FALTA DE PROMOÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
INQUÉRITO
NULIDADE
Sumário

I - Subsistindo nos autos de inquérito elementos quanto ao crime de perseguição previsto e punido pelo art.154º-A do CP, sem que o MP se haja pronunciado nos termos dos arts.48º e 276º do CPP comete a nulidade insanável de falta de promoção prevista no art.119º alínea b) do CPP.
II - O conhecimento dessa nulidade em fase de instrução e em sede de não pronúncia de um crime de natureza particular, determina a oportuna remessa dos autos para inquérito para suprimento da nulidade.

Texto Integral

Proc.nº331/20.3GCSTS.P1

X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos autos de processo de inquérito havia sido proferida acusação particular pelo assistente AA contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p e p pelo art.1810 do Cód. Penal. O arguido requereu abertura de instrução, a qual sendo admitida no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos da Comarca do Tribunal Judicial do Porto, veio a correr os seus termos, culminando com o despacho de não pronúncia quanto ao arguido relativamente à discutida responsabilidade pelos delitos de injúria, determinando-se o arquivamento dos autos nesta parte.
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Não se conformando com a decisão de não pronúncia o assistente AA veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
1. O dever de concretização narrativa a que alude o artigo 283º/3 b) do CPP subdivide-se em duas partes: uma primeira, referente à narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, e uma segunda, onde se incluem as circunstâncias de tempo e de lugar, cuja falta não importa necessariamente a nulidade da acusação particular, uma vez que o legislador admite que nem sempre é possível concretizar a acusação no tempo e no espaço (vide, neste sentido, a utilização da expressão “se possível”). No caso sub judice, a acusação particular só não se encontra melhor concretizada porque são já vários os episódios que envolvem Recorrente, enquanto ofendido, Recorrido e a irmã deste, vizinha do Recorrente, com quem o Recorrido vivia e que, no corrente ano de 2021, foi condenada a indemnizar o aqui Recorrente por lhe ter dirigido expressões injuriosas.
2. No despacho de que ora se recorre, o tribunal a quo fez uma incompleta descrição prévia dos factos alegados no requerimento instrutório que considerava suficiente e insuficientemente indiciados, incorrendo em clara omissão de pronúncia, bem como não apreciou corretamente alguns factos descritos no requerimento instrutório.
3. O tribunal a quo ignorou a confissão do Recorrido de que, no dia 12/07/2020, quando foi visitar a sua irmã, dirigiu as seguintes palavras ao Recorrente: “Ei, que saudades Bobby! Caralho! Já tinha saudades, Bobby! Caralho, isto até esta cheio de teias de aranha. Caralho. Foda-se. Saudades. Ah, caralho! Força aí, Bobby. Saudades. No fim do ano matas as saudades no Tribunal ó Bobby. É Bobby! Força aí. Força!”, expressões que, além de resultarem provadas da gravação junta com o requerimento instrutório, o Recorrido confessou, em sede de debate instrutório, terem sido proferidas por si e dirigidas ao Recorrente, depois de se aperceber da presença deste no quintal.
4. Se o tribunal a quo fizesse uma completa descrição dos factos descritos no requerimento instrutório, certamente teria considerado suficientemente indiciados que, quando o Recorrente se encontrava no seu quintal, o Recorrido, num tom de voz agressivo e sem que nada o justificasse, dirigiu-lhe as expressões injuriosas supra citadas; nos dias anteriores à apresentação da queixa pelo Recorrente, o Recorrido injuriou-o com as expressões mencionadas supra, facto também confessado pelo próprio, uma vez que é expressamente referido, no requerimento instrutório, que essas expressões foram proferidas pelo Recorrido no dia 12/07/2020, ou seja, precisamente um dia antes de o Recorrente apresentar queixa, em 13/07/2020; e que até da rua e por quem nela passasse eram percetíveis as palavras que o Recorrido dirigiu ao Recorrente, facto que se infere da própria gravação junta pelo Recorrido, onde se percebe que este se encontrava na rua e dirigiu tais expressões ao Recorrente em tom alto e perfeitamente percetível por quem na rua passasse.
5. Em consequência, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, nomeadamente erro na apreciação da prova, quanto às alíneas a), d), e), f), g) dos factos não provados, uma vez que, em face da confissão do Recorrido e dos concretos meios probatórios já existentes no inquérito, tais factos deveriam ter sido considerados indiciariamente provados e o Recorrido pronunciado.
6. A existência de um ambiente de conflito, alegada no requerimento instrutório, não legitima as expressões proferidas pelo Recorrido contra o Recorrente, não sendo a sua conduta equiparável a uma situação de legítima defesa ou de estado de necessidade, sendo certo que, em rigor, a valorar a existência desse ambiente de conflitualidade, tal só poderia ser no sentido de que as expressões dirigidas pelo Recorrido contra o Recorrente visaram mesmo ofendê-lo na sua honra, como efetivamente sucedeu (vide, neste preciso sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 18/11/2014, proferido no âmbito do processo nº 32/12.6GEABT.E1, disponível in www.dgsi.pt), pelo que, a alegada existência de um ambiente de conflitualidade não prejudica o fim visado pelo Recorrido com a sua atuação, a qual foi livre, consciente e voluntária: apodar e denegrir o Recorrente na sua honra e bom nome, verificando-se erro na apreciação desse facto por parte do tribunal a quo.
7. No que concerne à gravação junta aos autos pelo Recorrido, a apreciação/valoração probatória do tribunal a quo também não foi, salvo melhor entendimento, a mais correta, ora por se tratar de uma gravação feita pelo Arguido e, como tal, sujeita às edições do mesmo, em benefício do seu interesse e posição processual (é manifestamente ingénuo acreditar que o Recorrido juntaria aos autos a gravação original, sem cortar as partes que comprometessem a sua defesa), ora porque, mesmo assim, a gravação até acaba por apresentar valia probatória favorável às alegações do Recorrente, uma vez que serve de confissão de que o Recorrido efetivamente lhe dirigiu, pelo menos, algumas das expressões que lhe são imputadas, dela se inferindo que, no espaço de 2 minutos (duração da gravação), o Recorrido injuria 5 vezes o Recorrente, tratando-o por “Bobby”.
8. O tribunal a quo desvaloriza injustificadamente os depoimentos do Recorrente e da sua esposa, porque “não provêm naturalmente de terceira pessoa distanciada do conflito e que pudessem por isso ser propiciadores de um maior conforto na decisão”, para, depois, em sentido contrário, valorizar a prova testemunhal do Recorrido, a qual também não resulta de terceira pessoa distanciada do conflito – na verdade, basta ter presente que os depoimentos foram prestados pela namorada, enteada e irmã do Recorrido (esta recentemente condenada por injuriar o Recorrente), pelo que as testemunhas arroladas pelo Recorrido até propiciam bem menos conforto decisório; sem prejuízo de os depoimentos do Recorrente e da sua esposa, agora desvalorizados pelo tribunal a quo, terem merecido total crédito de outro tribunal, há menos de um ano atrás, em contexto em nada diferente do caso sub judice – estava em causa, igualmente, a prática de um crime de injúria, por expressões proferidas pela irmã do aqui Recorrido contra o ora Recorrente.
9. A aferição da suficiência ou insuficiência de indícios depende da convicção que é formada pelo tribunal, sendo certo que, in casu, o Recorrido confessou expressamente ter dirigido, pelo menos, a expressão “Bobby” contra o Recorrente, confissão que, conjugada com a convicção que o tribunal a quo dela consegue retirar, deveria ter sido valorada, considerando-se esse facto provado.
10. O despacho de não pronúncia assume a natureza de ato decisório e, embora não esteja adstrito aos requisitos de fundamentação mais apertados de uma sentença, sobre os factos tem de incidir um raciocínio lógico, que consiste justamente numa operação de avaliação da aptidão dos mesmos para a sua integração na norma ou normas de conteúdo geral e abstrato, de forma a decidir se preenchem ou não as definições nela contidas.
11. Em linguagem comum, o dever do juiz é subsumir os factos ao direito, dizendo: os factos são estes, a norma diz isto, logo servem ou não servem à adequação da norma, exercício de subsunção que não se verificou no despacho de não pronúncia, no qual o tribunal a quo se limitou a rotular como “grosseiras” e “provocatórias” as expressões que o Recorrido confessou proferir, sem proceder à sua necessária concretização e subsunção jurídico-penal.
12. O dever de fundamentação dos atos decisórios, previsto no artigo 97º, nº 5 do CPP, visa dar a conhecer aos destinatários da decisão a justiça e correção do decidido, permitindo conhecer o processo lógico e racional que subjaz a tal decisão e, consequentemente, o exercício criterioso do direito ao recurso, pois só conhecendo devidamente a decisão e os seus fundamentos poderá rebater-se o decidido (vide Acórdão nº 59/2006 do Tribunal Constitucional), o que significa que a ausência de fundamentação ou uma fundamentação insuficiente ou gravosamente deficiente não assegurará as garantias de defesa, pois, desconhecendo-se os fundamentos que suportam a decisão, não poderão os mesmos ser analisados, nem aceites ou rebatidos.
13. Assumindo carácter manifestamente decisório, que contenderá com direitos e garantias individuais, dúvidas não existem de que o despacho de não pronúncia deverá ser fundamentado, algo que, no caso sub judice, não sucedeu, quer em termos de matéria de facto, atenta a incompleta descrição e valoração dos factos descritos no requerimento instrutório, quer em termos de matéria de direito, atenta a inexistente subsunção dos factos à norma do artigo 181º, nº 1, do Código Penal, sendo insuficiente o tribunal a quo caracterizar como “grosseiras” e “provocatórias” as expressões que o Recorrido confessou proferir, sem sequer se pronunciar sobre se tais expressões preenchem ou não o elemento objetivo do crime de injúria e, em caso negativo, quais as razões que sustentam tal entendimento.
14. O bem jurídico protegido no crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal, é a honra, que assume no ordenamento jurídico português um cariz complexo, incluindo quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na dignidade da pessoa humana, quer a própria reputação ou consideração exterior (vide Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, p. 607), pelo que, o tipo objetivo deste ilícito assenta na imputação direta à vítima de factos ou juízos desonrosos, ou seja, ofensivos do bem jurídico protegido por esta norma (a honra), enquanto o tipo subjetivo exige a prática dolosa dessa infração.
15. No caso em apreço, resulta provado por confissão do Recorrido que este apelidou repetitivamente o Recorrente de “Bobby”, nome comummente utilizado como sinónimo de “cão”, sendo que vexata quaestio passa por saber se pelo menos essa expressão verbal era suscetível de ofender o Recorrente na sua honra, ou seja, se pode ser subsumir-se esse facto na norma do artigo 181º, nº 1 do Código Penal.
16. No que concerne ao tipo objetivo do crime de injúria, a jurisprudência tem considerado objetivamente injuriosas expressões que, salvo melhor opinião, até se afiguram bem menos ofensivas da honra do que aquelas que o Recorrido confessou proferir. Como exemplo, nem sequer precisamos de um grande distanciamento temporal e pessoal do caso em apreço, uma vez que podemos recuperar a sentença onde a irmã do Recorrido foi condenada por injuriar o Recorrente, onde estavam em causa expressões como “vai-te tratar” e “velho maluco”, as quais foram consideradas objetivamente injuriosas pelo tribunal.
17. Para o Tribunal da Relação de Évora, “a utilização pelo arguido da expressão “idiota”, porque incorpora um juízo sobre a sanidade mental da assistente, que repete por diversas vezes, reforçando a intensidade do dolo, não pode deixar de se entender como ofensiva da honra e consideração devidas à assistente, na medida em que transmite um juízo negativo sobre a pessoa visada e sobre a sua reputação, como mãe, como pessoa e, até, como profissional” (vide acórdão desse Tribunal, de 18/11/2014, proferido no âmbito do processo nº 32/12.6GEABT.E1, disponível in www.dgsi.pt).
18. Na perspetiva de distinguir a injúria da mera deselegância, ato de mau gosto, palavras ou gestos que, embora reprováveis, não atingiam o patamar da relevância e dignidade penal, na vigência do Código Penal de 1886 havia quem entendesse que a verificação do crime exigia a verificação do dolo específico, isto é, o animus injuriandi, ao passo que a doutrina mais generalizada e a jurisprudência que vinha a afirmar-se como dominante nessa época já entendiam ser apenas necessário que o agente quisesse com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou previsse essa possibilidade, de forma que essa conduta pudesse ser-lhe imputada dolosamente.
19. A entrada em vigor do Código Penal de 1982, diploma vigente até ao dia de hoje, veio colocar termo à polémica, deixando de prever no tipo objetivo do crime de injúria qualquer circunstância específica de natureza subjetiva que exija uma específica direção da vontade ou ânimo injurioso (vide, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/10/2018, proferido no âmbito do processo nº 239/16.7GAVZL.C1), pelo que, hodiernamente, nos crimes de difamação e injúria é pacífico não ser exigido qualquer dolo específico ou elemento especial do tipo subjetivo que se traduza no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, admitindo os respetivos tipos legais qualquer das formas de dolo previstas no artigo 14º do Código Penal, incluindo o dolo eventual (assim decidiu o Tribunal da Relação de Évora, em 05/03/2013, através de acórdão proferido no âmbito do processo nº 5689/11.2TDLSB.E1).
20. In casu, o Recorrido conhecia as circunstâncias em que atuava (tanto que até gravou as ofensas, fazendo-o em espaço público) e quis agir da forma descrita (tanto que repete a expressão “Bobby” por cinco vezes, no espaço de dois minutos), estando ciente de que, com a sua conduta, ofendia a honra do Recorrente (pessoa de idade e com elevada autoridade moral) – até porque o Recorrido sabia que, aquando das expressões que a usa irmã dirigiu ao Recorrente, este já se havia sentido profundamente ofendido na sua honra, conhecimento de facto que nem por isso impediu o Recorrido de apodar o Recorrente – e infringia a lei, não demonstrando qualquer arrependimento em sede de debate instrutório.
21. Perante os elementos de prova recolhidos nas fases de inquérito e instrução e os factos não descritos no despacho recorrido, podemos considerar que existem fortes indícios de que o Recorrido incorreu na pratica de um crime de injúria, verificando-se o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo deste ilícito criminal, resultando cabalmente provado e suficientemente indiciado, por confissão do Recorrido, que, pelo menos, no dia 12/07/2020, este último dirigiu-se à casa da sua irmã e, apercebendo-se da presença do Recorrente, dirigiu-lhe as seguintes expressões:
Ei, que saudades Bobby!
“Caralho! Já tinha saudades, Bobby!
“Caralho, isto até esta cheio de teias de aranha. Caralho. Foda-se. Saudades.
Ah, caralho! Força aí, Bobby.
“Saudades. No fim do ano matas as saudades no Tribunal ó Bobby.
“É Bobby! Força aí. Força!.”
22. Quando existem indícios passíveis de pronúncia relativamente a alguns factos e, simultaneamente, indícios insuficientes quanto a outros factos, como se admite ocorrer na situação em apreço, deve ser proferido um despacho “misto”, através do qual se pronuncia o Arguido quanto a alguns factos e não se pronuncia em relação a outros.
23. Se o tribunal a quo tivesse valorado devidamente a confissão do Recorrido constataria que existem indícios suficientes para que o mesmo fosse pronunciado pelo crime de injúria, quanto aos factos confessados, uma vez que as expressões que dirigiu ao Recorrente (maxime a repetida expressão “Bobby”) são adequadas a subsumir-se na norma do artigo 181º, nº 1 do Código Penal e, por consequência, a probabilidade de condenação é maior do que a possibilidade de absolvição.
24. Porém, apesar de existir, nos presentes autos, prova suficiente para levar o Recorrido a julgamento, onde deveria ser julgado pela prática desse crime, o tribunal a quo proferiu despacho de não pronúncia, violando assim, entre outros, os artigos 307º e 308º, do CPP e o artigo 205º da CRP.
25. Neste sentido, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o Recorrido pela prática do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, remetendo-se os autos para a fase de julgamento.

Termos em que a douta decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o Recorrido pela prática do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal, remetendo-se os autos para a fase de julgamento, com o que será feita justiça.
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O Digno Procurador apresentou contra-motivação, sumariando da seguinte forma:
O assistente deduziu acusação particular contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p e p pelo art.1810 do Cód. Penal, por este, entre os meses de Janeiro e Julho de 2020 ter proferido as seguintes expressões: "Ainda não morreste Covid-19?", Boby, assobias bem! Vais te foder! Vai preparando as lecas que, no final do ano, vais-te foder! E "cabrão" e por, nos dias anteriores a 13/07/2020, ter dito: "Ó Covid, estás com saudades minhas?"
O MP acompanhou a acusação particular por entender que os factos estavam suficientemente indiciados com base nas declarações do assistente e da sua mulher.
Apesar disso, já em sede de inquérito, o arguido negou e esclareceu que já não era vizinho do assistente (conforme alegado na acusação particular) desde finais de Fevereiro de 2020.
Não conformado com a acusação que foi deduzida contra si, o arguido requereu a abertura de instrução, tendo arrolado como suas testemunhas, entre outras, as abaixo indicadas que foram ouvidas pelo Tribunal:
- CC, a sua irmã que é vizinha do assistente e com quem viveu até ir morar com a sua companheira (que em síntese esclareceu que o seu irmão mudou de casa para ir viver com a companheira, em Fevereiro de 2020 e que no período do confinamento o mesmo nunca a visitou; negou que o seu irmão fizesse barulhos e disse que nunca o ouviu insultar o vizinho);
- DD, companheira do arguido, (que disse que após o confinamento, em Julho de 2020, foi a primeira vez, que ela e o seu companheiro foram a casa da sua cunhada e que, nessa altura o arguido saiu de casa para ir à garagem e ouviu aquele dizer: "Ó Boby! Tens saudades minhas?")
O arguido requereu a junção aos autos de uma gravação onde se ouve apenas as expressões "Ó Boby! Tens saudades minhas?", o que foi deferido pelo MM0 JIC.
O MMº Juiz a quo proferiu despacho de não pronúncia por considerar que não tinham ficado suficientemente indiciados os factos descritos na acusação, uma vez que que testemunhas ouvidas em sede de instrução negaram que o arguido continuasse a ser vizinho do assistente, desde finais de Fevereiro de 2020 e que, depois disso, se deslocasse muitas vezes à antiga morada e, ainda, pelo facto de no inquérito, o assistente e a sua mulher não terem conseguido concretizado no tempo as eventuais expressões insultuosas proferidas pelo arguido.
Não conformado, o assistente recorreu do despacho de não pronúncia, alegando em síntese:
- que a acusação particular não era nula;
- que tinha ficado suficiente indiciado que, no dia 12/07/2020, o arguido se dirigiu para o assistente, chamando-lhe Boby;
- que o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento, nomeadamente, erro da apreciação da prova;
- que o despacho de não pronúncia não está fundamentado;
- que a expressão " Boby" é um termo que preenche o crime de injúria, p e p pelo art. 181° do Cód. Penal.
Apreciando o recurso é patente que a acusação particular não foi declarada nula.
O que se entendeu é que a falta de concretização no tempo das expressões descritas em 4, 5 e 6 da acusação particular e o facto de se ter demonstrado que o arguido não é vizinho do assistente desde Fevereiro de 2020 e que visitou pela primeira vez, em Julho de 2020, a irmã, retiram a maior probabilidade da acusação ser dada como provada.
Também é manifesto que as nulidades das sentenças não são aplicáveis no caso em apreço mas apenas as nulidades previstas no art. 283°, n° 3 do CPP, por força do disposto no art. 308°, n° 2 do CPP e a nulidade prevista no art. 309° do Cód. Penal.
Entende-se, também, que o despacho de não pronúncia está fundamentado.
Resta saber se este despacho violou o disposto no art. 307° e 308° e o art. 205° da CRP.
Para se proferir despacho de pronúncia torna-se necessário considerar mais provável a condenação do arguido do que a sua absolvição.
Ora, se a versão dos acontecimentos descritos na acusação particular é confirmada pelo depoimento do assistente e da sua mulher, os depoimentos destes são infirmados pelas declarações do arguido e pelo depoimento da irmã e pela companheira do arguido.
Importa, ainda, verificar que o episódio ocorrido no dia 12/07/2020, aparentemente coincidente com a gravação que o arguido apresento e com o depoimento prestado pela companheira do arguido não coincide com o texto da acusação particular, designadamente no ponto 7o da acusação.
Para se dar como suficientemente indiciado o que o recorrente pretende (melhor descrito no ponto 21 das conclusões do recurso) teria de ser comunicado à defesa uma alteração não substancial de factos, o que não foi feito requerido nem efectuado oficiosamente.
Para além disso, para ser proferido despacho de pronúncia tinha de se considerar como suficiente para preencher o crime de injúria, o facto de o arguido apelidar o assistente de "Boby".
Ora, a jurisprudência tem entendido que a mera verbalização de palavras de obscenas, de má educação, são absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal." ( cfr. Acs. da Relação do Porto, de 27.04.2016, de 25.06.2003, de 19.04.2016, de 12.06.02 e de 19.12.2007 e da Relação de Coimbra de 06.01.2010, todos disponíveis em www.dgsi.pt.).
Concluindo:
Para se dar como suficientemente indiciados os factos descritos na acusação particular, no seu todo, seria necessário dar mais credibilidade à versão apresentada pelo assistente, pois, salvo melhor opinião, mesmo comunicando-se a alteração não substancial dos factos, o crime de injúrias não fica preenchido pelo facto de o arguido apelidar o assistente de Boby.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso, Fazendo-se a costumada Justiça
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto por matéria de Direito com diversa avaliação do mérito dos indícios com revogação da decisão e sua substituição por decisão de pronúncia.
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Do enquadramento dos factos.
Do despacho recorrido consta em síntese:
“O Assistente AA, como tal admitido a fls. 26, deduziu acusação particular a fls. 69 e seguintes contra o Arguido
BB, solteiro, nascido a .../.../1972, natural de França, filho de EE e de pai desconhecido, titular do cartão de cidadão nº ... e residente na Avenida ..., ... Trofa, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, previsto pelo art. 181º/1 do Código Penal.
O Ministério Público acompanhou essa acusação particular (fls. 77).
Inconformado, requereu o Arguido a fls. 89 e seguintes a abertura de instrução, alegando em síntese que não praticou os factos de que se acha acusado e pugnando por isso pela prolação de um despacho de não pronúncia.
Distribuídos os autos para Instrução, foi esta admitida e declarada aberta por despacho de fls. 109.
Em sede de Instrução foram ouvidas quatro testemunhas e realizou-se o debate instrutório.
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Não há questões prévias a apreciar.
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É no essencial apenas uma, em síntese, a problemática que importa ponderar nesta fase, que é esta: se há ou não indícios suficientes da prática pelo Arguido dos factos que lhe são imputados pela acusação particular e, na afirmativa, se tais factos configuram a prática do crime de injúrias imputado ao Arguido.
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Colocando-se-nos problemas ao nível da matéria de facto, cumpre começar por precisar o critério de análise da prova que seguimos, para o que se justifica sublinhar que a instrução é uma fase processual que em geral «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286º/1 do Código de Processo Penal - CPP). Importará por isso apurar se até ao encerramento da instrução se encontram ou não «recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança» (art. 308º/1 do CPP).
O problema que naturalmente se nos põe é então o de saber o que vem a ser isto de «indícios suficientes», que o legislador refere genericamente em dado passo como existindo, «sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança» (art. 283º/2 do CPP).
Fazendo uma brevíssima exposição sobre as alternativas existentes a este nível, dir-se-á o seguinte:
- uma primeira posição defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade de futura condenação em julgamento, abordagem esta que rejeitamos prontamente, por um lado por contrariar o elemento literal da lei, visto que esta não fala apenas em «indícios», mas antes em «indícios suficientes», o que sugere um grau de exigência superior, e por outro lado porque contraria ainda o princípio da presunção de inocência do arguido (art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa), particularmente na vertente do tratamento processual a conferir-lhe, na medida em que o acto de submissão de alguém a julgamento não é inócuo, devendo portanto ter na base uma indiciação efectiva, e não uma possibilidade como que teórica de condenação ulterior;
- uma segunda posição, que entendemos ser excessivamente exigente, tendo em vista a fase processual em que nos encontramos e a finalidade da Instrução, cuja decisão apenas visa confirmar ou infirmar o juízo emitido pelo Ministério Público no despacho de encerramento do Inquérito, posição essa que advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, falando-se aqui de «possibilidade particularmente qualificada» ou de «probabilidade elevada» de condenação;
- e uma terceira posição, conhecida como «teoria da probabilidade dominante», que temos hoje por generalizadamente difundida e seguida, e a que também nós aderimos, que considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição (sobre esta matéria vide, por todos, o Ac. da RP de 07/12/2016, relatado por Manuel Soares, in www.dgsi.pt e a doutrina e a jurisprudência nele citadas).
Assentemos pois nesta ideia: para termos um facto incriminador como suficientemente indiciado não exigimos a «mera possibilidade» de ele vir a ser dado como provado em julgamento, mas também não exigimos que exista uma «forte probabilidade» de tal suceder – o que exigimos é que seja maior a probabilidade de vir a dar-se o facto como provado que a de o mesmo vir a ser dado como não provado.
Será então este o caso?

Parece-nos que não; vejamos porquê. *
É indiscutível, pois toda a prova disponível aponta convergentemente nesse sentido, que existe uma relação de tensão e conflito entre Assistente e Arguido, desde há momento não concretamente determinado.
Basta atentar nas declarações de um e outro e nas filmagens que um e outro fizeram juntar aos autos:
- o Assistente fê-lo a fls. 13, percebendo-se, da visualização da gravação, que ele próprio filmava a zona por onde viria passar o Arguido e, à passagem efectiva deste, filma-o abertamente, sendo que o próprio Arguido está também ele munido de um telemóvel e aponta-o a quem o filmava, aparentemente ele também encetando reflexamente uma filmagem – e atente-se até na particularidade de se poder perceber que o Assistente (presumindo nós ser ele o autor da filmagem junta), à passagem do Arguido, bate no vidro da janela, chamando a atenção do último;
- o Arguido fê-lo já em sede de Instrução, percebendo-se, pelo que se ouve na gravação, que o próprio usou de expressões que podem ser rotuladas de grosseiras e até provocatórias.
Vale o que vem de ser dito que se vive entre Assistente e Arguido um contexto de elevada conflitualidade, bastante propício ao surgimento, até de parte a parte, comportamentos como os que se encontram especificados na acusação particular.
Em qualquer caso, o que importa ponderar é saber se há efectivamente ou não indícios suficientes da prática, pelo Arguido, dos concretos factos que lhe são imputados na acusação particular.
Ora, olhando ao teor da acusação particular, percebe-se desde logo que a localização temporal dos factos é bastante vaga (entre os meses de Janeiro e Julho de 2020).
Na verdade, em que dias e horas dirigiu o Arguido as expressões ou cada uma delas ao Assistente?
Mais: que significa a expressão, constante da acusação, «em crescendo quotidiano»? Esta imprecisão temporal levanta-nos algumas dificuldades: se não ao ponto de considerar sem mais nula a acusação particular por incumprimento do dever de concretização narrativa a que alude o art. 283º/3 b) do Código de Processo Penal, pelo menos ao ponto de termos como complexa a análise da prova e a sua associação aos termos da acusação.
Ora, em apoio da acusação particular, os únicos meios de prova disponíveis traduzem-se nos depoimentos do Assistente e da esposa (fls. 6, 7, 39 a 41 e 43 a 45).
Olhando a esses depoimentos (que não provêm naturalmente de terceira pessoa distanciada do conflito e que pudessem por isso ser propiciadores de um maior conforto na decisão), a ausência de localização temporal dos factos é ainda maior que a constante da acusação particular.
Esta imprecisão ou inconsistência probatória resulta por outro lado reforçada pela ideia de que, estando alegado que as expressões proferidas pelo Arguido eram audíveis por quem passava na rua, não haver nos autos o depoimento de ninguém que, passando na rua, as tenha ouvido.
Para além do exposto, a prova produzida em Instrução, embora resulte também de pessoas próximas a um dos sujeitos envolvidos (neste caso, o Arguido), contradiz a versão plasmada na acusação particular: seja no que toca à ideia de que o Arguido seja actualmente vizinho do Assistente e que o tenha sido durante todo o período em causa (entre Janeiro e Julho de 2020), seja no que toca à frequência com que o Arguido se deslocava ao prédio, seja no que toca ao que exactamente terá acontecido aquando da deslocação que deu origem à gravação que aquele fez juntar em sede de Instrução (aliás, de valia probatória desfavorável à versão do Assistente, em substância, muito limitada, já que se trata de uma gravação feita por iniciativa do Arguido e durante o tempo que entendeu, retratando em suma um momento por si escolhido e em que, aliás, não se vê, nem ouve, o Assistente fazer ou dizer o que quer que seja).
Em suma, perante o exposto, não nos parece que possa dizer-se que a probabilidade de condenação do Arguido, em julgamento, é maior que a da sua absolvição.
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Consideramos em suma não suficientemente indiciados os factos descritos na acusação particular, e nomeadamente os seguintes:
(a) que quando o Assistente se encontrava na sua garagem, no seu pombal ou no seu quintal, o Arguido, num tom de voz agressivo e sem que nada o justificasse, dirigia-lhe, entre os meses de Janeiro e Julho de 2020, as seguintes expressões: «Ainda não morreste Covid-19?», «Boby, assobias bem!», «Vais-te foder!
Vai preparando as lecas que, no final do ano, vais-te foder!»;
(b) que essas expressões repetiam-se inclusivamente quando o Assistente se deslocava ao anexo destinado ao depósito do lixo, circunstância em que o Arguido, apercebendo-se que alguém se encontrava nessa divisão, embora sem saber quem, desatava a proferir gratuita e veementemente as mencionadas expressões;
(c) que sempre que o Arguido captava a atenção do Assistente, aguardando que este o observasse, o chamava ainda de «cabrão»;
(d) que nos dias anteriores à apresentação da queixa, pelo Assistente, o Arguido o questionava em tom depreciativo, do seguinte modo: «Ó Covid, estás com saudades minhas?»;
(e) que tais ofensas foram muitas vezes proferidas na presença da esposa do Assistente;
(f) que até da rua e por quem nela passasse era possível ouvir-se o Arguido aos gritos enquanto ofendia o Assistente;
(g) que ao apodar o Assistente com as expressões mencionadas, quis o Arguido ofendê-lo na honra e consideração que lhe são devidas, bem sabendo que a sua conduta era punível por lei;
(h) que, sempre que o Arguido não concretizava o objectivo de injuriar o Assistente, desatava às pancadas na viga de ferro das escadas de acesso ao andar, utilizando uma marreta, para dessa forma garantir que impedia o descanso do Assistente e da esposa;
(i) que tais pancadas, que causavam um barulho insuportável, eram desferidas praticamente todos os dias, quase sempre a meio da noite, tendo como consequência acordar o Assistente e a esposa.
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Dito isto, não pode deixar de ser proferido despacho de não pronúncia.
Pelo que antecede, decidimos não pronunciar o Arguido BB pela prática do crime de injúria que lhe vinha imputado, em consequência do que se determina o oportuno arquivamento dos autos.”
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Cumpre apreciar.
Importando apreciar o mérito dos indícios e da sua relevância jurídica face ao ilícito de burla, cabe primeiramente aferir os requisitos legais de aferição dos indícios.
Conforme disposto no art. 286º, nº 1 do C. P. Penal, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Constitui uma atividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
Nos termos do art.308º, n.º 1 do C. P. Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Indícios suficientes têm que ver não só com a densidade indiciária, mas pela capacidade probatória dos mesmos em audiência. E é a suficiência dessa capacidade que deve ser aferida.
Na interpretação do que sejam indícios suficientes a jurisprudência tem percorrido um entendimento que nos parece muito discutível e que carece de reponderação, entre muitos ver o aresto Ac.RelC de 28/06/2017 no qual se sustenta que o “juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”
O acervo de indícios que possam sustentar uma “aposta ou projecto de prova” significa a gestão das probabilidades de condenação, constituindo um eminente juízo relativo, porque provisório.
Com efeito, o conceito e o processo de prova com essa dignidade (por contraponto aos juízos indiciários) só ocorre quando se discutem os meios de prova com pleno contraditório, imediação, oralidade em audiência de julgamento. É aí, nesse cenário, onde todos os princípios do processo penal são honrados e cumpridos, que operam os juízos de prova, com sujeição à imediação e oralidade de todos os depoimentos das testemunhas, declarações das partes e esclarecimento dos peritos (com o contraditório das instâncias), com o contraditório e confronto das partes e das testemunhas aos resultados periciais e teor dos documentos, podendo o exercício do contraditório implicar a adição de nova prova testemunhal e documental nos prazos da contestação.
Antes da audiência de julgamento, nas fases anteriores de inquérito e instrução, as ilações e os juízos de valor que se retiram dos meios de prova até aí existentes, porque ocorrem em ambiente diverso, com quebra de vários princípios, só podem ser qualificados de juízos indiciários, sem valor probatório. Repete-se que o conceito e o processo de prova só pode operar em audiência de julgamento.
A lei quando usa a expressão de indícios suficientes, isso não significa a graduação quantitativa dos indícios entre insuficiente, suficiente, médio ou alto, e por isso não se trata de uma carga suficiente/mínima de indícios. Antes, a expressão gramatical traduz-se em indícios suficientes para uma condenação, onde a densidade destes é necessariamente qualificada, exigindo uma “alta probabilidade de futura condenação”, tal como se refere no AC.STJ de 28/06/2006 (pese embora este aresto admita pelo menos uma probabilidade superior de condenação perante as probabilidades de absolvição [o que a nosso ver não preenche o juízo de suficiência]), sob pena do suporte indiciário não resistir aos limites da dúvida “in dúbio pro reo”. Não é concebível acusar ou pronunciar com um plano de “suficiência” de indícios, antes são necessários indícios qualificados de muito fortes.
A expressão legal prevista no art.283º nº2 do CPP “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena”, impõe uma adequada exegese. Com efeito, o conceito probabilístico de “possibilidade razoável” apenas traduz o respeito do legislador pela futura produção de prova em audiência de julgamento, assim como o respeito pelas possibilidades de defesa e pelo contraditório. Não poderia o legislador assumir uma nomenclatura que fosse ostensiva à presunção de inocência do arguido e ao respeito pelas possibilidades de defesa e do princípio de igualdade de armas. O termo legal “razoabilidade” (da possibilidade de condenação) fixa-se apenas no juízo antecipatório, pressupondo a ideia de que existindo fortes indícios é razoável supor que mesmo perante o contraditório em audiência com novos meios de prova, sobrevenha um juízo condenatório. Ou seja, o conceito de “razoabilidade” não se refere ao grau de indícios nem respeita a “uma indiciação menor”.
O grau de exigência dos indícios quer na acusação, quer na pronúncia, continua muito elevado, basta pensar que a probabilidade de condenação meramente superior a uma probabilidade de absolvição, nunca em fase do julgamento pode conduzir a uma condenação, pois nesse caso, impunha-se uma absolvição. Com efeito, verificando-se uma probabilidade de absolvição (portanto com indícios nesse sentido), se essa probabilidade for de 30% ou até de 20%, pese embora seja claramente minoritária, encontra-se instalada uma dúvida que tem expressão, podendo comprometer um juízo condenatório.
Cabe esclarecer que os indícios suficientes para a verificação do crime nos termos do art.283º do CPP tem a mesma exigibilidade da suficiência dos indícios do despacho de pronúncia prevista no art.308º do CPP, embora aqui com a especialidade e necessidade de aferir a matéria indiciária respeitante aos termos do art.74º do CP. Pois, se estiverem reunidos os requisitos da dispensa de pena, não deve ser proferida uma decisão de pronúncia, com movimentação desnecessária de toda a máquina da Justiça e convocação de todos os intervenientes, para depois o resultado do julgamento não ultrapassar uma dispensa de pena, com ofensa do princípio da dignidade da pessoa humana, resultados que o Legislador não quis, e bem (pese embora hajam indícios do cometimento do delito suficientes para a condenação).
A expressão legal “indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, tem um significado normativo e gramatical que deve ser bem demarcado, a suficiência em causa não é dos indícios em si mesmos, mas a suficiência para um juízo futuro de condenação.
A questão deverá ser vista não no conceito isolado de “indícios suficientes”, portanto, a categoria gramatical da palavra suficiência não pode ser um adjectivo dos indícios (o qual é gerador de equívocos centrados na expressão de suficiência, porque colide com as futuras exigências de prova numa condenação); mas no conceito que implique todo o silogismo, ou seja, “suficientes para uma condenação e aplicação de uma pena”, onde a classificação de suficiência não é adjectivo, mas substantivo porque significa aquilo que é necessário para uma condenação.
Portanto, a suficiência de indícios para aplicação de uma pena nos termos do art.308º do CPP, supõe um projecto de prova para condenação, exigindo, por definição, indícios muito fortes. Repete-se que a lei quando exprime a probabilidade razoável ou superior da condenação face às hipóteses de absolvição, apenas quis respeitar a importância do contraditório e da defesa. Existindo em inquérito e instrução indícios conflituantes ou divergentes face aos indícios que conduzem à imputação do crime, se aqueles conviverem como possibilidades de verificação plausível, ainda que inferiores aos indícios de cometimento do crime, a mera probabilidade superior de condenação não pode conduzir a um despacho de pronúncia ou de acusação, mesmo que o peso da probabilidade de absolvição se situe em 30%, aqui uma dúvida expressiva estará instalada. Só pode sobrevir um despacho de pronúncia se os fortes indícios existentes nos autos constituírem de forma suficiente um projecto de prova com aptidão para uma condenação, e este silogismo exige com suficiência (aqui como substantivo) a existência de indícios muito fortes (mais do que indícios fortes).
Como é óbvio a exigência de indícios muito fortes não se confunde com o juízo de prova a final, porque o juízo indiciário por definição é provisório e o possível naquela fase do processo (com depoimentos de testemunhas em suporte de auto de inquirição pelas OPCs, sem valor autónomo ou intrínseco em audiência de julgamento), onde ainda não existe pleno contraditório assim como todos os elementos e meios de prova e de aferição. Contudo, não pode deixar de ser alta a exigência dos indícios, similar ao juízo condenatório. O juízo condenatório tanto existe para os indícios como para a prova, simplesmente o plano indiciário tem natureza provisória e está assente num juízo de prognose, onde ainda falta o contraditório e os possíveis e restantes meios de prova.
Deve ainda referir-se que a necessária exigência indiciária qualificada para a acusação ou para a decisão de pronúncia, nessas fases processuais, pese embora a sua antecipação e limitações, por regra já contém meios de prova estruturados (com um valor autónomo e intrínseco em audiência de julgamento), uns ainda a sujeitar a contraditório, outros produzidos já com contraditório, como sejam as declarações dos arguidos em 1º interrogatório, que poderão contar e valer como prova em audiência; as declarações para memória futura das vítimas, relatórios periciais, autos de reconhecimento do arguido, inquirições de testemunhas por autoridade judiciária.
Portanto, o juízo legal de suficiência referido no art.308º do CPP é sempre estabelecido por referência à prova que se propõe para condenação, e, por isso, a proposta de indícios tem de ser suficiente para com essa aptidão probatória, em audiência de julgamento, sobrevir uma condenação e se aplicar uma pena ao arguido. E todos sabemos que suficiência para aplicar uma pena implica sempre um parâmetro de prova seguro e exigente que arrede panoramas de dúvida. O “projecto de prova” que se propõe numa acusação ou em decisão de pronúncia, tem as exigências de prova do julgamento. A diferença é que esse projecto se estabelece por antecipação e apenas com os elementos que existem nos autos. Esse juízo indiciário da acusação e da pronúncia formula a prognose de uma aptidão probatória que se projeta manter quando sujeita à oralidade, imediação e contraditório, assim como ao confronto de nova prova testemunhal e documental (surgida na fase do julgamento).
Apreciando os fundamentos concretos da decisão instrutória quando não pronunciou o arguido, verifica-se que os depoimentos do ofendido assistente e de sua mulher FF foram desvalorizados, entre outros motivos, também, pela circunstância de terem essa qualidade (na expressão do Tribunal “A Quo” “não provêm naturalmente de terceira pessoa distanciada do conflito”), mas esta conclusão estereotipada, sem mais, não tem qualquer consequência probatória ou indiciária, designadamente para retirar a credibilidade às mesmas. Por si só, ser ofendido, ou mulher do mesmo, não constitui um menor índice de credibilidade, antes pelo contrário, à partida essas testemunhas reúnem razões de ciência privilegiadas (por ser direta), e quando depõem de forma objetiva e coerente, merecem credibilidade.
Depois, a invocada imprecisão dos acontecimentos, não é impeditiva da enunciação do facto, dado que, muito embora se imputem várias provocações em número de vezes indefinido, o período está delimitado entre Janeiro de Junho de 202, e localizada no espaço. Depois, a repetição dessa conduta encontra-se suficientemente descrita para ser identificável pela defesa, delimitando a singularidade do facto.
Mas, como veremos, o sucesso da pretensão do assistente mostra-se comprometido por outras razões.
No que concerne ao tipo legal de injúrias, importa atender aos elementos objectivos e subjetivos do crime.
Quanto aos elementos objetivos, é necessário que o agente "imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos de sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo" (do ofendido).
Antes de mais, é pertinente determinar o que seja ofensa à honra e consideração de outra pessoa.
No sentido de honra, o Prof. GIUSEPPE MAGGIORE, ensina com precisão: "«Honra» é a estima devida a um homem pelas suas virtudes morais (honradez, integridade, virtudes, carácter, etc.)." (Ver "DERECHO PENAL - Parte especial", vol. IV - Delitos en particular - pág. 390, Bogotá, l986), definindo igualmente o decoro (que nós equiparamos a "consideração" de harmonia com a expressão legal), nos seguintes termos: "«Decoro» - o mesmo que dignidade - é menos que honra, e com mais precisão, é o quanto de honra e honorabilidade de que o homem necessita, ou crê necessitar, para viver em sua condição de modo comveniente. Portanto, a honra refere-se às qualidades essenciais, e o decoro, às extrínsecas. Por esta razão, o decoro deve medir-se com todas aquelas graduações e matizes devidos à especial situação social do sujeito passivo." (Ver ob. e Vol. cit., pág. 391).
No ensinamento do DR. NELSON HUNGRIA, a honra interna consiste no "sentimento da nossa dignidade própria.", e à honra externa (para nós "consideração"), "como o apreço e respeito de que somos ou nos tornamos merecedores perante os nossos concidadãos.", mais à frente acrescenta "... a honra é um bem precioso, pois ela está necessariamente condicionada à tranquila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade." (Ver "COMENTÁRIO AO CÓDIGO PENAL", Vol VI, pág. 39, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1958).
O mesmo autor, a seguir exemplifica: "Assim, se um indivíduo chamar a outro «cachorro», «canalha», está ofendendo a sua dignidade; se lhe chama «ignorante», «burro», ofende-lhe apenas o decoro." (Ver ob. cit. pág. 9l).
No entendimento do Acórdão da Relação do Porto de 3/11/88 com alguns decénios, mas cuja linha de pensamento se mantém válida "A honra tem a ver com a integridade moral de cada um, refere-se à proibidade, ao carácter, rectidão por parte da essência da personalidade humana, ao passo que, a consideração se refere à reputação social, ao nome, ao crédito e à confiança adquirida. (Ver "C.J." Ano de l988, Tomo V, pág. 221).
Temos de concluir que a dimensão pessoal da honra, encerra um património axiológico complexo (onde orbitam a lealdade, a retidão, o chamado carácter que se relaciona com o valor dos compromissos e posições assumidas), com projeção individual da dignidade para consigo e para com os outros (aqui a honra toca os conceitos da “consideração” [esta dependendo do valor atribuído por terceiros à pessoa]), como afirmação do seu valor intrínseco, de quem procede “sempre” segundo um dever-ser, de respeito consigo próprio (que garante a sua autonomia e independência económica); de não interferir no património alheio; de respeito pelo interesse público; de respeito com a pessoa do outro [deveres-ser que, no entanto, não deixa de ter dimensão normativa, não constituindo um qualquer código ético à margem do socialmente aceite, com atualidade. Excluindo-se os preceitos obsoletos de uma honra pretérita] que o sujeito pretende cumprir, consistindo um plano de afirmação pessoal e social de que não abdica, assim pretendendo ser reconhecido e identificado perante os outros e perante si próprio, que lhe dá dimensão humana devida e cuja tutela legal pretende salvaguardar.
Apurado o sentido de honra e consideração, importa então, averiguar os termos em que se discute a ofensa à honra e consideração do ofendido.
Para se determinar se a imputação é ofensiva da honra ou consideração, há ainda a ponderar diversas questões.
Existem expressões que objectivamente consideradas, quando dirigidas a outrem, são injuriosas, pois chocam com os mais elementares princípios de auto-estima e sensibilidade da pessoa humana.
Fazem parte do género humano, e é intrínseco à sua natureza um mínimo de integridade moral, um espólio de "deveres-ser", caracterizando o homem como ser social.
No naipe de expressões constantes da acusação particular, destacam-se designadamente “Bobby assobias bem”, “Ainda não morreste Covid-19”, ou “vais-te foder”, porém, as mesmas não têm a carga ofensiva da honra e consideração de grau compatível com a densidade lesiva, exigida pela tutela penal.
Aliás o nome “Bobby” (sendo diminutivo de Bob) muito embora o assistente o pretenda fixar na figura e atribuição da qualidade de cão, contudo, esse nome tem muitos outros significados a atribuições, sendo até o nome próprio de numerosas personalidades públicas, como o de um famoso treinador de futebol, entre outras personalidades, não sendo por isso, imediatamente ofensiva, por não ser esclarecedora. Por sua vez, o nome Covid, muito embora seja jocoso e sobretudo provocatório, igualmente não atinge a tutela penal da injúria. Também, como provocação e até ameaça, se inscrevem as expressões “vais-te foder” e não como ofensas à sua condição pessoal da honra.
Já a expressão “cabrão” que consta da acusação reuniria os pressupostos da injúria penalmente tutelável, contudo, dos autos não existem fortes indícios que viabilizem um juízo de prognose de condenação. Com efeito, somente a testemunha FF o refere em inquérito, pois, o assistente quanto deduz a queixa, e posteriormente quando é inquirido em inquérito, nesse depoimento nunca refere que o arguido lhe tenha dirigido tal expressão (também é de sublinhar que, quer na queixa, quer nos depoimentos do assistente e mulher, constam outras expressões, com carga injuriosa, mas que não vieram a constar do objecto da acusação particular).
Deste modo, se a pretensão do assistente não pode proceder quanto ao crime de injúrias, contudo, deve referir-se que o objecto do processo traduz uma conduta susceptível de integrar o ilícito de perseguição previsto e punido pelo art.154-A do CP, onde, para além das reiteradas provocações e expressões usadas, também consta da queixa e de depoimentos colhidos no inquérito que o arguido munido de uma marreta por diversas vezes, dava marteladas numa viga de ferro fixada junto à residência do assistente, inclusive de madrugada.
No entanto, para essa vertente do objecto de processo, cujo delito reveste a natureza semi-pública, e para a qual existiu queixa, o Ministério Público nos termos do art.48º do CPP haveria de se pronunciar, acusando ou arquivando, porém, no despacho proferido a 25/02/2021 em inquérito apenas foi exarado “Relativamente ao crime de Injúria, o único que entendemos resultar indícios nestes autos, e que reveste a natureza e carácter de crime particular, conforme dispõem os artigos 181º, n.º 1 e 188º, ambos do Código Penal, cumpra-se o disposto no art. 285º, n.º 1, do Código de Processo Penal, notificando-se o assistente, e o seu Ilustre Mandatário, para, querendo, no prazo de 10 (dez) dias, deduzir acusação particular contra o arguido, sob pena de, não o fazendo, os presentes autos serem arquivados, nos termos do art. 283º ex vi art. 284º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar”.
Esta posição que não constitui qualquer arquivamento quanto ao crime de perseguição, o que, em substância, constitui falta de promoção sobre esse delito, assim se cometendo a nulidade por falta de promoção cfr.art.119º alínea b) do CPP, que aqui oficiosamente se conhece, por ser insanável.
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Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso não merece provimento, improcedendo todas as conclusões, confirmando a decisão de não pronúncia, embora por razões distintas.

DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, nos termos e fundamentos expostos mantendo-se a decisão do Tribunal a quo, mas por razões distintas.
Mais se julga a nulidade por falta de promoção do Ministério Público nos termos do art.119º alínea b) do CPP quanto ao delito de perseguição com elementos nos autos, devendo ser emitir o respetivo juízo jurídico nos termos do art.276º do CPP por essa autoridade judiciária.
Para o efeito, remetam-se os autos, oportunamente, aos serviços do MºPº.
Custas do recurso pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Notifique.

Sumário.
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Porto, 8 de Junho 2022.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
Francisco Marcolino