EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
TERMO DO PRAZO
DECISÃO
Sumário

Tal como na cessação antecipada do procedimento de exoneração, em que esta não pode ser oficiosamente determinada, estando dependente de requerimento fundamento de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, também no termo do período da cessão não poder oficiosamente ser recusada a concessão da exoneração do passivo restante, estando tal recusa dependente de idênticos requisitos.

Texto Integral

Processo nº 58/14.5TBPNF.P1
Comarca de Porto Este
Amarante – Inst. Central – Sec. Comércio – J1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. AA apresentou-se à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante.
Decretada a insolvência, foi, por decisão de 12.03.2014, transitada em julgado, liminarmente admitido o referido pedido, nela se tendo determinado que “...ao abrigo do disposto no artigo 239º do CIRE, […] durante o período de 5 (cinco) anos subsequente ao encerramento do presente processo (período de cessão), o rendimento da devedora AA, que exceda os 600,00 €, é o rendimento disponível e que se considera cedido ao fiduciário indicado.
Fica a mencionada devedora obrigada, durante o período de cessão, a observar o disposto no art. 239 nº 4 do CIRE, caso em que, findo o referido período, lhe será concedido, não havendo razão legal em contrário, a exoneração do passivo restante”.
O Sr. Administrador da Insolvência, veio, a 27.11.2017, comunicar aos autos que, tendo notificado quer a mandatária da insolvente, quer a própria insolvente, para informarem da situação financeira desta, a fim de ser cumprido o disposto no artigo 240.º do CIRE, não obteve qualquer resposta. Igualmente informou que “a insolvente não tem vindo a cumprir o disposto no artº 239 n.º 4 do CIRE”.
Com data de 28.11.2017 foi proferido o seguintes despacho: “Antes de mais, com cópia do Relatório apresentado pelo Sr. Administrador Fiduciário, notifique o Insolvente pessoalmente na morada conhecida nos autos, a que lhe foi fixada na sentença ou outra que ulteriormente tenha vindo comunicar ao tribunal, e também na pessoa do seu ilustre mandatário/patrono, para vir aos autos esclarecer a razão por que não cumpriu com os seus deveres de informação para com o Sr. Administrador Fiduciário, não respondendo às suas notificações ou não reclamando as cartas que foram remetidas para a sua morada constante dos autos ou não entregando os documentos a que estava obrigada ou o rendimento disponível, sob pena de ser equacionada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, ao abrigo do disposto no artigo 243.º, alínea a), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.
Prazo: 10 dias”.
Por requerimento de 13.12.2017, a insolvente, informando nenhuma carta do Sr. Administrador Judicial haver recebido ou recusado, e nenhum contacto tendo sido efectuado pela então sua advogada no processo, juntou “uma relação dos seus ganhos no ano em curso e antecedente, bem como comprovativo dos mesmos”, do qual foi notificado o Sr. Administrador, tendo sido proferido despacho a mandar aguardar a próxima informação anual.
A 23.11.2018 o Sr. Administrador da Insolvência comunicou aos autos que, tendo notificado a insolvente, a 24.10.2018 e 23.11.2018, para que esta informasse acerca da sua situação financeira, a fim de ser cumprido o disposto no artigo 240.º, n.º 2 do CIRE, não obteve qualquer resposta. Igualmente informou que a insolvente não se pronunciou quanto aos seus actuais rendimentos.
A 29.11.2018 foi proferido o seguinte despacho: “Antes de mais, com cópia do Relatório apresentado pelo Sr. Administrador Fiduciário, notifique o Insolvente pessoalmente na morada conhecida nos autos, a que lhe foi fixada na sentença ou outra que ulteriormente tenha vindo comunicar ao tribunal, e também na pessoa do seu ilustre mandatário/patrono, para vir aos autos esclarecer a razão por que não cumpriu com os seus deveres de informação para com o Sr. Administrador Fiduciário, não respondendo às suas notificações ou não reclamando as cartas que foram remetidas para a sua morada constante dos autos ou não entregando os documentos a que estava obrigada ou o rendimento disponível, sob pena de ser equacionada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, ao abrigo do disposto no artigo 243.º, alínea a), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.
Prazo: 10 dias”.
Com data de 20.12.2018 proferiu-se o seguinte despacho: “Atento o silêncio a que a Insolvente se remeteu face à notificação que lhe foi feita, notifique o Sr. Administrador Fiduciário e os credores para requererem o que tiverem por conveniente.
Prazo: 10 dias”.
Por requerimento de 27.12.2018, a insolvente, informando que “O Sr. Administrador da Insolvência não notificou validamente a apresentante para o cumprimento de um conteúdo do seu dever de informação pois que, tal como no passado, não lhe dirigiu qualquer carta registada para o efeito, o único meio legal de o fazer”, juntou relação dos rendimentos por si obtidos entre Outubro de 2017 e Outubro de 2018, dando origem ao seguinte despacho: “Referência 4998271: a Insolvente labora num equívoco, já que é sobre si que impende o dever de prestar informação anualmente ao Sr. Administrador Fiduciário, entregando-lhe o comprovativo dos seus rendimentos e demonstrando que procura ativamente emprego, se estiver em situação de desemprego; não estando o Sr. Administrador Fiduciário adstrito a qualquer dever de a notificar por carta registada para cumprir tal dever. Quem pretende obter a exoneração do passivo restante é a Insolvente e não o Sr. Administrador Fiduciário.
Assim, de futuro, deverá a Insolvente entregar anualmente e atempadamente ao Sr. Administrador Fiduciário todos os elementos que permitam elaborar o Relatório Anual.
Notifique, sendo também o Sr. Administrador Fiduciário do teor dos documentos que antecedem e ficando os autos a aguardar pela próximo Relatório Anual”.
A 21.10.2019 a insolvente juntou aos autos informação relativa aos rendimentos por si auferidos no período entre Outubro de 2018 e Outubro de 2019.
Notificado, o Sr. Administrador da Insolvência, informando que os documentos apresentados pela insolvente não eram suficientes para proceder à elaboração do relatório a que se refere o artigo 240.º, n.º 2 do CIRE, requereu que fosse esta notificada para juntar aos autos “a sua situação financeira desde Novembro de 2016”.
A 25.10.2019 proferiu-se despacho com o seguinte teor: “Notifique o Insolvente nos termos requeridos pelo Sr. Administrador Fiduciário e com a advertência que não lhe será concedida outra oportunidade para prestar as informações e juntar os documentos em falta (recibos de vencimento, declaração de IRS ou da segurança Social comprovativas dos rendimentos auferidos ou comprovativo de que estava escrito no Centro de Emprego, em caso de ter estado desempregado.
Prazo: 15 dias”.
A 11.11.2019 a insolvente remeteu aos autos documentos relativos aos rendimentos por si auferidos entre Janeiro de 2014 e Outubro de 2019.
O Sr. Fiduciário apresentou o relatório a que alude o artigo 240.º, n.º 2 do CIRE, dando conta que a insolvente não procedeu à entrega de diversos valores que excederam a quantia de € 600,00, fixado como valor indisponível:
- no ano de 2016, a quantia de € 334,27;
- no ano de 2017, a quantia de € 3.063,31;
- no ano de 2018, a quantia de € 10.997,26;
- no ano de 2019, até ao mês de Setembro, a quantia de € 5.779,53,
o que totaliza o valor global de € 20.174, 37.
Foi, então, proferido o seguinte despacho:
“Tendo em conta o teor do Relatório Anual apresentado pelo Sr. Administrador Fiduciário tem existido um incumprimento reiterado do dever de entrega do rendimento disponível, que começou no primeiro ano com um valor pouco significativo e foi aumentando para valores elevados, estando já em divida a fidúcia a quantia de 20.174,37 euros.
De cada vez que o Tribunal a notifica para se pronunciar quanto ao incumprimento dos seus deveres de entrega do rendimento disponível a Devedora vem responder sempre o mesmo, imputando a responsabilidade para o Sr. Administrador Fiduciário alegando que este não a notificou por carta registada para lhe entregar as informações e documentos devidos, como se tal fosse necessário.
Desde logo, a Insolvente incorre num erro manifesto, já que ao pedir a exoneração, comprometeu-se a cumprir os seus deveres, previstos no artigo 138.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e estes passam por entregar ao Sr. Administrador de Insolvência voluntariamente e sem necessidade de este os solicite, os comprovativos dos seus rendimentos, como sejam recibos de vencimento e declaração anual de rendimentos, e mensalmente entregue todo o rendimento disponível que, no caso concreto, é todo aquele que exceda 600 euros, pois foi o rendimento fixado e não houve qualquer pedido de alteração até à data e sendo certo que qualquer alteração apenas vale para o futuro.
Assim, é notório que a Insolvente não cumpre os seus deveres, nem tem intenção de o fazer, porém, os credores aceitam este comportamento da Insolvente, pois que nenhum credor veio pedir a cessação antecipada da exoneração do passivo restante e não cabe ao Tribunal decretar oficiosamente a cessação antecipada.
Como tal, devem os autos aguardar pela próxima informação anual a remeter pelo Sr. Administrador Fiduciário.
Notifique”.
O Sr. Administrador apresentou relatório a que se refere o artigo 240.º, n.º 2 do CIRE, dando conta, com cópia dos documentos que lhe foram enviados pela insolvente, que esta procedeu à entrega à massa insolvente da quantia de € 3.474,78, referente ao montante dos rendimentos auferidos no período de Outubro de 2019 a Outubro de 2020 que excedeu o valor fixado como indisponível.
Com data de 16.12.2020 foi proferido o seguinte despacho: “Tomei conhecimento.
Não obstante o que consta do Relatório do Sr. Administrador Fiduciário, a verdade é que no despacho proferido em 12.03.2014, despacho liminar de exoneração do passivo restante fora fixado o rendimento indisponível de 600 euros, considerando as condições sócio económicas da Devedora, o seu estado de divorciada e o facto de ter um filho menor a sue cargo.
Ora em 2014 o salário mínimo nacional era de 485 euros e a Sr.ª Juiz que fixou o rendimento indisponível entendeu fixar em 600 euros tal rendimento, ou seja em montante superior ao do salário mínimo nacional vigente aquela data.
Assim, cremos que não se justifica que tal rendimento permanecesse inalterado ao longo de todo o período de cinco anos do período de exoneração, quando este só se iniciou em 24.10.2016, sendo nesta data o valor do salário mínimo nacional de 530 euros, ou seja, ainda abaixo do rendimento indisponível fixado.
Porém, no ano de 2018 já era de 580 euros, no ano de 2019 era de 600 euros e no ano de 2020 era já de 635 euros, ou seja, superior ao valor do rendimento indisponível fixado.
Ora, cremos não poder manter-se o valor do rendimento indisponível fixado no montante de 600 euros, já que se situa abaixo do salário mínimo nacional de 2020 e por certo ainda mais abaixo do que o salário mínimo nacional que vigorará em 2021, já que tal se mostra inconstitucional e abaixo do limiar da dignidade humana.
Donde, fazendo uma interpretação atualista do montante fixado em 12.03.2014, entendemos fixar o rendimento indisponível da Insolvente em um salário mínimo nacional acrescido de 1/4 de outro, atendendo a que tem um filho menor a seu cargo, multiplicados por doze meses, sendo que esta alteração produzirá efeitos a partir do mês de janeiro de 2020 em diante, devendo o Sr. Administrador Fiduciário refazer o cálculo feito quanto ao 4.º ano do período de fidúcia já decorrido de acordo com o agora estipulado.
Notifique.
Sem prejuízo, 15 dias antes do termo do prazo do período de exoneração do passivo restante, notifique a Devedora, o Sr. Fiduciário e os credores da insolvência nos termos e para os efeitos previstos no artigo 244.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.
Prazo: 08 dias”.
Na sequência deste despacho, o Sr. Administrador veio informar ter refeito o cálculo quanto ao 4.º ano do período de fidúcia, juntando o respectivo quadro.
A 22.10.2021 a insolvente, alegando ter cumprido com todas as suas obrigações decorrentes do seu pedido de exoneração do passivo, sem que tenha sido requerido pelo Sr. Administrador da Insolvência ou algum credor cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do artigo 243.º do CIRE, requereu que fosse proferido despacho final de concessão da exoneração do passivo restante.
O Sr. Administrador da Insolvência no relatório a que se refere o artigo 244.º do CIRE, deu conta que a insolvente tem vindo a ceder ao fiduciário, no último ano de cessão, todas as quantias que excedem o valor fixado como valor indisponível, encontrando-se, todavia, por regularizar a dívida referente aos anos de 2016, 2017 e 2018, conforme requerimento apresentado a 4.12.2019, no valor global de € 14.394,84.
Na sequência dessa informação, foi proferido o seguinte despacho: “Tendo em conta o incumprimento reiterado do dever de entrega dos rendimentos disponíveis auferidos nos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, que a insolvente apenas repôs parcialmente, já que da divida reportada pelo Sr. Administrador Fiduciário, no montante global de 20 174,37 euro, a Insolvente apenas terá pago a quantia de 3 474,78 euros e, após a correção introduzida pelo Sr. Administrador Fiduciário quanto ao 4.º ano do período de fidúcia vem agora o Sr. Administrador Fiduciário referir que continua em divida o montante global de 14 394,84 euros, notifique a insolvente para proceder ao pagamento da quantia em divida, no prazo de 30 dias, sob pena de lhe ser recusada a exoneração do passivo restante por reiterado incumprimento do seu dever de entrega de todo o rendimento disponível auferido, sendo que o dever de entrega ocorre no momento em que o rendimento é auferido e não apenas quando é elaborado o relatório anual”.
Com os fundamentos constantes do seu requerimento de 22.12.2021, a insolvente, alegando, nomeadamente, que os valores referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018 já não são exigíveis, insistiu no pedido de que fosse decretada a exoneração do passivo restante.
Após exercício do contraditório, sem que o Sr. Fiduciário ou algum credor se haja pronunciado, foi proferido o seguinte despacho: “Pese embora os argumentos invocados pela Insolvente para justificar a não entrega à fidúcia dos seus rendimentos disponíveis auferidos nos anos de 2016, 2017 e 2018, nomeadamente quando invoca não ter sido notificada pelo tribunal nem a sua mandatária a ter informado do seu dever de entregar os rendimentos que excediam o valor dos rendimentos indisponíveis fixados, a verdade é que tal argumentação apenas poderia relevar para efeito de se considerar que não existiu dolo do parte da Insolvente, porém já não pode obstar a que efetivamente se tenham apurado rendimentos que deveriam ter sido entregues à fidúcia, no montante global de 14 394,84 euros e não o foram.
Ora, todas as notificações a que se refere a Insolvente no seu requerimento foram efetuadas na pessoa da sua mandatária e não exigindo a lei que tais notificações sejam repetidas na pessoa da Devedora, para além da notificação feita a mandatário, a Devedora tem de se considerar notificada para todos os efeitos legais.
Assim, se a advogada por si constituída não lhe deu conhecimento de tais notificações e não lhe explicou, como devia, os deveres a que ficava sujeita por força do instituto de exoneração do passivo restante, terá de pedir tal responsabilidade à Senhora advogada por si escolhida, mas os credores desta insolvência não podem ser afetados por tal escolha.
Donde, estando em divida a quantia de 14 394,84 euros, deverá a insolvente requerer o seu pagamento em prestações, sob pena de ter de lhe ser recusada a exoneração do passivo restante por incumprimento do dever de entrega do rendimento disponível.
Notifique”.
2. Inconformada com essa decisão, dela veio a insolvente interpor recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se existe ou não fundamento para ser deferida a pretensão da insolvente quanto à concessão da exoneração do passivo restante.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos relevantes à apreciação do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
De acordo com o artigo 1.º do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
Já do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar: “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Não obstante o objectivo fundamental do processo de insolvência se traduzir na satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o CIRE, através da exoneração do passivo restante, figura inovadora que o CPEREF não previa, permite, em certas circunstâncias, que os insolventes, pessoas singulares, se libertem das dívidas que os oneram e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica.
Ou seja: através do recurso à exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente é concedida a faculdade, em casos previamente delimitados e previstos, de, decorridos cinco anos - período durante o qual terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário -, obter a extinção das suas dívidas não satisfeitas ou satisfeitas apenas em parte, através da liquidação da massa insolvente, ou através daquela cessão dos rendimentos, desvinculando-se da obrigação de no futuro proceder ao seu pagamento integral.
A exoneração do passivo restante constitui, deste modo, “uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”[1].
Como sustenta Luís Menezes Leitão[2], a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste», visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior”[3].
Assim caracterizada a figura da exoneração do passivo restante, torna-se evidente que a sua concessão não pode ser feita de forma automática, antes estando dependente e condicionada pela necessidade de preenchimento de determinados requisitos: “a concessão da exoneração do passivo restante tem de ser pedida pelo devedor, mas depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”[4].
Para além disso, pressupõe um processamento próprio, onde se destacam, como principais fases, o pedido de exoneração, o despacho liminar ou despacho inicial e o despacho final.
Perante a formulação de pedido de exoneração do passivo restante, o juiz, ouvidos os credores e o administrador da insolvência, pronunciando-se sobre a admissibilidade de tal pedido, profere despacho liminar no qual defere ou indefere a pretendida exoneração do passivo.
Trata-se, repete-se, de um juízo liminar, reclamando apenas do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade ou de indeferimento da exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá o pedido quando nenhuma circunstância tida pela lei como obstáculo ao seu deferimento ocorra; indeferi-lo-á quando se verifique alguma circunstância apontada pela lei como causa de indeferimento liminar, designadamente alguma das tipificadas no nº 1 do artigo 238º do CIRE.
Essa decisão liminar, como a sua designação pressupõe, não se confunde com a decisão final da exoneração a que alude o artigo 244º do CIRE, a ser proferida após o termo da cessão.
Salienta Assunção Cristas[5] “o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável”.
Dispõe o n.º 4 do artigo 239.º do CIRE: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”.
Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda[6], em anotação ao artigo 239.º, “o n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida.
Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimulá-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património [al. a); cf., ainda, al. d)]”.
Sobre a insolvente recaía a obrigação de “informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado”, como decorre da 2.ª parte da alínea a), do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, como tinha ainda o dever de imediatamente entregar ao fiduciário, logo que recebida, a parte dos seus rendimentos objecto da cessão, isto é, a parte do rendimento que excedesse o valor indisponível fixado na decisão liminar da exoneração do passivo.
E porque foi a insolvente notificada da decisão que admitiu liminarmente a exoneração do passivo por ela requerido, da qual consta, designadamente, que, nos termos do artigo 239.º do CIRE, é rendimento disponível da insolvente o que exceda os € 600,00, devendo a mesma no período de cinco anos subsequente ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão – ceder ao fiduciário nomeado os montantes que excedam aquele valor, fazendo a referida decisão expressa referência de que “fica a mencionada devedora obrigada, durante o período de cessão, a observar o disposto no art. 239 nº 4 do CIRE, caso em que, findo o referido período, lhe será concedido, não havendo razão legal em contrário, a exoneração do passivo restante”, sobre ela recaía o dever de cumprir as obrigações fixadas, incluindo a de entregar imediatamente ao fiduciário, independentemente de notificação nesse sentido, o montante dos rendimentos que excedessem o valor do rendimento indisponível, logo que recebidos, isto é, no mês correspondente, e não no termo de cada ano da cessão. O que, de resto, deu origem a várias decisões, de que sempre a insolvente foi notificada, interpelando a mesma para cumprimento das obrigações em falta e advertindo-a para as consequências do seu persistente incumprimento.
Tendo o Sr. Administrador informado, no relatório relativo ao ano de 2019, dos valores que, relativamente aos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, sendo devidos à fidúcia, não lhe foram entregues pela insolvente, totalizando, na altura, € 20.174,37, foi então proferido despacho do qual, nomeadamente, consta: “...a Insolvente incorre num erro manifesto, já que ao pedir a exoneração, comprometeu-se a cumprir os seus deveres, previstos no artigo 138.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e estes passam por entregar ao Sr. Administrador de Insolvência voluntariamente e sem necessidade de este os solicite, os comprovativos dos seus rendimentos, como sejam recibos de vencimento e declaração anual de rendimentos, e mensalmente entregue todo o rendimento disponível que, no caso concreto, é todo aquele que exceda 600 euros, pois foi o rendimento fixado e não houve qualquer pedido de alteração até à data e sendo certo que qualquer alteração apenas vale para o futuro.
Assim, é notório que a Insolvente não cumpre os seus deveres, nem tem intenção de o fazer, porém, os credores aceitam este comportamento da Insolvente, pois que nenhum credor veio pedir a cessação antecipada da exoneração do passivo restante e não cabe ao Tribunal decretar oficiosamente a cessação antecipada.
Como tal, devem os autos aguardar pela próxima informação anual a remeter pelo Sr. Administrador Fiduciário”.
De facto, a cessação antecipada do procedimento de exoneração deve ser requerida, de forma fundamentada, por quem tenha legitimidade para o efeito, não podendo ser determinada oficiosamente. Como esclarecem Carvalho Fernandes e João Labareda[7], em anotação ao artigo 243.º do CIRE, “a cessação antecipada do procedimento de exoneração, por esta dever ser recusada, depende de requerimento dirigido ao juiz por quem para tanto tenha legitimidade. Segundo o n.º 1 do presente artigo, ela cabe a qualquer credor da insolvência e, também, verificadas certas circunstâncias, ao administrador da insolvência e ao fiduciário”.
Daí que, perante a inércia dos credores e do fiduciário, que nada requereram apesar de conhecedores do comportamento incumpridor da insolvente, que, ao longo do período da cessão, omitiu a entrega de várias quantias de que era credora a fidúcia, por respeitarem a rendimentos auferidos pela insolvente que excederam o montante fixado como valor indisponível, não se haja determinado a cessação antecipada do procedimento de exoneração, não consentindo o referido artigo 243.º, n.º 1 do CIRE o seu decretamento oficioso.
Sob a epígrafe “Decisão final da exoneração”, dispõe o artigo 244.º do CIRE:
1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores”.
Assim, cumprido o período de cessão, por não ter ocorrido cessação antecipada do respectivo procedimento, o juiz, depois de ouvir o insolvente, os credores da insolvência e o fiduciário, emitirá despacho de concessão ou não de exoneração do passivo restante do devedor.
Na sequência do despacho proferido nos autos a 16.12.2020, foram notificados a insolvente, o Sr. Fiduciário e os credores da insolvência para, em 8 dias, se pronunciarem sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante da devedora.
Apenas esta se pronunciou nos termos da notificação efectuada, requerendo a emissão de despacho de concessão da exoneração.
O Sr. Fiduciário limitou-se a informar que a insolvente tem vindo a ceder à fidúcia, no último ano de cessão, todas as quantias que excedem o valor fixado como valor indisponível, encontrando-se, todavia, por regularizar a dívida referente aos anos de 2016, 2017 e 2018, conforme requerimento apresentado a 4.12.2019, no valor global de € 14.394,84, mas, uma vez mais, sem nada requerer quanto ao constatado incumprimento da insolvente.
Também os credores, cientes dos valores cuja cessão era devida à fidúcia, e cujo cumprimento foi pela insolvente omitido, uma vez mais se remeteram ao silêncio, nada requerendo em reacção a esse incumprimento.
Ora, como resulta do n.º 2 do artigo 244.º do CIRE, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo 243.º.
E segundo o n.º 1 do artigo 243.º, como já se deixou esclarecido, a cessação antecipada da exoneração do passivo restante não pode ser determinada oficiosamente pelo juiz, dependente, antes, de requerimento nesse sentido, devidamente fundamentado, apresentado pelos credores da insolvência e, em certas circunstâncias, pelo fiduciário ou administrador da insolvência, se ainda estiver em exercício de funções.
O que significa, naturalmente, que, por força do aludido n.º 2 do artigo 244.º do CIRE, que faz depender a concessão ou não da exoneração do passivo restante, dos mesmos requisitos exigidos para a cessação antecipada da exoneração, que também a sua não concessão não possa ser decretada oficiosamente, estando igualmente dependente de requerimento, nesse sentido, formulado por quem tem legitimidade para o efeito.
Nenhuma delas, tendo sido notificadas para se pronunciarem nos termos do n.º 1 do artigo 244.º do CIRE, tendo formulado tal requerimento nos autos, apesar de, insiste-se, conhecerem o comportamento incumpridor da insolvente e de estarem cientes das quantias em dívida à fidúcia, não pode o juiz a elas se substituir, recusando a exoneração no caso de a devedora não proceder à entrega, ainda que faseada, dos valores em dívida.
Os credores da insolvência [e também o Sr. Fiduciário] ao desinteressarem-se de acautelar os seus próprios interesses, premiaram o comportamento reiteradamente incumpridor da insolvente, não podendo o juiz, perante tal inércia, consentida e assumida, sancionar aquela conduta, apesar da sua natureza indiscutivelmente reprovável.
Deve, por consequência, ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que conceda à devedora a exoneração do passivo restante.

*
Síntese conclusiva:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que conceda à recorrente/insolvente a exoneração do passivo restante.
Custas da apelação: as custas do recurso serão suportadas pela recorrente, por tirar proveito da decisão, não havendo lugar à sua condenação em custas de parte ou procuradoria por não ter sido apresentada resposta às suas alegações, levando-se em conta o benefício do apoio judiciário.

Porto, 19.05.2022
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
_________________
[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, p. 183 e segs.,
[2] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, 4ª ed., págs. 236, 237 e segs.
[3] Cfr. também em idêntico sentido, Catarina Serra, “O novo regime português da insolvência – Uma introdução”, Coimbra, Almedina, 2008 (3ª edição), págs. 102 e 103.
[4] Luís A. Carvalho Fernandes, “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, págs. 276, 277.
[5] Revista “Themis”, Ano 2005, Edição Especial, “Novo Direito da Insolvência”- “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” págs. 169-170.
[6] Obra citada, pág. 788.
[7] Obra citada, pág. 797.