PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
ABUSO DO DIREITO
Sumário

A pretensão do condomínio de fazer cessar a utilização de uma das fracções para finalidade não conforme à prevista no título constitutivo da propriedade horizontal constitui um abuso de direito quando essa utilização ocorre desde há mais de 50 anos, foi autorizada pela pessoa que instituíra a propriedade horizontal e era à data da autorização o proprietário da totalidade das fracções do condomínio, não representa uma actividade mais danosa para o edifício que a prevista no título e ao longo desse tempo o condomínio foi inclusivamente condenado por sentença judicial homologatória de transacção das partes a realizar obras no imóvel para permitir a continuação dessa utilização.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:19563.19.0T8PRT.P1

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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Condomínio do Edifício sito na Rua ..., ..., representado pelo administrador I..., Unipessoal, Lda., pessoa colectiva n.º ..., com sede em Vila Nova de Gaia, instaurou acção judicial contra S ..., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em ..., e A..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em Matosinhos, pedindo o seguinte:
A) por violação do artigo 1422.º, n.º 2, alínea c) do Código Civil, devem os RR. serem condenados na proibição de afectação da fracção A a estabelecimento comercial, industrial e escritórios, não podendo dar outro uso à fracção que não seja a de garagem de recolha.
B) deve a 2ª Ré ser condenada na remoção do reclame publicitário e a repor a fachada comum do edifício na sua versão original;
C) deve a 2ª Ré ser condenada a demolir o coberto do logradouro conferindo-lhe a sua natureza original de espaço descoberto e livre;
D) deve a 2ª Ré ser condenada à desmontagem do tecto falso de forma a permitir a correcta avaliação das patologias que se possam verificar;
E) ser fixada uma sanção pecuniária compulsória no valor de 25€/dia, por tal actuação dos RR. e sempre que estes continuarem a destinar a garagem de recolha a estabelecimento comercial, industrial e escritórios ou o continuarem a fazer, após trânsito da sentença que vier a ser proferida.
F) os RR. condenados a pagarem solidariamente ao Autor os danos patrimoniais e despesas que ainda se verificarem, a liquidar em execução de sentença.
Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que a 1ª ré é proprietária da fracção A do prédio a que corresponde o condomínio autor, composta por garagem no rés-do-chão, cujo fim, segundo a propriedade horizontal, é o de garagem de recolha, mas que a 1.ª ré destinou a estabelecimento comercial e escritórios, tendo-o arrendado à 2ª ré, a qual nela realizou diversas obras de adaptação a estabelecimento comercial, designadamente nas partes comuns do edifício. A 2ª ré alterou a fachada do prédio, colocando uma montra e dois reclamos fixados na fachada comum, alterou e modificou as clarabóias existentes ao nível dos terraços traseiros comuns, tapando a ventilação natural que existia, alterou e modificou o logradouro do prédio, aumentado o seu espaço coberto, com a edificação de uma obra nova, tudo obras que nunca foram propostas e/ou aprovadas em sede de assembleia geral de condóminos. A 2ª ré, desde o início do arrendamento, instalou na fracção um estabelecimento comercial e industrial de construção, reparação e manutenção de equipamentos de refrigeração e outros para a indústria hoteleira e para o efeito usava técnicas de soldadura, reposição de gás nos refrigeradores, e tudo o mais atinente a essa actividade, aumentando, por essa via, o risco de incêndio e a insegurança do local e dos habitantes das fracções habitacionais. A 2ª ré colocou ainda na fracção tectos falsos em pladur que aumentam o risco de incêndio do edifício, não se compadecem com o exercício do fim a que a fracção se destina e impedem que se conheça de infiltrações e suas origens, da mesma forma que forrou com pladur as coretes comuns por onde passam os esgotos de todo o prédio sem deixar janelas de visita, dificultando o acesso aos mesmos quando se verificam entupimentos.
A 1ª ré contestou, defendendo a improcedência da acção e alegando, para o efeito, que comprou a fracção em 22.03.1971 a AA e mulher, os quais já antes haviam celebrado com a 2.º ré o contrato de arrendamento mencionado na petição inicial e no qual a fracção foi destinada «a comércio, armazém e oficina de reparação de aparelhagem electrodoméstica, e de gás, artigos para o lar e equipamentos hoteleiros, designadamente para cozinhas, lavandarias e similares», tendo a 2.ª ré de imediato e com autorização do senhorio colocado dois reclames luminosos, um ao longo da placa de cimento que separa o rés-do-chão do primeiro andar, em sentido horizontal, a toda a largura do prédio, e outro a meio do prédio, no sentido vertical, visível a toda a gente. Alega ainda que todos os condóminos do prédio têm conhecimento desse arrendamento, que a 2.ª ré ali explora um estabelecimento comercial desde 1971 e das obras que esta ali realizou, pelo que a pretensão formulada na acção constitui um abuso do direito.
A 2ª ré contestou igualmente, pugnando pela improcedência da acção e alegando para isso que desde que tomou de arrendamento a fracção, aí exerce, de forma clara e aos olhos de todos os demais condóminos, a sua actividade de comércio, armazenagem e realização de pequenas reparações em aparelhagem electrodomésticos e intervenções no gás de refrigeração de equipamentos para o lar e hoteleiros, tendo realizado apenas as obras que lhe foram autorizadas pelo senhorio, o qual era à data o proprietário de todas as fracções e, portanto, podia dar essa autorização de forma válida. Mais sustenta que no caso não existe violação do título constitutivo da propriedade horizontal ao nível da afectação da fracção e que, de todo o modo, a pretensão do autor constitui um abuso do direito.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador.
No decurso da fase do julgamento foi proferido despacho assinalando a possibilidade de se conhecer de imediato do mérito e, ouvidas as partes, foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo as rés do pedido.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1) A decisão a quo não faz uma correcta aplicação do direito ao absolver as rés dos pedidos formulados pelo autor/apelante.
2) Nunca foi à 2ª ré permitido pelo “prédio na sua globalidade” executar um conjunto de alterações no imóvel locado, bem como nunca foi permitida a colocação de reclames no seu exterior, o que fez.
3) Conforme resulta do disposto nos arts. 220º, 371º e 1419º do Cód. Civil e dos arts. 62º, nº 1 do Cód. do Notariado e 2º, nº 1, al. b) do Cód. do Registo Predial, é legalmente exigida a alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal para a afectação da fracção A ao que pretende a 2ª ré, alteração esta que só poderá ser feita por escritura pública ou documento particular autenticado, que são uma formalidade “ad substantiam”, indispensáveis para a validade daquela alteração, que está sujeita a registo.
4) No âmbito da decisão judicial, entretanto junta aos autos, datada de 6 de Abril de 1990, ou seja, com mais de 30 anos, o apelante desconhece por completo tal sentença e a legitimidade passiva do ali réu BB.
5) A primeira acta do condomínio data de 1995, conforme documento junto aos autos, sendo que o apelante não sabe, nem tem como saber, o que se passou antes de 1995, por não existir qualquer documento que titule a legitimidade do referido BB naquela acção, não vislumbrando em que medida podia este ser ali ser legitimamente demandado naquela qualidade, nos termos do art. 1437º do Código Civil.
6) Não é possível o administrador do condomínio assumir qualquer obrigação que recaia sobre todos os condóminos sem estar previamente legitimado para tal por uma deliberação de uma assembleia geral de condóminos, ou por uma posterior assembleia geral de condóminos que ratificasse tal obrigação por aquele assumida.
7) Não existe abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que o que o apelante pretende e peticiona nos autos é a conformidade da utilização dada à garagem do prédio (que é a fracção autónoma designada pela letra A) ao previsto e instituído no título da propriedade horizontal e à lei, no que concerne ao licenciamento (ou falta dele) quanto ao estabelecimento industrial e comercial naquele espaço instalado, bem como a obras efectuadas nas partes comuns não autorizadas.
8) Para que se aplique a proibição de venire contra factum proprium, é necessário que seja aguçada em outrem uma confiança que seja reconhecida, uma confiança legítima, para que em consequência, se conserve o comportamento inicial em sentido objectivo, sendo que o apelante nunca actuou em conformidade, tanto expressa como tácita, de aguçar nas rés uma confiança que possa vir a ser reconhecida, uma confiança legítima.
9) O pedido do autor/apelante é um direito intemporal que pode ser exercido a todo o tempo, independentemente do tempo decorrido ou da inércia ou omissão do exercido daquele.
10) Pelo que ao decidir como decidiu, viola a sentença recorrida o disposto nos arts.º 220º, 371º e 1419º e 1422.º do Cód. Civil.
11) Termos em que deve a decisão a quo ser revogada, devendo os autos prosseguirem os seus termos assim se fazendo, Justiça.
A 2.ª ré recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a pretensão que o autor deduz nos autos constitui uma manifestação de abuso do direito.

III. Os factos:
Ficaram provados os seguintes factos:
a) O autor é o condomínio do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..../....., composto por rés-do-chão e ... andares, sendo o ... andar recuado e constituído por 9 fracções autónomas.
b) Mostra-se descrita na conservatória do registo predial sob o n.º ..../..... a fracção autónoma designada pela letra “A” correspondente ao rés-do-chão do prédio referido em a), destinada, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, a garagem de recolha, com entrada pelos n.ºs ... e ..., a qual se encontra inscrita a favor da ré S ..., sob a ap. 7 de 1971/03/29.
c) Na inscrição matricial existente junto da AT, a fracção autónoma referida em b) está descrita como estando afecta a “serviços”.
d) A 1.ª ré declarou comprar a fracção autónoma descrita em b), por escritura pública outorgada em 22/3/1971 a AA e mulher, que declaram vender.
e) Por escritura pública outorgada em 6/1/1971, o referido AA declarou dar de arrendamento e a 2.ª ré, A..., Lda., declarou tomar de arrendamento a fracção autónoma descrita em b), pelo período de 1 ano, com início em 1/2/1971, renovável por iguais períodos “enquanto não for validamente denunciado”, pelo valor mensal, à data, de 3.000$00, tendo as partes acordado que:
“O local arrendado destina-se ao comércio, armazém e oficina de reparação de aparelhagem elétrica-doméstica e de gás, artigos para o lar e equipamentos hoteleiros, designadamente para cozinha, lavandarias e similares.” – cláusula quarta.
“A locatária não poderá dar ao local arrendado uso diferente dos que ficam determinados no artigo terceiro e não ser com o prévio consentimento do senhorio, notarialmente autenticado.” – cláusula quinta.
“A locatária fará no local arrendado todas as obras de que ele interiormente carecer para sua conservação e limpeza.” – cláusula sexta.
“A locatária fica desde já autorizada a modificar as portas de entrada do local arrendado, adaptando-as a montras e a mandar fazer a cobertura da parte descoberta do terreno que existe nas traseiras do local arrendado e que faz parte da fracção autónoma (…)” – cláusula sétima.
“Na medida em que ao senhorio seja lícito concedê-lo, atento o regime de propriedade horizontal já estabelecido no prédio de que faz parte o local arrendado, a locatária fica autorizada a mandar colocar na fachada anterior do prédio dois tipos de reclames luminosos: um ao longo da placa de cimento que separa o rés-do-chão do primeiro andar, ou seja no sentido horizontal, a toda a largura do prédio; e outro a meio do prédio no sentido vertical mas nunca além de dois metros e meio contados a partir da placa que separa o rés-do-chão do primeiro andar – cláusula quinta.
f) A 2.ª ré executou as seguintes alterações no imóvel:
- Colocação de uma montra e de um reclamo vertical e outro horizontal, a toda a largura do prédio, para o qual perfurou a fachada comum;
- Colocou vidros nas clarabóias existentes no imóvel que deitam para a superfície dos terraços traseiros comuns;
- Aumentou o seu espaço coberto ocupando o logradouro do prédio.
g) O primitivo proprietário de todo o imóvel, antes e após a sua constituição em propriedade horizontal, era AA.
h) A 2.ª ré exerceu, desde a data referida em e), a sua actividade comercial no imóvel descrito em b) à vista de todos.
i) A 2.ª ré intentou contra a 1.ª ré e o então administrador do condomínio do qual faz parte a fracção autónoma arrendada, BB, uma acção que correu termos sob o n.º 1510/1989, no extinto 6.º Juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto, 1.ª secção, onde pedia a condenação daqueles a “executar as obras necessárias à reparação das condutas de esgotos, águas pluviais e terraço de cobertura, de modo a sanar as infiltrações que se vêm verificando no arrendado do autor. (…)”.
j) Tal acção veio a terminar com uma transacção entre as partes, homologada por sentença em 6/4/1990, transitada em julgado, nos termos da qual foi acordado que «1.º A ré Santa Casa da Misericórdia e o Administrador do Condomínio reconhecem a necessidade de fazer obras no arrendado à autora, por forma a serem reparadas as condutas de esgotos, águas pluviais e infiltrações do tecto. 2.º As obras devem ser concluídas por forma a repor o arrendado no tecto e paredes no estado anterior às infiltrações: rebocado e pintado. 3.º Os tubos de queda de água e esgotos que passam junto a uma coluna que estão à vista de todos devem ser ocultos por madeira ou material semelhante. 4.º As obras devem ficar concluídas até 30 Setembro do ano corrente. 5.º O custo das obras em zonas comuns será suportado pelos condóminos na proporção das respectivas permilagens. Até à conclusão das obras o autor retirará o anuncio vertical que tem instalado no prédio. 6.º Se for criado algum obstáculo à continuação do fim actual do arrendado, a autora reserva-se o direito a exigir indemnização pelos danos eventualmente sofridos.(…)».

IV. O mérito do recurso:
Segundo o artigo 334.º do Código Civil, que define a figura do abuso do direito, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Para Castanheira Neves, in Lições de Introdução ao Estudo do Direito, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, entende-se por exercício abusivo do direito «um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício». O mesmo autor, in Questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, I, Coimbra 1967, pág. 513 e seguintes, sublinha que o abuso do direito é «um princípio geral de validade independente das específicas formulações que o concretizem».
O instituto do abuso do direito visa impedir situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, in www.dgsi.pt/jstj - ou apresenta uma «contrariedade clamorosa ao sentimento jurídico dominante na comunidade» - cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, 1, 2.ª ed., Coimbra, 1963, pág. 63 e seg. -. E isso é assim porque no exercício dos seus direitos toda a pessoa deve adoptar um comportamento honesto, correcto e leal, respeitando e correspondendo às legítimas expectativas que criou em outrem.
O instituto do abuso do direito consagra a supremacia dos limites impostos designadamente pelos bons costumes sobre as actuações humanas. A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
Para Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª edição, pág. 260, «o direito subjectivo é substancialmente funcional, tem um sentido de utilidade que se perde se não tiver em atenção qual o fim do titular que deve realizar – ou contribuir para realizar – com êxito, e o bem que vai ser afectado à realização desse fim. Nesta perspectiva, a substância do direito subjectivo resulta do nexo funcional existente entre uma tríade de realidades: a pessoa, o seu fim e o meio utilizado para o realizar».
O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, casos em que se excede os limites impostos pela boa fé” – apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in Colectânea de Jurisprudência - Ac. STJ, 1996, tomo III, pág. 117. Para o efeito, não é necessário que a parte tenha a consciência de com a sua actuação exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, basta que objectivamente esse excesso ocorra – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, pág. 536 –.
Existem diversas figuras típicas que encerram uma violação desse dever de actuação conforme às expectativas criadas e que reconhecidamente constituem exercícios abusivos do direito. Conta-se entre elas o chamado venire contra factum proprium que se reconduz à situação em que o titular do direito adopta um comportamento capaz de criar no outro pólo da relação jurídica a expectativa de que o direito é concebido e será exercido pelo seu titular em consonância com o significado desse comportamento, mas depois vem a actuar em contradição ou desconformidade com o comportamento anterior, frustrando aquela confiança.
Subjacente ao conceito do venire contra factum proprium está a ideia de que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devem ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida da relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente.
Para Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 745, «o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - o factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo». Para este autor, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, pág. 964, os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium” são quatro; «1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.º Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.º Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.º Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível
Para Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil, in Boletim da Faculdade de Direito, Volume comemorativo do 75º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, pág. 302 e seguintes, o venire contra factum proprium possui pressupostos imprescindíveis. Assim, «… deverá, antes de mais, existir um comportamento anterior do agente - o “factum proprium” a que se refere a expressão -, que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. ... Depois, há que apurar a imputação ao agente, quer desse comportamento anterior, quer do actual comportamento. … em regra, não poderá prescindir-se da culpa (apenas poderá abrir-se uma excepção, a nosso ver, quando o factum proprium fundou, embora sem culpa, determinadas expectativas na outra parte, por exemplo, por lhe terem sido prestadas informações jurídicas erradas, por o agente dispor de uma posição de superioridade ou ser, de outra forma, responsável pela ineficácia de uma vinculação na qual a outra parte confiou). … Em terceiro lugar, há que verificar a necessidade e o merecimento de protecção do atingido com a conduta contraditória. Assim, este tem de estar de boa fé, isto é, há-de ter confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando não culposamente eventuais intenções contrárias do agente. … Por outro lado, importa apurar a existência e o tipo de “disposição” levada a cabo, ou seja, o “investimento de confiança”, ou baseado na confiança, realizado, sendo que este pode traduzir-se, por exemplo, da realização de uma contraprestação. A sua irreversibilidade ou a eventual afectação da situação existencial daquele que confiou, por virtude da frustração desse “investimento”, … serão elementos cuja presença reforça a conclusão de proibição da conduta contraditória. Terá também de existir causalidade, quer entre a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, quer entre esta e a “disposição” (causadora do dano) levada a cabo. Para que o agente seja responsável - rectius, para que seja impedido de venire contra factum proprium - o investimento de confiança tem, pois, de ser causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada».
Todavia, como logo adverte este autor, «deve rejeitar-se a aplicação automática dos pressupostos mencionados, após a sua enumeração e verificação no caso concreto. Antes todos deverão ser globalmente ponderados, in concreto, pata se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta-com os ditames da boa fé em sentido objectivo».
Constituem modalidades (ou figuras próximas consoante os autores) da figura do venire contra factum proprium os casos chamados suppressio e surrectio. Tratam-se dos casos em que o comportamento do titular do direito ao longo do tempo criou a legítima confiança de que aquele não exercerá mais o direito ou renunciou a ele ou então que reconhece a outrem um direito ou faculdade jurídica que de outra forma não existiria ou já se encontrava extinta.
Enquanto formas de tutela da confiança concitada noutrem por um determinado comportamento, o que releva é o significado da aparência do comportamento, a ilação que o mesmo permite quanto ao comportamento da mesma pessoa – do mesmo titular do interesse juridicamente protegido – no futuro. Por isso, não importa se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar ao mesmo, nem isso poderia ser facilmente concluído a partir de um comportamento – puramente – omissivo. Importa sim que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários.
Como tal, a acrescer ao decurso do tempo são necessários indícios objectivos desse significado que permitam concluir que a confiança criada não foi iminentemente subjectiva – correspondente à vontade e desejo de outrem – mas objectivamente fundada, só assim merecendo a tutela do direito. Esses elementos objectivos hão-de indiciar que o direito não mais será exercido ou se renunciou a ele em definitivo. O que significa, afinal, que o contexto e as circunstâncias em que o comportamento tem lugar podem ser decisivos para a interpretação do seu significado.
A suppressio, enquanto possível expressão de abuso de direito, está ligada à inacção ou à omissão, acompanhada de outras circunstâncias colaterais, que não apenas o decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição.
Refere Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Almedina, 2011, pág. 323 e seg., que «o factum proprium é, por definição, uma actuação positiva: não uma omissão. Além disso, os regimes deverão ser distintos: o factum proprium é de fácil determinação, através de coordenadas pessoais (o autor), materiais (o que ele fez), geográficas (onde fez) e cronológicas (quando fez); tudo isso falta na omissão conducente à suppressio. (…) teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes: um não-exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não-exercente». E mais à frente, «o não-exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva».
Também Nuno de Oliveira, in A Suppressio ex bona fide, Revista de Direito Civil, 2015, Almedina, pág. 171 e seg., distingue o venire contra factum proprium e a suppressio do seguinte modo: «… o venire contra factum proprium pressupõe a sobreposição de dois actos, de sentido distinto, não necessitando de um lapso temporal entre eles. O mecanismo típico de actuação da figura compreende um acto praticado por alguém que gera em outrem uma situação de confiança, que deve ser justificada, imputável ao comportamento alheio e possibilitar um investimento de confiança. Posteriormente, a mesma pessoa vem actuar em sentido contrário, violando essa confiança e causando prejuízos à contraparte. O Direito não deve permitir este tipo de actuação por ele ser abusivo e violar os ditames da boa fé. Já na suppressio, o que está pressuposto é o contrário: a inacção, prolongada no tempo, de quem, podendo agir, não o fez antes, vindo posteriormente actuar o direito. Embora estejamos igualmente perante uma situação que exige o cumprimento dos requisitos da tutela da confiança, a diferença reside aqui no mecanismo de actuação prévio. Não há qualquer acto de um credor, mas sim a total ausência do mesmo, durante um período de tempo mais ou menos prolongado. Uma vez gerada a confiança de que o direito não mais será exercido, ou um desequilíbrio no seu exercício, devido ao lapso temporal, o seu exercício será paralisado pela suppressio».
No caso, uma fracção urbana de um imóvel que no título constitutivo da respectiva propriedade horizontal foi destinada a garagem de recolha, foi dada de arrendamento em 6 de Janeiro de 1971 para a sociedade arrendatária nela exercer o comércio, armazém e oficina de reparação de equipamentos domésticos e hoteleiros de gás, cozinha, lavandarias e similares.
Pergunta-se se a pretensão do condomínio, formulada em 2 de Outubro de 2019, de obter a cessação da utilização da fracção para as finalidades assinaladas no contrato de arrendamento, a retirada dos reclamos que identificam essa actividade e a eliminação de obras que a arrendatária fez para exercer a sua actividade, constitui um abuso do direito.
A nossa resposta é firmemente positiva.
A primeira circunstância que contribui para essa resposta é a de a utilização da fracção para a finalidade a que se encontra afecta durar há mais de 50 anos (cinquenta anos!) sem que haja notícia nos autos de que o condomínio ou algum condómino se haja oposto a essa utilização ao longo desse período de tempo.
Bem pelo contrário, existe mesmo notícia de uma acção judicial na qual o condomínio se obrigou a executar obras no prédio para permitir o normal desenvolvimento da actividade da arrendatária, aceitando, desse modo, a validade da utilização da fracção pela arrendatária.
O decurso de meio século sobre a utilização da fracção nos moldes que vem tendo lugar de modo ininterrupto, sem oposição de quem de direito, é um dado absolutamente esmagador e decisivo para a determinação do abuso do direito.
Abra-se um parêntesis para declinar a argumentação da recorrente no sentido do não reconhecimento da qualidade do Administrador do Condomínio demandado na acção judicial onde foi assumida a obrigação de executar obras para permitir o funcionamento do estabelecimento instalado na fracção.
A pessoa em causa foi demandada na qualidade de Administrador do Condomínio porque, segundo se alegou na petição inicial, a obrigação de executar as obras era do Condomínio pelo que este devia ser demandado na pessoa do seu Administrador. Quaisquer questões sobre a legitimidade do demandado e/ou sobre os seus poderes para representar o Condomínio tinham naturalmente de ser suscitadas e decididas na acção, sob pena de ficar precludida a sua arguição em momento posterior e de a sentença formar caso julgado nos precisos termos em que foi julgado. A autora não pode agora, certamente, trinta anos volvidos sobre a sentença proferida nessa acção, questionar o seu valor ou eficácia jurídica.
A segunda circunstância é a de essa utilização ter sido autorizada através de um contrato de arrendamento celebrado, na qualidade de senhorio, pelo anterior proprietário não apenas dessa fracção como da totalidade das fracções do prédio que ele mesma havia constituído em regime de propriedade horizontal, o que lhe dava uma especial qualidade quer para definir a afectação a que a fracção se destinaria como para definir a posição do condomínio em relação a essa utilização. Este facto evidencia que a arrendatária tinha todas as razões para confiar legitimamente na possibilidade de fazer uso da fracção para o fim assinalado no contrato.
A terceira circunstância é a de que as obras que a arrendatária realizou foram igualmente autorizadas pelo senhorio e pelo contrato de arrendamento, estando todas elas indissociavelmente ligadas à exploração da fracção e apenas atingindo de forma leve e quase irrelevante as zonas comuns (colocação de montras, cobertura da parte descoberta do terreno nas traseiras do arrendado e que faz parte da fracção autónoma, colocação na fachada de reclamos luminosos).
Este facto evidencia que a arrendatária confinou a sua actuação aos termos estritos da autorização que obteve do proprietário da fracção que, como vimos, era igualmente o proprietário das restantes fracções, podendo, por isso, ser ele a definir a vontade do próprio condomínio.
A quarta circunstância é a de que a utilização da fracção que vem sendo feita ao longo dos últimos 50 anos não representa a nosso ver, uma utilização mais danosa para o prédio, para o condomínio ou para os condóminos da utilização para a finalidade assinalada na propriedade horizontal.
Ao invés, afigura-se-nos que a sua utilização para garagem de recolha determinaria a constante entrada e saída de veículos na fracção e a deslocação destes pelo interior da mesma, o que seria uma actividade muito mais poluidora, quer do ponto de vista físico quer do ponto de vista sonoro, por causa da libertação de gases dos motores, da presença de resíduos de óleos e borrachas dos veículos, e do ruído da execução das manobras de estacionamento e saída do estacionamento no interior da fracção, o que contribuiria seguramente para um maior desgaste do prédio e desvalorização das suas fracções.
Nesse sentido, afigura-se-nos que estão preenchidos todos os requisitos da figura do venire contra factum proprium, na modalidade da supressio e, mais importante que isso, que de facto a pretensão do autor tem de ser julgada ilegítima por exceder manifestamente os limites da boa fé.
Temos verificada uma situação de não-exercício prolongado do direito de impedir a utilização da fracção para qualquer outra finalidade que não a de garagem, uma situação em que a utilizadora da fracção confiava naturalmente que essa utilização era aceite pacificamente pelo condomínio, uma situação em que essa confiança se justifica pela autorização obtida de quem lha podia dar e não questionada por quem se lhe podia opor, uma situação em que a retirada à ré da utilização da fracção a privaria dos proveitos que essa utilização comercial lhe proporciona, uma situação em que a pretensão de encerramento da utilização da fracção rompe, desvirtua e contraria a atitude de inércia que o condomínio adoptou ao longo de décadas seguidas.
Repare-se que não se trata de contornar qualquer disposição legal que exija uma determinada forma legal e o acordo de todos os condóminos para mudar a finalidade da fracção assinalada no título constitutivo da propriedade horizontal. Do que se trata é somente de analisar a pretensão do autor à luz da boa fé e de impedir uma pretensão que exceda manifestamente os limites impostos por aquela.
Donde resulta, por exemplo, que a decisão desta acção não impeça as autoridades administrativas de exercerem os seus poderes legais no tocante à fiscalização da utilização dos imóveis para os fins que lhe foram fixados na licença de construção e/ou no título constitutivo da propriedade horizontal, tal como não impede o condomínio de se opor a que no futuro qualquer outra entidade use a fracção para o mesmo fim que a ré vem prosseguindo, independentemente do modo como essa entidade adquiriu o gozo ou a propriedade da fracção.
Por isso, com justificado fundamento no abuso do direito a acção foi correctamente julgada improcedente, do mesmo modo devendo ser julgado o recurso da mesma.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso pelo recorrente, o qual vai condenado a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 19 de Maio de 2022
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 688)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]