COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
CRITÉRIOS DA COINCIDÊNCIA DA CAUSALIDADE E NECESSIDADE
Sumário

I - Se o demandado não tiver domicilio ou sede num Estado Membro, o Regulamento (EU) n.º 1215/2012, não é aplicável, por regra, à determinação da competência judiciária ou ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
II - No nosso ordenamento jurídico interno, os fatores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, previstos no artigo 62.º do CPC, são determinados por critérios de coincidência, causalidade e necessidade, os quais, entre si, são alternativos.
III - Se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, para que os tribunais portugueses sejam internacionalmente competentes, por aplicação do critério da coincidência, é necessário que o facto ilícito tenha ocorrido em Portugal.
IV - Já por aplicação do critério da causalidade, exige-se que tenha sido praticado em Portugal pelo menos um facto integrador da causa de pedir.
V - Havendo entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional algum elemento ponderoso de conexão, de ordem pessoal ou real, os tribunais portugueses são ainda internacionalmente competentes se houver o risco de denegação de justiça, seja por impossibilidade jurídica, seja por dificuldade prática manifesta, em tornar efetivo o direito invocado pelo autor.
VI - Não se mostrando preenchido nenhum dos referidos critérios, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar esta ação.

Texto Integral

Processo n.º 1579/20.6T8PVZ.P1

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- AA, de nacionalidade ..., residente na Rua ..., ... ..., Povoa do Varzim, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra, E... Inc., com sede em ..., ..., ..., ..., EUA, pedindo a condenação desta sociedade a pagar-lhe:
a) A título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de 180.000,00€, de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de 49.580,06€, tudo no total de 229.580,06€ e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei;
b) E um montante nunca inferior a 5.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de 2.167,12€, tudo no total de 7 167,12€ e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.
Baseia este pedido, em resumo, na circunstância de ser um jogador de futebol profissional brasileiro, atualmente a jogar em Portugal, mas, devido à sua já longa carreira, tornou-se conhecido no meio do futebol.
Acontece que a Ré, que é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo, aproveitando-se desse facto, passou a utilizar, sem a sua autorização, a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos jogos de que é proprietária, denominados FIFA (também com as designações FIFA ...l ou FIFA ...), pelo menos nas edições 2011, 2012, 2013, 2014, 2018 e 2020; FIFA ..., pelo menos nas edições de 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014; FIFA .... - ..., pelo menos nas edições de 2014, 2018 e 2020, e FIFA ... nas edições de 2018 e 2020.
E faz a distribuição desses jogos através de várias subsidiárias entre as quais se destaca, na Europa, a E..., sedeada em Genebra, Suiça, que é uma empresa que opera como subsidiária (subdivisão) daquela, e que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
Assim, porque a sua imagem está, pelo menos desde setembro de 2009, a ser indevidamente usada em milhões de jogos difundidos em Portugal e por todo o mundo, sofreu com isso os referidos danos, que especifica e pelos quais quer ser ressarcido.
2- Contestou a Ré, refutando os aludidos pedidos, seja porque o direito invocado pelo A. está prescrito; tem licenciamento dos direitos de imagem a seu favor; o A. age em abuso de direito; e, em qualquer caso, são infundados os pedidos pelo mesmo formulados, uma vez que, em síntese, para o desenvolvimento dos seus jogos FIFA, a mesma não carecia, nem carece, da autorização do A.
3- Subsequentemente, no dia 31/03/2021, a Ré veio suscitar a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para o conhecimento do presente litígio, uma vez que não existem fatores de conexão juridicamente relevantes com a ordem jurídica portuguesa.
Por isso mesmo, termina pedindo a sua absolvição da instância.
4- O A. respondeu pugnando pela solução contrária, dado que não reconhece fundamento legal para a procedência da referida exceção.
5- Posteriormente, depois do A. se ter pronunciado sobre as exceções deduzidas pela Ré na contestação, foi ainda admitida a entretanto requerida intervenção da sociedade, F ..., como assistente da Ré.
6- No âmbito da audiência prévia foi, então, conhecida a arguida exceção de incompetência internacional, a qual foi julgada procedente e a Ré absolvida da presente instância.
7- Inconformado com esta decisão, dela recorre o A., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b) Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c) O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do Tribunal a quo para o julgamento do presente litígio.
d) A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de video contendo a imagem, nome e demais características pessoais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
e) Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do Autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
f) O Autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere - substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao Autor (patrimoniais e não patrimoniais), por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562.º, 563.º, 564, n.º 1, 565.º, 566.º n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código Civil e ainda artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
g) Ao contrário do que a decisão recorrida refere, esses danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais caraterísticas do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal.
h) Isso mostra-se devidamente alegado nos artigos 14.º, 17.º, 101.º e 192.º, da petição inicial.
i) É, pois, absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção.
j) A obrigação de reparação, no caso concreto do Autor, resulta de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. (negrito e sublinhado nossos).
k) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Tal como a decisão recorrida, salvo o devido respeito, ignora ostensivamente!
l) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).
m) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de exposição, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão do STJ de 25-10-2005.
n) Sendo que, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, tem aplicação o regime previsto no Regulamento (EU) n.º 1215/2012, por se verificarem os elementos de conexão especiais previstos nas suas Secções 2 a 7, designadamente, no artigo 7.º, n.º 2.
o) Para além disso, o Autor tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
p) Sendo irrelevante o facto da distribuição dos jogos ser feita na prática por uma subsidiária da ré, pois é esta a proprietária dos jogos e é só ela que aufere os avultados lucros resultantes da sua comercialização.
q) O que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
r) Pelo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
s) Tanto mais que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
t) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
u) Tanto mais que, nos autos é arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
v) Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
w) Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
x) O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
y) Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
z) Ora, o Autor toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
aa) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.
bb) Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
cc) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
dd) Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 62.º, alíneas a), b) e c), 71.º, n.º 2 e 80.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º e 72.º do Código Civil”.
Termina pedindo que se julgue procedente o presente recurso e que se revogue a decisão recorrida, reconhecendo a competência internacional negada por essa decisão.
8- Responderam as Rés pugnando pela confirmação do julgado.
9- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa decidir:
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II- Mérito do recurso
1- Delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, nº 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], o objeto deste recurso restringe-se apenas à questão de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir o presente litígio.
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2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado - que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar esta questão:
Nos termos do artigo 37.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ)[1], é a lei de processo que fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.
E essa lei, por sua vez, estabelece que “[s]em prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º” – artigo 59.º, do CPC.
Vigora, assim, na nossa ordem jurídica um regime dualista hierarquizado; ou seja, a par do regime comum e subsidiário, previsto nos artigos 62.º e 63.º do CPC, prevê a lei que a competência internacional dos tribunais portugueses possa também decorrer de regulamentos europeus e de outros instrumentos internacionais, que, quando aplicáveis, prevalecem sobre o direito interno.
Ora, é justamente esta prevalência de que o Apelante se socorre para sustentar dever ser aplicado à situação presente o Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Acontece que, salvo raras exceções que nada têm a ver com a situação em análise[2], as regras sobre a determinação da competência elencadas no referido Regulamento, só são aplicáveis se o demandado tiver o seu domicílio ou sede no território de um Estado Membro (artigo 6.º, n.º 1)[3]. Se assim não for, como sucede na situação presente, em que a Ré tem a sua sede na Califórnia, EUA, as aludidas regras não são aplicáveis.
Por conseguinte, é manifesto que essa aplicação não pode ter lugar.
Nem sequer por aplicação analógica, como parece também defender o Apelante.
Na verdade, como tem sido jurisprudência pacífica do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e mesmo dos nossos Tribunais nacionais, “os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros”[4], pelo que não podem servir para integrar as lacunas existentes neste Direito (artigo 10.º, n.º 2, do Código Civil). Até porque, segundo a interpretação seguida pelo TJUE do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), é ele o órgão competente para a interpretação do direito comunitário[5].
Como tal, não é viável a referida aplicação analógica.
Centremos, então, a nossa análise nos fatores de conexão previstos no nosso direito interno. E, de entre eles, os que estão previstos no artigo 62.º do CPC, pois que outros não são convocados pelo Apelante.
Como é usual dizer-se, este preceito estabelece três critérios alternativos para a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses.
O primeiro critério, é o da coincidência. Segundo ele, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes “[q]uando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” [al. a)]. Ou seja, quando haja uma coincidência com as regras de competência territorial aplicáveis ao caso concreto. Regras especiais, entenda-se, porque não são elegíveis os critérios gerais previstos no artigo 80.º, n.º 3, do CPC, uma vez que, nessa hipótese os tribunais portugueses seriam internacionalmente competentes para julgar todas as ações.
O segundo critério é o da causalidade. Também por este critério os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando tiver “sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram” [al. b)]. Ou seja, o facto ou algum dos factos, no caso de causas de pedir complexas, que fundamente e individualize a pretensão material do autor ou o direito potestativo pelo mesmo invocado. Factos principais, note-se, porque a “prática em Portugal de um facto complementar ou concretizador não chega para atribuir competência aos tribunais portugueses”[6].
Por fim, o terceiro critério é o da necessidade. Segundo este critério, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes “[q]uando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real” [al. c)]. É essencial, portanto, para desencadear este fator de conexão, que haja uma impossibilidade jurídica ou dificuldade prática no reconhecimento do direito invocado pelo autor. Seja por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio, seja por outra dificuldade de ordem prática provocada por qualquer ocorrência anómala impeditiva do funcionamento da jurisdição competente[7]. Não, as dificuldades de ordem prática decorrentes dos simples transtornos logísticos inerentes à utilização do sistema judiciário internacionalmente competente, pois que o que se previne com este fator de conexão é, essencialmente, a denegação de justiça; isto é, que o direito invocado fique sem tutela efetiva.
Em qualquer caso, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional tem de haver algum elemento ponderoso de conexão, de ordem pessoal ou real.
Traçadas, assim, em linhas gerais, as características de cada um dos critérios legais que determinam a competência internacional dos tribunais portugueses, é altura de aquilatar se, no caso presente, algum deles está preenchido[8]. Preenchido, naturalmente, em face do objeto desta ação, tal qual foi desenhado pelo autor[9], como sucede, de resto, em relação a todos os demais pressupostos processuais.
Pois bem, como já dissemos, o A. instaurou esta ação com o objetivo de ser ressarcido por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que alegadamente lhe foram causados pela Ré com a utilização abusiva, leia-se, sem a sua autorização, da sua imagem, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais nos jogos digitais interativos que a mesma produz e desenvolve. Jogos que, depois, ainda na versão do A., são divulgados e usados por todo o mundo, por milhões de jogadores, sem o seu consentimento e sem que lhe seja assegurada qualquer contrapartida.
Acontece que nunca o A. situa a referida produção e desenvolvimento em Portugal. Pelo contrário, dá a entender que essas atividades são levadas a cabo noutro país (designadamente, nos EUA, onde a Ré tem a sua sede), sendo a distribuição dos jogos depois realizada através de várias subsidiárias em todo o mundo, entre as quais destaca, na Europa, a E..., sedeada em Genebra, Suiça, que é uma empresa que opera como subsidiária (subdivisão) daquela, e que, uma vez mais na versão do A., “assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão”.
Ora, neste contexto, não há qualquer nexo entre o facto ilícito que o A. imputa à Ré e o nosso território; ou seja, entre a produção e o desenvolvimento dos referidos jogos e Portugal. Pode equacionar-se, naturalmente, esse nexo em relação a outros pressupostos da responsabilidade civil delitual, visto que a divulgação e uso dos ditos jogos a uma escala global não pode deixar de ser considerada para avaliar a dimensão do dano, mas, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do CPC, com referência ao disposto no artigo 62.º, al. a), do mesmo Código, não é essa a conexão relevante. É, sim, o facto ilícito. O artigo 71.º, n.º 2, do CPC, é bem claro, a este propósito, quando dispõe que “[s]e a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu”. O facto, portanto, e não o dano ou qualquer outro dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. De resto, assim tem entendido a doutrina e jurisprudência. Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[10], “[d]estinando-se a ação a efetivar a responsabilidade baseada em facto ilícito ou no risco (v.g. acidentes de viação, ofensa a direitos de personalidade por via da comunicação social) segue o critério do lugar onde tal facto ilícito ocorreu, revelando o fator da maior proximidade. Ainda que tais ações surjam sustentadas numa causa de pedir complexa que envolve, a par do facto ilícito, o dano ou outros factos que sustentam a responsabilidade (…), releva apenas o local onde ocorreu o facto ilícito (comportamento do agente violador dos direitos do lesado”.
Daí que não se verifique a coincidência determinante para a atribuição aos tribunais portugueses da competência internacional para julgar esta ação.
Alega, no entanto, o A. que essa competência pode também advir do critério da causalidade; ou seja, da circunstância de terem sido praticados em Portugal alguns dos factos que servem de fundamento a esta ação. E, mais especificamente, do facto dos jogos que temos estado a referir serem vendidos também em Portugal e ocorrer aqui o correspondente dano na sua esfera jurídica.
Essa venda, no entanto, como vimos, não é pelo A. diretamente imputada à Ré, mas a outras sociedades que, na sua versão, assumem a correspondente responsabilidade. Nessa medida, nem as transações dessa natureza podem considerar-se constitutivas da causa de pedir do A. em relação à Ré, nem os danos daí derivados ser-lhe diretamente imputados. Isto, sob pena de ter de se entender que a Ré é responsável por todas as consequências negativas associadas à comercialização ou mera divulgação dos jogos pela mesma desenvolvidos e produzidos, mesmo que não tenha tido qualquer intervenção nessas operações, o que não pode, de todo, aceitar-se.
Por conseguinte, é manifesto que também por esta via não pode estabelecer-se a competência internacional dos tribunais portugueses para julgar esta ação.
Resta o critério da necessidade.
Para o preencher, socorre-se o A. da alegação de que a propositura duma ação deste género nos Estados Unidos da América comporta para si uma séria e apreciável dificuldade. Seja devido às características da organização jurídica e judiciária desse país (no qual, para além da ordem jurídica nacional, coexistem várias ordens jurídicas locais), seja devido às fortes conexões que esta situação tem com a nossa ordem jurídica, no plano constitucional e de direito comum, que refere e que, a seu ver, preenchem o aludido critério.
Mas, do nosso ponto de vista, não é assim. Ou seja, as dificuldades invocadas não se traduzem num esforço que esteja para além do que é comum neste tipo de situações, em que os litígios emergem de relações jurídicas plurilocalizadas.
Com efeito, no plano das dificuldades práticas (e só a elas o A. parece reportar-se, pois que não alega qualquer impossibilidade jurídica), só relevam aquelas que sejam manifestas; isto é, aquelas em que a oneração do autor com o ónus de propositura da ação no estrangeiro atinja os limites da “razoabilidade do sacrifício que lhe é exigido, à luz do princípio da boa fé”[11]. Casos, por exemplo, de guerra, do corte de relações diplomáticas, da qualidade de exilado político ou então outras situações que constituam para o autor uma dificuldade apreciável, nos termos já assinalados[12]. O que, repetimos, não é, de todo, o caso.
Como tal, também por este critério não se pode ser estabelecida a conexão entre este litígio e a nossa ordem jurídica.
Donde, em resumo, e tal como tem sido decidido em situações muito similares[13], os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar esta ação e, nessa medida, a sentença recorrida porque assim também decidiu, deve ser confirmada, improcedendo, portanto, o presente recurso.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
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Porque decaiu na sua pretensão, as custas deste recurso serão pagas pelo Apelante – artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Porto, 8/6/2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
[2] Por se reportarem a contratos de consumo (18.º, n.º 1), contratos individuais de trabalho (artigo 21.º, n.º 2), áreas de competência exclusiva, relacionadas com direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, matéria de validade da constituição, de nulidade ou de dissolução de sociedades ou de outras pessoas coletivas ou associações de pessoas singulares ou coletivas, ou de validade das decisões dos seus órgãos, matéria de validade de inscrições em registos públicos, matéria de registo ou validade de patentes, marcas, desenhos e modelos e outros direitos análogos sujeitos a depósito ou a registo e matéria de execução de decisões (artigo 24.º), bem como pactos de jurisdição (artigo 25.º), sendo que os artigos 71.º-A e 71.º-B, apenas pretenderam regular a relação do referido Regulamento (UE) n.º 1215/2012 com o Acordo relativo ao TUP e o Tratado do Tribunal de Justiça do Benelux.
1. O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado-Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte
[3] Neste sentido, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, pág.181.
[4] Ac. STJ, de 10/12/2020, Processo n.º 1608/19.6T8GMR.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, Ac. STJ de 11/02/2015, Processo n.º 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, consultável em www.dgsi.pt
[6] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob cit, pág. 279.
[7] Neste sentido, Ac. STJ de 31/03/2022, Processo n. 1457/20.9T8STR.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt, que temos seguido de perto.
[8] Como se decidiu no Ac. RP de 10/02/2022, Processo n.º 637/20.1T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt, estes “critérios são autónomos. Cada um deles funciona com completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastante para suscitar a competência dos tribunais portugueses”.
[9] Neste sentido, por exemplo, o Ac.Ac. RE de 24/02/2022, Processo n.º 4157/20.8T8STB.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[10] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág.102.
[11] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4ª edição, pág. 157.
[12] Neste sentido, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob cit, pág. 280.
[13] Cfr. Ac. RP de 10/02/2022, Ac.Ac. RE de 24/02/2022, já identificados, bem como Ac. RG de 13/01/2022, Processo n.º 3853/20.2T8BRG.G1 e Ac. RLx de 13/01/2022, Processo n.º 24974/19.9LSB.L1-8, consultáveis igualmente em www.dgsi.pt