiva, tais recursos interlocutórios, que foram julgados improcedentes pela Relação (e que não se debruçaram sobre o objeto do processo), não admitem recurso para o STJ.

Em conclusão: improcede o recurso do arguido, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais invocados pelo recorrente.

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Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso interposto por AA, por inadmissibilidade legal (face ao disposto nos arts. 399º, 400º, n.º 1, als. c), e) e f), 432º, n.º 1, al. b), 420º, n.º 1, al. b), e 414º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente.

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Supremo Tribunal de Justiça, 28.04.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo

Eduardo Almeida Lourenço

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[1] Ver Ac. TC (Plenário) n.º 186/2013, acessível no site do Tribunal Constitucional.