CRIME DE FURTO SIMPLES
CRIME DE FURTO QUALIFICADO
INIMPUTÁVEL PERIGOSO
PROVA PERICIAL
MEDIDA DE SEGURANÇA
Sumário

I - Para o efeito da qualificação do furto, é indiferente se o local onde a coisa subtraída se encontrava também pertencia ao dono da mesma, ou se as coisas subtraídas pertenciam à mesma pessoa ou a pessoas diferentes.
II - A observação de um arguido com o fim de avaliar a sua imputabilidade ou perigosidade por um perito não é definitiva, já que a imputabilidade e a perigosidade têm referentes normativos que só ao juiz cabe interpretar e decidir.
III - Só deve ser aplicada medida de segurança se a mesma for proporcionada à gravidade do facto praticado e assim o exigir a perigosidade do agente, enquanto fundado receio de que este venha a cometer factos da mesma espécie, em respeito pelos princípios da necessidade ou exigibilidade, da adequação ou idoneidade e da proporcionalidade ou racionalidade (art. 91º, nº 1, do Código Penal).
IV - Ao contrário do que acontece com a suspensão da pena - em que funciona uma verdadeira coação psicológica sobre o arguido sujeitando-o a uma pressão no sentido de não voltar a delinquir - na suspensão da medida de segurança de internamento não se usa o seu livre arbítrio, tentando-se apenas influenciá-lo para um tratamento que impeça a reiteração de novos factos ilícitos-típicos graves.
V - No caso vertente, não se suspende tal medida, tendo em conta que o crime foi praticado durante o período de suspensão de uma medida de segurança anteriormente decretada.

Texto Integral


Proc.º 75/20.6GAVFR.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

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1. RELATÓRIO

No âmbito do Processo Comum Singular nº 75/20.6GAVFR do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira (J2) do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, foi acusado o arguido AA imputando-lhe o Ministério Público a prática, como inimputável perigoso, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º n.º 2 al. e) do Código Penal, concluindo pela aplicação de medida de segurança de internamento.
O arguido foi julgado e em 12.01.2022 proferida sentença, na mesma data depositada, com o seguinte dispostivo (transcrição):

III -DECISÃO
Considerando o supra exposto, decide o Tribunal:
A) julgar não provada a prática pelo arguido, como inimputável, de factos ilícitos típicos qualificado pela lei penal como um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º n.º 2 al. e) do Código Penal;
B) julgar provada a prática pelo arguido, de factos ilícitos típicos qualificado pela lei penal como um crime de furto simples, p. e p. pelos artigos 203.º do Código Penal e em consequência:
b.1) julgar válida e relevante a desistência de queixa apresentada pela queixosa BB relativa a tais factos relacionados com os objectos em ouro, aceite pelo arguido AA, homologando-a em conformidade e, em consequência, declarar nessa parte extinto o procedimento criminal instaurado nestes autos contra o arguido AA;
b.2) julgar verificada a falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal por falta de queixa do titular respectivo quanto ao mealheiro e, em consequência, declarar nessa parte extinto o procedimento criminal instaurado nestes autos contra o arguido AA.
Isento de custas – art 522.º n.º1 CPP.
(…)”

Inconformado com a decisão proferida, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes conclusões, que se transcrevem:

“1. Em nosso entender, o tribunal errou, ao considerar que o arguido praticou um crime de furto simples, previsto e punível pelo artigo 203.º do Código Penal e, em consequência, por revestir natureza semi-pública, homologou a desistência de queixa e declarou, nessa parte, extinto o procedimento criminal.
2. A matéria factual dada como provada apenas permite a subsunção no tipo de furto qualificado previsto e punível pelo artigo 203.º, n.º1,e 204.º, n.º1-alínea f), do Código Penal, uma vez que não tem lugar a aplicação do disposto o n.º 4 do artigo 204º do mesmo diploma.
3. Da leitura da sentença recorrida constata-se que no ponto 3 dos factos provados, consta que “… o arguido retirou e levou, fazendo-os seus os seguintes objectos: um mealheiro, contendo no seu interior a quantia de €226,00 em numerário (moedas), uma aliança em ouro, um colar em ouro com apontamento em pérola branca, um alfinete de gravata em ouro”; e no ponto d), dos factos não provados que “ BB é proprietária do mealheiro, contendo no seu interior a quantia de €226,00 em numerário (moedas) referido em 3”.
4. O Tribunal a quo decidiu qualificar autonomamente os objetos de ouro pertencentes a BB, ofendida nos autos, e o mealheiro que continha a quantia de €226,00, não pertencente à mesma, mas à sua neta, residente na mesma habitação.
5. Assim, decidiu considerar, para efeitos de qualificação jurídica dos factos dados como provados, os objetos de ouro pertencentes a BB, ofendida nos autos, relativamente aos quais não foi apurado o valor e, em consequência, qualificou os factos dados como provados como um crime de furto simples previsto e punível pelos artigos 203.º, n.º1, e 204.º, n.º1-alínea f), e n.º4, do Código Penal; e, quanto ao mealheiro, decidiu julgar verificada a falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal por falta de queixa do titular respetivo.
6. Todavia, para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 204.º do Código Penal, no caso concreto, é indiferente para a qualificação do crime de furto que os objetos em causa pertençam todos ou não à ofendida BB, sendo que o valor a ter em consideração é o valor de todos os objetos subtraídos pelo arguido e não apenas de parte.
7. Face ao exposto, considerando assente a matéria de facto provada, teria de se concluir que as coisas subtraídas tinham um valor nunca inferior a €226,00, e, em consequência pela subsunção da conduta do arguido aos elementos objetivos da alínea f) do n.º1 do artigo 204.º do Código Penal e nunca pelo preenchimento do n.º 4 do artigo 204.º Código Penal.
8. Por outro lado, mesmo que se considerasse autonomamente o mealheiro e quantia monetária, a conduta em causa teria de ser qualificada como um crime de furto qualificado, previsto e punível pelos artigos 203.º, n.º1, e 204.º, n.º1-alínea f), do Código Penal, face ao modo como o arguido entrou na residência aludida (sem autorização do dono) e uma vez que o valor da quantia monetária era superior a uma unidade de conta processual.
9. Sendo assim, tratava-se de um crime de natureza pública, em relação ao qual não era necessária a apresentação de queixa pelos respetivos ofendidos.
10. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez uma qualificação jurídica desadequada, relativamente à matéria de facto dada como provada, violando o disposto nos artigos 203.º, n.º 1 , e 204.º, n.ºs 1- alínea f) e 4, por referência ao artigo 202.º, alínea c), todos do Código Penal, e 48.º e 49.º, do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e:
- julgar-se provada a prática pelo arguido de factos integradores de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º1 e 204.º, n.º1-alínea f), do Código Penal;
- declarar-se o arguido AA inimputável por causa da anomalia psíquica de que padece, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal; - declarar-se a perigosidade do arguido AA, por, em face daquela anomalia e da gravidade dos factos por ele praticados, haver razões que fundamentam o receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie; e
- aplicar-se ao arguido uma medida de segurança.”

Por despacho proferido em 18.02.2022 foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O arguido não ofereceu resposta.

Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art. 416º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), acompanha o recurso interposto pelo Ministério Público na 1ª instância e sustenta que deve ser dado provimento ao recurso e revogar-se a sentença recorrida, uma vez que os seus pressupostos não se afiguram acertados (o crime em apreciação é o de furto qualificado p. e p. no art. 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. f) do C. Penal, que tem natureza de crime público, não sendo aqui aplicável o disposto no nº 4) do art. 204º do C. Penal.)

Na sequência da notificação a que se refere o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido manteve-se em silêncio.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Entre outros, pode ler-se no Ac. do STJ, de 15.04.2010, disponível em www.dgsi.pt.: “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a única questão a apreciar e decidir é:
- a qualificação jurídica desadequada, relativamente à matéria de facto dada como provada, violando o disposto nos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.ºs 1- alínea f) e 4, por referência ao artigo 202.º, alínea c), todos do Código Penal, e 48.º e 49.º, do Código de Processo Penal.
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Com relevo para a resolução da questão objeto do recurso importa recordar o elenco dos factos provados e não provados (deixando de parte a fundamentação de facto uma vez que o recorrente não coloca em causa a factualidade apurada) e de direito da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):

“II – FUNDAMENTAÇÃO
A)FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A.1) FACTOS PROVADOS

Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Pelas 12h20m do dia 04/02/2020, o arguido AA, dirigiu-se à moradia residência de BB, sita em Rua ..., em ..., com intenção de se apoderar, fazendo-os seus, dos objectos e valores que aí encontrasse.
2. De modo não apurado, o arguido introduziu-se no interior da residência.
3. Do interior daquela residência o arguido retirou e levou, fazendo-os seus os seguintes objectos:
- um mealheiro, contendo no seu interior a quantia de €226,00 em numerário (moedas),
- uma aliança em ouro,
- um colar em ouro com apontamento em pérola branca,
- um alfinete de gravata em ouro.
4. Após, o arguido guardou os objectos em ouro nas suas vestes e, com o mealheiro na mão saiu para o exterior da vivenda.
5. Agiu sempre o arguido no desconhecimento e contra a vontade da legítima proprietária daquela residência e dos objectos em ouro descritos em 3.º.
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6. O arguido padece de doença debilidade intelectual severa, anomalia psíquica permanente e irreversível, por força da qual tinha fortemente diminuída a capacidade de avaliar a ilicitude dos factos referidos de 1. a 5. e não era capaz de determinar o seu comportamento de acordo com a avaliação dos factos.
7. As características da doença referida em 6., verificadas na permanente tendência à repetição de comportamentos inapropriados ou ilícitos, fundamentam o receio de que o arguido cometa, ainda que com outras pessoas ou objectos, factos ilícitos típicos da mesma espécie, o que poderá ser substancialmente diminuído mediante o internamento em instituição apropriada, com acompanhamento psiquiátrico permanente e medicamentoso necessário.
Mais se provou que:
8. O arguido, nascido em .../.../1988, é oriundo de proveniente de uma família de condição cultural e socioeconómica deficitária, constituída para além do próprio, pelos seus progenitores e duas irmãs.
9. O progenitor do arguido revela um percurso laboral ligado à construção civil e a sua progenitora às atividades domésticas e, como empregada de limpeza.
10. Aos 10 anos de idade, e na sequência de atropelamento, o arguido ficou com sequelas de traumatismo crânio encefálico, apresentando desde essa época, perturbações de comportamento, deficit intelectual e cognitivo.
11. AA esteve em regime de internato na Obra ..., dos 15/16 aos 17/18 anos de idade, devido a dificuldades da família em controlar/supervisionar o comportamento do mesmo.
12. O arguido frequentou um curso de formação profissional Especial, na área de produção corticeira (programa de inserção social e profissional das pessoas com deficiência) na CERCI ..., no período compreendido de 11 de Abril de 2005 a 11 de Abril de 2009, tendo revelado um comportamento desadequado dentro da instituição.
13. No período compreendido entre Maio de 2018 a 05 de Dezembro de 2019, o arguido esteve integrado num curso profissional de carpintaria na CERCI Feira, frequência que cessou devido ao comportamento desadequado e abusivo do próprio na interação com os pares, com ausência de respeito pelas regras sociais e hierarquia.
14. O arguido reside com os seus progenitores na morada indicada nos autos, beneficiando do apoio e suporte dos mesmos quanto às diversas questões do seu quotidiano.
15. O arguido encontra-se reformado por invalidez auferindo cerca de €220,00, passando o seu dia-dia em casa ou a deambular pela localidade, sendo que na atualidade, tem ido para quinta agrícola de pessoa vizinha, onde presta ajuda na execução de pequenas tarefas agrícolas e no trato de animais de criação.
16. O agregado familiar reside numa habitação social, com humildes condições de conforto, inserida em bairro social, situado na periferia de ....
17. O progenitor aufere o salário mínimo nacional e a progenitora não tem rendimento mensal fixo, recebendo cerca de 50/60€ por semana.
18. Em termos ocupacionais, o arguido não se encontra inserido em nenhuma atividade estruturada ou formativa, continuando a subsistir constrangimentos em ser novamente integrado em entidade social não existindo, atualmente, qualquer perspetiva nesse sentido. Os referidos constrangimentos são de diversa ordem, como ausência de vaga, dificuldades financeiras e de transporte por parte dos progenitores, e sobretudo pelo comportamento do arguido manifestado em inserções anteriores em entidades locais.
19. O arguido encontra-se em acompanhamento psiquiátrico no Centro Hospitalar ..., ..., estando a fazer medicação oral e injetável. A medicação oral é administrada pela progenitora do arguido. A medicação injetável é administrada, mensalmente, na USF de ....
20. Os progenitores do arguido, mostram-se saturados quanto à conduta do arguido, apresentando dificuldades de supervisão /controlo do comportamento do arguido, considerando que, na atualidade, seria mais benéfico tratamento psiquiátrico em regime de internamento.
21. Em termos físicos, o arguido apresenta já alguma debilidade física, que o limita na sua locomoção.
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22. Por sentença proferida em 08.01.2014, transitada em 15.06.2015 no âmbito do P. 316/11.0GAVFR do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, o arguido foi sujeito a medida de segurança de internamento por 7 anos e 4 meses, suspensa na execução por igual período, podendo cessar em momento anterior, logo que verificada a cessação do estado de perigosidade do arguido, subordinada a regime de prova e obrigação de o arguido manter acompanhamento e tratamento psiquiátrico.
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A.2) FACTOS NÃO PROVADOS
a) Aquando do referido em 1. o arguido penetrou na residência, saltando um muro que ladeia a vivenda.
b) Aquando do referido em 2. a residência encontrava-se fechada.
c) Os bens em ouro referidos em 3. tinham cada um o valor aproximado de €500,00.
d) BB é proprietária do mealheiro, contendo no seu interior a quantia de € 226,00 em numerário (moedas) referido em 3..
e) Agiu o arguido de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de fazer seus os supra referidos objectos, naquelas circunstâncias, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam, que actuava contra a vontade da legítima dona dos objectos em ouro e que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
f) Agiu com o propósito concretizado de obter para si benefício económico que não lhe era devido bem sabendo que ao fazê-lo causava um prejuízo no mesmo valor ao proprietário dos mesmos.
g) O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei pena
h) Por via do referido em 6. o arguido não consegue controlar os seus impulsos agressivos e inapropriados.
i) O arguido não é capaz de se abster da prática de actos lesivos de bens alheios caso não lhe seja vedado o acesso aos mesmos.
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O mais constante da acusação não resulta da decisão supra por se tratar de matéria genérica, conclusiva, de direito ou sem interesse para a boa decisão da causa.
(…)
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B) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
B.1) DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
O arguido vem acusado da prática, como inimputável perigoso, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º n.º 2 al. e) do Código Penal.
Vejamos.
Estatui o art. 203º do CP que “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”,
A tentativa é punível (n.º2) e o procedimento criminal depende de queixa (n.º3).
Por sua vez, resulta da al. f) do n.º1 do art. 204.º CP que quem agir nos termos referidos no art. 203.º n.º1 introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, em estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar é punido com prisão até cinco anos ou pena de multa até 600 dias.
Resulta ainda da al. e) do n.º2 do mesmo artigo que se o agente penetrar em habitação, ainda que móvel, em estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas é punido com pena de prisão de dois a oito anos. Porque pertinente, importa ainda aludir ao disposto no n.º4 do art. 204.º do CP nos termos do qual “Não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal forem de diminuto valor.”, o que corresponde àquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto – art. 202.º CP.
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Inserido no capítulo dos crimes contra o património, acompanhamos o Prof. Jorge de Figueiredo Dias no seu entendimento com respeito ao bem jurídico tutelado pela norma. De acordo com o professor “(…) no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela (…)” - DIAS, Jorge de Figueiredo – “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T.II, Coimbra Editora, 1999, p.94 e ss..
Como refere Figueiredo Dias “Direito Penal – Questões Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime”, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 295 “Em qualquer tipo de ilícito objectivo é possível identificar os seguintes conjuntos de elementos: os que dizem respeito ao autor; os relativos à conduta; e os relativos ao bem jurídico. Com efeito, todos os tipos incriminadores devem, na sua revelação objectiva, precisar quem pode ser o autor do respectivo tipo de crime (…).
Elemento constitutivo de todo o tipo objectivo de ilícito nos delitos dolosos de acção é (…) o autor da acção.”, o qual pode ser, em regra, qualquer pessoa.
São elementos do tipo objectivo:
a) autor
b) subtracção
c) de coisa
d) móvel
e) alheia.
Subtrair implica levar a cabo uma conduta “(…) que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa.” - COSTA, José de Faria – “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T.II, Coimbra Editora, 1999, p.43 e ss..
Coisa móvel, para efeitos penais e de crime de furto, é toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um qualquer valor, desde que juridicamente relevante, não sendo assim classificado o objecto sem valor venal, desde que a coisa não tenha valor efectivo para o seu possuidor (cfr. António Barreiros, Faria Costa, Costa Andrade, Paulo Matta e Maia Gonçalves, apud Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário Código Penal”, p. 552).
Para efeitos do art. 203º do CP “É alheia (…) toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção.” - – COSTA, José de Faria – “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T.II, Coimbra Editora, 1999, p.41.
Quanto ao tipo subjectivo, além do dolo genérico em qualquer das suas modalidades (dolo directo, necessário ou eventual – arts. 13º e 14º CP) - que implica que se verifique que o agente agiu com conhecimento e vontade relativamente à conduta de que vem acusado -, mais se exige a verificação de um dolo específico, traduzido na ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa.
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No caso em apreço,
não se vê que a factualidade provada permita concluir pela subsunção da conduta do arguido aos elementos objectivos da al. e) do n.º2 do art. 204.º do CP.
Por outro lado, ainda que pudesse concluir-se pela subsunção da sua conduta aos elementos objectivos da al. f) do n.º1 do mesmo artigo, não tendo resultado provado o valor dos objectos em causa, sempre teríamos de concluir pelo preenchimento do n.º4 do art. 204.º CP, concluindo pela não qualificação.
A este propósito acompanhamos o entendimento sufragado no Ac. TRC de 04.02.2014, P. 393/12.1GCTND.C1, in www.dgsi.pt, que pela sua clareza aqui reproduzimos:
“Não se apurando em concreto os valores dos bens que os arguidos tentaram furtar, tem que em seu favor funcionar o benefício da dúvida e não concluir, como na sentença que os arguidos não queriam bens de valor inferior a 1UC.
Embora haja entendimento diferente sufragamos o expendido no acórdão do STJ de 10.12.1997 (www.dgsi.pt/jstj) onde se entendeu que deve beneficiar-se o arguido e considerar diminuto o valor da coisa:
“Não se conseguindo determinar o valor dos objetos subtraídos pelo arguido, tem de concluir-se, em benefício daquele, que o mesmo é insignificante e diminuto, o que exclui a qualificação do furto, nos termos do disposto pelos artigos 297 nº 3 do CP de 1982 e 204 n. 4 e 202 alínea c) do CP de 1995”.
Na mesma linha seguiu o STJ de 12.11.1997 (www.dgsi.pt/jstj)
E ainda nesse entendimento podemos citar o acórdão da Relação do Porto de 15.04.2009 (www.dgsi.pt) que onde é dito:
“Desconhecendo-se o valor dos bens objeto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, considerando-se ser esse valor diminuto e, em consequência, a tentativa de furto simples”.
E o Ac. da Rel. de Évora de 12-06-2012, no processo nº 330/10,3GDPTM.E1, refere, “Desconhecendo-se o valor dos bens objecto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto e o reenvio do processo para novo julgamento nada alteraria, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.
Este o sentido da orientação que sustentamos.

Assim que o crime de furto tentado é desqualificado.”.
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Pode assim dizer-se que a conduta do arguido se subsume ao tipo legal fundamental objectivo previsto no art. 203.º n.º1 CP.
Ora,
a este propósito dir-se-á que estamos na presença de crime semi-público, ou seja, dependente de queixa, exigida que é pelo nº 3 do art. 203.º CP.
A legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal nestes casos depende de queixa feita pelo titular da mesma (cfr. art. 49º CPP).
No entanto, estatui o disposto no art. 116º nº2 do CP que “O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1ª instância.”.
Para que a desistência produza efeitos tem de ser homologada pela entidade competente, sendo competente para o efeito o presidente do tribunal quando o processo já se encontre na fase de julgamento (art. 51º nº2, 2ª parte CPP).
Caso tal suceda, “a autoridade judiciária competente para a homologação notifica o arguido para, em cinco dias, declarar, sem necessidade de fundamentação, se a ela se opõe”, valendo o silêncio como não oposição (art.51º nº3 CPP).
No caso de crime semi-públicos a intervenção do Ministério Público cessa com a homologação da desistência de queixa (art. 51º nº1).
Ora, no caso dos autos, resulta que a queixosa declarou desistir do procedimento criminal contra o arguido ainda em fase de inquérito (declaração que no entender do Tribunal é irretratável – em face do princípio da preclusão, entendendo-se ser esta a solução que mais se adequa com as regras processuais que enformam um Processo Penal próprio de um Estado de Direito Democrático, como sejam os princípios do processo justo e leal e que são espelhados na protecção da confiança recíproca na actuação processual que deve ser observada por todos os sujeitos processuais), declarando este não se opor a tal desistência, impondo-se, por isso, julgar válida e relevante tal desistência de queixa homologando-a em conformidade no que respeita aos bens de que a mesma é proprietária, sendo que no mais – o mealheiro – não se vê que o titular (ou seu representante legal – art. 113.º n.º1 e 3 CP -) tenha apresentado queixa, carecendo assim o Ministério Público de legitimidade para o procedimento criminal nessa parte, impondo-se em qualquer dos casos a extinção do procedimento criminal.
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Em consequência ficam prejudicadas as demais questões.
(…)”

Passando já para a análise da única questão suscitada

O recurso em apreço versa apenas sobre matéria de direito, posto que o recorrente Ministério Publico, na situação vertente, manifesta-se contra a qualificação jurídico-penal dos factos levada a efeito na sentença recorrida, enquanto os subsumiu ao crime de furto simples. No entender do recorrente a matéria factual dada como provada apenas permite a subsunção no tipo de furto qualificado previsto e punível pelos artigos 203.º, nº1, e 204.º, nº 1-alínea f), do Código Penal, uma vez que não tem lugar a aplicação do disposto o n.º 4 do artigo 204º do mesmo diploma.
Já se viu, pois, que o recorrente não põe em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto, e não se vislumbrando no texto da decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, os quais são de conhecimento oficioso, nem existindo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª instância sobre a matéria de facto.
Avançando.
Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente em relação a esta exclusiva questão suscitada de errada qualificação jurídica dos factos.
O tipo objectivo do crime de furto, previsto no art. 203º, traduz-se em alguém “com ilegítima intenção de apropriação para si ou pura outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios”
O bem jurídico protegido pela incriminação do furto é, para Faria Costa in Comentário, II, a “especial relação de facto sobre a coisa - poder de facto sobre a coisa - tutelando-se, dessa maneira, a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa: como disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica”.
Diverge, porém, a posição actualmente assumida maioritariamente pela doutrina, segundo a qual o bem jurídico tutelado é tão só a propriedade, a detenção só é protegida como emanação da protecção conferida ao direito de propriedade, pois que não distinguem a maioria dos autores a mera detenção como um bem jurídico autónomo protegido pela norma jurídica.
No entanto, embora a detenção ou a relação fáctica de poder entre uma pessoa e uma coisa, não seja o bem jurídico protegido pela incriminação do furto, ela constitui, no entanto, um critério fundamental para determinar a consumação do crime de furto, para determinar quando e como se lesa o direito de propriedade.
Assim, em primeiro, é elemento objectivo do tipo, para além do animal que a coisa subtraída seja móvel e alheia, sendo que a definição desta última (coisa) tem de ir buscar-se aos conceitos de subtracção e de apropriação. Coisa é tudo aquilo que é susceptível de apropriação.
A coisa objecto do furto tem de ser alheia, ou seja. tem de ser uma coisa não pertencente ao autor do furto.
Para que se verifique a subtracção é necessário que o objecto seja deslocado da esfera de domínio de uma pessoa para a esfera de domínio de outra pessoa. Ao que acresce que, a rotura de detenção se tem de dar sem ou contra a vontade do detentor inicial e tem de ser constituída uma nova detenção exclusiva sobre a coisa, que existe sempre que o agente detém o controlo efectivo sobre ela.
Aos elementos objectivos do tipo de furto, acrescem os dois elementos subjectivos o dolo e a intenção de apropriação.
Assim, o crime de furto pode ocorrer na forma mais simples prevista no art. 203º, ou numa forma mais complexa, revestido de elementos laterais ou acidentais que aumentam ou indiciam maior perigosidade do agente, sendo estas circunstâncias agravantes que se encontram enumeradas taxativamente no art. 204º do Código Penal, pois aos elementos que preenchem o tipo de furto, acresce para a verificação do tipo qualificado, in casu, o valor e o agente penetrar em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, vertida na alínea c) do nº 2 do art. 204º do Código Penal.
Deste modo, importa não só que o tipo se consuma num dos locais identificados no tipo incriminador qualificado, mas ainda que se tenha processado pelos meios específicos que o legislador definiu.
Por outro lado, o crime em apreço integra-se na categoria dos crimes materiais – a cuja tipicidade interessa o resultado – condicionado à lesão do património de outrem, pelo que não se pode falar em furto quando não há uma efectiva diminuição do património do lesado.
O valor patrimonial da coisa constitui no dizer o Prof. Faria Costa, ob. citada 44, um elemento implícito do tipo legal de crime de furto.
Se a coisa objecto do crime de furto tem de ter um valor patrimonial, por outro lado, este tem que ultrapassar um limiar mínimo para que a sua protecção enquanto coisa alheia, ascenda à dignidade penal, ibidem.
O tipo legal de crime enunciado no art. 203º do Código Penal exige, para a sua verificação, uma efectiva lesão no património do lesado, devendo necessariamente ter algum valor, embora mínimo, mas não desprezível, de modo a que sua subtracção cause prejuízo à pessoa lesada, cfr. Maia Gonçalves in Código Penal Português, 17ª edição, 674.
Tal entendimento tem subjacente a ideia de que a coisa subtraída deve representar para o dono - senão um valor reduzível a dinheiro - pelo menos uma utilidade, valor de uso, seja qual for, de modo que possa ser considerada como integrante no seu património.
Por seu turno, e conforme já supra se aflorou, a punição do crime de furto está relacionada com o valor do objecto subtraído, o qual determina, quer a qualificação dos factos como de furto simples, de furto qualificado em 1º ou em 2º grau ou de furto simples por desqualificado, quer, as inerentes molduras penais abstractas.
Com efeito, o tipo legal de crime de furto, quanto ao elemento valor da coisa objecto do ilícito, está assim estruturado no Código Penal:
1. Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa (art. 203º, nº1).
2. Quem furtar coisa móvel alheia de valor elevado é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (art. 204º, nº 1 alínea a))
3. Quem furtar coisa móvel alheia de valor consideravelmente elevado é punido com prisão de 2 a 8 anos (art. 204º, nº2 alínea a).
4. Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor (art. 204º, nº4).
5. Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se:
valor diminuto aquele que não exceder 1UC;
valor elevado aquele que exceder 50 UC,s,
valor consideravelmente elevado que exceder 200 Uc,s,
valor qualquer deles, sempre reportado ao momento da prática do facto (art. 202º, alíneas a), b) e c))
Retendo para o que aqui importa decidir que, com a previsão contida no nº 4 do art. 204º, se considera que o comportamento - em princípio, susceptível de ser enquadrado como adequada expressão de qualificação - deve ser degenerado para a integração no crime matriz – o furto simples.
Ou perante um contra tipo, mais uma vez socorrendo-nos dos ensinamentos de Faria Costa in Comentário Conimbricense, ou pressuposto negativo de aplicação da norma incriminadora lhe chama Samson, ou irrefutável contra-indicação contra a gravidade do caso, no dizer de Eser, ambos citados no mesmo local.
Donde, para se afirmar o preenchimento das diversas previsões atinentes ao crime de furto, importa saber qual o valor do objecto subtraído para se incluir no valor elevado ou consideravelmente elevado ou diminuto e assim estar preenchido o tipo de furto qualificado, em 1º e ou 2º grau (no caso de valor elevado ou consideravelmente elevado) ou perante um crime de furto simples (no caso de valor inferior a elevado ou quando existindo outras circunstâncias qualificativas, o valor for diminuto, isto é aquele que não exceder a Unidade de Conta - UC).
No caso em apreço, os factos foram praticados em 2020, ano em que a UC correspondia a €102,00 euros, como ainda sucede na actualidade.
Por facilidade de raciocínio diremos então, que se integram no art. 203º do Código Penal todos as subtracções ilegítimas de coisas alheias cujo valor não seja superior a €102,00.
Ademais, para a verificação do tipo legal de furto qualificado será ainda necessário, a acrescer aos elementos constitutivos do crime de furto simples, matriz, base, tipo, a verificação de uma qualquer das circunstâncias previstas no elenco do nº 1 ou do nº 2 do art. 204º e que o valor da coisa exceda o valor da UC, reportado ao momento da pratica dos factos.
Se o valor da coisa não exceder o valor da UC, não se pode ter como preenchido o tipo legal qualificado, apenas e tão só, o da matriz, referencial, furto simples.
Ora, no que revela para o caso vertente, temos que, que ao arguido foi imputada a prática de um crime subsumível ao disposto no art. 204º, nº 2, al. e) do Código Penal, nos termos do qual “Quem furtar coisa móvel alheia (...) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas (...) é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
O conceito de casa ou lugar fechado, elemento objectivo que integra a agravante da al. e) do n.º 2 do Código Penal, corresponde a um conceito físico, podendo servir para habitação, comércio, indústria, sede de um partido político ou outro fim similar (veja-se) designadamente, Maia Gonçalves, “Código Penal Português – Anotado e Comentado”, Almedina, 17.ª edição, 2005, p. 695).
Por outro lado, o que distingue as circunstâncias agravantes previstas na al. f) do n.º 1 e na al. e) do nº 2, ambos do art. 204º do Código Penal, é o meio de perpetração dos factos, exigindo aquele último normativo, além do mais, que o “acesso” ao lugar seja realizado por meio de arrombamento, escalamento ou chaves falsas.
E, para efeitos desta incriminação, o art. 202º, als. d), e) e f) do Código Penal, oferece-nos as definições de arrombamento, escalamento ou chaves falsas, respectivamente.
Aqui chegados, importa salientar que o desconhecimento sobe o modo como o arguido se introduziu no interior da residência (ponto 2 dos factos provados e als. a) e b) dos factos não provados), sempre nos imporiam a conclusão que a factualidade descrita integra o crime de furto qualificado por via do art. 204º, nº 1, al. f), afastando a punição por via da previsão do art. 204º, nº 2, al. e) do Código Penal, como aliás defende o Recorrente.
Assim, este observa recurso que, aquilo que caracteriza e que justifica a verificação desta agravante qualificativa do furto é o facto de o agente se introduzir ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar.
Mas, para além disso, cumpre analisar se os factos dados como provados apenas permitem a sua subsunção ao crime de furto simples previsto e punido pelo art. 203º do Código Penal como pelo tribunal recorrido foi decidido ou, se andou mal, quando fez a subsunção dos factos provados ao antedito crime, devendo julgar-se provada a prática pelo arguido crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº1 e 204º, nº1, alínea f), do Código Penal, como no recurso é propugnado.
Na decorrência do exposto, está-se indubitavelmente perante um crime de furto simples, quando o valor dos objetos é inferior a elevado, e não concorre qualquer circunstância qualificativa.
No caso que nos ocupa, consta da matéria de facto dada como provada que o arguido, depois de se introduzir na residência de BB dela retirou, levou, fazendo seus os seguintes objectos:- um mealheiro, contendo no seu interior a quantia de €226,00 em numerário (moedas), - uma aliança em ouro,- um colar em ouro com apontamento em pérola branca, - um alfinete de gravata em ouro sem valor apurado (o tribunal a quo não deu como provado que o seu valor ascendesse a €500,00, tão pouco que valessem pelo menos valor superior a uma UC, porém o Ministério Público conformou-se em relação a tal factualidade).
Mais consta dos factos não provados que “d) BB é proprietária do mealheiro, contendo no seu interior a quantia de €226,00 em numerário (moedas) referido em 3”.
Ou seja, o tribunal a quo considerou que o mealheiro que continha a quantia de €226,00, não pertencia a BB, ofendida nos autos e, por não lhe pertencer, não teve em consideração na subsunção dos factos ao direito e, assim decidiu considerar, para efeitos de qualificação jurídica dos factos dados como provados, apenas os objetos de ouro pertencentes a BB, ofendida nos autos, relativamente aos quais não foi apurado o valor e, em consequência, qualificou os factos dados como provados como um crime de furto simples, dado o preenchimento do nº 4 do art. 204º.
Todavia, como bem salienta o recorrente Ministério Público, para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 204.º do Código Penal, “o valor a ter em conta é o valor de todos os bens subtraídos, sendo indiferente que pertençam todos à mesma pessoa ou não. E como o valor dos bens subtraídos foi, no mínimo, o correspondente à mencionada quantia de € 226,00, tal valor não permite desqualificar o crime de furto, ao abrigo do disposto do aludido nº 4, do art. 204º.”
É que o crime de furto consuma-se quando o agente subtrai a coisa da posse do respectivo dono e a coloca na sua própria posse, sendo indiferente se o local onde a coisa se encontrava também pertencia ao dono da coisa. Revela-se absolutamente indiferente- até porque estamos perante crime de natureza patrimonial e não pessoal -, repete-se, que o arguido tenha retirado o objeto do interior de uma habitação que pertence diferente pessoa, pois o único requisito que neste âmbito importa, é que a coisa seja alheia, no sentido que não pertence ao autor do furto, tal como supra se destacou.
A distinção feita na sentença, entre o proprietário da coisa furtada e o do local de onde ela foi retirada é, pois, irrelevante, isto é, saber se as coisas, objeto do furto, pertencem todas à mesma pessoa ou a pessoas diferentes, para efeitos de qualificação do crime de furto, sendo a circunstância agravante do crime o meio de perpetração dos factos.
Nesta conformidade, o tribunal recorrido errou, ao considerar que o arguido praticou um crime de furto simples, previsto e punível pelo art. 203º do Código Penal e, em consequência, por revestir natureza semi-pública, homologou a desistência de queixa e declarou, nessa parte, extinto o procedimento criminal, pois os factos provados permitem a subsunção no tipo legal qualificado de furto a que supra fizemos referência. (art. 204º, nº 1, alínea f)).
Em face de tudo o exposto, procede o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida face à verificada incorrecta qualificação jurídica operada na 1ª instância.
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Consequências jurídicas do crime: a aplicação da sanção/medida de segurança:
Em conformidade, e seguindo a Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão 4/2016 de 21.01.2016 relatado Pela Exma. Sra. Juiz Conselheira Isabel Pais Martins (Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal), cumpre decidir a questão da determinação da sanção.
O recorrente pede que, julgando-se provada a prática pelo arguido AA de factos integradores de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º1 e 204.º, n.º1-alínea f), do Código Penal, se declare o inimputável por causa da anomalia psíquica de que padece, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal; se declare a sua perigosidade por, em face daquela anomalia e da gravidade dos factos por ele praticados, haver razões que fundamentam o receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie; e aplicar-se ao arguido uma medida de segurança.
Vejamos.
Resulta da matéria de facto da decisão recorrida que:
“6. O arguido padece de doença debilidade intelectual severa, anomalia psíquica permanente e irreversível, por força da qual tinha fortemente diminuída a capacidade de avaliar a ilicitude dos factos referidos de 1. a 5. e não era capaz de determinar o seu comportamento de acordo com a avaliação dos factos.
7. As características da doença referida em 6., verificadas na permanente tendência à repetição de comportamentos inapropriados ou ilícitos, fundamentam o receio de que o arguido cometa, ainda que com outras pessoas ou objectos, factos ilícitos típicos da mesma espécie, o que poderá ser substancialmente diminuído mediante o internamento em instituição apropriada, com acompanhamento psiquiátrico permanente e medicamentoso necessário.”
Cumpre por isso, à luz dos factos provados, verificar se se encontram preenchidos os pressupostos legalmente previstos, designadamente os constantes dos arts. 40º, nº 3, e 91º, nº 1, ambos do Código Penal, para aplicação da medida de segurança na presente decisão.
Decorre do disposto no art. 91º, nº1, do Código Penal que “Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.
São pressupostos de imposição da medida de segurança de internamento do agente declarado inimputável em virtude de anomalia psíquica:
a) a prática por parte do agente declarado inimputável de um facto ilícito típico grave;
b) a perigosidade criminal do agente.
Refere Maria João Antunes, in Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica, pág. 463, os artigos 91º n.º1 e 2, 20º n.º1, e 40º, n.º1, do Código Penal devem ser interpretados do seguinte modo: o facto que é pressuposto da imposição da medida de segurança de internamento coincide com o facto do agente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica.
Por sua vez o juízo de inimputabilidade implica uma prova tríplice ou um triângulo probatório cujos lados são: o facto, a anomalia psíquica e o nexo que os junta numa mesma unidade de sentido. A aplicação de uma medida de segurança passa inevitavelmente por um juízo de prognose, que se reputa aliás decisivo e fundamental – o juízo sobre a perigosidade criminal do arguido – cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, pág. 125 e 81.
Retornando ao caso dos autos, atentos os factos dados como provados resulta evidente que o arguido está, relativamente ao crime sub judice, numa situação de inimputabilidade, nos termos do disposto no art. 20º, nº 1 do Código Penal e praticou-o em virtude da sua doença mental.
Preceitua o aludido normativo que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.”
Sucede que tal como se provou, o arguido “padece de doença debilidade intelectual severa, anomalia psíquica permanente e irreversível, por força da qual tinha fortemente diminuída a capacidade de avaliar a ilicitude dos factos referidos de 1. a 5. e não era capaz de determinar o seu comportamento de acordo com a avaliação dos factos”.
Assim sendo, inquestionada se mostra a inimputabilidade do arguido.
Aqui chegados, o internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança depende exclusivamente de uma averiguação conclusiva no sentido de, em virtude da anomalia psíquica, haver fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.
Como nos diz Maria João Antunes, in ob. cit. pág. 473, uma perigosidade específica «cometer outros da mesma espécie» a exigir o estabelecimento de uma ligação de causa e efeito entre a anomalia psíquica e o receio da prática de factos da mesma espécie do facto praticado anteriormente. Assim se confirmando, ao exigir-se que os factos receados sejam da mesma espécie do facto praticado pelo agente inimputável por motivo de anomalia psíquica, que do facto pressuposto é esperada a função de facto comprovativo de perigosidade criminal emergente da anomalia psíquica.
A partir do momento em que, com o auxílio da perícia, se mostrou existir no arguido uma anomalia psíquica determinante da prática do ilícito típico, há a certeza da sua perigosidade – de que já foi perigoso. Dúvidas poderão apenas subsistir quanto à persistência desse estado de perigosidade à data (logicamente posterior) do julgamento. A incerteza residual resume-se então na pergunta: o agente ainda é perigoso ou já deixou de o ser? Pergunta que equivale, praticamente, a esta outra: a doença mental mantém-se? A resposta da perícia como vimos é inequívoca neste particular permitindo concluir pela perigosidade do arguido – cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo», pág. 123 e 167.
Mesmo que outra fosse a conclusão pericial importa reter que a observação de um arguido com o fim de avaliar a sua imputabilidade ou perigosidade por um perito não é definitiva, já que a imputabilidade e a perigosidade têm referentes normativos que só ao juiz cabe interpretar e decidir. É uma tarefa com duas faces e a tarefa do perito constitui apenas uma das faces da mesma realidade. A perícia tem um carácter instrumental relativamente à boa decisão forense: pretende-se do perito médico-legal que forneça a base científica imprescindível para que o julgador possa decidir pela verificação ou não, in casu, dos elementos definitórios da perigosidade normativa. Pois, o perito pode dizer que o arguido é perigoso porque existe grande probabilidade de atentar contra a sua própria vida e o juiz desvalorizar esse juízo, por isso não configurar sequer ilícito penal.
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, in “As consequências jurídicas do crime”, pág. 446, a matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade: uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosos constituam uma proteção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente. Ora, o recurso à perícia, à prognose clínica é, depois do que fica dito, útil mas em alguns casos insuficiente para o tribunal que tem de ajuizar quanto à perigosidade. Insuficiente não apenas no sentido de que a aplicação do critério normativo de perigosidade cabe sempre, em última instância ao julgador, mas igualmente insuficiente no sentido de não lhe poder fornecer uma base de facto com a solidez desejada e necessária para sobre ela apoiar um juízo convicto. Por outras palavras: a prognose clínica não constituirá (em muitas ocasiões) prova acabada da perigosidade - cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo», pág. 101, 102.
Ora, no caso em apreciação, é inquestionável atenta a matéria fáctica apurada (com destaque para os factos 7., 11., 12., 13., 19. E 20.) que a perigosidade do arguido se mantém, dadas as características da sua doença mental, no sentido de que se nada for feito, é expectável que no futuro venha a cometer outros factos ilícito-típicos
Assim sendo, porque existe o risco de repetição de comportamentos que preencham ilícitos típicos da mesma espécie exige-se ainda a necessidade de uma medida, pois o risco de «reincidência» não deve ser suportado pela sociedade, mas por conta do agente perigoso. Como nos movemos no plano da estrita legalidade e tipicidade penal entra aqui o princípio da proporcionalidade e da menor intervenção possível para a escolha da medida.
Ou seja, não basta a perigosidade para a imposição automática de uma medida de segurança; mas exige-se ainda a verificação da necessidade da medida e que esta seja proporcional ao ilícito praticado e à personalidade do arguido, tal como decorre do disposto no art. 40º, nº do Código Penal (“A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.)
De acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 446-451 “O principio da proporcionalidade exige que entre as medidas de segurança disponíveis deve o julgador aplicar a que causar menor gravame ao delinquente. Assim, uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente. Deste modo, deve o julgador averiguar, antes de tudo, se a aplicação no caso de uma certa medida de segurança serve concretamente a realização dos fins a que ela se destina, ou seja, a finalidade primária de socialização do agente e a finalidade secundária de segurança da sociedade face à perigosidade comprovada. De seguida, deve o tribunal averiguar se, no caso, a aplicação de uma medida menos gravosa não será suficiente e eficaz relativamente à prossecução dos fins apontados. Finalmente, deverá o tribunal analisar se a aplicação da medida de segurança, apesar de adequada e necessária, não representa para o agente uma carga desajustada, excessiva e desproporcionada face à gravidade do ilícito praticado e ao perigo de repetição de factos da mesma espécie. Quanto a este último aspeto, isto é, quanto à proporcionalidade com o facto ilícito típico praticado, do que se trata é analisar se a medida de segurança escolhida não se revela desproporcional face à gravidade do ilícito, isto é, não deve ser aplicada uma medida de segurança se o ilícito-típico cometido apresentar do ponto de vista objectivo ou subjectivo do ilícito, diminuta gravidade ou se revelar mesmo de natureza bagatelar”.
A finalidade da prevenção especial ganha, por via disso, uma dupla função: função de segurança e protecção da sociedade e uma função de socialização do agente.
“Com a sua aplicação pretende-se evitar o cometimento de novos ilícitos típicos por parte daquele concreto agente e obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, à prática de factos ilícitos futuros através de uma actuação especial-preventiva sobre o agente perigoso” – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., p.424.
Em suma, no caso vertente, podemos afirmar com segurança que o arguido deve ser declarado inimputável, porquanto, no momento da prática dos factos, apresentava doença debilidade intelectual severa, anomalia psíquica permanente e irreversível, por força da qual tinha fortemente diminuída a capacidade de avaliar a ilicitude dos factos referidos de 1. a 5. e não era capaz de determinar o seu comportamento de acordo com a avaliação dos factos.
Para além disso, a permanente tendência à repetição de comportamentos inapropriados ou ilícitos, fundamentam o receio de que o arguido cometa, ainda que com outras pessoas ou objectos, factos ilícitos típicos da mesma espécie. Donde, como existe o comprovado risco de voltar a cometer atos semelhantes aos descritos, ou seja, reincidir em comportamentos da mesma natureza, não poderemos deixar de considerar o mesmo perigoso.
A comprovada atuação do arguido preencheu como se viu o tipo legal qualificado de furto p. e p. no art. 204º, nº 1, alínea f)).
Por sua vez, o arguido já foi sujeito a medida de segurança de internamento por 7 anos e 4 meses, suspensa na execução por igual período, subordinada a regime de prova e obrigação de o arguido manter acompanhamento e tratamento psiquiátrico. (Por sentença proferida em 08.01.2014, transitada em 15.06.2015 no âmbito do P. 316/11.0GAVFR do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, pela prática de 2 crimes(s) de furto qualificado na forma tentada (art.ºs 203.º, n.º 1 e 2 e 204.º, n.º 2, al. e), em conjugação com art.ºs 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, 73.º e 202.º, als. e) e f), todos do CP), praticados em 2011/10/17.
O que quer dizer que praticou o crime em causa nestes autos (04/02/2020) no período da antedita suspensão.
Existe, como se evidenciou supra probabilidade de o arguido reincidir em ilícitos do tipo como o descrito nos autos, “o que poderá ser substancialmente diminuído mediante o internamento em instituição apropriada, com acompanhamento psiquiátrico permanente e medicamentoso necessário”.
Tudo visto, somos forçados a concluir pelo fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos típicos igualmente graves, caso não seja determinada uma medida de segurança adequada.
Posto isto, os factos em apreço preenchem a previsão do art. 91º, do Código Penal, que manda aplicar ao arguido uma medida de internamento, a qual tendo em conta os factos por este praticados:
- não tem qualquer duração mínima, por não se verificar a previsão do nº2 do artigo 91° do Código Penal;
- tem como limite máximo o correspondente ao limite máximo da moldura penal do crime cometido, conforme previsto no art. 92°, nº2, do Código Penal.
Contudo, ressalvado o disposto no art. 91º, nº 2, quanto a factos correspondentes a crimes contra as pessoas ou crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, dispõe o artigo 92º, nº 1, que o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem.
No caso concreto, considerando não se tratar de nenhum dos crimes contra as pessoas ou crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, a duração do internamento, sem limite mínimo, tem a duração máxima de 5 (cinco) anos, por ser esse o limite máximo da punição abstrata correspondente ao crime (crime de furto qualificado p. p. pelo art. 204º, nº1, al.f), conjugado com o art 92º, nº 2, do Código Penal).
Porém, só deve ser aplicada medida de segurança se a mesma for proporcionada à gravidade do facto praticado e assim o exigir a perigosidade do agente, enquanto fundado receio de que o agente venha a cometer factos da mesma espécie, em respeito pelos princípios da necessidade ou exigibilidade, da adequação ou idoneidade e da proporcionalidade ou racionalidade.
Ou seja, para que possa ser decretado o internamento de inimputável é necessário que o facto praticado seja grave, por forma a comprometer gravemente a segurança pública e que haja fundado receio relativo à perigosidade, ou seja, fundado receio de que agente volte a praticar factos jurídicos da mesma espécie (art. 91º, nº 1)
A gravidade dos factos é pois, no caso em apreço, inquestionável, e justifica assim a aplicação de uma medida de segurança, o internamento em estabelecimento de tratamento pelo período máximo de 5 (cinco) anos.
Mais se decide que tal internamento seja efectivo e não haja lugar suspensão da medida de internamento, desde logo atendendo a que praticou o crime em causa nestes autos (04/02/2020) no período da antedita suspensão.
Efectivamente, à luz do art. 98°, nº1, do Código Penal “O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida”.
Acrescenta, porém, o nº 2 do mesmo preceito legal que, no caso previsto no nº 2 do artigo 91º, a suspensão só pode ter lugar verificadas as condições aí enunciadas, ou seja, se “a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”.
Permite-se, dessa forma, que através de tal suspensão, o agente inimputável tenha a possibilidade de gozar de um regime não institucional ou extra muros que potencie um tratamento para os seus males sem o peso da clausura, que nem sempre, como é sabido conduz a resultados satisfatórios.
Ao contrário do que acontece com a suspensão da pena - em que funciona uma verdadeira coação psicológica sobre o arguido sujeitando-o a uma pressão no sentido de não voltar a delinquir - na suspensão da medida de segurança de internamento não se usa, como é óbvio, o seu livre arbítrio, tentando-se apenas influenciá-lo para um tratamento que impeça a reiteração de novos factos ilícitos-típicos graves.
No caso vertente, parece-nos evidente que não estão reunidos todos os requisitos legais que permitem lançar mão da suspensão do internamento, inexistindo um juízo de prognose favorável de se que seja razoável esperar da suspensão, ainda que condicionada ao tratamento em liberdade com consultas médicas e toma da medicação prescrita, a eliminação da perigosidade criminal e consequente proteção dos bens jurídico-penais, finalidades desta medida (art. 98°, nºs 1 e 3, do Código Penal).
No passado isso sucedeu e não surtiu efeito.
Por conseguinte, determina-se a aplicação de uma medida de segurança, o internamento efectivo em estabelecimento de tratamento pelo período máximo de 5 (anos) anos.

3. DECISÃO:

Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
- julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e revogar a decisão recorrida face à verificada incorrecta qualificação jurídica operada na 1ª instância que se altera, mostrando-se o arguido AA incurso na prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º n.º 1 al. f) do Código Penal
- Mais se declara o arguido AA inimputável por causa da anomalia psíquica de que padece, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal;
- Declara-se a perigosidade do arguido AA, por, em face daquela anomalia e da gravidade dos factos por ele praticados, haver razões que fundamentam o receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie; e
- Aplica-se ao arguido AA, uma medida de segurança, o internamento efectivo em estabelecimento de tratamento pelo período máximo de 5 (cinco) anos.
Sem custas, por não devidas.
*
Notifique.

Porto, 08 de junho de 2022
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
Borges Martins

Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria, e pelos Meritíssimos Juízes Presidente e Adjunto.