RECURSO DE REVISTA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AÇÃO DE ANULAÇÃO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
ÓNUS DA PROVA
INCAPACIDADE
FACTOS ESSENCIAIS
Sumário


I - Fundando-se o recurso de revista na averiguação das regras inerentes ao exercício do poder-dever previsto no art. 662.º do CPC quanto à reapreciação pela Relação da matéria de facto, apoiada no fundamento previsto nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, pode ser sindicada a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada - não uso ou uso ilícito ou indevido dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respectivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício -, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662.º, resultam da remissão do art. 663.º, n.º 2, para o art. 607.º, n.ºs, 4 e 5, do CPC (o n.º 2 já é reforço dos poderes em segundo grau), com a restrição constante do art. 662.º, n.º 4, do CPC (“Das decisões da Relação previstas no n.os 1 e 2 não cabe recurso para o STJ”).
II - Assumindo-se a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio 2.º grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo, sempre que essa reapreciação se move no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que se tenha desrespeitado o valor probatório tarifado de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório, essa actuação regida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC é legítima e insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC.
III - Em sede de anulabilidade do testamento “por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória” (art. 2199.º do CC), o ónus da prova dos factos constitutivos que se traduzem no vencimento do direito à anulação do testamento recai sobre o autor interessado na acção, nos termos dos arts. 342.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, do CC., conduzindo à verificação do estado de incapacidade que impedia um entendimento sobre a disposição dos bens e um discernimento e compreensão sobre as respectivas consequências, ou a falta de liberdade de exercício da sua vontade, ainda que transitória, relativamente ao acto testamentário. Não se fazendo prova sobre esse estado de incapacidade no momento da outorga do testamento, falece a factualidade essencial ao preenchimento do fundamento legal da anulação do testamento.

Texto Integral




Processo n.º 6138/18.0T8VNG.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 5.ª Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. AA, BB e CC intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra DD, alegando que EE, irmã da Ré e tia dos Autores, outorgou um testamento sem que tivesse capacidade de compreensão dos seus actos de disposição do património, encontrando-se então também incapaz de expressar qualquer declaração de vontade e entender o sentido de tal acto, peticionando:
a) - Ser anulado o testamento de EE outorgado em 09 de Maio de 2005, no Cartório Notarial ... pelo Notário ... FF, junto à presente p.i. como doc. 8, por a mesma EE, irmã da e tia dos Autores, não estar capaz de expressar qualquer declaração de vontade e entender o sentido de tal acto;
b) - Ser a DD condenada a reconhecer o pedido formulado em a), Com as legais consequências.”        

2. Citada, a Ré apresentou Contestação, impugnando parcialmente os factos, designadamente no que concerne à incapacidade da testadora, tendo em ... sustentar a ausência de qualquer vício que inquinasse o testamento, concluindo pela improcedência da acção e absolvição do pedido.
Os Autores apresentaram Resposta, no exercício do contraditório.

3. Foi proferido despacho que fixou o valor da causa em € 6.115,40 (27/11/2018), tendo sido objecto de rectificação por despacho proferido em 29/4/2019, sendo aqui fixado tal valor em € 30.000,01, nos termos do art. 303º, 1, do CPC, transitado em julgado (também assim fixado no despacho saneador, de 11/10/2019).

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, a Juiz ... do Juízo Local Cível ... proferiu sentença em 18/6/2021, objecto de reforma no dispositivo decisório por despacho de 11/11/2021, que julgou a acção totalmente procedente e, em consequência, declarou “anulado o testamento de EE, outorgado em 09 de Maio de 2005, no Cartório Notarial ... pelo Notário ... FF, nos termos do artigo 2199º do C. Civil, condenando a a reconhecer tal anulação”.

5. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto (TRP), que, em acórdão proferido em 15/12/2021, julgou improcedentes as nulidades arguidas, procedente a reapreciação da matéria de facto dada como provada nos pontos j), k), l), m) e n), que passou a constar do elenco dos factos não provados, e improcedente a acção, dando-se provimento à apelação e revogando-se a sentença recorrida.

6. Agora sem se resignarem, os Autores interpuseram recurso de revista para o STJ com fundamento no art. 671º, 1, do CPC, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:

“1ª – O Tribunal da Relação do Porto revogou a Sentença do Tribunal de 1ª Instância por insuficiência da matéria de facto, entendendo que o ónus da prova competia aos aqui recorrentes AA, BB, CC.

2ª – Entendem os recorrentes que existe no caso em apreço erro na interpretação das normas constante dos artigos 2199º, 257º e 342º, todas do Código Civil, e, ainda, uma errada valoração da prova, por parte do Tribunal de 2ª Instância.

3ª – Encontram-se junta aos autos diversa informação clínica da testadora EE, nomeadamente, o relatório clínico psiquiátrico junto à p.i. como doc. nº 9 e os relatórios médicos pela USF ... juntos aos presentes autos, via email, em 05-02-2020, os quais não foram impugnados pela Ré/recorrida, nem objecto do incidente de falsidade, transmitindo e informando os mesmos que a testadora padecia de doença grave do foro psiquiátrico, que a impedida de reger a sua pessoa e bens. Não sendo irrelevante o facto do referido relatório de fls 9 ter sido fundamento para que a testadora fosse “excluída da qualidade de cabeça de casal” pelo facto da mesma não ser capaz de exercer tal cargo, por incapacidade de entender e querer.

4ª – Nessa medida, face à não impugnação de tais documentos, caberia a quem tinha interesse em manter a validade do mesmo, ou seja, à recorrida DD, avaliar esses elementos de prova, o que não aconteceu e, consequentemente a prova da questão da capacidade da testadora.
5ª – Estamos perante um caso de inversão do ónus da prova, no sentido de que não tendo a prova documental sido impugnada e atestando a mesma incapacidade da testadora, prova essa, nomeadamente relatório de fls 9, sido apreciada em outro processo judicial que deferiu a sua exclusão de cabeça de casal pelo facto de nesse processo ter sido demonstrado, com base nesse relatório a incapacidade da testadora, caberia à ré inverter esse valor probatório, o que não aconteceu.

6ª – Assim, cabia à recorrida demonstrar e provar que a testadora, apesar do seu quadro clinico de demência e esquizofrenia, aquando da realização do testamento tinha tido um “momento de lucidez”, facto que aquela não conseguiu provar.

7ª - O que se verifica nos presentesautosé que, apesar do princípio da livre apreciação das provas, o Tribunal da Relação do Porto desvalorizou por completo a abundante prova documental junta aos autos, não apreciando correctamente a capacidade da testadora, nem se pronunciando sobre todas as provas, designadamente sobre o relatório médico junto aos autos.

8ª – Os recorrentes, com a prova documental junta aos autos (mormente o relatório médico junto à p.i. como doc. nº 9) demonstraram e provaram os requisitos de anulação previstos no artigo 2199º do Código Civil.

9ª – Como bem refere o Sr. Juiz do Tribunal de 1ª Instância, os recorrentes fizeram prova de que a testadora EE padecia de doença mental, a qual já se verificava à data da outorga do testamento.

10ª – Por outro lado, e como bem refere o Tribunal 1ª Instância, a recorrida não logrou demonstrar que a testadora, sua irmã, no acto da outorga do testamento, tivesse tido um “momento de lucidez!”, que lhe permitisse entender e querer os actos de disposição do seu património.

11ª – Em processo civil regem, sobre a apreciação da matéria de facto, os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, guiando-se o julgamento por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta.

12ª –A Sentençaproferida peloTribunalde1ª instância elencou e explicitou, de forma criteriosa, completa e esclarecedora, os motivos que levaram o julgador, em obediência àquelesprincípios, a formar a sua convicção, permitindo assimacompanhar todo o processo lógico que esteve na base da formação dessa mesma convicção no que respeita à fixação dos factos provados, pelo que, inexiste qualquer erro de apreciação da matéria de facto julgada provada.

13ª – O acórdão do Tribunal de 2ª instância, que substitui a convicção do tribunal da 1ª instância pela sua própria convicção, fez uma errada interpretação de toda a prova produzida, ignorando a prova documental produzida e não impugnada pela recorrida.

14ª – O referido na conclusão anterior traduz-se numa infundada e ilegítima discordância quanto à convicção do Sr. Juiz do Tribunal de 1ª instância a propósito da matéria de facto julgada provada, prova essa feita na sua presença, violando assim o disposto no art. 607º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
15ª – O Tribunal de 2ª Instância desvalorizou e desconsiderou por completo a informação clínica da testadora, nomeadamente o relatório psiquiátrico junto à p.i. pelos recorrentes, documentação essa não impugnada pela recorrida, pelo que o acórdão recorrido alterou erradamente a matéria de facto julgada provada, pelo que devem ser julgados provados, na sua integralidade, os factos assim julgados sob os pontos j), i), k), l), m) e n) da matéria de facto provada da sentença proferida pela 1ª instância.

16ª – O acórdão recorrido, ao sobrepor a sua convicção à convicção adquirida pelo tribunal da 1ª instância, violou o disposto no art. 607º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
17ª – Face à prova documental acima referida, mormente das informações clínicas supra referidas, resulta sem margem para dúvida factos que atestam, segundo as regras da experiência comum, que a testadora carecia de capacidade para testar no momento da outorga do testamento.

18ª – Com efeito, daquela prova resulta a existência de indícios fortes no sentido de que o estado mental e físico da testadora era impeditivo do ato de testar, em plena, total e absoluta posse das suas faculdades, vontade e discernimento.

19ª – Por outro lado, em momento algum no decorrer da audiência de Julgamento na 1ª Instância, a recorrida DD demonstrou ou provou que a sua irmã EE no momento da outorga do testamento estava no tal “momento de lucidez”.

20ª – A testadora apresentava/sofria, sob ponto de vista da Psiquiatria, de Deterioração Mental Psicótica Esquizofrénica (Estado de Defeito Esquizofrénico), com perda da capacidade de formulação de juízos de valor estando total e permanentemente incapacitada para poder reger a sua pessoa e bens, necessitando de apoio por terceira pessoa, o que era incompatível como bem-estar físico e mental que lhe permitisse outorgar o testamento.

21ª – A testadora encontrava-se num estado de absoluta ausência de iniciativa e de total dependência.

22ª – Ponderados todos os factos sobreditos, segundo os padrões do homem médio, a testadora, no momento em que outorgou o testamento, não estava em condições de manifestar uma vontade livre e esclarecida, bem como de entender o significado do seu ato, ou seja, o acto de testar.

23ª –O acórdãorecorrido, aojulgar improcedente o pedido de anulação do testamento com fundamento em incapacidade, violou o disposto no art. 2199º, do Código Civil.

24ª – Logo, na procedência da revista, impõe-se a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que, como decidiuo tribunalda 1ª instância, declare procedente o pedido de anulação do testamentooutorgado EE, porcomprovada e demonstrada incapacidade da testadora ao tempo da sua outorga.”

7. A Ré e Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da revista.


Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

Vistas as Conclusões, cabe analisar as seguintes questões:

(i) vício na reapreciação da matéria de facto julgada pela Relação no exercício dos poderes do art. 662º do CPC;
(ii) erro quanto à aplicação do ónus de alegação e prova previsto no art. 342º do CCiv.;
(iii) erro na interpretação e aplicação do art. 2199º do CCiv. (incapacidade acidental do testador).


2. Factualidade

Após a reapreciação da matéria de facto pela Relação, ficou estabilizada a seguinte matéria de facto:

2.1. Factos provados

a. Os Autores AA, BB e CC são os únicos filhos de GG;
b. Por sua vez o referido GG era filho de HH e de AA;
c. No dia 08 de Outubro de 2005 faleceu o acima referido GG, no estado de casado com II, deixando como herdeiros, para além da sua referida esposa, os três filhos, os aqui Autores;
d. No dia 09 de Setembro de 2016 faleceu EE, no estado de solteira, maior, sem descendentes e sem ascendentes vivos, com última residência à Rua ..., ..., da freguesia ..., concelho ...;
e. A dita EE nasceu a .../.../1928, sendo filha de HH e AA;
f. Sendo, assim, irmã do acima referido GG;

g. A falecida EE deixou testamento, outorgado no dia 09 de maio de 2005, no qual fez as seguintes disposições:
1. Legou a seu irmão GG, um terreno para construção, sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...34º;

2. Instituiu herdeira de tudo aquilo de que tiver livre disposição à data da sua morte a aqui Ré, DD;
h. Testamento esse que os autores apenas tiveram conhecimento mais de dois meses após o falecimento da sua tia EE;
i. À data do falecimento, a referida EE contava com 87 anos de idade;

(…)
o. A JJ só passou a viver com a ré nos três últimos anos da sua vida.

2.2. Factos não provados

j. Pelo menos desde há mais de doze anos, com referência à data da propositura da presente ação, que a EE, sofria de deterioração mental psicótica esquizofrénica, com perda da capacidade de formulação de juízos de valor;

k. A referida anomalia psíquica tornava-a incapaz de reger quer a sua pessoa, quer os seus bens;

l. A EE esteve até ao seu falecimento, e durante vários anos, totalmente dependente da ré, quer para a prestação de cuidados físicos, quer para tomar decisões quanto aos seus bens e património;

m. À data do testamento que se discute na presente ação, a EE, por força da anomalia de que padecia não se encontrava capaz de querer e entender as declarações que se mostravam contidas no aludido testamento;

n. Situação que era do perfeito conhecimento da ré;

(…)

p. Que o que se mostra referido no relatório clínico aludido em sede de petição inicial, datado de 21 de julho de 2006, não correspondia à realidade;

q. Que o aludido relatório foi elaborado a solicitação dos autores e da ré, com o único intuito de não submeterem a EE às funções de cabeça de casal no âmbito do inventário melhor identificado em sede do artigo 29º da petição inicial.


3. Direito aplicável

3.1. Reapreciação da matéria de facto pela Relação no exercício do art. 662º do CPC

Os Recorrentes começam por impugnar a decisão do acórdão recorrido sobre a reapreciação da matéria de facto, que conduziu à migração dos pontos j) a n) dos factos provados para o elenco da factualidade não provada. Atacam a decisão por erro de julgamento na interpretação da prova produzida, em especial os documentos relativos à informação clínica da testadora, nomeadamente o “relatório clínico psiquiátrico” junto à petição inicial pelos recorrentes, de 21/7/2006, sobrepondo-se a sua convicção à convicção adquirida pelo tribunal de 1.ª instância (com alegada violação do art. 607º, 5, do CPC). Em particular, os Recorrentes sustentam que a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no sistema da livre apreciação da prova, deve ceder perante a decisão proferida em 1.ª instância, tendo em conta os princípios da imediação, da oralidade e dessa apreciação livre.
Pois bem – o que os Recorrentes alegam é um uso ilícito ou indevido dos poderes atribuídos pelo art. 662º, 1, do CPC, sindicável nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC.
Resulta da análise da apreciação da impugnação da matéria de facto – como fica claro a págs. 12 e ss – que o acórdão recorrido procedeu a uma análise do alcance da prova documental e testemunhal (nomeadamente de especialistas médicos), assim como de depoimento de parte, utilizando um método relacional, dotado de crítica racional e alinhando a prova considerada na sua globalidade para retirar conclusão sobre a impugnação feita sobre os factos provados em 1.ª instância sob as alíenas j) a n). Não se demitiu nem se refugiou em critérios imprecisos nessa análise, antes se realiza uma convicção própria, reflectida na forma e nas razões com que se funda a modificação desses factos para a natureza de não provados.
Nessa convicção não se exarou dúvida assente em depoimentos contraditórios, que nos remetesse para alguma das hipóteses do art. 662º, 2, do CPC, nomeadamente quando se confrontou com a prova testemunhal que pudesse contrariar o resultado conferido pelo aludido relatório psiquiátrico de médico já falecido. Nem se fez uso ilegítimo de poderes relativos a factos instrumentais ou complementares previstos, a título inquisitório, no art. 5º, 2, do CPC.
No entretanto, esclareceu-se:
“O que está em causa não é tanto saber se EE padecia de esquizofrenia ou qualquer outra doença incapacitante, psicótica ou não, mas se se encontrava incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade, por qualquer causa, ainda que transitoriamente, no ato de testar.”
E, a final, rematou-se:
“Tudo ponderado, assim recorrendo também as boas regras da experiência comum, quanto mais não seja pela dúvida séria que nos fica relativamente à matéria impugnada, altera-se totalmente a mesma para NÃO PROVADO, passando a integrar o acervo dos factos não provados.”

Assim se corporizou e assumiu a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise, ainda que sem as virtualidades da 1.ª instância, mas com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo[1]. Regendo-se no domínio da livre apreciação da prova – v. arts. 396º, CCiv.; 607º, 5, 466º, 3, CPC 2013 –, estamos perante actuação insindicável nos termos dos arts. 662º, 4, e 674º, 3, 1.ª parte, do CPC. Actuação insindicável esta por, em alternativa, não ter sido alegado nesta sede de revista, nos termos do art. 682º, 2, do CPC – «A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º.» –, como hipótese residual em face da regra de cognição do STJ prevista pelo art. 682º, 1, do CPC – «Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.» –, a actuação excepcional em revista (2ª parte daquele art. 674º, 3) da reapreciação da matéria de facto com base na invocação de violação de norma legal expressa que exija prova vinculada para a existência do facto ou de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, considerados como vícios de direito em sede de direito probatório a conhecer no âmbito dos poderes do STJ[2]. Nem se vislumbra que tenha havido este desrespeito na sua ponderação quanto à força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório material – no caso, em esp. quanto aos documentos clínicos, o art. 376º, 1, do CCiv.
Por outro lado, é manifesto que a fundamentação trazida pelo acórdão recorrido não se esvaiu em considerações genéricas ou alusões vagas à tarefa de reapreciação fáctica para concluir sobre o mérito de tal impugnação; antes deu-se cumprimento aos princípios reitores do art. 662º, 1 («deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa»), em ligação com o art. 607º, 4 e 5, do CPC.
Por fim, enfatize-se que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando ao interessado a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância (nomeadamente com o apoio da gravação dos depoimentos prestados, juntamente com os demais elementos probatórios que fundaram a decisão em primeiro grau) para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida.[3] Sempre – e este é o ponto – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância[4].
Importa, por isso, concluir que, como se apreende nas Conclusões pertinentes da revista, a discordância dos Recorrentes assenta na valoração feita pela Relação quanto aos meios de prova analisados. Trata-se, apenas e só, de uma questão de alegado erro de julgamento na livre apreciação das provas, insusceptível de conhecimento e sindicação por parte do STJ. Neste sentido, não pode este tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando – como reconhecem os Recorrentes – estão em causa meios de prova sujeitos a livre apreciação e, ademais, não se desrespeitou o valor tarifado a meio de prova, como é a situação sob apreciação – um caso de (re)apreciação sem desconformidade legal de força probatória e feita em regime de prova livre e “não tarifada”, se e enquanto tal insindicável de acordo com os arts. 674º, 3, e 662º, 4, do CPC.

Soçobra, por isso, manifestamente, a pretensão dos Recorrentes quanto à ilicitude da modificação supostamente viciada, afectando inexoravelmente as Conclusões pertinentes.


3.2. Aplicação do art. 342º em sede de ónus de alegação e prova

O art. 342º, 1, do CCiv. prescreve: «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado
Daqui resulta que, uma vez alegado um direito pelo autor e sendo esta alegação impugnada pelo réu, incumbe ao autor que demanda e peticiona a prova dos respectivos factos constitutivos.
No caso dos autos, os Autores pretendiam provar factos que se traduzissem no vencimento do direito de arguir a anulabilidade e requerer a anulação do testamento, para o qual tinham legitimidade (quanto ao seu interesse) nos termos do art. 287º, 1, do CCiv., recaindo por isso nos Autores o ónus de provar os factos que traduzissem o vício que suporta esse direito, isto é, a verificação do estado de incapacidade que impedia um entendimento sobre a disposição dos bens e um discernimento e compreensão sobre as respectivas consequências, ou a falta de liberdade de exercício da sua vontade, ainda que transitória, relativamente ao acto testamentário.           
Por seu turno, o art. 342º, 2, do CCiv. determina que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado (a prova de excepção peremptória: art. 576º, 3, CPC) compete à parte contra quem a invocação desse direito é feita – se o réu alegar tal excepção e esta for impugnada pelo autor, cabe à parte demandada a prova de factos que impedem, modificam ou extinguem tal direito (incluindo a inexistência dos factos constitutivos do direito invocado).

Referiu, nesta sede, o acórdão recorrido (sublinhado nosso):
“No caso em análise nem sequer existe dúvida em matéria de ónus da prova. A procedência da ação depende da prova de factos que preencham os referidos requisitos de anulação, previstos no art. 2199º do Código Civil, cujo ónus é do autor: que o testador se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória. Esta anulabilidade encontra paralelo na regra do mencionado art. 257º do mesmo código, quanto às condições da incapacidade acidental, mas diverge por prescindir da notoriedade daquele estado ou do seu conhecimento pelo declaratário, que não existe no testamento, como negócio jurídico unilateral não recetício. A anulação do testamento basta-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis. Temos assim que o ónus da prova dos factos impugnados pertencia aos AA.”

Por isso, atenta a hipótese da qual depende a estatuição do art. 2199º do CCiv., a distribuição do ónus da prova depende da natureza do facto, à luz da norma que se invoca como fundamento da pretensão[5]. Logo, não cabia à Ré fazer (inversamente) a prova da existência de facto ou factos constitutivos negativos (existência de lucidez e consequente percepção do acto) relativamente ao estado de incapacidade da falecida no momento da outorga do testamento, em rigor alheio(s) à demonstração do vício que funda legalmente o direito à anulação, que se sobrepusesse ao ónus da prova dos Autores sobre os factos constitutivos positivos da existência dessa mesma incapacidade “acidental”.
Perante isto, caberia ao tribunal recorrido determinar o sentido em que deveria decidir no caso de não se fazer a prova que onerava os Autores[6].

Não se vê assim como censurar o decidido e a respectiva interpretação do art. 342º, em esp. 1, do CCiv., aderindo-se a tal fundamentação nos termos do art. 663º, 5, ex vi art. 679º, do CPC.


3.3. Erro na interpretação e aplicação do art. 2199º do CCiv.

Sobre o ponto, refere e argumenta o acórdão recorrido, tendo em conta a factualidade dada como provada após a reapreciação da matéria de facto:

“Nos termos o art. 2199º do Código Civil, “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.
Esse normativo distingue-se da incapacidade de testar prevista nos arts. 2188º e 2189º do Código Civil. É capaz de testar todo o indivíduo que não seja abrangido por qualquer norma de incapacidade decretada na lei. O testamento feito por incapaz é nulo (art. 2190º, do Código Civil).
A questão concreta situa-se no âmbito da aplicação do art. 2199º do Código Civil, cuja epígrafe é incapacidade acidental, no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.
Esta disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. Uma vez verificada uma situação e incapacidade aqui enquadrável, o testamento é anulável, dependendo, assim, a sua invalidade desde logo da iniciativa de quem tem legitimidade para a sua arguição, assentando ela na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.
(…)
Excluídos que estão agora os pontos j), […] k), l), m) e n) da matéria de facto provada, faltam os factos essenciais à verificação do fundamento legal da anulação do testamento.”

Razões que, sem mais, merecem ser sufragadas e às quais se adere igualmente nos termos do art. 663º, 5, ex vi art. 679º, do CPC.

Por tudo, improcedem as Conclusões dos Recorrentes.


III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista.

Custas pelos Recorrentes.



STJ/Lisboa, 7 de Junho de 2022



Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] V. por todos ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 662º, págs. 284 e ss, 290.

[2] Ao que se acrescenta, noutra frente de excepcionalidade de tratamento da matéria de facto, o exercício da competência do art. 682º, 3, do CPC (devolução ao tribunal recorrido «quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito»). 
[3] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403. 
[4] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, 36; na jurisprudência, v., exemplificativamente, os Acs. do STJ de 10/7/2012, processo n.º 3817/05.6TBGDM-B.P1.S1, Rel. FERNANDES DO VALE, de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, Rel. AZEVEDO RAMOS, e de 6/12/2016, Rel. GARCIA CALEJO (“(…) o legislador ao exprimir-se deste modo e ao dar à Relação as prorrogativas definidas nas alíneas do nº 2 do mesmo art. 662º, pretendeu que o tribunal de 2ª instância fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto. Deve-se, assim, repudiar a posição segundo a qual a actividade da Relação deverá circunscrever-se a um mero controlo formal da motivação efectuada em 1ª instância, procedendo à detecção e correcção de pontuais e excepcionais erros de julgamento, ou a orientação de que o tribunal da 2ª instância não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.”), sempre in www.dgsi.pt
[5] ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 342º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 990, 991.
[6] V. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 342º, Código Civil anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 306 (“O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova.”).