VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
Sumário

A suspensão da execução da pena de prisão de condenado por violência doméstica tem sempre que ser condicionada a regras de conduta de proteção da vítima
Constituindo a Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro um regime jurídico especial e próprio de prevenção da violência doméstica, as suas normas constituem regras especiais relativamente ao regime geral aplicável à suspensão da pena regulado no CP.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
Em processo comum com intervenção do tribunal singular, após realização da competente audiência de julgamento, foi proferida sentença condenatória pela prática, por parte do arguido WA_______, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido, pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea e n.° 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, a contar do trânsito em julgado da decisão, nos termos do disposto no artigo 50.°, do Código Penal e bem assim
Inconformado com a decisão veio o MP recorrer apresentando motivações que concluiu do seguinte modo:
I - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos que condenou o arguido WA_______ , como autor material e na forma consumada, da prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido, pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea b) e n.° 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, a contar do trânsito em julgado da decisão, tudo nos termos do disposto no artigo 50.°, do Código Penal.
II - O presente recurso é restrito ao modo de execução da pena de dois anos e dois meses de prisão, na parte em que não condicionou a suspensão de tal pena de prisão a um regime de prova.
III - A suspensão da aludida pena de prisão aplicada ao arguido, não se mostra sujeita a qualquer condição, ou sequer a acompanhamento por parte da D.G.R.S.P.
IV - A Lei n° 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, dispõe no seu art. 34°-B, n°1, sob a epígrafe “Suspensão da execução da pena de prisão”: “A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152. ° do Código Penal é sempre subordinada  ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por quaquer meio. ”
V - A sentença recorrida, contudo, não aplicou qualquer obrigação de cumprimento de deveres ou observância de regras de conduta, ou acompanhamento de regime de prova, como condição de suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado nos autos.
VI - A suspensão da pena de prisão, ao condenado pela prática de um crime de violência doméstica, está integrada nas finalidades da mencionada Lei e, faz parte da consciencialização social, que se verificou quanto ao crime de violência doméstica, a qual se mostra transposta para as normais penais aplicáveis a este tipo legal, quer ao nível de previsão, quer ao nível de estatuição.
VII - E, é exatamente quanto à estatuição, que a sentença ora recorrida, não se apresenta conforme com os normativos legais aplicáveis.
VIII - Sendo certo que, a Mma. Juiz sempre poderia ter afastado a aplicação de um regime de prova, se devidamente fundamentado e apenas em situações muito excepcionais, o que não sucedeu in casu
IX - Sendo certo que, a citada disposição legal, lei especial quanto ao ilícito de violência doméstica, vincula o julgador.
X - Nestes termos, a sentença recorrida deve, pois, ser substituída por outra, que determine que a pena de prisão em que o arguido foi condenado, seja suspensa na sua execução, mas sujeita ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.
Vossas Excelências não deixarão, porém, de apreciar com mais sabedoria, tudo o que é alegado e de fazer a habitual
JUSTIÇA!
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Por despacho de 28-05-2021 foi recebido o recurso.
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O arguido respondeu ao recurso interposto propugnando pela sua improcedência, o que fez nos seguintes termos:
À evidência do artigo 34.º-B, n.º1 da Lei n.º112/2009, de 16 de setembro, de facto, resulta que nos casos de condenação de um agente pela prática do crime de violência doméstica numa pena de prisão suspensa na sua execução, a regra é que esta fique subordinada à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova. Não obstante, existe a possibilidade de não imposição de um tal regime conducente na suspensão da execução da pena de prisão, desde que seja devidamente fundamentado.
Ora, no modesto entendimento do Recorrido, e com o devido respeito pelo entendimento adotado pelo Recorrente, não lhe assiste razão alguma quando defende que a sentença recorrida não se mostra devidamente fundamentada quanto ao afastamento deste regime regra.
Veja-se que ao longo da sentença recorrida apuram-se diversas razões que fundamentam a decisão de afastamento da aplicação de penas acessórias, nomeadamente a de proibição de contacto com a vítima. O douto Tribunal relevou como um fator de especial relevância a atual relação entre o arguido e a ofendida, comprovada pelas declarações da própria ofendida, nas quais a mesma “descreveu contactos ulteriores com o arguido e mesmo mais recentes à data da sua inquirição, razão pela qual, por se encontrar pacificada a relação, nada pretende receber do arguido(…)”; relevou, de igual forma, a conduta da ofendida que sempre respondeu com “clareza e objetividade, de forma segura, lógica, isenta e desprendida, apesar da qualidade em que interveio nos autos (…)”, concluindo assim, o douto Tribunal que: “pese embora os factos que se consideraram provados por persistência, reiteração e modo como as condutas foram infligidas na pessoa da ofendida, atento o referido pela ofendida e confirmado pelo arguido, quanto ao modo de relacionamento atual, julga o Tribunal não ser de aplicar tal pena acessória.”
Ressalva-se, portanto, que a própria ofendida confessou que mantém um contacto próximo e regular com o arguido, não se verificando qualquer perigo no que respeita à sua proteção como vítima.
Nesta conformidade, ainda que seja incontroverso que a proteção da vítima, no crime de violência doméstica, é de fundamental importância, não tendo o Tribunal a quo, na sua fundamentação que permita a formulação de um tal juízo e não resultando da matéria de facto provada, factos concretos que o possam sustentar, impõe concluir que não se mostram verificados os pressupostos para a condenação de pena acessória, nomeadamente no que respeita à necessidade de proteção da vítima.
Na ausência dessa fundamentação, elaborada em termos suficientes e cabais, apresentar-se-ia como injustificada a imposição ao arguido de pena acessória como condição da suspensão da execução da pena principal aplicada.
Porquanto a sua aplicação só se justificaria, como indispensável, o real perigo e persistência por parte do arguido em contactar a ofendida com intenção de a importunar, correndo o risco de praticar novos factos ilícitos. Não sendo esse o caso, a imposição de deveres, restringe, de modo grave, os direitos, liberdades e garantias do arguido assim com os da ofendida, tal como a sua dignidade como ser humano.
Teremos, pois, de concluir que ainda que a defesa da vítima, neste tipo de delitos seja fundamental e necessária, não existem motivos para que seja aplicada pena acessória, uma vez que a situação dos autos não se demonstra suficientemente grave para a sua aplicação, atendendo aos factos provados e ao teor da sentença proferida.
Julga-se assim a aplicação da pena acessória desnecessária para as necessidades de punição, pois na verdade é do conhecimento do Tribunal que a situação entre o arguido e a ofendida já está totalmente definida, encontrando-se terminada, como consta aliás das declarações de ambos.
A ofendida fez um depoimento espontâneo, coerente e credível, referindo, de forma convicta e segura, que mantém uma relação próxima com o arguido.
Acresce ainda que, o arguido também não foi condenado no pagamento de quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela vítima, atenta à posição da mesma que quando questionada sobre o referido arbitramento, manifestou que nada desejava receber do arguido.
Para além do exposto, existem outros fatores que assumem relevo e pesar na ponderação do Tribunal a quo, os quais, no entendimento do Recorrido, também devem ser atendidos, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais do arguido, a sua inserção familiar e social, considerando que o mesmo vive com uma atual companheira, estando a aguardar o nascimento do filho em comum, e tem mais duas filhas menores.
Neste momento, não há, por parte do arguido, fundamentos bastantes que levem a crer que irá reincidir.
Posto isto,
Não nos parece que a aplicação de penas acessórias que o Recorrente pretende que sejam aplicadas, sejam necessárias para a finalidade pretendida, ou seja, para que a sanção principal satisfaça de forma adequada e suficiente as necessidades de punição, nomeadamente, evitando eventuais comportamentos ilícitos por parte do arguido.
In casu, o arguido tem perfeita consciência do que implica ter a execução da pena de prisão suspensa, sabendo ele que a respetiva condenação constitui uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir e que leve uma vida conforme à lei, pela simples censura do facto.
Pelo exposto, para além de não se concordar com o teor das alegações de recurso do Ministério Público, a verdade é que o mesmo sempre haveria de ter em conta que a situação atual entre o arguido e a ofendida é manifestamente diferente daquela que existia à data dos factos.
Assim, andou muito bem o douto Tribunal a quo ao decidir como decidiu, não aplicando penas acessórias como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Nestes termos e nos mais de direito que V.Exas. doutamente suprirão, não deverá ser concedido provimento ao recurso interposto pela Recorrente e, consequentemente deverá ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal a quo, fazendo-se desta forma a costumada,
Justiça!
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O Sr. PGA junto desta Relação emitiu parecer acompanhando o recurso interposto pelo MP na primeira instância.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2 do CPP, nada tendo sido dito.
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Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artº 419º/3 do C.P.P, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
Questões a Decidir:
(i) Se a suspensão da pena nos casos de violência doméstica é obrigatória e sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.
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III – Apreciação:
A Decisão de facto (definitivamente assente pois não foi interposto da matéria de facto e a decisão não enferma de qualquer vício de conhecimento oficioso) da decisão recorrida é do seguinte teor:
II - FUNDAMENTAÇÃO
Produzida a prova e discutida a causa, resultam os seguintes:
FACTOS PROVADOS
1. O arguido e TG________ iniciaram uma relação de namoro em novembro de 2019, a qual terminou em maio de 2020.
2. Durante o tempo que namoraram, o arguido e TG________ viveram juntos como se casados fossem, em casa sita na Rua …, Rio de Mouro.
3. Desde Janeiro de 2020, que por várias vezes, em dias não concretamente apurados, o arguido apodou TG________ de “desgraçada”, “estúpida”, “não prestas” e “vagabunda”.
4. Em Fevereiro de 2020, em dia não corretamente apurado, na residência do casal, o arguido desferiu empurrões a TG________ e puxou-lhe os cabelos, motivado por ciúmes.
5. Em Abril de 2020, em dia não concretamente apurado, na residência do casal, o arguido voltou a desferir empurrões e puxar o cabelo de TG_____, mais uma vez motivado por ciúmes.
6. Em Maio de 2020, o arguido e a TG________ separaram-se.
7. Após a separação, entre Maio e Julho de 2020, por várias vezes, em dias não concretamente apurados, o arguido dirigiu-se ao seu local de trabalho, sito na Avenida da Quinta Grande, Alfragide.
8. O arguido dirigiu-se a esses locais com o intuito de conversar com TG________ e reatar o relacionamento, o que ela sempre recusou.
9. Nessas ocasiões, perante a recusa da TG________ , o arguido agarrou-a pelos braços, impedindo-a de se ausentar. 
10.    Desde o final do relacionamento, entre maio e julho de 2020, por várias vezes, em dias não concretamente apurados, o arguido enviou várias mensagens para o telemóvel da TG________ com indicação de conhecimento do local onde ela se encontrava.
11. Tais mensagens assustavam a TG________ que se sentia controlada, vigiada e seguida pelo arguido.
12. Desde o final do relacionamento, entre Maio e Julho de 2020, por várias vezes, em dias não concretamente apurados, o arguido enviou mensagens para o telemóvel da TG____ com o texto “se não fores minha não serás de mais ninguém”.
13. No dia 01/07/2020, pelas 18 horas, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da TG________ e esperou que ela saísse.
14. Depois, quando a TG________ saiu, o arguido abordou-a e agarrou-a pelos braços, impedindo que ela dali saísse, e insistiu para reatarem o relacionamento.
15. Ao mesmo tempo, o arguido tentava beijar os lábios da TG________ à força, o que conseguiu, provocando-lhe ferimentos nos lábios.
16. Com a prática das condutas descritas, deu causa o arguido, de modo direto e necessário, a que TG________ se sentisse num constante estado de profundo mal-estar, de ansiedade e de tristeza, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que a seguisse, que a ofendesse a sua integridade física ou que a amesquinhasse.
17. Ao agir do modo descrito, o arguido sabia que, de um modo persistente, molestava física e psiquicamente a vítima, atuando sempre de molde a atingir a sua dignidade humana e a saúde física e psíquica, como pretendia e conseguiu.
18. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Outros factos com relevo para a decisão da causa
19. O arguido vive com a companheira, a qual se encontra de baixa, fruto de gravidez de risco e uma filha da mesma, com 10 anos de idade, cujo pai não contribui. 
20. O arguido além de aguardar o nascimento do filho, tem mais duas filhas de 2 e 4 anos de idade, as quais vivem com a respectiva mãe entregando cerca de € 200, mensais para o sustento das mesmas.
21. Tem o 12.° ano de escolaridade.
22. Reside em Portugal desde Fevereiro de 2016, com autorização de residência válida.
23.    Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se logrou apurar que:
a) O circunstancialismo descrito em 3., dos factos provados, tivesse ocorrido desde data anterior à apurada.
b) O descrito em 7., dos factos provados, ocorresse igualmente na residência da TG________ , sita na Rua … Mem-Martins.
c) No circunstancialismo descrito em 9., dos factos provados, o arguido tivesse apodado a ofendida de “desgraçada”, “estúpida”, “não prestas” e “vagabunda”.
d) Em junho de 2020, em dia não concretamente apurado, por TG________ se ter recusado a falar com ele, o arguido desferiu-lhe empurrões e puxou-lhe o cabelo.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
Para responder à matéria de facto, o Tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente, segundo as regras da experiência e da livre convicção do Tribunal, nos termos do artigo 127.°, do Código de Processo Penal.
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Sendo que a convicção do tribunal é formada, através de dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.
Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras de experiência comum.
Foi assim, à luz de tais princípios, que se formou a convicção do Tribunal e consequentemente se procedeu à selecção da matéria de facto dada como provada.
Foram tidos em conta os documentos juntos aos autos: auto de denúncia, de fls. 16 a 18 e Certificado do Registo Criminal actualizado.
Em sede de declarações do arguido, não obstante o mesmo tivesse assumido a ocorrência de discussões, maioritariamente por ciúmes recíprocos, negou os factos imputados, nomeadamente expressões empregues e mesmo em relação a mensagens enviadas quanto a conhecimento da localização, dando conta que se tratava de uma brincadeira, confirmando a deslocação até ao local de trabalho da ofendida, mesmo após o final do relacionamento, mas transmitindo tratar-se de deslocações normais, dada a sua liberdade de movimentação profissional e para deixar a ofendida em Mem-Martins, dado desconhecer o concreto local da sua residência.
Ouvida a testemunha TG________ , ofendida, a mesma confirmou a actuação do arguido, na sua pessoa, esclarecendo a forma como se relacionavam e, não obstante a mesma reconhecesse a existência de ciúmes recíprocos, descreveu o emprego de expressões imputadas a que não respondia da mesma forma por recear a reacção do arguido. A mesma logrou confirmar de forma espontânea a maioria das expressões, acabando por confirmar a expressão estúpida com que foi confrontada e que não prestava, embora, quanto a esta tivesse descrito a interpretação similar que fazia do que era dito pelo arguido quanto à sua pessoa. Mais descreveu a ofendida que, em relação aos últimos factos ocorridos, não logrando espontaneamente recordar a data, ocorreram no dia em que se deslocou à PSP, para apresentar queixa, relacionando o referido episódio com o do beijo, tendo sido confrontada com a data aposta no auto de denúncia. Igualmente, descreveu contactos ulteriores com o arguido e mesmo mais recentes à data da sua inquirição, razão pela qual, por se encontrar pacificada a relação, nada pretende receber do arguido, o que se consignou.
Inquirido DC_______ , amigo da ofendida, nada logrou esclarecer quanto a factos concretos perpetrados pelo arguido na pessoa da ofendida, mas apenas os contactos que recebia da ofendida e relatos efectuados pela mesma quanto às actuações daquele, pelo que, teve um contributo diminuto para a convicção do Tribunal, a não ser para permitir enquadrar os relatos da ofendida e estado em que a mesma ficava após a ocorrência de episódios descritos.
Assim, a testemunha/ofendida inquirida, respondeu com clareza e objectividade, de forma segura, lógica, isenta e desprendida, apesar da qualidade em que interveio nos autos, tendo por tal merecido a credibilidade do Tribunal pelo que, não ficou o Tribunal com qualquer dúvida sobre a autoria dos factos pelo arguido, não obstante o repúdio efectuado pelo mesmo.
Relativamente aos factos subjectivos, por presunção natural e regras da experiência comum, permite-se dá-los como materialmente verdadeiros.
A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directa ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.
Face ao supra exposto, importa referir que, na dúvida, impera o princípio in dubio pro reu.
Trata-se de um princípio que pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como o dolo e negligência do seu autor. Isto é, à insuficiência da prova - que equivale à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado facto - deve dar-se como não provado o facto desfavorável ao arguido. Ou seja, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia (neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, em Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, Stvdia Iuridica 24, pág. 11). 
 Este princípio traduz, assim, a convicção de que o Estado, através dos Tribunais, não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente, conforme esclarecedoramente defende Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 166, e isto porque, são mais gravosas as consequências que podem decorrer de uma incorrecta fixação de factos em processo penal.
Não restaram assim quaisquer dúvidas acerca do cometimento dos factos pelo arguido, conforme supra se expôs, atenta a prova produzida, nomeadamente o depoimento da ofendida, nos termos já supra explanados.
Em relação à factualidade dada como não provada, tal resultou da não assunção dos factos pelo arguido e da conjugação do depoimento da ofendida que aos mesmos não aludiu e até repudiou, nomeadamente quanto a expressões empregues junto do local de trabalho da mesma.
No que se reporta à situação pessoal do arguido tomaram-se em consideração as declarações do próprio, porque vertidas em matéria não criminal.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, teve o Tribunal em consideração o conteúdo do C.R.C. junto aos autos.
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Os factos considerados provados pela primeira instância e acima transcritos encontram-se definitivamente assentes, porquanto nem o MP nem o arguido não impugnaram a decisão de facto e não se verifica a existência de qualquer vício que a afete e que seja de conhecimento oficioso (art.º 410.º, n.º 2do CPP).
De igual forma quer o MP quer o arguido aceitam a qualificação jurídica dos factos acima transcritos que o tribunal a quo subsumiu ao crime de violência doméstica agravada p.p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea b), n.° 2, alínea a) do Código Penal
Como se verifica da análise das conclusões de recurso está apenas em causa a suspensão da execução da pena de prisão não sujeita a deveres, regras de conduta ou regime de prova, defendendo o MP que tal é obrigatório e o arguido que a decisão afasta de forma fundada tal aplicação.
O tribunal a quo julgou que por adequada e suficiente, a condenação do arguido na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, próxima do limite mínimo da moldura.
E fundamentou a suspensão da execução da pena que fixou, nos seguintes termos:
Da suspensão da pena de prisão aplicada:
Assim, de tudo o que se deixou dito resulta, visa-se garantir a satisfação das razões de prevenção, reprovando de forma firme o agente e afastá-lo da prática de idênticos ilícitos.
Deste modo, e para os efeitos do disposto no artigo 50.°, do Código Penal, considerando o que se disse, a conduta do arguido anterior à prática do facto punível e às circunstâncias em que ocorreu, resulta que a suspensão da pena de prisão aplicada, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Refira-se que esta medida tem um carácter reeducativo e pedagógico, entendendo existirem condições para a aplicação da mesma e, com tal suspensão, realizar as finalidades deste instituto político criminal.
Entende-se, por tudo o supra exposto, suspender a pena de 2 anos e 2 meses de prisão aplicada pelo período de 2 anos e 2 meses, a contar do trânsito em julgado da decisão, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 50.°, do Código Penal.
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Da pena acessória:
Vem ainda imputada ao arguido, a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima.
Tal pena acessória encontra-se prevista no artigo 152.°, n.° 4 do Código Penal e pode ser aplicada pelo período entre seis meses a cinco anos.
Ora, pese embora os factos que se consideraram provados da persistência, reiteração e modo como as condutas eram infligidas na pessoa da ofendida, atento o referido pela ofendida e confirmado pelo arguido, quanto ao modo de relacionamento actual, julga o Tribunal não ser de aplicar tal pena acessória.
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Quid iuris?
Como bem nota o MP na sua resposta ao recurso, por força do disposto no art.º 34.ºB (que tem como epígrafe “Suspensão da execução da pena de prisão”), n.º 1, da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro, que aprovou o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152. ° do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.
Não deixa de ser igualmente um facto que o art.º 152.º, determina nos seus n.ºs 4 e 5
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância;
Esta realidade pode gerar alguma confusão se a interpretação não tiver com conta o sistema como um todo; ou seja, é necessário realizar interpretação sistemática e teleológica, uma vez que os deveres e regras de conduta podem assumir a natureza de pena acessória ou de condição de suspensão da pena, consoante sejam aplicados de forma autónoma, e portanto peticionada pela e na acusação, ou condição da suspensão da pena e apenas sujeitos e dependentes da avaliação realizada pelo julgador quando decide suspender a execução da pena.
Esta dupla natureza ressalta da análise dos art.ºs 50.º e ss. e 152.º e ss do CP, que estabelecem as regras gerais de aplicação de condições da suspensão da execução da pena de prisão e das penas acessórias, sem prejuízo, todavia, do disposto em legislação específica e relativa a crimes em concreto. É o que se verifica nos casos de violência doméstica, constituindo o citado art.º 152.º, n.º 4 e 5, que prevê penas acessórias relacionadas com a prevenção do crime aí punido, regra especial relativamente aos art.ºs 65 a 69.ºC do Cód. Penal, que regulam as penas acessórias, cujo primeiro normativo expressamente remete para a possibilidade de a lei poder fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões, e o art.º 34.º B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro que prevê as condições de execução da pena de prisão aplicada a condenado pela prática de crime de violência doméstica, específicas e intimamente relacionadas com tal ilícito com vista à proteção da vítima.
Assim, não tem razão o arguido ao pugnar pelo não provimento do recurso apresentado pelo MP com base na circunstância de ao mesmo não ter sido aplicada pena acessória, já que tal circunstância não impede a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de regras e deveres, desde logo porque esta sujeição é obrigatória e se trata de instituto com dupla natureza, como se viu. Na verdade, constituindo a Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro um regime jurídico especial e próprio de prevenção da violência doméstica, as suas normas constituem regras especiais relativamente ao regime geral aplicável à suspensão da pena regulado no Cód. Penal e a que já se fez referência, art.ºs 50.º e ss. do CP. Por isso, enquanto que na generalidade das situações a aplicação de deveres, regras de conduta ou regime de prova como condição da suspensão da execução da pena é avaliado e decidido casuisticamente, sempre que o crime que determina a aplicação da pena seja de violência doméstica, por força do já citado art.º 34.º-B, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro, o juiz, decidindo suspender a execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152. ° do Código Penal subordina tal suspensão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.
É isto que nos diz a expressão é sempre subordinada usada pelo legislador no normativo em análise, como resulta da utilização tempo verbal juntamente com o adverbio “sempre”. Neste sentido v. Ac. Relação de Coimbra de 13.01.2021, Proc. 24/20.1GDCNT.C1 Relatora Olga Maurício (disponível in www.dgsi.pt e https://blook.pt/caselaw/PT/TRC/595530/):
Esta lei admite a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada a condenado pelo crime de violência doméstica do art. 152º do Código Penal, mas esta, diz o nº 1 do seu art. 34º-B, «é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio».
Finalmente, o art. 152º do Código Penal, que prevê e pune o crime de violência doméstica, dispõe, nos nº 4 e 5, o seguinte:
4 – podem ser aplicadas ao condenado por crime de violência doméstica «as penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica»;
5 – «a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância».
Do exposto resulta, portanto, que a lei responde de forma directa à objecção levantada pelo arguido, de a proibição de contactos não poder ser simultaneamente pena acessória e condição de suspensão.
Por um lado o art. 34º-B, nº 1, da Lei 112/2009, de 16/9, impõe que a suspensão da execução da pena de prisão pela prática do crime de violência doméstica seja sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, mas em qualquer destes casos deve incluir regras de conduta de protecção da vítima, designadamente o afastamento da residência.
Ou seja, a suspensão da execução da pena de prisão de condenado por violência doméstica tem sempre que ser condicionada a regras de conduta de protecção da vítima. (…).
Aqui chegados nada mais nos resta que concluir que assiste inteira razão ao MP, devendo a suspensão da execução da pena ser condicionada com observância do disposto no art.º 34.ºB, n.º 1 da Lei 122/2009 de 16 de setembro, em termos apurar e determinar pela primeira instância.
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Face a todo o exposto, procedendo o recurso apresentado pelo MP fica prejudicada a análise das questões (argumentos) invocados pelo arguido.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em:
- Julgar provido o recurso intentado pelo Ministério Público, devendo a primeira instância condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, em obediência ao disposto no art.º 34.º B, n.º 1 da Lei 122/2009 de 16 de setembro, nos termos que julgar ajustados ao caso concreto.
- Sem custas.

Lisboa, 8 de setembro de 2021
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Rui Miguel Teixeira
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e  na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271);  o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de  Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.