RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADE PROCESSUAL
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
RECLAMAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - O acórdão do tribunal da Relação que se pronuncia em conferência sobre uma nulidade processual que se converte em nulidade de decisão, nos termos de se configurar como decisão final com “excesso de pronúncia” uma “decisão-surpresa”, arguida e imputada a anterior acórdão que reapreciou a decisão de 1.ª instância, cujo recurso de revista não é admissível por exclusão-restrição legal (art. 370.º, n.º 2 do CPC), constitui decisão definitiva e não admite recurso de revista (art. 617.º, n.ºs 1, 5, 2.ª parte, 6, 1.ª parte, 666.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
II - Mesmo que seja de configurar exclusivamente o vício como nulidade processual e seguir o regime dos arts. 197.º, n.º 1, 199.º, 200.º, n.º 3 e 630.º, n.º 2, 2.ª parte (susceptibilidade de recurso por violação do princípio do contraditório), do CPC, a impugnação em revista segue o regime recursivo das decisões interlocutórias “novas” proferidas pela Relação (arts. 673.º e 671.º, n.º 4, do CPC). Não estando transitada em julgado a decisão final da Relação à qual se liga o eventual recurso da decisão interlocutória, a consequente aplicação do art. 673.º do CPC, em sede de revista diferida (fora das al. a) e b)), conduz a que a acessoriedade (em relação ao art. 671.º, n.º 1, do CPC) da impugnação dessas decisões interlocutórias “novas” implica que, não havendo ou não sendo admissível em concreto ou não sendo exercida a revista para o STJ das decisões da Relação ao abrigo do art. 671.º, n.º 1, do CPC (no caso, tendo em conta o referido art. 370.º, n.º 2, do CPC), está excluída a revista dessa decisão interlocutória de 2.ª instância que apreciou a reclamação da aludida nulidade.

Texto Integral




Processo n.º 709/21.5T8ACB.C1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Coimbra, 1.ª Secção

Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA intentou procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra «Val do Sol Cerâmicas, S.A.», pedindo que se decrete a suspensão de todas as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da Requerida de 15/3/2021, declarando as deliberações sociais tomadas na referida assembleia nulas/anuláveis. Requereu que fosse decretada a inversão do contencioso (arts. 369º, 376º, 4, CPC) e a dispensa de contraditório prévio (art. 366º, 1, CPC).

2. O Juiz 1 do Juízo de Comércio de Leiria proferiu decisão em 1/6/2021, decretando a providência requerida e, em consequência, declarou a suspensão da execução das deliberações sociais tomadas e deferiu a requerida inversão do contencioso e, em consequência, dispensou o Requerente do ónus de propor a acção principal, declarando, em conformidade, que as deliberações adoptadas na assembleia geral da Requerida de 15/3/2021 são nulas, nos termos do art. 56º, 1, a), do CSC.

3. A Requerida veio, após notificação, deduzir Oposição à providência decretada.
 
4. Realizada a audiência de discussão e julgamento e produzida a prova indicada na Oposição, foi proferida sentença em 16/7/2021, que julgou procedente a excepção de caducidade do procedimento cautelar e declarou extinto o direito cautelar do Requerente.

5. O Requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), que, em acórdão proferido em 23/11/2021, julgou ser a matéria de facto a considerar a dada como provada e não provada pelo tribunal a quo, com excepção do ponto 11, alíneas l) a m), e, no dispositivo decisório, concluiu pelo indeferimento da junção requerida de documentos juntos com as alegações, por falta dos necessários pressupostos legais, devendo ser desentranhados e devolvidos ao apresentante, com custas do respetivo incidente, e pela improcedência da apelação, mantendo a decisão recorrida, ainda que por fundamentação diversa.

6. Inconformado, veio o Requerente arguir por Reclamação junto do TRC nulidades do acórdão proferido, em requerimento fundado nos arts. 666º, 3, e 195º, 1 (nulidade processual) e 615º, 1, d) (nulidade de julgamento por “excesso de pronúncia”), sempre do CPC, peticionando o reconhecimento e a declaração das nulidades invocadas (nulidade processual e nulidade de decisão).
Em conferência, o TRC proferiu acórdão em 25/1/2022, desatendendo a nulidade arguida.
Assim fundamentou:

“O art. 665º nº 2 do CPC impõe ao Tribunal de recurso o conhecimento das questões que foram consideradas prejudicadas pela solução dada ao litígio, sempre que o tribunal disponha dos elementos necessários. E estabelece o artº 665º, nº 3 do mesmo preceito legal que o relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.
O art. 665º, nº 3 constitui emanação do princípio do contraditório e tem por fim evitar a prolação de decisões surpresa.
Não suscita dúvidas que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processado o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (art. 3º, nº 3 do CPC).
Este normativo pretende impedir que o tribunal emita pronúncia ou profira decisão nova sem que, previamente, acione o contraditório. Este princípio é corolário ou consequência do princípio do dispositivo, emergente, para além de outras disposições, do nº1 do artº 3º do CPC, destinando-se a proteger o exercício do direito de ação e de defesa.
O princípio do contraditório, consagrado no art. 3º nº 3 do CPC, é um dos princípios basilares que enformam o processo civil. No entanto este princípio não é de aplicação absoluta, havendo situações em que ele poderá não ser atendido, ou mitigado, como ocorre
nos processos urgentes, em que a audição da parte contrária pode ser dispensada ou por manifesta desnecessidade.
O que deve entender-se por manifesta desnecessidade, caso em que a audição das partes não será necessária, constitui-se como o cerne da questão e só a jurisprudência pode ajudar a esclarecer, dependendo do caso concreto em apreciação.               
O arguente pugna pela nulidade do acórdão porque em seu entender, o tribunal não poderia se ter pronunciado sobre a falta de registo das ações, sem previamente ter ouvido às partes.
O arguente interpôs o presente procedimento cautelar fundamentado na sua qualidade de acionista da apelada por ter adquirido um determinado número de ações e na tomada de decisões deliberações nulas e/ou anuláveis.
Na decisão proferida sem audição da parte contrária, desde logo, se referiu a necessidade do registo das ações na sociedade emitente, para que o adquirente pudesse adquirir o direito de propriedade sobre as ações. No entanto, contraditoriamente com toda a argumentação jurídica defendida, a decisão proferida sem audição da parte contrária, não retirou da argumentação jurídica que desenvolveu, as devidas ilações, ou seja, de que o requerente não tendo alegado e muito menos demonstrado o registo da transmissão das ações, não detinha a qualidade de acionista da requerida, pressuposto essencial para que pudesse requerer a suspensão das deliberações em causa.
A qualidade (ou não de acionista) não se confunde com a legitimidade das partes. Face à previsão da lei – art. 30º CPC – para efeitos de aferir da legitimidade interessa apenas a relação jurídica controvertida com a configuração subjetiva que o autor (unilateralmente) lhe dá. Assim, tendo o requerente alegado ser acionista da requerida, detinha legitimidade para instaurar o procedimento cautelar. Se, na decisão, se vier a concluir, como se concluiu, que o requerente não detém essa qualidade, então haverá lugar a improcedência do procedimento e não à absolvição da instância, por ilegitimidade ativa.
A questão da qualidade do requerente como acionista foi fortemente debatida ao longo do processado. Na oposição que deduziu, a sociedade requerida, negou que o apelante fosse acionista da sociedade, pois que não adquiriu quaisquer ações aos seus tios, pois quem as comprou foi o seu pai, a favor de quem se mostram registadas as ações no livro de registo de ações da sociedade emitente e veio arguir ainda a caducidade do procedimento.
Não havendo contraditório do requerido na fase inicial do procedimento, o contraditório é relegado para um momento posterior, caso a providência seja decretada, situação em que o requerido poderá em alternativa recorrer do despacho que tiver decretado a providência – quando entenda que face aos factos apurados não deveria ter sido decretada – ou deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova que não tenham sido levados em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. Pela via da oposição à providência cautelar, o requerido procurará alterar a decisão proferida pelo julgador, carreando para os autos elementos factuais e/ou probatórios que eram desconhecidos do tribunal aquando do acolhimento da providência. A decisão inicial, proferida antes da audição do requerido, pode, assim, ser alterada por via do recurso ou da oposição. No caso em apreciação, o apelante porque pretendeu alegar factos novos e juntar meios probatórios, decidiu-se pela oposição. E por força da procedência da exceção de caducidade, o tribunal a quo acabou por não conhecer da questão posta em causa pela oposição – a falta da qualidade de acionista do requerente – questão que ficou prejudicada pela decisão relativamente à questão da caducidade.
O tribunal da Relação não estava impedido de analisar a questão da qualidade de acionista do requerente, antes se lhe impunha, em cumprimento da regra da substituição e porque dispunha de todos os elementos para o efeito. O processo subiu a este tribunal com todas as suas peças e a prova mostra-se gravada. A apreciação pela Relação das questões prejudicadas, é apreciada, ainda que não tenha havido expressa iniciativa das partes, sendo que no caso, o apelante até requereu que o tribunal de recurso conhecesse das questões que tinham ficado prejudicadas (conclusão 134 do recurso). A apelada não estava obrigada a pedir à ampliação do objeto do recurso, nem o podia fazer no caso, uma vez que a decisão que conheceu da oposição não chegou a pronunciar-se sobre a questão relativa à qualidade de acionista do requerente, não podendo, assim, ser considerado que a apelada tinha decaído nesse fundamento, como exige o art. 636º 1 do CPC para a ampliação do recurso.
Ora, não se põe em dúvida que a fim de evitar decisões surpresas, as partes devam ser ouvidas antes da decisão, mas tal audição só se imporá, se a decisão que vier a ser proferida possa constituir uma verdadeira surpresa para a parte. É esse o fundamento para se proceder à audição das partes, conferindo-lhe o exercício do direito que detém de influenciar a decisão com os argumentos jurídicos que entenderem pertinentes.
A decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.
Estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela.
Decisão-surpresa é apenas aquela em que o tribunal se pronuncia sobre e/ou decide algo com que a parte (apesar de competentemente patrocinada), de forma expectável ou previsível, não podia nem devia contar, usando de normal diligência, competência, aptidão e sagacidade.
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães, de 19-04-2018, proc.75/ 08.4TBFAF.G1, onde, por referência a variada Doutrina e Jurisprudência, proficientemente se escalpeliza o tema, “não existirá decisão-surpresa quando a decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspetivado como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado, pelo que se não o fez, sibi imputet.”
O apelante não podia desconhecer, como não desconhecia, que se o tribunal de recurso viesse a dar-lhe razão e a julgar improcedente a exceção de caducidade, teria de se pronunciar sobre a qualidade de acionista que invocou e que a requerida negou. Nessa tarefa a Relação teria de apreciar se estavam reunidos os pressupostos legais para o apelante ser reconhecido
como titular das ações, designadamente se se mostrava efetuado o registo da transmissão das ações.
A Relação limitou-se a pronunciar-se sobre a questão já debatida no processo – qualidade (ou não) de acionista do requerente. Os fundamentos invocados (os argumentos jurídicos que não se confundem com questões) situam-se dentro do geral e abstratamente permitido pela lei que de antemão pode e deve ser conhecido ou perspetivado como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte poderia emitir pronúncia.
O âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal de recurso, é balizado (i) pela matéria de facto alegada em primeira instância, (ii) pelo pedido formulado pelo autor em primeira instância e (iii) pelo julgado na decisão proferida em primeira instância, ressalvada a possibilidade legal de apreciação de matéria de conhecimento oficioso e funcional, de factos notórios ou supervenientes, e de ampliação do objeto por anulação do julgado e ainda, como se verifica no caso, no uso de poderes de substituição da Relação.
A decisão do tribunal não pode ser entendida como uma decisão surpresa, pelo que não exigia a prévia audição das partes. O tribunal pronunciou-se sobre questão longamente debatida nos articulados e no recurso – a qualidade (ou não) de acionista do requerente – e não faz apelo a um enquadramento jurídico que não se situe dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspetivado como possível e em relação ao qual a parte poderia emitido pronúncia se assim o entendesse, não se impondo consequentemente a sua audição prévia.
Não ocorreu assim, a nulidade processual invocada.

O apelante veio também invocar a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia “apenas à cautela e por mero dever de patrocínio”.
Não resulta claro do requerimento do apelante, se veio arguir este vício, à cautela, face à dualidade de entendimentos a propósito da questão – violação do princípio do contraditório/decisão surpresa –, prevenindo a hipótese de se entender que tal vício não constitui uma nulidade a arguir nos termos do art. 195º do CPC, mas sim a ser invocado com fundamento no artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC, perante o tribunal que proferiu a decisão, quando não cabe recurso da decisão da Relação para o STJ, como se verifica no caso, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível (art. 370º, nº 2 e 615º, nº 4 do CPC) ou se o veio arguir para o caso do tribunal conhecer a invocada nulidade processual e a julgar improcedente.
Para o caso do apelante ter pretendido arguir, subsidiariamente, a nulidade da sentença prevista na alínea d) do nº 1 do artº 615º do CPC, também este vício não se verifica. O acórdão recorrido apenas se ocupou da questão suscitada nos autos – qualidade de acionista do requerente – como mais detalhadamente se referiu supra e aplicou o direito ao caso concreto, fazendo apelo às pertinentes normas jurídicas, sendo que na interpretação e aplicação das regras de direito o juiz não está sujeito às alegações das partes (art. 5º nº 3 do CPC).”

7. Mais uma vez inconformado, o Requerente interpôs recurso de revista para o STJ, visando revogar o acórdão proferido em conferência que apreciou e decidiu a Reclamação relativa à nulidade arguida.
            Finalizou as suas alegações com as seguintes Conclusões:


“1. O ora Recorrente, intentou procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra Val do Sol Cerâmicas, S.A., pedindo que se declare a suspensão de todas as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da Requerida, de 15 de março de 2021, declarando as deliberações sociais tomadas na referida assembleia nulas/anuláveis.

Alegou, e em síntese,

2. Ser acionista da Requerida.
3. A assembleia da Requerida, ocorrida a 15 de março de      2021, não foi precedida de qualquer convocatória.
4. Na referida assembleia apenas esteve presente o acionista BB.
5. Uma vez que a assembleia não foi precedida de qualquer convocatória, e não se assumindo a mesma como uma assembleia universal (cfr. artigo 54.º, do CSC), são nulas as deliberações tomadas, face ao disposto no artigo 56.º, n. º1, al. c), do CSC.
6. Mais alegou que à referida assembleia nã compareceu o presidente da mesa da assembleia geral. Quem presidiu à mesma foi CC que não pertencia a qualquer órgão estatutário da sociedade e, como tal, carecia de legitimidade para assumir a presidência da mesa da assembleia geral (cfr. artigo 374.º, n.º 3,do CSC).
7. Tal circunstancialismo determina a anulabilidade das deliberações tomadas (cfr. artigo 58.º, n.º 1, do CSC).
8. Quanto ao dano apreciável, invocou que com a deliberações em causa, o Requerente deixou de poder exercer                os            seus        direitos enquanto administrador da sociedade Requerida, ficando afastado da vida da sociedade, com o consequente reforço dos poderes do acionista BB.
9. Mais acrescentou que o acionista BB apresenta um quadro de perturbação de jogo patológico e de adição de álcool, aproveitando o seu cargo de presidente do conselho de administração para utilizar os recursos da Requerida na sua adição. Acresce que interfere negativamente no processo produtivo da requerida com elevados prejuízos para a sociedade.
10. Após ter sido concedida a providência, sem contraditório, reconhecendo legitimidade ao Requerente, a Requerida foi notificada, deduziu oposição, procedeu-se à produção de prova indicada na oposição e foi proferida sentença que julgou procedente a exceção de caducidade do procedimento cautelar e declarou extinto o direito cautelar do requerente, tendo ficado prejudicadas as demais questões suscitadas na oposição.
11. O requerente não se conformou e interpôs recurso de apelação.
12. Pelo acórdão proferido foi julgado improcedente o recurso. Embora se tenha dado razão ao apelante, relativamente à questão da caducidade da providência, considerando-se que não tinha ocorrido a caducidade do direito cautelar do requerente, considerou-se que o requerente não tinha demonstrado a qualidade de acionista da requerida, por ter sido considerado que não resultou demonstrado que o requerente beneficiava do pedido de registo das acções a seu favor junto do emitente.
13. Razão pela qual, foi julgada improcedente a apelação, mantendo a decisão de improcedência, mas por fundamentação diversa.
14. Notificado do acórdão, veio o apelante arguir a sua nulidade (processual), alegando que o tribunal conheceu certas questões, em substituição do tribunal recorrido, mas que esse conhecimento deveria ter sido precedido da notificação prevista no nº 3 do art. 665º do CPC. A omissão da referida formalidade processual porque constitui uma omissão de um ato que a lei prescreve e porque influi clara e manifestamente no exame e na decisão da causa, importa a nulidade prevista no art. 195º do CPC.
15. Mais referiu que requereu ao tribunal de recurso que nos termos expressos do art. 665º, nº 2 do CPC conhecesse das demais questões que o tribunal a quo considerou prejudicadas, mas que com tal requerimento não pretendeu renunciar ao direito de ser ouvido antes da decisão. O apelante não se pronunciou nas alegações de recurso sobre a questão do registo das ações e não deveria ter sido proferida decisão, sem ter sido efetuada a sua notificação prévia para se pronunciar.
16. Acrescentou o Recorrente que caso se considerasse que a violação do princípio do contraditório não configurava uma nulidade processual, sempre o douto acórdão deveria ser considerado nulo por excesso de pronúncia, pois que o tribunal estava impedido de conhecer da questão do registo (ou não) das ações junto da sociedade emitente, por não se tratar de questão de conhecimento oficioso. A questão da legitimidade do recorrente nunca foi posta em causa, com fundamento na falta de registo de aquisição das ações junto do emitente, mas sim porque a sociedade, representada por BB, veio alegar que quem tinha comprado aquelas acções havia sido este, no entanto, não o provou, assim como resultou não provado o registo junto do emitente de acções de BB (facto z dos factos não provados).
17. O recorrente pugnou para que, considerando o Tribunal a quo que o registo a favor do recorrente, requerente do procedimento cautelar, não estava demonstrado, sempre teria de ser proferida decisão no sentido de: - ordenar, em caso de fundada dúvida sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; - anular a decisão proferida pela 1ª instância, por não constarem do processo todos os elementos que permitam a alteração da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta, o que o Tribunal da Relação não fez.
18. Concluiu assim o recorrente pela procedência da nulidade, em qualquer dos casos: nulidade processual ou nulidade da sentença.
19. A parte contrária, por sua vez, veio pugnar pela improcedência da arguição de nulidade, alegando que, como resulta do acórdão prolatado, a questão da necessidade do registo das ações já havia sido apreciada, embora de forma sumária.
20. E efectivamente, essa questão foi aflorada apenas de forma sumária, apenas na dissertação de direito sobre as várias teses sobre a transmissão de acções, na primeira decisão singular, sem contraditório, onde foi reconhecida a legitimidade do requerente, ora recorrente, questão que não foi objecto de oposição da requerida com esse fundamento (o da falta de pedido de registo).
21. Aliás, veio a requerida alegar que BB é que havia adquirido aquelas acções e que beneficiava de registo a seu favor, no entanto, reitera-se, essa matéria de facto foi, e mantém-se, julgada não provada.
22. A decisão singular, após contraditório, que foi recorrida, julga improcedente o procedimento, mas apenas por caducidade do exercício do direito.
23. No entanto, da matéria de facto julgada provada na decisão singular recorrida, no essencial, mantida tal e qual a proferida na decisão sem contraditório, inexiste fundamento para proferir decisão diferente da primeira, que não reconheça legitimidade ao ora Recorrente.
24. Certo é que, a falta de legitimidade do recorrente, pela falta de prova de pedido de registo junto do emitente, não foi alegada pela requerida na sua oposição, não foi sequer aflorada nas alegações do recorrente, nem nas contra-alegações da recorrida, logo, a falta de legitimidade com este fundamento, sempre será decisão surpresa.
25. E não se diga que assim o é apenas porque o recorrente fez suposições quanto à decisão ou criou expectativas que deveria ter acautelado, que tinha a obrigação de prever, que lhe era exigível ter perspectivado, tomando oportunamente posição sobre ela.
26. Pois é certo que, o momento oportuno para tomar posição sobre todas as questões sempre será a petição inicial ou a oposição e o exercício do contraditório à medida que as questões surgem nos autos alegadas pelas partes.
27. Certo é que esta questão, a da legitimidade do recorrente, foi decidida na primeira decisão sem contraditório, colocada em causa na oposição, com fundamento diferente que não se provou, totalmente omitida nas alegações de recurso, que balizam o poder cognoscível do tribunal de recurso e também não foi alegada nas contra-alegações.
28. Assim, decidindo como decidiu o tribunal a quo, mantendo a decisão de improcedência, mas por fundamento diferente – que não é de conhecimento oficioso,
29. Sempre estaremos perante uma decisão surpresa por comportar uma solução jurídica diferente da alegada por ambas as partes, com fundamento em facto não contestado pela requerida e que não é de conhecimento oficioso.
30. Importa evidenciar que, a não notificação das partes nos termos determinados no n.º 3 do art. 665º do CPC não se confunde com o livre arbitrío do juiz na apreciação da “manifesta desnecessidade” prevista no n.º 3 do art. 3º do CPC.

Porquanto,
31. Não obstante o princípio do contraditório dever ser observado e cumprido, salvo caso de manifesta desnecessidade, ao longo de todo o processo, não sendo lícito ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas de pronunciarem,
32. Certo é que o contraditório previsto no n.º 3 do art.. 665º do CPC é de cumprimento obrigatório, por estipular um ritualismo processual que se não for cumprido consubstancia uma nulidade processual ou secundária, prevista no art. 195 do CPC, que foi arguida em momento próprio e, não obstante, não foi reconhecida, decisão de que ora se recorre.
33. E não se diga que a falta de cumprimento deste ritualismo processual não pode influir na decisão da causa, porquanto,
34. Desconhecendo, como desconhece, o tribunal a quo, o que é que as partes diriam se ouvidas,
35. Considerar que a sua audição não teria a virtualidade de influir na decisão da causa, é uma presunção inadmissível, equivalente a querer o tribunal substituir-se às partes, presumindo ter a capacidade de o fazer, o que, mesmo que tivesse, nunca seria admissível nos termos da lei processual civil, atento, quer ao princípio do dispositivo, quer ao princípio do contraditório.
36. A correcta compreensão do princípio do contraditório implica que as partes possam pronunciar-se quanto a questões determinantes para a decisão a proferir e que, constituindo novidade no processo, por não alegadas até então pelas partes, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.
37. Certo é que, in casu, o cumprimento do n.º 3 do art. 665º do CPC não colocaria em causa a celeridade processual pretendida, pois o tribunal estipularia necessariamente prazo para que as partes se pronunciassem e este não retardaria de forma prejudicial a decisão a proferir, resultando que prejudicado ficou irremediavelmente o princípio do contraditório, ferindo a decisão proferida por esta violação.
38. Se é certo que se pretende justiça rápida, mais certo é que se pretende justa e inquestionavelmente proferida em obediência e respeito pela lei.
39. Neste sentido, vide Acórdão do STA, de 20-01- 2016, Proc. 01149/15, disponível em www.dgsi.pt, sumariado da seguinte forma:
“II – O tribunal de recurso não pode conhecer de questão que a sentença tenha considerado prejudicada pela solução dada a litígio sem se assegurar de que as partes tiveram oportunidade, perante ele, de alegarem sobre a mesma, motivo por que, a menos que as partes se hajam pronunciado nas alegações de recurso sobre essa questão (à cautela e para a eventualidade de a sentença ser revogada), a falta da notificação prevista no n.º 3 do art. 665.º do CPC (anterior art. 715.º), porque susceptível de influir na decisão da causa, constituirá nulidade processual, a determinar a anulação do processado ulterior que tenha sido afectado por essa omissão, de acordo com o disposto nos n.os 1 e 2 do art. 195.º do CPC (anterior art. 201.º) (...).”
40. Ao não notificar o ora Recorrente nos termos do disposto no n.º 3 do art. 665º do CPC, o Tribunal da Relação omitiu, indubitavelmente, acto prescrito pela Lei, omissão que influiu no exame e na decisão da causa.
41. Tal omissão teve manifesta influência no exame e na discussão da causa.

Porquanto,
42. Se é certo que o Recorrente requereu que, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 665º do CPC, que o tribunal a quo conhecesse das demais questões que o tribunal a quo considerou prejudicadas pela solução que deu ao litígio, caso o tribunal a quo entendesse que nada obstava à apreciação daquelas, por considerar que dispunha dos elementos necessários para decidir,
43. Certo é que o Recorrente, com tal requerimento, não renunciou à faculdade que a Lei lhe confere, de ser notificado para, no prazo de 10 dias, se pronunciar antes de ser proferida a decisão, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 665º do CPC.
44. Assim como é certo que o Recorrente não se pronunciou, nas suas alegações de recurso, sobre a questão do registo junto do emitente, não lhe tendo sido concedida a oportunidade de se pronunciar sobre essa questão junto do Tribunal da Relação, que, para isso, deveria ter procedido à notificação determinada no n.º 3 do art. 665º do CPC.
45. Pois, caso assim tivesse sucedido, o Recorrente sempre teria exercido o seu direito, pronunciando-se antes da prolação da decisão.
46. Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, os recursos são meios de obter a reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a Lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita, por isso, a conhecimento oficioso.
47. Sucede que, mesmo que se considerasse que tal questão se tratava de matéria de conhecimento oficioso, o que não se concede,
48. Certo é que, não pode, como foi, ser vedado ao Recorrente o direito se pronunciar sobre questão que até então não se havia pronunciado junto da Relação.”

A sociedade Requerida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

8. Depois, a mesma Requerida apresentou requerimento invocando a não admissão do recurso, por força dos arts. 370º, 2, e 629º do CPC. O Requerente respondeu, pedindo o desentranhamento dos autos e, em especial, invocando o art. 630º, 2, in fine, do CPC, em abono da admissibilidade do recurso.

Na sequência, foram proferidos despachos pelo Senhor Juiz Desembargador Relator no TRC (22/3/2022): (i) ordenando o desentranhamento desse requerimento da Requerida e Recorrida, por inadmissível; (ii) admitindo o recurso interposto do acórdão de 25/1/2022, tendo em vista a possibilidade de aplicação do art. 630º, 2, do CPC.

9. Confrontado com a possibilidade de não conhecimento do objecto do recurso, foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito e para o efeito previsto no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC.

Respondeu o Recorrente, reiterando, em síntese, os argumentos anteriores e pugnando pela admissibilidade da revista nos termos do art. 630º, 2, 2ª parte, do CPC.

Respondeu a Recorrida, pugnando pela inadmissibilidade da revista à luz da aplicação conjugada dos arts. 615º, 4, e 617º, 6, do CPC.

Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS

10. A factualidade relevante é a que consta do Relatório.

11. Sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso

11.1. O art. 370º, 2, do CPC prescreve uma regra geral de irrecorribilidade para o STJ das decisões judiciais proferidas nos procedimentos cautelares, tendo como excepção a impugnação fundada numa das situações de revista extraordinária previstas nas alíneas a) a d) do art. 629º, 2, do CPC.
Esta regra afecta o acórdão proferido pela Relação em 23/11/2021.

11.2. A nulidade processual fundada na violação do exercício do contraditório (no caso, referida à providência do art. 665º, 3, em relação com o seu n.º 2, do CPC) e consequente prolação de uma “decisão-surpresa” (nulidade inominada ou atípica ou secundária nos termos do art. 195º, 1, do CPC) é absorvida e consumida como nulidade de decisão ou julgamento enquanto vício próprio e autónomo que se projecta na decisão judicial afectada, traduzindo-se em “excesso de pronúncia” pela falta do contraditório e ofensa ao princípio da proibição de decisões-surpresa, sancionada nos termos do art. 615º, 1, d), 2ª parte, do CPC, aqui aplicável por força do art. 666º, 1, do CPC.
Na verdade, se for de concluir pela imperatividade do exercício do contraditório, desde logo para assegurar que a igualdade das partes seja respeitada na tramitação destinada ao julgamento e prolação da decisão final, e verificada a sua omissão, estamos à partida perante uma nulidade processual, uma vez que a sua inobservância é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, de acordo com a cláusula geral constante do art. 195º, 1, do CPC para as nulidades inominadas[1].
Porém, estamos confrontados com algo mais crucial na sua consequência, uma vez que a formalidade de cumprimento obrigatório resultante do art. 3º, 3, e 4º do CPC, em especial a que pretende evitar “decisões-surpresa” no julgamento das questões de direito, se projecta no conteúdo da própria decisão proferida, tendo em conta que a decisão que surpreende a parte sem pronúncia se debruça sobre uma matéria que o tribunal não podia conhecer e decidir sobre o mérito antes de ouvir essa mesma parte. Por isso, essa omissão – ab initio, uma nulidade processual – acaba por ser coberta pela decisão judicial a que se reporta e, com isso, consubstancia in fine, por nela se consumir, uma nulidade decisória, por aplicação do art. 615º, 1, d), do CPC, enquanto excesso de pronúncia ilícito ou pronúncia indevida sobre questão ou questões sobre as quais, sem a audição prévia das partes, não se poderia pronunciar («O juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»)[2].

11.3. O art. 615º, 4, do CPC prescreve: «As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença, se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.» (aplicável à Relação por força do art. 666º, 1, do CPC).
Por seu turno, o art. 617º, 6, do CPC determina: «Arguida perante o juiz que proferiu a sentença alguma nulidade, nos termos da primeira parte do n.º 4 do artigo 615º, ou deduzido pedido de reforma da sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada (…).» (aplicável à Relação por força do art. 666º, 1, do CPC).

11.4. A aplicação ao caso do art. 617º, 6, 1ª parte, não sendo admissível recurso nem tendo sido interposto recurso com base em revista extraordinária para o acórdão reclamado em 2.ª instância, isto é, o proferido em 23/11/2021, tudo com referência ao art. 370º, 2, do CPC, não deixa dúvidas sobre a definitividade decisória do decidido pelo acórdão agora recorrido, restrito na sua decisão à apreciação das nulidades (simultaneamente processual e, em termos últimos, decisória) invocadas pelo Recorrente. Configura-se, por isso, quanto ao acórdão proferido em conferência em 25/1/2022, uma decisão insusceptível de impugnação em sede de revista para o STJ sobre essa apreciação.

Sem prejuízo.

11.5. Mesmo que se considerasse que a alegação feita junto da Relação se submetesse exclusivamente ao regime da nulidade processual, considerando os arts. 197º, 1 + 199º + 200º, 3 (vista como reclamada junto do tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida), e, depois, o art. 630º, 2, 2ª parte, do CPC (e se coloca a questão neste caso de susceptibilidade de recurso pela invocada violação do princípio do contraditório), de todo o modo – atenta a necessidade de adequação deste último preceito de admissibilidade a uma impugnação de decisão da Relação para o STJ – sempre estamos perante um acórdão da Relação proferido na pendência do processo em 2.ª instância, que aprecia questão processual, sem que possa ser qualificada a decisão aqui recorrida – o acórdão proferido em conferência em 25/1/2022 – como decisão final nos termos do n.º 1 do art. 671º, nem decisão interlocutória “velha”, nos termos do art. 671º, 2, do CPC.
Assim, estaremos perante o regime dos arts. 673º (revista diferida e acessória, desde que admitida a revista de que depende nos termos do art. 671º, 1, ou revista autónoma e imediata, esta excepcionalmente de acordo com as situações previstas nas duas alíneas do respectivo n.º 2) e 671º, 4 (revista diferida e autónoma, caso tenha «interesse para o recorrente» a sua impugnação, independentemente da não impugnação da decisão final em 2.ª instância, uma vez inexistente ou não admitido ou não exercido o recurso à luz do art. 671º, 1) – ou seja, perante a disciplina da revista de “decisões interlocutórias novas”[3].

Perante a dicotomia descrita para as decisões interlocutórias novas – que dão por isso origem a “revistas novas”, interpostas da decisão de questões, normalmente de natureza processual, originadas e pela primeira vez proferidas pela Relação[4] –, a linha de fronteira-regra será a exclusão legal da revista ou a inadmissibilidade em concreto de recurso de revista do acórdão conexo da Relação, de acordo com o âmbito de previsão do art. 671º, 1, a que se possa acoplar a impugnação do acórdão sobre tais decisões interlocutórias da Relação: se assim for, ou seja, insusceptibilidade – ou ausência, por opção da parte vencida[5] – de recurso de revista da decisão final da Relação à qual se liga o recurso da decisão interlocutória, o regime será o do art. 671º, 4 (recurso autónomo em referência ao trânsito em julgado da decisão final); se for possível e admissível (e exercido) o recurso de revista da decisão interlocutória conexa, de acordo com o art. 671º, 1, o regime de admissibilidade será o do art. 673º[6]
Em especial, para o caso de se admitir no caso que a impugnação do acórdão recorrido incide sobre nulidade que não se projecta na decisão recorrida da Relação e não se comporta como uma nulidade de decisão, e não havendo ainda trânsito em julgado da decisão final associada, rege o art. 673º do CPC: «Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de revista que venha a ser interposto nos termos do n.º 1 do artigo 671º, com exceção: a) Dos acórdãos cuja impugnação com o recurso de revista seria absolutamente inútil; b) Dos demais casos expressamente previstos na lei.» (em conjugação, se for o caso, com o art. 677º do CPC). Daqui resulta, a contrario sensu, que, não sendo caso de revista imediata, a acessoriedade (em relação ao art. 671º, 1, do CPC), da impugnação das decisões interlocutórias “novas” implicará que, “caso não houver ou não for admissível revista das decisões previstas no n.º 1 do art. 671.º[,] as mesmas não possam ser impugnadas em revista”[7].
Logo, também por esta via, em face da inadmissibilidade da revista prescrita pelo art. 370º, 2, do CPC, e não obstante o previsto no art. 630º, 2, 2ª parte, do COC, improcede a pretensão recursiva do Recorrente.

Por tudo e em ambas as frentes colocadas pelo Recorrente, estamos perante uma decisão insusceptível de qualquer impugnação em sede de revista para o STJ e subsequente sindicação por esta última instância.


11.6. Tais soluções não colocam qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente à luz da tutela jurisdicional efectiva que a CRP consagra (art. 20º, 1 e 4), como inúmeras vezes e em oportunidades diversas de discussão processual tem sido reiterado por este STJ para regimes que consagram restrições ou proibições de acesso recursivo ao último grau de jurisdição.
Com efeito, é entendimento aceite na doutrina e na jurisprudência constitucional que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado aos regimes de impugnação recursiva, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática desses actos (incidente aqui na impugnação recursiva).
Não é aqui o caso.
Aqui apenas se discute o impedimento de revista do acórdão que aprecia e decide de nulidades uma vez não admitido por força da lei o recurso do acórdão da Relação a que essas nulidades diziam alegadamente respeito: seja visto o alegado vício como nulidade de decisão, seja visto como nulidade processual atípica ou secundária. E, assim sendo, não se configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como prescrito no art. 2º da CRP). A Constituição faculta ao legislador um grande espaço de definição e é desejável que assim o faça nesta matéria da impugnação recursiva (em geral e em especial) e das condições básicas que os interessados têm que conhecer e cumprir para a ela ter acesso, em face dos contextos de impugnação e dos interesses visados com a admissão ou não de impugnação, nomeadamente em face do acesso (hierarquicamente elevado) ao terceiro grau de jurisdição.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso, atenta a sua manifesta inadmissibilidade.

Custas pelo Recorrente.

STJ/Lisboa, 7 de Junho de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] Por todos: MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pág. 48, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 1.º, Artigos 1.º a 361.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 195º, págs. 401-402.
[2] Com indiscutível adesão na jurisprudência do STJ (por ex., Ac. de 16/12/2021, processo n.º 4269/15.4T8FNC-E.L1.S1, Rel. LUÍS ESPÍRITO SANTO, aqui 2.º Adjunto), v. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Decisão-surpresa; nulidade da decisão”, Comentário ao Ac. da Relação de Évora de 10/4/2014 (processo n.º 500/12.0TBABF-KE1), com data de 10/5/2014: https://blogippc.blogspot.com/2014/05/decisao-surpresa-nulidade-da-decisao.html; “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, com data de 22/9/2020: https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html; “Por que se teima em qualificação a decisão-surpresa como uma nulidade processual”, com data de 12/10/2021: https://blogippc.blogspot.com/2021/10/por-que-se-teima-em-qualificar-decisao.html; “Artigo 3º”, CPC Online, Art. 1.º a 58.º, Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com/2022/01/cpc-online-8.html), pág. 5. Convergente: ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 627º, págs. 26 e ss (com jurisprudência), salientando-se que, “designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3.º, n.º 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, sendo o recurso a via mais ajustada a recompor a situação integrando no seu objeto a arguição daquela nulidade”.
[3] V. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, págs. 174, 175, 176, sub art. 173º, pág. 192, PINTO FURTADO, Recursos em processo civil (De acordo com o CPC de 2013), 2.ª ed., Nova Causa/Edições Jurídicas, Braga, 2017, págs. 126, 128 e ss, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, sub art. 673º, pág. 224.
[4] JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 676.º a 800.º, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, sub art. 721º (regulador da matéria antes do CPC 2013), pág. 143, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 673º, pág. 224.
[5] Neste sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, pág. 359, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 673º, pág. 224.
[6] V. RUI PINTO, Notas…, Volume II cit., sub art. 671º, pág. 176, sub art. 673º, pág. 192, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, pág. 359, sub art. 673º, pág. 394.
[7] RUI PINTO, Notas…, Volume II cit., sub art. 673º, pág. 192.