REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÕES DE PARTE
FACTOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO INVOCADO
FACTOS IMPEDITIVOS
IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
Sumário

I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, razão pela qual será normalmente insuficiente para a prova de um facto essencial à causa de pedir que surja desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie.
III - A distinção entre factos constitutivos e impeditivos assenta num terreno bastante movediço e apreende-se melhor se se tiver em conta que os factos que integram as normas impeditivas são concomitantemente os que intervêm na forma fundamentadora ou constitutiva do direito invocado.
IV - Não tem, hoje, apoio na lei nem na doutrina a máxima negativa non sunt probanda.
V - A Relação deve abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados.
VI - A imputação de cumprimento a que se refere o artigo 783.º, nº 1 do CCivil apenas se verifica quando esteja provado nos autos que o devedor no confronto com credor tenha várias dívidas da mesma espécie e a prestação efectuada não chegue para as extinguir a todas.

Texto Integral

Processo nº 688/20.6T8PVZ.P1-Apelação
Origem: Comarca do Porto-Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim-J1

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, residente na Rua ..., Póvoa de Varzim, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, residente na Av. ..., Póvoa de Varzim, pedindo a condenação da ré:
a)- reconhecer que o cheque peticionado no processo n.º 2550/03.8TBPVZ, 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim e que a Ré endossou à exequente na referida execução, apenas é devido pelo valor 1.343.183$00, correspondentes €6.699,77;
b)- pagar à autora a quantia de €26.267,40 relativa ao montante indevidamente pago pela A. à exequente no processo n.º 2550/03.8TBPVZ, 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, uma vez que a Ré endossou à exequente naquele processo cheque de valor que não era integralmente devido pela A. à Ré;
c)- pagar à autora a quantia de €2.000,00 por danos não patrimoniais;
d)- pagar à autora €10,20 suportados com a obtenção de certidão, €2.295,00 das custas pagas no processo judicial supra identificado, €192,00 no apenso e €3.080,00 de honorários e despesas com advogado naquele processo executivo;
e)- pagar à A. todos os valores que a A. venha a desembolsar e pagar à exequente e Agente de Execução no âmbito do processo n.º 2550/03.8TBPVZ, 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim ;
f)- pagar juros legais vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data dos pagamentos indevidos pela A. até ao efetivo e integral pagamento, orçando os vencidos sobre €26.267,40 desde os últimos cinco anos, isto é, desde 05/06/2015 até hoje 05/06/2020 a €5.259,24.
Para tanto a autora alegou, em síntese, que desde 1997 as partes estabeleceram relação contratual em que a ré esta emprestava determinadas quantias em dinheiro à autora. Mais alegou que em Fevereiro de 2002, a ré alegando a transição da moeda do escudo para o euro, solicitou à autora a emissão de cheque em euros que titulasse as quantias mutuadas e que entendeu que nessa altura ainda estavam em dívida para garantia do bom pagamento dos referidos mútuos e afirmou-lhe que tinha determinados cheques cuja soma ascendia a €30.426,67. A autora afirmou à ré que o valor em dívida não estava correcto mas de boa fé, aceitou assinar cheque no mencionado valor, no pressuposto de mais tarde apurar e concretizar com a ré o valor efectivamente em dívida. Porém, a autora viu ser-lhe instaurada execução para cobrança do valor do referido cheque tendo servido de base de título executivo o referido cheque. Até hoje a autora já pagou por conta dos créditos peticionados indevidamente na supra referida execução cujo cheque lhe serviu de base a quantia de €32.957,17. A referida execução ainda não findou, prevendo-se ainda o cálculo do valor em dívida de €6.142,02 relativo ao restante em divida devido na data de 02/11/2010, acrescido de juros até 24/03/2020 de €2.293,01, acrescido de honorários com Agente de Execução que se prevê de €2.284,22, tudo no valor global de €10.719,25. A autora aceita dever a quantia de 1.343.183$00, correspondentes €6.699,77, tendo já pago a mais do valor que devia à ré a quantia de €26.267,40 e ainda terá que pagar os supra referidos €10.719,25, acrescida da quantia que vier a ser liquidada por apreensão coercitiva de bens na referida execução até efetivo e integral pagamento. Ademais, a autora teve gastos com honorários e despesas com advogado que a defendeu na oposição à execução naquele referido processo, o que ocorreu por facto imputável à ré. Acresce que a autora sofreu danos morais que devem ser indemnizados no valor de €2.000.
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Regularmente citada, a ré contestou a acção, na qual impugnou a factualidade invocada pela autora e sustentou que os cheques ou letras pagos numa única vez ou de forma fraccionada pela autora por conta da dívida global, não se encontram contabilizados no cheque que está na génese destes. Ademais, invocou que a autora protelou injustificadamente os autos de execução, pelo que só a si é imputável a acumulação de juros ali vencidos.
Concluiu que a autora devia à ré o montante integral titulado no cheque que foi dado posteriormente à execução pela exequente CC, pelo que a pretensão da autora em ver-se reembolsada pela ré é abusiva, pedindo a condenação da autora como litigante de má fé, em multa e indemnização no montante de €10.000.
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Notificada da contestação, a autora veio exercer o contraditório quanto ao pedido de condenação como litigante de má fé formulado na contestação, alegando que inexiste qualquer fundamento para tanto, por não poder a autora discutir a relação com a ré na identificada execução, pronunciando-se, para além disso, sobre o alegado na contestação, impugnando tal matéria.
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Mediante requerimento apresentado em 30-09-2020, a ré requereu que o requerimento apresentado pela autora em 17-09-2020 fosse tido como não escrito, com excepção da matéria articulada referente ao contraditório da litigância de má fé requerida pela ré, por não ser legalmente admissível.
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Foi convocada audiência prévia, na qual foi apreciada a nulidade parcial da peça processual apresentada pela autora em 17-09-2020 e considerada como não escrita a matéria constante dos artigos 1º a 9º daquela. Foram ainda proferidos despacho saneador, despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, seguido de despacho destinado a programar os actos a realizar na audiência final e despacho a designar data para a audiência final.
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Realizou-se a audiência final com observância do formalismo legal, na qual foi deferida a rectificação de lapsos de escrita constantes dos articulados.
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A final foi proferida decisão que julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos bem como da sua condenação como litigante de má fé.
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Não se conformando com o assim decidido veio a autora interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Devidamente notificados contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, mesmo não se alterando esta, se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1.1-Factos provados
1. Desde 1997, a autora e a ré estabeleceram relação em que esta emprestava determinadas quantias em dinheiro àquela.
2. A ré emprestou dinheiro à autora, pelo menos, nas seguintes formas:
A) entrega de 2 letras que foram pagas na conta domiciliada naquelas 2 letras na Banco 1..., da ré;
B) entrega pela ré de cheques pré-datados que a autora depositava numa conta bancária sua, adiantando-lhe o Banco tal valor e que, na data do seu vencimento, foram apresentados a pagamento na conta da ré e cujo valor foi na altura pago por depósito na referida conta da ré, pela autora;
C) empréstimos por cheques sacados pela autora e a seu favor à ré, que eram levantados pela autora.
3. Os empréstimos referidos em A) de 2 foram pagos.
4. Os empréstimos referidos em B) de 2 foram pagos, com excepção do cheque sacado sobre o Banco Banco 1... no valor de 200.000$00 e datado para 27/04/2000, sendo este valor de 200.000$00 englobado nas quantias a que se refere a alínea C) do artigo 2º e pago
5. A respeito de empréstimos referidos em C) de 2, foram entregues pela ré à autora, os seguintes cheques, no total de 9.600.000$00:
- em 10/09/1997 – 300.000$00
- em 10/09/1997 – 1.000.000$00
- em 27/04/1998 – 1.500.000$00
- em 3/07/1998 – 1.500.000$00
- em 8/06/2000 – 700.000$00
- em 26/06/2000 – 2.000.000$00
- em 13/07/2000 – 1.800.000$00
- em 04/01/2000 – 600.000$00
- em 27/04/2000 – 200.000$00 (a que se refere em 4).
6. Do montante emprestado de 9.600.000$00, foi pago:
A) o valor de 1 500 000$00, a que se refere o empréstimo supra de 27/04/1998, com 3 depósitos de 1.100 000$00, acrescido de 200 000$00, acrescido de 200 000$00;
B) o valor de 2 000.080$00 a que se refere o empréstimo supra de 26/06/2000, com 5 pagamentos distintos.
7. A autora, apesar da confiança que tinha com a ré e esta por aquela, entregou cheques para garantia do cumprimento dos empréstimos referidos em 2 realizados através de cheques.
8. A ré nunca restituiu qualquer dos cheques que a autora assinou e entregou à ré para garantia dos referidos montantes.
9. Em 2002, a ré, alegando a transição da moeda do escudo para o euro, solicitou à autora a emissão de cheque em euros que titulasse as quantias emprestadas, para garantia do pagamento dos referidos empréstimos.
10. Na referida data, a ré deslocou-se ao estabelecimento comercial da autora solicitando-lhe a entrega de cheque em euros.
11. A ré afirmou-lhe que tinha determinados cheques cuja soma ascendia a €30.426,67 e pretendia que a autora lhe entregasse cheque de tal valor em euros.
12. Nesse momento entregou-lhe cópia dos referidos cheques referindo que tal montante estava em dívida à autora.
13. A autora viu ser-lhe instaurada execução para cobrança do valor do referido cheque, tendo servido de base de título executivo o referido cheque, com o n.º 2550/03.8TBPVZ actualmente pendente no Juízo de Execução do Porto-J3 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
14. Nessa execução figura como exequente CC.
15. Na oposição à execução.º 2550/03.8TBPVZ-A do Juízo de Execução do Porto-J3 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferida sentença em 27-12-2011, na qual consta dos factos provados:
“a) Nos autos de execução comum, que corre os seus termos sob o n.º 2550/03.8TPVZ, e de que os presentes constituem apenso, a exequente, CC, ofereceu como título executivo um cheque, n.º ..., sobre o Banco 2..., no valor de 30.426,67€, junto a fls. 10 daqueles autos, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o qual não foi endossado pela sacadora ora oponente, à exequente;
b) A exequente adquiriu o título referido em a) através do endosso que lhe foi feito pela primeira portadora do cheque, BB;
c) A exequente apresentou a pagamento o cheque referido em a), no dia 15 de Setembro de 2003, e antes de decorridos 8 dias sobre a data que nele consta como de emissão;
d) A endossante BB é pessoa de boa posição social e vasto património;
e) O cheque referido em a) foi entregue à primeira portadora, BB, para garantir o pagamento de quantias em dinheiro entregues por aquela à oponente a título de empréstimo;
f) A oponente solicitou à referida BB as quantias aludidas em e), por manter com ela uma longa relação de amizade;
g) As entregas de dinheiro pela referida BB à oponente ocorreram por diversas vezes, nomeadamente através de cheques;
h) A oponente comprometia-se a pagar as quantias em singelo, por depósito, em cheque ou numerário, na conta pertencente à referida BB;
i) E oferecia para garantir o pagamento das quantias entregues, um cheque no mesmo valor, assinado pelo sacador, emitido ao portador e alguns deles sem data;
j) Nos cheques referidos em i), a referida BB, posteriormente e pelo seu próprio punho, inscrevia o seu nome;
k) Dada a confiança da oponente na referida BB, aquela entregou a esta alguns talões de depósito comprovativos dos pagamentos que ia efectuando por conta das quantias mutuadas;
l) Aquando da passagem dos escudos para euros, a oponente emitiu o cheque referido em a), com vista a substituir os que anteriormente tinha emitido à referida BB, e correspondente à soma dos créditos que em 2001 esta ainda detinha sobre a oponente;
m) O cheque aludido em a) quando foi entregue pela oponente à referida BB não tinha aposta qualquer data de emissão;
n) Foi a referida BB que preencheu o cheque com a data de 15/09/2003, e nessa mesma data endossou-o à exequente;
o) O cheque referido em a) foi endossado à exequente para pagamento de variadas peças de ouro e de prata, nomeadamente dois anéis, um deles de diamantes e o outro de brilhantes e rubis, dois cordões de ouro, uma escrava, igualmente em ouro, um serviço de chã em prata, composto por quatro peças, um centro de mesa, dois castiçais, uma bilha, uma caixa de chã, tudo em prata, e outras peças de ouro e prata de menor dimensão;
p) As peças referidas em o) eram pertencentes à exequente e que esta vendeu à referida BB, dada a situação conjugal conturbada em que vivia e para providenciar por juntar algum dinheiro;
q) O preço das peças referidas em o), acordado entre exequente e a referida BB, foi de €31.000.000$00, a ser pago parcialmente com a entrega do cheque referido em a), tendo a referida BB alegado na altura não ter dinheiro disponível para fazer face à totalidade daquela soma;
r) O cheque referido em a), foi entregue à exequente, nele constando já a data, local de emissão, montante e assinatura;
s) Em data que concretamente não foi possível apurar, a executada colocou em causa que o valor aposto no cheque dado à execução como título executivo fosse o que efectivamente tinha a restituir à referida BB na sequência dos aludidos empréstimos (resposta dada ao facto 30.º da base instrutória).”, nos termos constantes de fls. 38 a 43 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
16. No dia 7 de agosto de 2000 a ré fez um depósito (nº...) na sua conta bancária, no valor de 6.566.661$00, assim decomposto:
a) 2.066.661400 cheque nº ...;
b) 2.000.000$00 cheque nº...;
c) 2.500.000$00 cheque nº....
17. O cheque referido na alínea a) de 16, não é um cheque da autora e não foi entregue para pagamento dos aludidos empréstimos.
18. O cheque referido na alínea b) de 16, é um cheque do irmão da autora, DD.
19. Esse cheque que foi pago à ré, tendo esta recebido aquela quantia de 2.000.000$00.
20. O cheque referido na alínea c) de 16 é um cheque do irmão da autora, DD.
21. O cheque referido em 20 foi devolvido por falta de provisão no dia 8 de agosto de 2000.
22. Este cheque foi depositado novamente na conta bancária da ré, no dia 28 de Agosto de 2000, tendo sido devolvido de novo por falta de provisão no dia 1 de setembro de 2000.
23. Devido a estas sucessivas devoluções do cheque, a ré exigiu à autora que efetuasse o depósito da quantia nele titulada em numerário na sua conta bancária.
24. Para pagamento deste montante de 2.500.000$ titulado naquele cheque, a autora efectuou na conta bancária da ré, no dia 7 de setembro de 2000, um depósito, em numerário, no valor de 2.100.000$00 e 1 cheque no valor de 400.00$00, titulado pelo talão de depósito nº ..., no valor de 2.500.000$00.
25. A autora prestou caução na referida execução para suspender os seus termos, por depósito da quantia de €32.957,17, em 17/10/2005.
26. E pagou ainda por depósito naquela execução a quantia de €10, 00, em 2020.
27. Em 15-06-2021, na referida execução foi efectuado o cálculo do valor de “juros de mora desde 19-06-2012, data do pagamento da caução depositada, o valor de €10.953, 60 e de honorários à Agente de execução e demais encargos no valor de €2.284, 22”.
28. As custas daquele processo da responsabilidade da autora são no valor de €2.295, 00 e do apenso de €192 e foi-lhe apresentada nota de honorários e despesas com advogado que a defendeu na oposição à execução naquele referido processo no valor de €3.080,00.
29. A autora ficou “inibida de usar Cheques por rescisão da convenção do uso de cheque”, uma vez que o cheque supra de €30.426,67 não foi pago.
30. A autora e a ré tinham uma relação de amizade, que teve início quando a autora foi aluna da ré, na disciplina de Inglês.
31. Esta relação foi fortalecida durante variados anos quando a autora passou a explorar um estabelecimento comercial de venda de artigos de criança, onde a ré começou a ser cliente.
32. A autora fez a soma dos valores dos cheques referidos em 11 e fez a conversão para euros, emitiu o cheque no quantitativo de €30.426,67, preenchendo todos os campos, com excepção da data, e entregou-o à ré.
33. A ré apôs a sua assinatura no verso de tal cheque e entregou-o a CC, tendo a ré preenchido previamente a data nele aposta de 15 de Setembro de 2003.
34. A autora fez chegar à entidade bancária sacada a informação de que o cheque de €30.426,67 havia sido extraviado, sabendo que tal não correspondia à verdade.
35. Após, foi aposto o carimbo de “falta de provisão”.
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1.2-Factos não provados
Não se provou que:
1. Os empréstimos referidos em C) de 2 dos factos provados foram pagos, com excepção de 1.143.183$00.
2. O cheque n.º ..., datado de 14/07/1999, no valor de 256.817$00 foi entregue pela autora à ré para pagamento dos empréstimos referidos em 5 dos factos provados.
3. O cheque no valor de 2.000.000$00, constante do depósito n.º ..., datado de 7/08/2000, foi entregue pela autora à ré para pagamento dos empréstimos referidos em 5 dos factos provados.
4. O depósito n.º ……., datado de 7/09/2000, correspondente a numerário no valor de 2.100.000$00 e 1 cheque no valor de 400.00$00, titulado pelo talão de depósito nº ..., foram entregues pela autora à ré para pagamento dos empréstimos referidos em 5 dos factos provados.
5. A autora, logo nesse momento, apercebeu-se que o valor em causa não era devido e afirmou à ré que o valor em dívida não estava correcto.
6. Perante tal afirmação a ré em alta voz e na presença de clientes no estabelecimento comercial afirmou à autora: “AA, vamo-nos chatear”.
7. A autora aceitou assinar cheque no valor de €30.426,67, no pressuposto de mais tarde apurar e concretizar com a ré o valor em dívida, conforme transmitiu.
8. Por várias vezes a autora tentou contactar a ré e demonstrar-lhe os valores em dívida, sem êxito até hoje.
9. A autora entregou à ré alguns comprovativos de depósito e não conservou a cópia de todos os chegues entregues à ré como garantia ou para pagamento das quantias emprestadas.
10. Os valores referidos em 18 a 24 dos factos provados foram entregues para pagamento dos empréstimos efectuados pela ré à autora referidos em 2 dos factos provados.
11. A autora teve que despender €10,20 com a certidão do processo n.º 2550/03.8TBPVZ-A, 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim.
12. A autora teve noites sem dormir, teve de pedir quantias emprestadas para conseguir prestar caução no processo supra referido e teve que passar pelo vexame de contactar familiares e amigos para solicitar dinheiro emprestado para prestar caução, bem como, para explicar o sucedido uma vez que indagavam junto da autora a razão da sua tristeza.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões a Ré recorrente impugnou a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, a autora apelante não concorda com a decisão sobre a fundamentação factual relativa aos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10 e 12 da resenha dos factos não provados que, na sua alegação, deviam ter sido considerados provados.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à autora apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
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O ponto 2. do elenco dos factos não provados tem a seguinte redacção:
2. O cheque n.º ..., datado de 14/07/1999, no valor de 256.817$00 foi entregue pela autora à ré para pagamento dos empréstimos referidos em 5 dos factos provados.
Propugna a apelante que tal facto devia ter sido dado como provado.
Para o efeito convoca as suas declarações de parte e ainda o documento nº 6 junto com a petição inicial.
Importa, desde logo, sopesar que não obstante o referido cheque tenha sido depositado em conta da Autora isso não prova, de per si, que esse valor tenha utilizado para pagar os empréstimos referidos em 5. dos factos provados, ou seja, o documento nº 6 junto com a petição inicial não prova, isoladamente considerado, o ponto 2. da resenha dos factos não provados.
E que dizer das suas declarações de parte?
Nos termos estatuídos no artigo 466.º do CPCivil as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto (n.º 1); às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º–quanto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade–e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior, relativa à prova por confissão das partes (n.º 2); o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (n.º 3).
Trata-se de disposição inovadora introduzida na novo CPCivil, mencionando-se na Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 113/XII, que está na origem da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que se prevê “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão”.
A relevância probatória destas declarações tem sido objecto de apreciação em sede de jurisprudência, salientando-se diferentes acórdãos proferidos por este Tribunal da Relação.
Dúvidas não existem de as declarações de parte que, diga-se, divergem do depoimento de parte, devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado.
Não se pode olvidar que, como meio probatório são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção.
Efectivamente, seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.
Não obstante o supra referido, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que as partes tenham conhecimento directo).
Todavia, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (466.º, n.º 3, do CPCivil) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.
A afirmação, peremptória e inequívoca, de as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado n.º 3 do artigo 466.º do CPC.
Mas compreende-se que, tendencialmente as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar.
Neste contexto de suficiência probatória, e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova (e só assim pode ser, respeitando o princípio que se consagra no artigo 466.º, n.º 3 do CPC) parece-nos claro que nunca pode estar em causa a violação da norma constitucional que salvaguarda a tutela efectiva do direito (artigo 20.º, n.º 5, da CRP).
Evidentemente que, perspectivando de modo inverso o problema, também a admissão da prova por declaração de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos constitutivos do direito invocado por mero efeito das declarações favoráveis, não deixaria de violar a norma constitucional, na medida em que, num processo de partes como é o processo civil, deixaria sem possibilidade de defesa–e aí, sem tutela efectiva–a parte contrária.
Como assim, a prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466.º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir.
Postas estas breves considerações, torna-se evidente, que a autora apelante não invoca qualquer fundamento que infirme a livre apreciação das suas declarações de parte feita tribunal recorrido, sendo que, sob este conspecto, de nada releva a imputação de cumprimento alvitrada pela recorrente, uma vez que não estamos, nesta sede, no âmbito da subsunção jurídica de qualquer quadro factual, mas antes na definição desse mesmo quadro factual em função da prova constante dos autos.
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Deve, assim, o citado ponto factual permanecer no elenco dos factos não provados.
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Os pontos 3. e 4. do elenco dos factos não provados têm, respectivamente, a seguinte redacção:
3. O cheque no valor de 2.000.000$00, constante do depósito n.º ..., datado de 7/08/2000, foi entregue pela autora à ré para pagamento dos empréstimos referidos em 5 dos factos provados.
4. O depósito n.º ……., datado de 7/09/2000, correspondente a numerário no valor de 2.100.000$00 e 1 cheque no valor de 400.00$00, titulado pelo talão de depósito nº ..., foram entregues pela autora à ré para pagamento dos empréstimos referidos em 5 dos factos provados.”
Alega a recorrente que também os citados pontos factuais deviam ter sido dados como provados.
Para o desiderato pretendido convoca novamente a apelante as suas declarações de parte.
Ora, neste âmbito, valem aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações feitas a propósito do ponto 2. da resenha dos factos não provados.
Com efeito, a recorrente, não invoca qualquer outro elemento probatório constante dos autos que possa corroborar as suas declarações de parte, sendo que, fora desse contexto, vale a livre apreciação que delas fez o tribunal recorrido.
E contra isto não se argumente que era a Ré que tinha de alegar e provar que os valores em causa não se destinaram ao pagamento dos seus créditos referidos em 5 dos factos provados.
Na verdade, alegando a Autora que do valor do cheque dado à execução no montante de 30.426,67€, apenas estavam em dívida 6.699,77€, era ela que tinha de provar, porque factos constitutivos do seu direito (artigo 342.º, nº 1 do CCivil), que já havia pago o remanescente através dos depósitos referidos nos pontos 3. e 4. dos factos não provados supra transcritos.
Ora, o que está provado é apenas o que consta dos pontos 19. e 24. da resenha dos factos provados e nada mais que isso, ou seja, não está provado que tais depósitos se destinassem a pagar parte do valor inscrito no cheque dado à execução.
É que a Ré, ao contrário do que afirma a recorrente, não tinha que provar qualquer facto impeditivo porque ele não foi alegado.
Na verdade, sob este conspecto, na sua contestação, a Ré limitou-se a impugnar os factos vertidos pela autora na petição inicial, alegando que, e passamos a citar: “Assim, importa sublinhar que os valores de 2.000.000$00 e de 2.500.000$00 referidos nos itens 7º B) e E), 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º e 36º, e que são referentes a pagamentos de letras ou cheques do irmão da A., de nome DD, foram devidamente contabilizados na dívida global da A. perante a R. como foi amplamente demonstrado naqueles autos de Oposição à Execução, mas que encontrando-se liquidados, já não se encontram incluídos e em causa neste último cheque, pelo que é falso tudo quanto é alegado na petição inicial relacionados com o mesmo com fazendo parte do alegado pagamento referido em 34º da p.i” (cfr. artigo 32º da contestação).
Ou seja, os factos alegados pela recorrida, não devem ser apreciados senão como decorrentes do exercício do ónus da contraprova (cfr. artigo 346.º do CCivil).
É verdade que o problema da distinção entre factos constitutivos e factos impeditivos assenta num terreno bastante movediço e, como tal, adverso, em muitos casos, a soluções límpidas ou inequívocas.
Todavia, cônscio das dificuldades que tal diferenciação, pode acarretar, o legislador procurou solucioná-las, emitindo a seguinte regra geral: “Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”. (cfr. artigo 342.º n. 3 do C.Civil).
A dificuldade de distinção apontada é facilmente apreensível se tivermos em conta que os factos que integram as normas impeditivas são concomitantemente ou que intervêm na norma fundamentadora ou constitutiva do direito invocado.
Esta circunstância permite, de outro modo, com igual legitimidade, dizer-se que a norma, impeditiva é complementar da norma constitutiva, tendo, como tal, os respectivos factos de ser negativamente provados, contra ou por quem os invoque, sempre que sejam alegados no processo. Por outras palavras: o facto impeditivo apresenta-se com um carácter ambivalente, susceptível de ser tomado quer como pressuposto negativo do direito, isto é, de sinal contrário, a acrescentar aos restantes pressupostos quer como um pressuposto distinto de uma norma oposta e autónoma”.[6]
Por outro lado a máxima “negativa nom sunt probanda” que não tem hoje o menor apoio na lei, nem na doutrina[7] assenta na ideia de que não há que tomar em conta a dificuldade intrínseca à prova dos factos negativos, circunstância que é irrelevante para quem interpreta e aplica a lei, o que significa que, na dúvida sempre teríamos de lançar mão da transcrita regra do n. 3 do artigo 342.º do C.Civil e, assim, considerar a prova dos factos em referência, como constitutivos do direito invocado pela autora apelante.
Quanto à imputação de cumprimento valem aqui as mesmas considerações feita a propósito da análise do citado ponto 2. da resenha dos factos não provados.
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Como assim, devem os referidos factos continuar a constar do elenco dos factos não provados.
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Da mesma forma que, não sofrendo alteração os citados pontos factuais, também os pontos 1. e 10. da mesma factualidade devem aí permanecer por, a sua alteração, além de ser consequência lógica da alteração dos pontos 2., 3., e 4. propugnada pela apelante, também se estriba nos mesmos meios de prova.
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Os pontos 5. a 8. da resenha dos factos não provados têm, respectivamente, a seguinte redacção:
5. A autora, logo nesse momento, apercebeu-se que o valor em causa não era devido e afirmou à ré que o valor em dívida não estava correcto.
6. Perante tal afirmação a ré em alta voz e na presença de clientes no estabelecimento comercial afirmou à autora: “AA, vamo-nos chatear”.
7. A autora aceitou assinar cheque no valor de €30.426,67, no pressuposto de mais tarde apurar e concretizar com a ré o valor em dívida, conforme transmitiu.
8. Por várias vezes a autora tentou contactar a ré e demonstrar-lhe os valores em dívida, sem êxito até hoje”.
Mas será esta matéria factual juridicamente relevante, qualquer que seja a decisão que sobre a mesma venha a ser proferida à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito a solucionar?
A resposta é, como nos parece evidente, negativa.
Na verdade, não se vê, em termos de subsunção jurídica, qual a relevância dos citados factos.
Ora, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de actos inúteis (artigo 137.º do CPCivil, na redacção que vigorava antes da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho e a que corresponde actualmente o artigo 130º do vigente Código de Processo Civil, aprovado pela lei que antes se citou).
Como refere Abrantes Geraldes,[8] “De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objecto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
No mesmo sentido cfr. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.4.2012, processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, e da Relação de Guimarães de 10.09.2015, processo n.º 639/13.4TTBRG.G1.[9]
Por esse motivo, abstemo-nos de reapreciar a decisão da matéria de facto relativamente aos factos em questão.
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O ponto 12. do elenco dos factos não provados tem a seguinte redacção:
12. A autora teve noites sem dormir, teve de pedir quantias emprestadas para conseguir prestar caução no processo supra referido e teve que passar pelo vexame de contactar familiares e amigos para solicitar dinheiro emprestado para prestar caução, bem como, para explicar o sucedido uma vez que indagavam junto da autora a razão da sua tristeza”.
Alega a recorrente que o referido facto devia ter sido dado como provado.
Para o efeito, convoca novamente as suas declarações de parte bem como o depoimento da testemunha EE.
No que concerne às declarações de parte da recorrente, valem aqui as mesmas considerações já feitas supra.
Relativamente à testemunha EE, para além de ser marido da recorrente e, por isso, com interesse directo num desfecho favorável da acção, sobre o ponto em questão nada disse de relevante, pois que, sempre na instância feita pelo ilustre causídico, lhe foi sugerida a resposta.
Acresce que, sob este conspecto a recorrente limitou-se a transcrever excertos do depoimento da indicada testemunha.
Todavia, isso não basta. A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na verdade, transcrever os depoimentos não é fazer a sua análise crítica, esta pressupõe que se construa um raciocínio lógico e fundamentado que leve a extrair uma conclusão baseada naqueles, ou seja, o que se exige é que se analisem esses meios de prova, cotejando-os mesmo com a prova em sentido contrário, relativizando o sentido dessa prova e dizendo porquê, mas também relativizando as provas que convoca para sustentar o seu ponto de vista e de tudo isso extraindo o sentido que lhe merecer acolhimento.
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Diante do exposto, deve também o citado ponto permanecer na resenha dos factos não provados.
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Destarte, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que a apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ela expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objectiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, reflectindo a fundamentação dos factos provados e não provados os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão.
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Improcedem, por isso, as conclusões 1ª a 6ª formuladas pela recorrente.
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Permanecendo inalterada a matéria factual nada temos a censurar à decisão recorrida no que se refere à sua subsunção jurídica.
Com efeito e no que diz respeito às regras do ónus da prova já atrás nos pronunciamos.
Vejamos agora a imputação de cumprimento, questão também posta no recurso.
No capítulo referente ao cumprimento e ao não cumprimento das obrigações, os artigos 783.º, 784.º e 785.º do CCivil regulam a chamada “imputação do cumprimento”.
Assim, estabelece-se que, em regra, quando existam diversas dívidas da mesma espécie, do mesmo devedor, ao mesmo credor, se o devedor efetuar uma prestação que não chegue para extinguir todas as dívidas, cabe ao devedor escolher as dívidas a que o cumprimento se refere.
Se o devedor não fizer essa escolha ou essa designação, o cumprimento considera-se feito em relação à dívida vencida. Se houver várias dívidas vencidas, o cumprimento considera-se feito em relação à que oferece menos garantia para o credor. Entre várias dívidas igualmente garantidas, o cumprimento considera-se imputável na mais onerosa para o devedor.
Entre várias dívidas igualmente onerosas, o cumprimento considera-se imputável na dívida que primeiro se tenha vencido. Se várias se tiverem vencido simultaneamente, o cumprimento considera- se imputável na mais antiga.
Quando não for possível aplicar essas regras, a prestação efetuada pelo devedor presume-se feita por conta de todas as dívidas, rateadamente.
Revertendo ao caso concreto, do quadro factual dado como assente nos autos, não se verifica preenchida qualquer das factie species dos citados normativos.
Como já supra se referiu, o que a apelante alegou é que do cheque dado à execução no âmbito da execução que corre termos com o n.º 2550/03.8TBPVZ do Juízo de Execução do Porto-J3, no montante de €30.426,67 já só estava em dívida o valor de €6.699,37 tendo, pois, pago todo o remanescente.
Acontece que, a autora não provou como lhe competia, como noutro já se referiu, que os valores de 2.000.000$00 e 2.500.000$00, recebidos pela ré apelada, se tivessem destinado ao pagamento de parte do montante inscrito no cheque dado à execução, importando salientar, na contestação a apelada ré, veio impugnar esse pagamento parcial, referindo que os indicados valores se destinaram ao pagamentos de letras ou cheques do irmão da apelante de nome DD.
Daqui resulta que, não se trata de questão de imputação de cumprimento nos termos estatuídos no artigo 783.º, nº 1 do CCivil, mas antes de ónus da prova do facto extintivo da obrigação e que a apelante não satisfez.
É que, só se poderia falar de imputação de cumprimento se estivesse provado, e não está, que a autora apelada tinha outras dívidas da mesma espécie no confronto com a ré apelada como credora.
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Improcedem, assim, as conclusões 7ª a 19ª formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela autora apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 04 de Maio de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório III, pág 352 e seg..
[7] Cfr. Anselmo de Castro, ob. cit,, pág 354 e seg., ; Prof Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil pág 188.
[8] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada pág. 297.
[9] In www.dgsi.pt.