REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
AUDIÇÃO PRÉVIA DA CRIANÇA
Sumário

I - Em termos normativos, é hoje assegurada à criança uma ampla e extensiva oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais que lhe digam respeito.
II - O direito de audição da criança surge como expressão do direito à palavra e à expressão da sua vontade, mas funciona igualmente como pressuposto de um efetivo direito à participação ativa da criança nos processos que lhe digam respeito no âmbito de uma cultura judicial que afirme a criança como sujeito de direitos.
III - No âmbito de um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, ainda que se trate de decisão provisória prolatada ao abrigo do disposto no artigo 28º da Lei nº 141/2015, de 8.09 (que aprovou o Regime Geral do Processo Tutelar Cível) terá sempre de existir um despacho, devidamente fundamentado, a refletir a necessidade ou não da audição da criança.
IV - A falta de prolação desse despacho afeta a validade da decisão final do processo por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.

Texto Integral

Processo nº 526/21.2T8SJM-B.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, São João da Madeira – Juízo de Família e Menores, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha

*
Sumário
………………………………
………………………………
………………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

AA veio requer a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos seus filhos BB, nascido em .../.../2010, e CC, nascido em .../.../2012, sendo requerido o respetivo progenitor, DD.
Após citação do requerido teve lugar conferência de pais, na qual não se alcançou acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes aos menores, sendo então estabelecido um regime provisório nos seguintes termos:
«Os filhos fixam residência junto de ambos os pais, passando semanas rotativas e alternadas com cada um deles, fixando-se a transição à segunda-feira à, devendo o progenitor que os vai ter nessa semana ir buscá-los à escola no final das atividades, ou não havendo escola ou sendo feriado, a casa do outro.
Atenta a inexistência até ao momento de medida de coação de proibição de contactos entre os pais, o exercício das Responsabilidades Parentais nas questões de particular importância para a vida dos filhos compete a ambos os progenitores, sendo que quanto aos atos da vida corrente tal exercício competirá ao progenitor que em cada momento tiver consigo os filhos.
Até mais ver, os filhos continuam a frequentar a escola que têm vindo a frequentar, ou seja em ....
Os filhos passarão o dia do pai com o pai e bem assim o aniversário deste; passarão com a mãe o dia da mãe e bem assim o aniversário desta; e no dia dos seus aniversários almoçarão com um e jantarão com o outro progenitor em moldes e termos a combinar entre ambos.
Os filhos passarão as épocas festivas da Consoada, dia de Natal, fim de ano, Ano Novo e domingo de Páscoa, rotativa e alternada com cada um dos progenitores em moldes e termos a combinar entre eles.
Cada um dos pais sustenta o filho durante o período de tempo que o tem à sua guarda, sendo que as despesas médicas, medicamentosas e escolares curriculares na parte não comparticipada, serão suportadas por ambos os pais na proporção de metade para cada um deles, mediante a apresentação, no prazo de 30 dias, dos correspondentes recibos, devendo o outro progenitor por sua vez proceder ao pagamento da sua meação também no prazo de 30 dias.
Para efeitos escolares as funções de encarregado de educação serão exercidas em cada ano letivo rotativa e alternadamente por cada um dos pais, sendo-o no corrente ano de 2021/2022 pelo pai - art.º 43º, nºs 4, al. b) e 6 do Estatuto do Aluno e Ética Escolar - Lei nº 51/2012.
Para efeitos administrativos, designadamente para a obtenção da documentação pessoal das crianças, fixa-se a morada das mesmas a do pai.»
Não se conformando com o assim decidido, veio a progenitora interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Apenas o Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A apreciação e decisão do presente recurso passa, atentas as conclusões delimitadoras do seu objeto (arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, do Cód. Processo Civil, aplicável aos processos da jurisdição de família e menores por força do disposto no art. 32º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - RGPTC), pela análise e resolução das seguintes questões colocadas pela apelante a este tribunal:
. da ausência de audição dos menores e das consequências processuais dessa omissão;
. da lei (material) aplicável ao presente processo e da inadequação do regime provisório fixado tendo em conta o superior interesse das crianças.
***
III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender na decisão do presente recurso (que se mostra documentalmente demonstrada) é a seguinte:
1. BB, nascido a .../.../2010, e CC, nascido a .../.../2012, são filhos da requerente AA e do requerido DD.
2. Os menores têm a nacionalidade venezuelana.
3. Os progenitores dos menores, ambos com nacionalidade venezuelana, são casados entre si, encontrando-se presentemente separados.
4. A progenitora reside no concelho de Oliveira de Azeméis e o progenitor reside na freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira.
5. Os menores encontram-se ambos inscritos na Escola em ..., Santa Maria da Feira, com horários escolares a iniciar às 8h30 (BB) e 9h00 (CC).
6. A progenitora apresentou queixa contra o progenitor por violência doméstica, o que deu origem ao inquérito nº 521/21.1GDVFR, a correr termos na 2ª Secção do DIAP de Santa Maria da Feira.
7. Os menores não foram, até à data, ouvidos no decurso do processo, designadamente aquando da realização da conferência de pais.
***
IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Do direito das crianças serem ouvidas no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais e das consequências processuais resultantes da sua não audição

A apelante inicia as suas alegações recursivas sustentando registar-se irregularidade no ato decisório sob censura, porquanto os menores não foram ouvidos em qualquer momento do processo, sendo que, apesar de os mesmos já terem capacidade para exprimir a sua opinião, nesse aresto não se apresenta qualquer justificação para a sua não audição.
Que dizer?
Num excurso breve sobre o direito da audição da criança, atente-se, desde logo, na própria Convenção sobre os Direitos da Criança, acolhida na ordem jurídica nacional pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8 de junho de 1990, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de setembro, que no seu artigo 12.º estatui “Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.”
De igual modo, nos artigos 3.º e 6.º da Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança adotada em Estrasburgo, em 25 de janeiro de 1996, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13 de dezembro de 2013, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27 de janeiro, determina-se que: “À Criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: b) ser consultada e exprimir a sua opinião; Nos processos que digam respeito a uma Criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá: c) ter devidamente em conta as opiniões expressas da Criança”.
A este respeito recenseie-se ainda o Regulamento (CE) N.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, comummente designado “Regulamento Bruxelas II Bis”.
No que se refere à nossa legislação interna realce-se, em matéria de processos tutelares cíveis, o que se mostra estabelecido nos arts. 4º e 5º do RGPTC.
Diz-nos a alínea c) do nº 1 desse art. 4º que “[a] criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal (…)”.
Por seu turno, sob a epígrafe Audição da criança, dispõe o nº 1 do art. 5.º que “[A] criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse”, acrescentando o seu nº 2 que “[P]ara efeitos do disposto no número anterior, o juiz promove a audição da criança, a qual pode ter lugar em diligência judicial especialmente agendada para o efeito”.
Da concatenação destas disposições legais resulta que presentemente é assegurada à criança uma ampla e extensiva oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais que lhe digam respeito.
Nesse contexto, como refere RUI ALVES PEREIRA[1], “o princípio da audição da criança traduz-se: (i) na concretização do direito à palavra e à expressão da sua vontade; (ii) no direito à participação activa nos processos que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração; (iii) numa cultura da Criança enquanto sujeito de direitos.”
A criança tem, assim, o direito a ser ouvida e a sua opinião deve ser tida em consideração nos processos que lhe digam respeito e a afetem. Este é um direito que não pode ser visto só por si mas que deve ser tido em conta na interpretação de todos os outros direitos, maxime daquele que se traduz na procura da satisfação do seu superior interesse. Daí que, se esse superior – rectius, melhor – interesse se apresenta como o princípio norteador de todas as decisões que lhe digam respeito, então o princípio da participação e audição da criança constitui-se como um dos melhores meios para o concretizar.
Isto posto, questão que se coloca e que importa dirimir é a de saber a partir de que idade deve a criança ser ouvida.
A reforma legislativa operada pelo RGPTC foi no sentido de fomentar essa audição, sendo que para tal deixou de se falar de idades para realização da mesma, ficando a realização da audição judicial da criança a depender, fundamentalmente[2], do critério da “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade” (cfr. art. 4º, nº 1 al. c)).
A consagração da audição judicial da criança deixou de se filiar num critério objetivo (como, por via de regra, sucedia na lei pretérita, onde se estabelecia a obrigatoriedade de audição relativamente a toda e qualquer criança de 12 anos ou mais), passando antes a assentar em critérios subjetivos de aferição, como a “capacidade de compreensão”, a “maturidade” e o “discernimento”. Esta capacidade de “compreensão suficiente”, ou capacidade de entendimento mínimo, consubstancia-se então numa capacidade de compreensão relativa, assente na capacidade de compreender qual o assunto que será objeto das suas declarações, ou de, pelo menos, identificá-lo, o que, naturalmente, pressupõe uma ponderação casuística a levar a cabo pelo julgador.
Postos estes breves considerandos, perpassa dos autos que nenhum das crianças (sendo que o BB conta presentemente onze anos de idade e o CC completará dez anos no próximo mês de julho) foi efetivamente ouvida no decurso do processo, sendo certo que na decisão recorrida não se apresentou qualquer justificação para a dispensa da sua audição - designadamente quanto à sua maturidade (ou falta dela) - e isto malgrado o pomo da divergência entre os progenitores resida, primordialmente, no regime de residência e na escolha do estabelecimento de ensino a frequentar pelos menores, questões relativamente às quais terão estes seguramente uma palavra a dizer dada a especial relevância que assumem para o seu bem-estar e desenvolvimento harmonioso.
Ora, na esteira de jurisprudência que adrede se vem firmando[3], a ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, mesmo que assuma natureza provisória (já que, como emerge do art. 28º do RGPTC, nenhuma derrogação foi aí estabelecida quanto à necessária observância do enunciado princípio geral da audição da criança), somente estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade (que se tem considerado ser o caso de crianças com idade inferior a três anos) não o permite ou aconselhe[4][5]. Dito de outro modo, quando a criança não é ouvida, terá sempre de existir um despacho a refletir a necessidade ou não da sua audição, devidamente fundamentado.
O problema que tem sido equacionado é o de saber quais as consequências processuais dessa não audição.
Embora não se registe, a este propósito, uma resposta unívoca, afigura-se-nos que essa omissão afeta a validade da decisão final do correspondente processo por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.
Isso mesmo é especialmente sublinhado por SALAZAR CASANOVA[6], quando afirma que as razões que permitem a audição de uma criança em juízo são de “ordem substantiva” e que se devem ao superior interesse da criança, e “assim, onde determinada diligência processual colida com tal interesse, há-de prevalecer este”.
Esta não audição da criança, não justificada, configura, assim, uma falta processual mas também a clara violação de regras de direito material, não devendo um tribunal limitar-se a ver esta omissão numa restrita visão processual, reconduzindo, antes, a falta a uma violação inegável da sua intrínseca validade substancial, ao dito princípio geral com relevância substantiva, e, por isso mesmo, processual.
Procedem, assim, as conclusões 12ª a 17ª formuladas pela recorrente, ficando, nessa medida, prejudicado o conhecimento das demais conclusões recursórias.
***
V. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, anulando a decisão recorrida e determinando que o processo baixe à 1ª instância a fim de, ou serem ouvidas as crianças, se a sua capacidade de compreensão assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição.
Custas pela parte vencida a final, na proporção em que o for.

Porto, 23.5.2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
_______________
[1] Em artigo publicado na Julgar Digital, disponível em www.julgar.pt.
[2] Embora se continue a prever, no âmbito do processo tutelar cível, a obrigatoriedade de audição da criança com idade superior a 12 anos (cfr. art. 35º, nº 3).
[3] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 14.12.2016 (processo nº 268/12.0TBMGL.C1.S1) e de 5.04.2018 (processo nº 17/14.8T8FAR.E1.S2), acórdão da Relação de Coimbra de 8.05.2019 (processo nº 148/19.8T8CNT-A.P1), acórdão desta Relação de 4.11.2019 (processo nº 1474/17.6T8PRD.P1), acórdãos da Relação de Lisboa de 2.05.2017 (processo nº 897/12.1T2AMD-F.L1-1) e de 14.07.2020 (processo nº 24889/19.0T8LSB-A.L1-6) e acórdão da Relação de Évora de 25.05.2017 (processo nº 805/12.0TMFAR-B.E1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Neste conspecto, afigura-se-nos que essa audição pode deixar de ocorrer naqueles casos em que o assunto a decidir não seja daqueles onde essa audição possa trazer aos autos um especial contributo, como sucede, designadamente, quanto apenas esteja em causa a fixação do montante da sua prestação alimentícia - essencialmente dependente das condições económicas dos seus progenitores.
[5] Como a este propósito escreve PAULO GUERRA, in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, AAVV, Almedina, 2021, pág. 88, “a regra é ouvir a criança (…). A não audição apenas se justificará em três situações, devendo ser sempre motivada e fundamentada: (i) se ela livremente manifestar interesse em não ser ouvida; (ii) se for considerado inconveniente ouvir a criança face ao assunto em discussão; (iii) se for reconhecido que ela não dispõe de capacidade de discernimento ou de maturidade para o efeito.
[6] O regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho e o princípio da audição da criança, in Scientia Juridica, Tomo LV, n.º 306 – abril/junho 2016, pág. 236; no mesmo sentido milita PAULO GUERRA, ob. citada, págs. 97 e seguintes e o já citado acórdão do STJ de 14.12.2016.