VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RECURSO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ASSISTENTE
INTERESSE EM AGIR
Sumário

- Havendo a possibilidade de discutir amplamente a matéria de facto não interessa, num primeiro momento, saber se a interpretação do recorrente é a correcta ou a mais correcta.
- Num primeiro momento cumpre indagar se a escolha feita pelo Tribunal a quo é uma das possíveis.
- Se se determinar que assim é não tem o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de revista, de sobrepor o seu entendimento ao do Tribunal da primeira instância pois que tal implicaria uma intolerável intromissão na liberdade de julgamento do Tribunal a quo
- Para que se altere a matéria de facto dada por provada (ou não provada) é necessário que o recorrente demonstre que o Tribunal decidiu de forma errada, seja porque não considerou ou considerou erradamente a prova produzida, seja porque na apreciação da prova actuou em desconformidade com o disposto no artº 127º do C.P.P., mormente em contrário às regras de experiência comum.
O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I- Relatório
Inconformada com a decisão proferida no âmbito do NUIPC 298/21.0PCSNT pendente no Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 2 – do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste apresenta-se a recorrer perante este Tribunal a assistente EMF______ a qual, após motivações, formulou as seguintes conclusões:
“1. Tendo em conta a sentença proferida pelo Tribunal a quo, no passado dia 2 de Novembro de 2021, entende a Recorrente que deveria ser sido dado como provado o facto descrito na alínea a) do ponto B.
2. E consequentemente, ao invés do Arguido/Recorrido SM_________ ter sido condenado na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.e p., pelo artigo 143º nº1 do Código Penal na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um montante global de € 1.100,00€ (mil e cem euros), deveria ter sido condenado no crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº1, alínea a) do nº2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal.
3. O Tribunal a quo ao invés de apreciar a prova no seu todo, desconsiderou o depoimento da testemunha DM_______ .
4. Importa referir que tal testemunho se afigure primordial dada a relação de parentalidade existente entre o Recorrido e a Ofendida DM_______ .
5. Ora, com base na prova produzida e supra exposta, a conduta praticada pelo Arguido/Recorrido é claramente demonstrativa que o mesmo sabia o que estava a fazer e ainda assim empregou, de forma abusiva, uma conduta punível.
6. Durante 6 (seis) anos seguidos vividos entre a menor e o Arguido/Recorrido, a mesma sofreu e presenciou atitudes de violência, não só físicas como emocionais por parte do arguido/recorrido que lhe deixaram marcas profundas, ao ponto de necessitar de acompanhamento psicológico.
7. Pelo que a douta sentença entra em contradição quando existe uma clara e coerente descrição e percepção que o Arguido/Recorrido não só sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como ainda assim quis empreendê-las, e não se importou com as consequências das mesmas acrescidas.
8. Atentado dessa forma, contra à dignidade humana da menor DM_______ , à sua saúde física, psicológica e ao seu bem-estar.
9. Os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si uns com os outros, nomeadamente os pontos 44 a 47 dos factos dado como provados e o ponto B) Factos não provados.
10. Primeiramente o Tribunal a quo reconhece que o Arguido tinha consciência de que o desenvolvimento físico e psíquico da sua filha DM_______ , ficaria lesado face aos acontecimentos e situações intimidatórias que a mesma presenciou;
11. E posteriormente afirma que não ficou demonstrado que o arguido sabia que, ao agredir EMF______  na presença da sua filha DM_______ , que, com 9 anos de idade, já tem percepção dos acontecimentos, ao lhe dirigir as expressões intimidatórias supra descritas, amedrontava-a e ofendia-a psiquicamente.
12. Ora, o ponto b) dos factos não provados, deverá ser dado como provado.
13. - Declarações da testemunha _________, agente da PSP, prestadas em audiência de julgamento no dia 11.11.2021 (período da manhã), tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal (H@bilus Media Studio), nos termos do nº 1 do artigo 364º do Código de Processo Penal, consignando-se o seu início pelas 10:51:48 horas e o seu termino pelas 11:03:18 horas.
14. (…)
15. Procuradora M.P: o Sr. Agente referiu que uma das menores tinha um edema no braço.
Recorda-se do local?
16. Agente Marco: Era no antebraço, creio eu que era no antebraço esquerdo.
17. No que concerne à pena aplicável ao Recorrido face à menor DM_______ , considerou o Tribunal a quo condena-lo pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143º do Código Penal.
18. Tal desvalorização da conduta do Arguido/Recorrido não parece correcta aos olhos da Recorrente dada à relação existente entre a DM_______  e o Arguido/Recorrido.
19. A relação de parentalidade implica um especial cuidado e protecção que ao ser violado, a ofendida assume-se como uma vítima “especialmente vulnerável”.
20. Justificando-se para tal a imputação ao Arguido/Recorrido do crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº1, alínea a) do nº2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo.
21. Por último, face a medida concreta da pena aplicável, tendo em consideração as condições pessoais e económicas do Arguido/ Recorrido, assim como a postura que adoptou em audiência de discussão e Julgamento pautada por um total desprezo e ausência de interiorização do desvalor dos comportamentos por si realizados , não demonstrando o mínimo de arrependimento face à prática das suas condutas e do entender da Recorrente que a condenação do arguido numa pena de 200 dias de multa, no montante global de 1.100,00€ (mil e cem euros) apresenta-se descontextualizada face ao descrito e provado em audiência de Julgamento.
22. Pelo acima descrito, deverá ser de aplicar ao Arguido/Recorrido, na pessoa da sua filha DM_______ , o crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº 1, alínea a) do nº 2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal.
23. No que concerne ao Pedido de Indemnização Civil, entende a Recorrente que a condenação a pagar a quantia de 2.500,00€ à filha DM_______  se mostra proporcional tendo em conta os danos sofridos.
Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas deverá o presente Recurso ser declarado procedente e consequentemente revoga-se a decisão/Sentença Recorrida e em sua substituição determina- se como provado o facto descrito na alínea a) do ponto B e condenar o Arguido pelo crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº1, alínea a) do nº2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal no que diz respeito à menor DM_______ .”
Ao assim recorrido veio responder o Ministério Público sustentando que:
“1. Verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (cfr. art. 410º, n.º 2, al. b) do CPP), quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa é julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir. 
2. Assim, a contradição insanável da fundamentação pode respeitar à contradição da fundamentação da matéria de facto ou à contradição na própria matéria de facto (fundamento da decisão de direito). 
3. Contudo, “a contradição só releva, juridicamente, quando existe uma oposição directa entre os factos qualquer que seja o sentido que se dê a cada um deles” - cfr. Ac. do STJ de 9/2/2000, Rec. nº 284/98 e António Tolda Pinto in “A Tramitação Processual Penal”, 2ª ed., 2001, p. 1037. 
4. No caso sub judice, verifica-se que inexiste qualquer oposição entre os factos provados, os factos não provados, nem entre estes e aqueles, nomeadamente entre os Pontos 44-47 dos “Factos Provados” e o Ponto B) dos “Factos Não Provados”, mas antes se apercebe que todos se harmonizam. 
5. Muito menos existe um confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, assentando a convicção do Tribunal a quo, de forma fundamentada, na prova produzida e referida na douta sentença condenatória. Nem tão pouco se descortina qualquer contradição entre a motivação e a decisão da matéria de facto. 
6. Pelo contrário, da análise do texto relativo à matéria de facto, globalmente considerado, não se pode concluir que, ao fixar tal matéria, o Tribunal a quo deveria ter apreciado a prova de outra forma e que essa conclusão se imporia de forma manifesta a qualquer cidadão de capacidade e entendimento médios. 
7. Face ao exposto, forçoso é concluir que não assiste qualquer razão à Recorrente quando alega que a sentença padece de contradição e que os factos julgados como provados e como não provados colidem entre si uns com os outros. 
8. No crime de violência doméstica está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, sendo que “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos” – Vide Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332. 
9. Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), ou mesmo que não haja reiteração, quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos. 
10. Assim, o tipo objectivo de ilícito preenche-se com a acção de infligir “maus-tratos físicos” ou “maus-tratos psíquicos”, pelo que para a consumação do crime de violência doméstica não é necessário que a conduta do agente assuma um carácter violento ou reiterado (cfr. alterações introduzidas pela Lei nº 52/2007, de 04/09).  
11. Todavia, em caso de uma agressão isolada, importa analisar e caracterizar o quadro global da agressão, de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima, constituindo “um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima” – Vide Nuno Brandão in
“Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010.  
12. In casu, pese embora tenha resultado provado que o arguido agarrou no braço de DM_______ , puxando-o com força, em consequência do que a ofendida sentiu dores e sofreu edema na região do cotovelo esquerdo com impotência funcional do braço (cfr. Pontos 34 e 35 dos “Factos Provados”), o certo é que não resultou provado que o arguido tenha lesado a dignidade pessoal da menor, sua filha.  
13. Deste modo, não tendo resultado provado que tenha sido atingido o bem jurídico tutelado pelo tipo, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. d), do CP, bem andou a M.ma Juiz do Tribunal a quo em condenar o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do CP, na pessoa da de DM_______ , nos termos em que o fez. 
14. Neste conspecto, cumpre salientar que o arguido foi, igualmente, condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, b), e n.º 2, al. a) do CP, na pessoa da sua companheira, EMF______ , sendo que a circunstância agravante a que alude a al. a) do n.º 2 do citado normativo legal comporta o facto das agressões terem sido perpetradas na presença das filhos do casal, não podendo o arguido ser novamente condenado a tal título, sob pena violação do princípio ne bis in idem. 
15. Face ao exposto, forçoso é concluir que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. d), do CP, pelo que também não assiste qualquer razão à assistente, nesta parte.  
16. Nos termos do disposto no art. 401º, nºs 1, b), e 2, do CPP, o assistente poderá recorrer das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito (cfr. art. 69º, nº 2, c) do CPP), apenas se lhe impondo o ónus de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir. 
17. Deste modo, o interesse em agir do assistente, como pressuposto do recurso, significa a necessidade que tenha de usar o recurso para reagir contra uma decisão que comporte uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustre uma expectativa sua ou interesse legítimos. 
18. No caso vertente, a recorrente não evidencia qualquer “conexão” especial com a pretensão punitiva do Estado, nem demonstrou a necessidade de usar este meio para reagir contra uma decisão que comporta uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustra uma expectativa sua ou benefício legítimos, pelo que não tem qualquer interesse juridicamente protegido na correcção da decisão. 
19. Assim, deverá ser rejeitado o recurso interposto pela assistente quanto ao agravamento da pena, relativamente à condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do CP, por falta de interesse em agir. 
20. No entanto, e caso assim se não entenda, sempre se dirá que a condenação do arguido pela prática do referido crime, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, no montante global de € 1.100,00, se afigura como perfeitamente adequada e equilibrada, de modo a salvaguardar as exigências de prevenção que o caso requer (cfr. arts. 40º, 70º, 71º, todos do CP). 
21. Face ao exposto, forçoso é concluir que também não assiste qualquer razão à Recorrente, nesta parte. 
Pelo que, nos termos expostos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, condenando-se o arguido SM_________ pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea b) e nº 2, alínea a) do Código Penal, na pena 3 (três) anos de prisão, em concurso com um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p., pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um montante global de € 1.100,00 (mil e cem euros).”
O arguido não respondeu.
Os autos subiram a este Tribunal tendo o Ministério Público lavrado parecer onde realçou “A questão colocada em recurso reflecte primacialmente uma discordância da apreciação probatória que foi feita. 
 Sabemos a importância da oralidade e da imediação na apreciação crítica dos depoimentos, os quais contêm acervo de informação não verbal importante para a valoração da prova, naturalmente interpretado de acordo com as regras da experiência de vida. 
 Considerar um depoimento credível ou não credível, é uma questão de convicção. 
 Considerando que nenhum argumento e/ou razão se encontra invocado no recurso do recorrente que permita afastar as premissas em que assentou a decisão recorrida e, nada obstando ao conhecimento do recurso, emite-se parecer no sentido da manutenção do decidido, (…) consequentemente se pugnando pela improcedência do recurso.”
Foi cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P..
Os autos foram a vistos e à conferência.
*
II – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do Código do Processo Penal).
No caso concreto, analisadas as conclusões recursais as questões a decidir são:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) A existência dos vícios do artº 410º nº 2 al. a) e c) do C.P.P.;
c) A medida da pena.
Para conhecimento destas questões recordemos os factos provados e não provados e a respectiva fundamentação.
Assim, fez-se constar:
“1. O arguido e a EMF______ iniciaram um relacionamento amoroso em data não concretamente apurada, no ano de 2008.  
2. Desde o início do relacionamento que o arguido e a EMF______  passaram a viver em condições análogas às dos cônjuges, partilhando mesa, leito e habitação. 
3. O arguido e a EMF______  estabeleceram residência, inicialmente, na Rua das …, na Agualva-Cacém. 
4. Em data não concretamente apurada, entre 2009-2010, o casal mudou de residência, passando a residir na Rua …, em Agualva-Cacém.
5. O arguido e a EMF______  tiveram três filhos em comum:
a. VM_____, nascida a 26 de Julho de 2011, e já falecida;
b. YM_____, nascida em 16 de Março de 2017; e
c. DM_____ , nascida a 26 de Julho de 2011.  
6. Decorridos alguns meses do início do relacionamento, o arguido começou a apresentar um temperamento violento e implicativo para com a vítima EMF______ , iniciando discussões com a mesma, sem motivo aparente, e dirigindo-lhe, expressões de cariz injurioso e intimidatório, no interior da residência comum.
7. Por tais factos, que se situam entre 2008 e 2013, foi o arguido acusado no âmbito do NUIPC 1492/13.3PCSNT, tendo sido absolvido, por sentença datada de 15 de Janeiro de 2015. 
8. Desde 2015, o arguido voltou a ter um comportamento violento e implicativo, iniciando discussões com a EMF______ .
9. Desde 2015, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, cerca de duas vezes por mês, na residência familiar, o arguido discutiu com a EMF______  e disse-lhe, em tom de voz elevado e sério, “porca” e “não fazes nada”.
10. Desde 2015, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, cerca de uma vez ao ano, na residência familiar, o arguido bateu na EMF______ , através de empurrões, cabeçadas, bofetadas e murros no rosto. 
11. No dia 15 de Janeiro de 2019, pelas 19h00, na residência familiar, o arguido discutiu com EMF______  e desferiu duas bofetadas no rosto dela. 
12. Desde Janeiro de 2021, o arguido agravou o seu comportamento devido a ter deixado de tomar a medicação que estava a tomar para a depressão. 
13. Desde Janeiro de 2021 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, cerca de uma vez por mês, na residência familiar, o arguido discutiu com a EMF______  e disse-lhe, em tom de voz elevado e sério: 
a. “filha da puta”;
b. “a tua avó não te soube educar”;
c. “não prestas para nada”; 
d. “não andas cá a fazer nada”; 
e. “se desapareceres não faz mal a ninguém”;
f. “incompetente, nem limpar a casa sabes”.  
14. Nessas ocasiões, o arguido disse à EMF______  que a matava, “que estava por um fio” e jurou pela vida das filhas que a matava.  
15. Em Janeiro de 2021, em dia não concretamente apurado, na residência familiar, o arguido discutiu com a EMF______ , empurrou-a e desferiu-lhe bofetadas no rosto.  
16. Em Fevereiro de 2021, em dia não concretamente apurado, a EMF______  chegou a casa às 14h00 para almoçar e, de imediato, o arguido iniciou uma discussão pelo facto de a máquina de lavar loiça estar suja.  
17. Nessa ocasião, o arguido disse à EMF______  “já viste como é que está a máquina”, “não fazes nada”, “és uma porca”, “andas aqui só por andar”.  
18. Em acto contínuo, o arguido empurrou a EMF______ , depois puxou-a, abriu a porta da máquina de lavar loiça e empurrou a cabeça dela para dentro da máquina para que ela visse como estava a máquina. 
19. Entretanto, a EMF______  escorregou e caiu, mas conseguiu levantar-se.
20. Nesse momento, o arguido começou a desferir várias bofetadas no rosto dela.
21. Entretanto, o arguido tropeçou e o seu chinelo caiu-lhe do pé.  
22. De imediato, o arguido levantou-se, agarrou no chinelo e começou a desferir pancadas com o chinelo no rosto e na cabeça de EMF______ , causando-lhe vermelhidão no rosto e dores fortes. 
23. No início de Março de 2021, em dia não concretamente apurado, na residência familiar, o arguido empurrou a EMF______ , disse-lhe, em tom sério e intimidatório, que a matava e proferiu as expressões descritas no ponto 15.
24. No dia 24 de Março de 2021, pelas 16h45, a mãe e o padrasto do arguido, deslocaram-se ao local de trabalho de EMF______ , a fim de efectuarem compras para casa desta, por terem conhecimento que existia falta de alimentos em casa. 
25. Após as compras, pelas 18h00, quando EMF______ chegou a casa, na companhia da mãe e do padrasto do arguido, apercebeu-se que este ainda se encontrava a dormir.
26. Nessa ocasião, o arguido acordou, apercebendo-se da chegada a casa de EMF______, levantou-se, irritado, descontente com o facto de a sua mãe ali ter chegado na companhia de EMF______.  
27. Depois, o arguido exigiu que a sua mãe e padrasto se retirassem de casa, abrindolhes a porta e, em acto contínuo, arremessou a mala da mãe para o chão do hall comum do prédio.
28. A mãe e o padrasto do arguido não se ausentaram da habitação, com receio do que ele pudesse fazer à EMF______ .
29. O arguido dirigindo-se à sua mãe, referindo-se a EMF______  disse: “Porque estão a bajulá-la, para quê?” 
30. Acto contínuo, de súbito e sem que nada o fizesse prever, o arguido foi na direcção da EMF______ , que estava no canto da cozinha e, na presença das duas filhas, o arguido agarrou-a pelas orelhas, puxou-lhe a cabeça para baixo e desferi-lhe dois murros na cabeça, apenas logrando de parar atenta a intervenção do padrasto do arguido, que o puxou.  
31. Neste contexto, o arguido dirigindo-se a EMF______  proferiu a seguinte expressão:
“filha da puta”. 
32. A menor DM_______ , nesse momento, correu para junto da mãe, pegou no telemóvel da mãe e efectuou uma chamada para a polícia, mas quem acabou por falar ao telemóvel foi o padrasto do arguido, chamando as autoridades ao local. 
33. Entretanto, o arguido sentou-se e, nessa altura, a mãe do arguido agarrou na menor DM_______  por um braço, no intuito de ir falar com ela, num sítio mais calmo, pois estava muito assustada.
34. De imediato, o arguido agarrou a filha DM_______  pelo outro braço, puxando-o com força. 
35. Na sequência do acto do arguido, a menor DM_______  sentiu dores e sofreu, edema na região do cotovelo esquerdo com impotência funcional do braço, por força do esticão, levando-a a ter de receber tratamento medico hospitalar.
36. Perante isto, o padrasto do arguido, saiu do interior da residência chamando o elevador para que todos pudessem dali sair.  
37. Quando já se encontravam todos no hall do prédio, o arguido saiu do interior da residência e avançou na direcção de EMF______ , com intenção de a agredir de novo, contudo, escorregou e caiu, embatendo com os joelhos no chão.
38. Após, o arguido levantou-se e agarrou as duas filhas levando-as consigo para dentro de casa, contra a vontade das mesmas, fechando a porta à chave por dentro e deixando a chave na fechadura, por forma a impedir que outros ali entrassem.
9. Entretanto, lograram de ali comparecer os elementos policiais, que junto da porta de entrada da residência solicitaram-lhe por diversas vezes que abrisse a porta, sendo que o arguido se recusou. 
40. Após muita insistência por parte dos elementos policiais, o arguido acabou por abrir a porta, sendo que nesse instante e, de imediato, as duas menores saíram do interior da habitação.  
41. O arguido consome produtos estupefacientes com frequência.  
42. Todas as actuações assim descritas são fortemente ofensivas da dignidade pessoal de EMF______  e, provocam na mesma um estado de angústia, ansiedade, receio constantes.  
43. Com a prática das condutas descritas, deu causa o arguido, de modo directo e necessário, a que vítima EMF______  se sentisse num constante estado de profundo malestar, de ansiedade e de tristeza, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente a amesquinhasse, que a intimidasse ou que lhe batesse.  
44. O arguido sabia que ela era sua companheira e mãe das suas filhas, e como tal tinha o especial dever de a tratar com dignidade, não obstante, o arguido agiu da forma descrita com o propósito de molestar a saúde física e psíquica da companheira, de afectar a sua liberdade de decisão, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.  
45. O arguido sabia que ao agarrar a menor DM_______  pelo braço da forma que o fez ofendia-a fisicamente não obstante o arguido não se inibiu de actuar da forma descrita. 
46. O arguido sabia que a sua filha DM_______ era particularmente indefesa, em virtude da sua tenra idade, bem como sabia que ela era sua filha e estava a seu cargo, tendo por isso para com ela um especial dever de cuidado.
47. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.  
Mais se provou que:  
48. O arguido não evidenciou qualquer arrependimento.
49. O arguido está detido preventivamente, e antes da detenção encontrava-se desempregado não auferindo do qualquer rendimento.
50. O arguido de habilitações literárias tem o 5º ano de escolaridade.
51. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais registados:
- por sentença proferida no âmbito do proc. nº 412/05.3GBMFR do Juízo de Média e Pequena Instância Criminal de Mafra foi condenado pela prática em 19.07.2012, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 70 dias de multa;
- por sentença proferida no âmbito do proc. nº 433/07.1GCMFR do Juízo de Média e Pequena Instância Criminal de Mafra foi condenado pela prática em 11.05.2007, de um crime de falsidade de depoimento ou declaração e de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 130 dias multa; 
- por sentença proferida no âmbito do proc. nº 333/07.0GGSNT do Juízo de Pequena Instância Criminal de Sintra condenado pela prática em 02.06.2007, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 40 dias de multa; 
- por sentença proferida no âmbito do proc. nº 101/10.7PJSNT do Juízo Local Criminal de Sintra – Juíz 4, foi condenado pela prática em 29.11.2010, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 220 dias de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade e posteriormente por 126 dias de prisão subsidiária. 
Do Pedido Cível:
50. Na sequência do comportamento do Arguido/Demandado, a Demandante EMF______  viu-se de forma contínua e reiterada, afectada no seu bem-estar físico e psíquico, tendo a necessidade de ser acompanhada psicologicamente pelo Instituto da APAV (Associação Portuguesa de apoio à Vítima). 
B) Factos Não Provados
Com relevância para a boa decisão da causa, não resultaram provados os seguintes:  
a) O arguido sabia que, ao agredir a EMF______  na presença da sua filha DM_______ , que, com 9 anos de idade, já tem percepção dos acontecimentos, ao lhe dirigir as expressões intimidatórias supra descritas, amedrontava-a e ofendia-a psiquicamente, pondo em causa o equilíbrio emocional, afectivo e comportamental da menor, bem como o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.  
C)
Motivação da Decisão de Facto 
Nos termos do disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas. 
Como é consabido, o crime de violência doméstica é cometido, não raras vezes, no interior do domicílio comum ao agressor e à vítima. É, pois, por esse motivo que são muitos os casos em que escasseiam as testemunhas presenciais, tratando-se de casos em que, basicamente, o tribunal tem acesso à palavra do arguido e à palavra da ofendida/vítima. 
Nesse contexto, o tribunal deve analisar as versões apresentadas e complementá-las com a demais prova produzida. 
Apenas dessa forma é possível atribuir maior ou menor credibilidade a cada uma das versões ou quedar-se pela dúvida insanável. 
 Em face do que fica dito, importa explicar o percurso percorrido pelo tribunal na fixação do elenco de factos provados e não provados.
Advertido do direito ao silêncio o arguido optou por não prestar declarações.
A circunstância do arguido não prestar declarações, não releva porque o Tribunal pode lançar mão da demais prova, designadamente testemunhal e documental. 
Destarte, o tribunal deu como provados os factos tendo em consideração o teor do depoimento da ofendida EMF______  , que assumiu contornos de credibilidade, coerência e com laivos típicos de quem diz a verdade (nomeadamente, dando elementos de pormenor de diversas situações, dentro de casa aquando da discussões e agressões. 
A ofendida corroborou o sentido da acusação confirmando a ocorrência dos factos descritos nos pontos 1 a 43 e 50, depondo com espontaneidade e naturalidade, relatando, com precisão e visivelmente comovida e abalada, evidenciando dificuldade em conter o choro face ao efeito que as memórias lhe causavam, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que as agressões físicas e psíquicas ocorreram e desde quando dando ainda nota do agravamento da situação no último ano. 
Este depoimento foi corroborado pelo depoimento da testemunha filha da ofendida e que explicou com clareza e sem contradições o que foi a sua vivência com o arguido durante os anos que partilhou a casa com o mesmo, e que por não suportar a forma como o mesmo tratava a sua mãe, dando-lhe pontapés, empurrões e murros e chamando-lhe “puta” e ameaçando constantemente que as matava, ia fugindo de casa para casa de amigas até ser institucionalizada, pois a mãe, tomava calmantes para conseguir resistir às condutas do arguido, mas não conseguia impedir a ocorrência daqueles episódios que a testemunha não conseguiu suportar e por isso fugia d casa. Foi notória pela forma emocionada como a ofendida relatou os factos que as condutas do arguido lhe provocam sentimentos de tristeza e humilhação e muita dor física e psíquica. 
No que concerne às expressões que o arguido dirigiu à ofendida, o Tribunal também deu credibilidade às declarações da ofendida, que aliás foram corroboradas pela testemunha AR___ e pelo depoimento da testemunha ______, agente da PSP que foi chamado a casa do arguido, no dia 24 de Março de 2021 e que elaborou o auto de notícia de fls. 4 a 8, que depuseram com clareza os factos que presenciaram e que lograram convencer o Tribunal, não restando dúvidas de que o arguido, com muita regularidade, dirigindo-se à sua companheira lhe dizia: “filha da puta”, “porca”, “não serves para nada”, “não sabes fazer nada” e dirigindo-se às filhas “a vossa mãe não serve para nada” “Só serve para trabalhar, caso contrário, já tinha tratado dela”.
 A testemunha ___ corroborou também o depoimento da ofendida quando aos factos que presenciou no dia 24 de Março de 2021, referindo que o arguido se encontrava fechado em casa com as filhas e a ofendida do lado de fora, muito nervosa, e que tentou chamar o arguido à razão, mas sem sucesso, tendo visto a menor DM_______  e a irmã correrem para a mãe assim que conseguiram abrir a porta, apresentando a primeira edema no ante braço esquerdo a precisar de tratamento hospitalar, pelo qual providenciou. 
O depoimento da testemunha DM_______ , não foi considerando pois o Tribunal ficou com dúvidas sobre se o que a menor relatou foi o que presenciou ou se foi antes uma construção da sua memória feita ao longo dos tempos e fruto de conversas tidas em casa pois não é normal que a menor se lembre com tanta precisão os factos que relatou e a idade que tinha quando os mesmos ocorreram, sendo que como se isso não bastasse, referiu um episódio de agressões físicas com um cinto que a mãe desconhecia. 
Quanto ao elemento subjectivo – factos 44 a 47 -, o Tribunal conjugou a prova produzida com as regras da experiência comum, as quais permitem concluir que o arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, mas que não obstante quis empreendê-las. Com efeito, tendo o arguido agido voluntariamente, tem necessariamente consciência que, com as suas condutas ofendia física e psiquicamente a ofendida, causando-lhe sofrimento e que ao agarrar a menor DM_______  da forma com o fez, a ofendia fisicamente causando-lhe dores e ainda assim persistiu nas suas condutas. 
No que respeita às condições económicas e pessoais do arguido - factos 48 e 49 -, o Tribunal considerou as suas declarações – já que as mesmas se revelaram sinceras e, por isso, dignas de serem tomadas em consideração pelo tribunal em conformidade.
 Quanto aos antecedentes criminais, o tribunal teve em consideração o Certificado de Registo Criminal junto aos autos. 
O tribunal teve ainda em consideração o teor da seguinte documentação:  - auto de notícia de fls. 4 a 8; informação do Hospital Fernando da Fonseca de fls. 28, assentos de nascimento d fls. 51, 52, 55 e 162, assento de óbito de fls. 54, cópia do processo 1492/13.3PCSNT d fls. 56 a 60, 63 a 66 ; certidão da sentença proferida naqueles autos de fls.
173 a 176; e ficha RVD 1-L de fls. 339. 
 Quanto aos factos não provados, resultaram os mesmos da ausência de prova suficiente e consistente nesse sentido, pois com excepção para o aperto do braço da menor, nada mais se demonstrou quanto a esta. Aqui chegados cumpre-nos dizer que, cotejada a prova produzida em sede de audiência de julgamento forçoso é que se conclua que o arguido, efectivamente, praticou os factos como supra se elencaram. 
De notar que o depoimento da ofendida foi de per si, absolutamente esclarecedor e suficientemente gráfico quanto ao tratamento infligido pelo arguido à sua pessoa, por diversas vezes, depoimento que foi corroborado pelos depoimentos da sua filha AR___, resultando para mim de forma absolutamente transparente e não se suscitando qualquer dúvida de que o arguido infligiu na ofendida o tratamento vertido na factualidade considerada como provada.”
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III – Do mérito do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos artº 368º e 369º ex-vi artº 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.
Assim, as questões a decidir são as referidas supra e pela ordem ali constante.
A segunda questão suscitada e que cumpre conhecer prende-se com a valoração da prova que levou à convicção que o arguido cometeu factos subsumíveis ao crime de violência doméstica.
Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o artº 410º nº 2 do C.P.P. (a chamada revista alargada), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o artº 412º nº 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
No primeiro caso os vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugados com as regras de experiência comum – sem possibilidade apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratarem-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna e não ao erro de julgamento relativamente á apreciação e valoração da prova produzida.
No segundo caso a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artº 412º do Código do Processo Penal.
De acordo com este normativo, sempre que se pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa e as provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados. 
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. 
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ªinstância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.° do C.P.P.). 
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412° do C.P.P.). (…).” ( Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28).
Contudo, como se lê no Ac. do S.T.J. de 12.06.2008, proc. 4375/07, 3ª, acessível em www.stj.pt  (jurisprudência/Sumários de Acórdãos), a possibilidade de sindicância de matéria de facto sofre no entanto quatro tipos de limitações: 
- “desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.”
No caso, o recorrente não indica os pontos da matéria de facto que, em seu entender, foram mal julgados nem as provas que, também na sua perspectiva, imporiam decisão diversa.
Não transcreve, concretiza e localiza nos suportes digitais as passagens e depoimentos a que alude pelo que este Tribunal conhecerá da impugnação sobre a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Tudo se processa como se o arguido, esgrimindo as suas razões, incumba a este Tribunal a tarefa de encontrar, na miríade de depoimentos prestados, aqueles que, de uma forma ou outra, consigam justificar a sua posição.
Ora, como se salientou, não irá este Tribunal não pode fazer um segundo julgamento.
Não é a sua função. 
Assim, a revista da matéria de facto está irremediavelmente comprometida.
Cumpre, no entanto, deixar claro um outro aspecto suscitado no recurso e que, infelizmente, é recorrente nos recursos interpostos perante este Tribunal que é a convicção de recorrentes que este Tribunal, porque Superior, pode sempre e sem mais impor o seu entendimento da prova à instância inferior.
De facto assim não é.
Havendo a possibilidade (que aqui não há por inépcia do recorrente) de discutir a matéria de facto não interessa, num primeiro momento, saber se a interpretação do recorrente é a correcta ou a mais correcta.
Num primeiro momento cumpre indagar se a escolha feita pelo Tribunal a quo é uma das possíveis.
Se se determinar que assim é não tem o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de revista, de sobrepor o seu entendimento ao do Tribunal da primeira instância pois que tal implicaria uma intolerável intromissão na liberdade de julgamento do Tribunal a quo.
Improcede, pois, este segmento recursal.
O recorrente invoca ainda um vício do artº 410º nº 2 do C.P.P., a saber, a contradição insanável de fundamentação.
Segundo a recorrente existe contradição entre os pontos 44 a 47 dos factos provados, por um lado, e o ponto “A” dos factos não provados, por outro (a recorrente menciona ponto “B” mas este não existe e ante o seu discurso só se pode estar a referir a este ponto).
Deu-se como assente:
“44. O arguido sabia que ela era sua companheira e mãe das suas filhas, e como tal tinha o especial dever de a tratar com dignidade, não obstante, o arguido agiu da forma descrita com o propósito de molestar a saúde física e psíquica da companheira, de afectar a sua liberdade de decisão, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.  
45. O arguido sabia que ao agarrar a menor DM_______  pelo braço da forma que o fez ofendia-a fisicamente não obstante o arguido não se inibiu de actuar da forma descrita.
46. O arguido sabia que a sua filha DM_______ era particularmente indefesa, em virtude da sua tenra idade, bem como sabia que ela era sua filha e estava a seu cargo, tendo por isso para com ela um especial dever de cuidado.
47. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Deu-se como não provado  
“ a) O arguido sabia que, ao agredir a EMF______  na presença da sua filha DM_______ , que, com 9 anos de idade, já tem percepção dos acontecimentos, ao lhe dirigir as expressões intimidatórias supra descritas, amedrontava-a e ofendia-a psiquicamente, pondo em causa o equilíbrio emocional, afectivo e comportamental da menor, bem como o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.”
O vício em apreço [contradição insanável de fundamentação], como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso á decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do CPP, como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-0110 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP). 
Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. 
A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação - dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se -, como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341). A contradição a que se reporta a al. b) do art. 410º do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso á decisão recorrida no seu todo e com recurso ás regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.”
Ora, para que o vício exista terá de existir, como se disse contradição, e tal não existe no caso vertente sendo a decisão recorrida uma peça harmoniosa e coerente, senão vejamos.
O ponto 44 não se refere à menor DM_______  mas sim à assistente pelo que não releva no caso vertente já que o recurso versa a menor DM_______  e não a assistente que age como sua representante.
O ponto 45 já é relevante pois que se refere à menor mas ali o que se diz e extrai é que o arguido quis ofender a integridade física da menor e é esta ofensa e este querer que vão, mais à frente na decisão, sustentar a subsunção que foi feita.
O ponto 46 representa uma generalidade. Afirma o conhecimento do arguido que a vítima era sua filha e que por o ser o arguido tinha especiais deveres. Daqui nada mais se retira senão o conhecimento por parte do arguido deste facto.
O ponto 47 representa a afirmação do conhecimento da ilicitude e a liberdade de auto determinação.
E assim, tendo presente que o que se afirma foi que o arguido quis agredir a filha é apenas lógico e coerente que se dê como não provado que “o arguido sabia que, ao agredir a EMF______  na presença da sua filha DM_______ , que, com 9 anos de idade, já tem percepção dos acontecimentos, ao lhe dirigir as expressões intimidatórias supra descritas, amedrontavaa e ofendia-a psiquicamente, pondo em causa o equilíbrio emocional, afectivo e comportamental da menor, bem como o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.”
Não existe, pois, qualquer contradição.
O que existe é uma diferente apreciação da prova, questão que é muito anterior àquela que aqui se discute. O vício do artº 410º invocado é um vício da decisão e existente na mesma.
Assim, improcede este segmento recursal.
A assistente vem também colocar a questão da medida da pena.
É claro que o faz na perspectiva de que o arguido cometeu um crime de violência doméstica.
Tivesse sido este o caso e o recurso não seria rejeitado como vai ser nesta parte pois que se o crime tivesse sido aletrado faria sentido o assistente ter um interesse próprio na fixação da pena.
Tendo naufragado a pretensão de ver alterado o tipo imputado mais não resta, quanto à pena, que rejeitar o recurso.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que "o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir." (Assento n.º 8/99, de 30 de Outubro de 1997, CJ/STJ V.III.21, CJ/STJ VII.II.26, BMJ 470-47 e 486-21e DR I-A, 10 de Agosto de 1999). 
A jurisprudência mais recente, de que é exemplo o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2011, de 9 de Fevereiro de 2011, proferido no Proc.º n.° 148/07, tratando de questão diversa, não infirma a jurisprudência fixada naquele acórdão, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio.  
Posição que já havia sido reafirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, mormente no seu acórdão de 24 de Outubro de 2002, proferido no processo 02P3183 e consultável em www.dgsi.pt  ("O recurso é de rejeitar, na medida em que o assistente/recorrente não dispõe de [concreta] legitimidade para recorrer (pois que a decisão recorrida não a «afecta» nem foi «contra ela proferida» - art.s 69º nº 2 al. c) e 401º nº 1 al. b) do CPP) nem alegou - e, menos ainda, «demonstrou» - «um concreto e próprio interesse em agir»"). 
Assim sendo, e nesta parte o, recurso terá de ser rejeitado.
Improcede, assim e in totum, a pretensão recursal.
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IV – Dispositivo
Por todo o exposto, acorda-se nesta 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso mantendo-se a mui douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente que se fixam em 3,5 (três e meia) U.C.
Notifique.
 
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Mmª. Juíza Adjunta.
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 16 de Fevereiro de  2022
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Cristina de Almeida e Sousa