CONTRATO-PROMESSA
MORA
CONTRATO DEFINITIVO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
DECLARAÇÃO TÁCITA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


I – Incorrem em mora os contraentes que estando obrigado pelo contrato promessa a marcarem a escritura do contrato definitivo dentro de um prazo certo o não fazem.
II – A conversão da mora em incumprimento definitivo realiza-se através de interpelação admonitória através da qual o credor comunica ao devedor a intimação para o cumprimento da obrigação de marcar a escritura; fixa um termo perentório para o efeito e adverte para a cominação de se considerar definitivamente incumprida a obrigação de marcação da escritura se não for observada dentro daquele prazo, sendo nos termos do art. 808.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil que se aprecia a razoabilidade do prazo fixado;
III O contrato-promessa mostra-se valida e tacitamente resolvido quando realizada em termos regulares a interpelação admonitória, que contém a cominação da extinção do contrato condicionada à inobservância do prazo fixado, a condição estabelecida se considera verificada;
IV - Assente que, à data da outorga da escritura através da qual procederam os réus à venda do imóvel a terceiro, havia já ocorrido o incumprimento definitivo pelos autores do contrato-promessa, bem como a resolução do negócio, operada por declaração extrajudicial tácita dos réus, não se verifica o incumprimento do contrato-promessa pelos promitentes-vendedores.

Texto Integral

                                


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório


AA e cônjuge, BB, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra CC e cônjuge, DD, pedindo sejam os réus condenados a pagar solidariamente aos autores a quantia de € 59 000, correspondente ao dobro do valor do sinal prestado, acrescida de juros, à taxa legal, calculados desde a data da citação até integral pagamento.

A justificar o pedido, invocam, em síntese, o incumprimento definitivo e culposo pelos réus do contrato-promessa outorgado entre as partes em 02-03-2020, através do qual os autores prometeram comprar e os réus prometeram vender o imóvel que identificam, a estes pertencente, tendo os autores procedido à entrega, a título de sinal e princípio de pagamento, do montante de € 29 500, acordando as partes que a escritura de compra e venda seria celebrada no prazo de 90 dias; acrescentam que, pelos motivos que expõem, não lograram os autores obter o financiamento necessário à celebração do contrato-prometido, pelo que o negócio não foi celebrado no prazo acordado, na sequência do que procederam os réus à fixação de um prazo adicional insuficiente para o efeito, não anuindo à prorrogação do prazo solicitada pelos autores e tendo procedido à venda do imóvel a terceiro, como tudo melhor consta da petição inicial.

Os réus contestaram, defendendo-se por impugnação e invocando o incumprimento definitivo do contrato imputável aos autores – decorrente da falta de marcação da escritura de compra e venda dentro do prazo suplementar razoável, perentório, que estabeleceram para o efeito em interpelação admonitória que lhes dirigiram –, sustentando que lhes assiste o direito a fazerem sua a quantia recebida a título de sinal e concluindo pela improcedência da ação, como tudo melhor consta do articulado apresentado.

Instruídos os autos e depois de realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, e condenou os réus na restituição aos autores, do valor do sinal por si recebido (em singelo), isto é, no montante de € 29 500,00 (vinte e nove mil e quinhentos euros), absolvendo os réus do demais peticionado.

Inconformados, os réus interpuseram recurso desta decisão e também os autores recurso subordinado tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação principal dos réus como procedente e o recuso subordinado dos autores como improcedente e, em consequência, decidiu a total improcedência da ação e absolver os réus do pedido formulado.

… …

Desta decisão vieram os autores interpor recurso de revista concluindo que:

“A. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de que ora se recorre, pela qual se ficciona uma declaração de Resolução Contratual, de natureza tácita, que considera válida e eficaz, implica alterar o enfoque existente até então no processo, no qual se foi analisando essencialmente os factos na perspetiva dos Autores.

B. Como procuraremos demonstrar, tal declaração carece de fundamento factual e legal.

C. E a análise dessa Declaração e bem assim, do prazo fixado aos Autores para o cumprimento e das consequências da impossibilidade que resulta da venda a terceiro, factos que giram em torno da posição dos Réus ao longo da vida contratual, implica um conhecimento mais aprofundado da sua atitude.

D. Para esse fim, é essencial o documento que ora se requer a junção que é Autorização de Cancelamento, relativa à Hipoteca que existia sobre o imóvel objeto do Contrato Promessa.

E. Com este, podemos “documentar” a evolução dos factos que levaram à venda deste imóvel a terceiro.

F. Podemos até considerar que esta decisão, no sentido de relevar uma Resolução, de natureza tácita e alegadamente implícita na interpelação admonitória, constitui uma declaração enquadrável no disposto no artigo 3.º n.º 3 do CPC, como decisão surpresa.

G. Como tal justifica e fundamenta, a junção aos autos de um documento que pertence aos Réus e é deles perfeitamente conhecido e que, por outro lado, permite ao Tribunal conhecer de forma aprofundada a questão.

H. No que respeita à decisão sobre a matéria de facto, consideramos que existe uma nulidade na modificação do teor do ponto 13.2.1.1 dos Factos provados.

I. O Recorrente pediu a eliminação deste facto, em Alegações e

J. O princípio do dispositivo e da limitação de poderes da Relação quanto à modificação da matéria de facto, expressa nos artigos 608.º n.º 2 e 609.º CPC,

K. Impõe que, julgando-se infundado o pedido seja o mesmo improcedente, não podendo o Tribunal alterá-lo.

L. A decisão em contrário, constitui nulidade conforme prescrito nos artigos 674.º e 615.º n. 1 e) e 4 do CPC.

M. Importa enquadrar a matéria de facto discutida nos autos, de forma a salientar as questões que, no nosso entender e salvo o devido respeito, não mereceram a devida atenção pelo Tribunal a quo.

N. Da análise do Contrato celebrado entre as partes, submetido ao Tribunal, importa referir que ambas as partes contrataram com pressuposto em expetativas negociais paralelas: dos Autores/Recorrentes de vender um imóvel e dos Réus/Recorridos de adquirir outro imóvel em substituição do que iam vender.

O. Era ainda pressuposto que o prazo de 90 dias não era um prazo fatal.

P. Estes pressupostos eram conhecidos de todos os intervenientes e correspondiam a uma situação de normalidade,

Q. A qual não é infirmada ou contraditada por terem sido tomadas precauções de higiene na assinatura do contrato.

R. A pandemia COVID19 e as medidas que foram impostas com ela relacionadas foram uma causa disruptiva social e profissional fundamental e crítica durante o período a que se reportam os autos - março a julho de 2020.

S. Relativamente a esta situação, o Tribunal elencou entre os factos provados os factos 20), 21), 22), 23), 24), 25) e 26), que para efeitos de conclusões se dão por integralmente reproduzidos.

T. Existe, no entanto, outra factualidade relevante que sempre teria que ser considerada pelo Tribunal enquanto facto notório, nos termos e para os efeitos do artigo 412.º n.º 1 do CPC – os factos que são do conhecimento geral,

U. Constatamos ainda que o Tribunal de Recurso veio a alterar a matéria de facto considerada provada, no sentido de se poder concluir que a situação pandémica era conhecida à data da celebração do Contrato.

V. Só posteriormente, foi possível começar a aperceber da dimensão da crise, a gravidade das medidas que seriam impostas e o seu peso na vida social/profissional e bem assim a duração e persistência de tais medidas no tempo.

W. A partir de 10 de Março de 2020 e por um período de 45 dias ocorreu o confinamento geral da população, com a proibição de circulação na via pública.

X. Como atrás alegado, sumariamente se refere que esta situação excecional levou à publicação de diversos diplomas com efeitos diretos sobre os prazos de cumprimentos de obrigações, incluindo prazos de prescrição e caducidade, suspensão de prazos processuais e prorrogação de prazos para cumprimento de obrigações fiscais.

Y. Os serviços públicos estiveram com acesso condicionado e posteriormente encerrados ao público incluindo os serviços notariais, finanças e instituto de registos e notariado.

Z. Estas medidas impactaram com particular incidência o setor imobiliário, registando-se uma forte quebra do número de imóveis transacionados.

AA. Tais são os factos complementares que o Tribunal deverá considerar para a análise da factualidade dos presentes autos,

BB. Ou seja, nunca no sentido de que as partes podiam (ou mesmo deveriam) ter previsto quais as consequências na Pandemia na assunção e realização das suas obrigações contratuais.

CC. Esta factualidade integra diretamente o pressuposto de alteração das circunstâncias, previsto no artigo 437.º CC, que conduz à resolução ou modificação do contrato de acordo com as circunstâncias.

DD. Efetivamente, o princípio de pacta sunt servanda deve ser temperado e complementado pelos factos que são do conhecimento do Tribunal e reconhecidos quer pela jurisprudência, quer pela doutrina como determinantes na execução das obrigações contratuais.

EE. Certo é que que, conforme defende o Prof. Dr. Menezes Cordeiro deveria ter sido o Estado a fixar as consequências de tais factos, mas, não o tendo feito, cabe aos Tribunais a integração de tais factos nas decisões, pelo que, assim não o fazendo incumpriu o Tribunal na sua decisão o disposto no referido artigo 437.º CC.

FF. A decisão de 1.ª instância havia repartido estas consequências e risco por ambas as partes mas na decisão ora em Recurso o Tribunal, no nosso entender, não deu a devida importância às mesmas,

GG. Concluindo assim e também por causa disso, pela responsabilidade dos Autores na falência contratual e em especial pela suficiência do prazo adicional de 15 dias que os Réus fixaram.

HH. Esse equilíbrio, justificava claramente a aceitação da proposta dos Autores (carta de 8/06/2020) que impugna o prazo fixados pelos Réus.

II. Sendo esta carta, o pedido de modificação contratual que o Tribunal a quo procurou,

JJ. E que deveria ter sido aceite pelos Réus, consistindo, em alternativa, na fixação de um prazo de seis meses, na permuta das frações ou a revogação do Contrato Promessa.

KK. E o prazo adicional nunca poderia ser inferior ao prazo de confinamento de quarenta e cinco dias.

LL. Assim, ao contrário do exarado no, aliás, Douto Acórdão, os Autores solicitaram a modificação do contrato promessa ao abrigo do artigo 437.º CC, deixando de se verificar uma situação de mora da sua parte.

MM. São, ainda factos relevantes e do conhecimento do Tribunal, os seguintes:

NN. O Contrato Promessa celebrado pelos Réus, para a aquisição da fração tinha uma cláusula (6ª) que estabelecia um prazo de 30 dias para a mora se tornar Incumprimento Definitivo,

OO. Cláusula essa que se manteve válida após a celebração do Aditamento com a sociedade vendedora Habiserve.

PP. E assim, o prazo para a celebração dessa escritura estender-se-ia sem qualquer penalidade para os Réus até ao dia 3 de agosto.

QQ. Esse facto resulta do documento junto aos autos a que se refere o facto provado 27,

RR. O que infirma as declarações constantes da carta dos Réus de 3 de junho de 2020.

SS. Por outro lado, estando o prédio dos Réus onerado com uma hipoteca, era necessária a emissão de uma Autorização de Cancelamento para a realização da escritura de venda do prédio, livre de ónus e encargos.

TT. Os Réus conheciam (cfr. consta da mesma carta de 3/06/2020) a necessidade desse documento e que o Banco necessitava de uma antecedência de pelo menos, 10 dias úteis relativamente à data da escritura para emissão desse documento.

UU. Nesse documento, ora em anexo, podemos verificar que o mesmo foi emitido em 25/06/2021,

VV. com referência a uma data de realização do ato de compra em 09/07/2020,

WW. e em benefício de uma transação em que intervinha o Banco BANKINTER, no âmbito de um protocolo bancário.

XX. Desse documento, extraímos então as seguintes conclusões:

YY. Em 25 de Junho de 2020 já haviam decorrido 10 dias úteis sobre a data em que foi comunicado ao Banco a intenção de venda e

ZZ. Que essa intenção de venda foi manifestada para a venda ao atual proprietário, uma vez que foi este que contratou uma Hipoteca com o Banco Bankinter.

AAA. E que na data em que foi solicitada a emissão deste documento, a escritura estava marcada já para o dia 9 de julho.

BBB. A emissão do documento no dia 25 de junho, coloca o pedido de emissão em data que não pode ser posterior a 11 de junho de 2020.

CCC. Tal linha temporal vem a ser confirmada pelo facto de, no dia 26 de junho, dia seguinte à obtenção/emissão do documento de Distrate, o comprador EE estar preparado para e ter procedido ao pagamento de um sinal no montante de 47.000.00€, cerca de 17% do valor da compra.

DDD. Aliás, o crédito obtido por este comprador junto do BANKINTER nunca poderá ter sido solicitado em data posterior a 11/06/2020.

EEE. Tal factualidade permite lançar um halo de luz sobre todos os factos que alegadamente ocorrem nesse específico período de tempo:

FFF. Quando os Réus recusam o prazo contraproposto pelos Autores, por carta de datada de 16/06/2020 (facto 37)

GGG. já haviam solicitado o distrate da hipoteca que incidiu sobre o seu imóvel, com a indicação de que o Comprador era o EE e a data da escritura era o dia 9 de julho.

HHH. E no dia 26 seguinte, recebem o sinal relativo a esse acordo, como já se referiu.

III. Ou seja, quando estão a impor aos Autores um prazo unilateralmente fixado, de 15 dias,

JJJ. Os Réus já tinham gizado e preparado o cenário alternativo de venda ao EE,

KKK. Tinham comunicado mutuamente ao Banco tal intenção,

LLL. E o exíguo prazo concedido, foi determinado pelo interesse em provocar a impossibilidade dos Autores de cumprirem o prometido.

MMM. E não esquecer que, nessa data, os Réus tinham ainda cerca de um mês para cumprir o contrato promessa de compra e venda celebrado para a aquisição da fração que iria substituir aquela.

NNN. Acresce ainda que, quer nas referidas cartas datadas de 03 e 16 de Junho, os Réus apresentam essencialmente dois argumentos que são falsos mas que,

OOO. Apesar disso foram acolhidos pelo Tribunal.

PPP. Em primeiro, é obvio que os Réus não necessitavam de vender o seu apartamento para adquirir aquele que tinham prometido adquirir.

QQQ. Os Réus compram tal apartamento em 2 de julho e vendem em 9 de julho (factos provados sob o número 42 e 46).

RRR. E os Réus já tinham proposto um adiamento por um prazo de 30 dias (facto n.º 28) desde que os Autores procedessem ao reforço do sinal.

SSS. Ou seja, a pretensa necessidade de fixação de um prazo de 15 dias seria apenas no caso de não ser recebido o montante de sinal adicional.

TTT. Assim, é claro que nenhuma das partes entendeu nem o prazo inicial nem o adicional como um prazo fatal, nem o Tribunal o pode fazer em face desta factualidade.

UUU. Chegamos então a uma questão absolutamente central na apreciação destes factos e suas consequências, i.e. a razoabilidade do prazo concedido aos autores para o cumprimento do prometido.

VVV. Para integrar os termos do artigo 808.º n.º 1, como prazo razoável.

WWW. Sobre essa matéria, e quod demonstratum est, os dois argumentos indicados na decisão a quo para justificar o prazo que foi fixado, são falsos: o prazo para os Réus cumprirem o Contrato celebrado para a aquisição da sua nova propriedade apenas terminava a 3 de Agosto e estes não necessitavam da quantia recebida em resultado da venda da propriedade dos autos para a aquisição dessa fração.

XXX. Acresce ainda que estávamos em plena situação pandémica, em que foi decretado o confinamento geral da população por 45 dias e em que a generalidade dos prazos, incluindo os prazos de cumprimento das obrigações fiscais foram suspensos ou prorrogados, como acima já se indicou.

YYY. Nestas circunstâncias, um prazo adicional de 15 não poderia ser entendido como integrando a previsão do artigo 808.º n.º 1,

ZZZ. Que assim resulta flagrantemente violado.

AAAA. Resta-nos ainda considerar que a declaração de resolução reconhecida pelo Tribunal não pode subsistir,

BBBB. O direito de resolução, no caso específico que decorre de uma reação dos Autores (a marcação da escritura), só nasce no momento em que esse prazo está decorrido,

CCCC. Pelo que a estabelecimento simultâneo de uma interpelação admonitória com uma declaração de resolução, é contraditório com a norma legal do artigo 442.º n.º 3 CC aqui violado.

DDDD. Ora, no caso vertente, o Tribunal ficcionou tal declaração, mas salvo o devido respeito, a mesma não resulta de todo da carta que os Réus remeteram aos Autores.

EEEE. Analisando esta carta, que constitui o facto 35, constatamos que nunca os Réus proferem uma declaração que possa interpretar-se como de resolução e FFFF. As declarações tácitas, mesmo que fossem admitidas no caso, apenas para argumentar, sempre teriam que ter no texto um mínimo de expressão literal, o que não é o caso certamente.

GGGG. Veja-se ainda o facto 39, 40 e 41 em que resulta que os Autores, depois de receber tal carta continuam a tentar vender o seu apartamento, i.e. a criar as condições para cumprir o Contrato celebrado.

HHHH. Por isso, fica ainda violado o teor do artigo 217.º CC e 237.º n.º 1 CC.

IIII. Podemos assim concluir que, no dia 9 de Junho de 2020, o contrato não se encontrava resolvido, não tendo sido emitida qualquer declaração de resolução, pelo que,

JJJJ. São os Réus que, ao venderem o imóvel a terceiro, tornam impossível o cumprimento do Contrato e causam culposamente o incumprimento, nos termos e para os efeitos do artigo 801.º n.º 1 do CC, que também se mostra violado.

KKKK. Em consequência, e como peticionado inicialmente, devem os Réus ser condenados a restituir o sinal prestado em dobro.”

… …

Na resposta os recorridos opõem-se à junção de documento e defendem a confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

 … ..

 Fundamentação

Está provada a seguinte matéria de facto:

1. Encontra-se registado a favor dos autores, pela Ap. ...54 de 1 de junho de 2018, a fração correspondente ao piso 1, apartamento tipo ..., do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...35.

2. No dia 27 de janeiro de 2020 os autores celebraram um acordo reduzido a escrito denominado “CONTRATO DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA CLIENTE VENDEDOR/ PARTICULARES/SEMI-EXCLUSIVO” com a empresa “IAD PORTUGAL, S.A.” com vista à angariação de interessados na compra do imóvel supra descrito, pelo preço de € 325 000,00 (trezentos e vinte e cinco mil euros).

3. No dia 2 de março de 2020, os autores, na qualidade de promitentes compradores, celebraram com os réus, na qualidade de promitentes vendedores, um acordo reduzido a escrito, intitulado de “Contrato Promessa de Compra e venda”, devidamente assinado pelas partes, em ..., e pelo qual os réus, na qualidade de donos e legítimos possuidores da fração autónoma identificada pela ..., destinada a habitação, sita no prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ...., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...03 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...90 da referida freguesia, com a licença de utilização nº ...63 emitida em 29-07-2009 pela Câmara Municipal ..., prometeram vender aos autores, a referida fração autónoma, livre de quaisquer ónus ou encargos, e estes por sua vez prometeram comprar.

4. A compra e venda prometida foi acordada entre as partes pelo preço de € 295.000,00 (duzentos e noventa e cinco mil euros);

5. A título de sinal e princípio de pagamento os autores pagaram aos promitentes vendedores, ora réus, a quantia de € 29.500,00 (vinte e nove mil e quinhentos euros), por meio de cheque de igual quantia (cheque n.º ...74 de € 29.500,00 (vinte e nove mil e quinhentos euros), não à ordem, sacado pelo autor sobre o banco Millennium a favor do autor marido, que lhes entregou, e que estes receberam tal quantia, tendo o mesmo tido boa cobrança, pelo que pela assinatura do referido contrato lhes conferiram a devida quitação, conforme a cláusula 3º al. a) do referido acordo.

6. Em conformidade com o estabelecido na cláusula 3ª, al. b), do referido contrato-promessa, o remanescente do preço seria pago pelos promitentes compradores aos promitentes- vendedores aquando da assinatura da escritura prometida, através de cheque bancário.

7. O acordo previa ainda na sua cláusula 4º que a escritura pública de compra e venda prometida deveria ser outorgada até 90 dias após a assinatura do mesmo acordo, sendo da responsabilidade dos promitentes compradores a marcação da escritura e devendo estes avisar os promitentes vendedores acerca do dia, hora e local.

8. De acordo com o n.º 1 da clausula 5ª do contrato-promessa, a não marcação ou a não comparência, pelos segundos contratantes, da escritura pública de compra e venda, no prazo estipulado no n.º 1 da clausula anterior, por culpa imputável aos mesmos, consubstanciaria o incumprimento definitivo do presente contrato.

9. De acordo com o n.º 2 da mesma cláusula, caso o acordo viesse a ser definitivamente não cumprido pelos promitentes vendedores, ficariam estes obrigados a indemnizar os promitentes compradores em valor igual ao dobro de todas as quantias que tenham recebido a título de sinal ou reforço do mesmo.

10. Nos termos do nº 3 da mesma cláusula 5ª, sendo o presente contrato definitivamente não cumprido pelo Promitentes Compradores, os Promitentes Vendedores, fariam suas todas as quantias recebidas a título de sinal ou reforço do mesmo.

11. Acrescentando a cláusula 7.ª que “O presente contrato traduz e constitui o integral acordo das partes contratantes só podendo ser modificado por documento escrito e assinado por todos”.

12. Como resulta da clausula 8.ª, o referido acordo teve a intervenção da mediadora imobiliária “Sortami, Mediação Imobiliária Lda.”, que continuou a acompanhar o negócio após a celebração do mesmo.

13. Os autores pretendiam vender o seu apartamento para, com o produto dessa venda, financiar a aquisição da fração que constituiu o objeto do referido contrato-promessa.

14. Durante as negociações, os autores deram a conhecer aos réus que, desde o início de janeiro do ano de 2020 tinham colocado o seu apartamento à venda no mercado.

15. Contando poder concluir a venda antes do fim do prazo acordado para a compra desta fração, tendo-se verificado várias visitas ao imóvel de clientes interessados, quer nacionais quer estrangeiros.

16. Os autores sabiam, porque na mesma ocasião das negociações tal foi tornado claro (em várias ocasiões), que os réus estavam a vender a sua morada de habitação, a fim de financiar a aquisição de outro imóvel.

17. No dia 6 de março de 2020, os réus, na qualidade de promitentes compradores, celebraram com a sociedade “HABISERVE – CONSTRUÇÕES SUL, LDA”, na qualidade de promitente vendedora, um acordo reduzido a escrito, intitulado de “Contrato Promessa de Compra e venda”, devidamente assinado pelas partes, pelo qual a referida sociedade prometeu vender àqueles a fração autónoma designada pela ..., porta n.º... Tipo T-4, correspondente ao ... – I, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...29, da mencionada freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...90, pelo preço de € 340 000,00 (trezentos e quarenta mil euros).

18. De acordo com a al. a., do ponto 1., da clausula 2.ª do acordo referido, a título de sinal e princípio de pagamento foram pagos € 34 000,00 (trinta e quatro mil euros), mediante entrega de cheque bancário n.º ...37, sob o banco Caixa Geral de Depósitos, que ocorreu no dia 6 de março de 2020

19. De acordo com o ponto 1., da clausula 5.ª do mesmo acordo, a escritura publica do contrato de compra e venda do imóvel realizar-se-ia no prazo de 90 (noventa) dias, após a data da sua celebração.

20. A Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia.

21. Quando a OMS declarou a situação de emergência, já era publicamente conhecida (embora não, naturalmente, na sua extensão) a existência da doença.

21-A. Aquando das negociações e da celebração do contrato a que alude o ponto 3., a situação pandémica já era falada e constituía uma preocupação publicamente relevante.

21-B. Aquando da assinatura do contrato promessa, nas instalações da agência de mediação imobiliária sitas em ..., as partes adotaram comportamentos de segurança e higiene pessoal decorrentes da preocupação a que alude o ponto 21-A..

22. No dia 18 de março de 2020 foi declarado, em Portugal, o Estado de Emergência, em todo o território nacional, que se prolongou desde o dia 19 de março de 2020, até às 23.59 horas do dia 2 de abril de 2020, tendo o mesmo sido renovado uma primeira vez, por decreto do Presidente da República de 2-4-2020, até às 23:59 horas do dia 17 de abril de 2020, e depois ainda renovado, uma segunda vez, até ao dia 2-5-2020, com o decretamento do confinamento obrigatório e dever geral de recolhimento domiciliário da população e variadas medidas de suspensão e de interdição de direitos, liberdades e garantias, encerramento de atividades e suspensão de serviços, públicos e privados, com o objetivo de contenção da pandemia e prevenção de novos contágios e salvaguardar a segurança das pessoas.

23. Seguiu-se a declaração no País da situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, em todo o território nacional, para controlar a situação epidemiológica em Portugal, a qual foi sucessivamente prorrogada até ao dia 29-06-2020, que se manteve depois, até pelo menos, ao dia 31-07-2020, num regime legal misto de situação de alerta, contingência e calamidade, em todo o território nacional.

24. Medidas de forte restrição de direitos e liberdades semelhantes foram adotadas em todo o mundo em geral, e, em particular, na União Europeia, com um aumento muito rápido do número de infetados e de mortos, pela doença Covid-19, desde logo em ..., ..., ..., apenas para referir os mais próximos geograficamente de Portugal e também o ..., cujos nacionais constituem grandes clientes do imobiliário no ....

25. Entre elas, a suspensão e cancelamento de voos, o encerramento de fronteiras aéreas, terrestres e marítimas.

26. Em consequência, todas as diligências de venda do apartamento dos autores ficaram prejudicadas, pela ausência de clientes e cancelamento de visitas dada a situação de pandemia.

27. Através de documento escrito intitulado “ADITAMENTO AO CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, datado de 17 de abril de 2020, a sociedade HABISERVE e os réus declararam prorrogar a data limite para celebração da escritura até ao limite de 4 de julho de 2020, considerando a conjuntura existente em Portugal, a declaração de estado de emergência devido à pandemia existente, às medidas decretadas pelo Governo o facto dos serviços notariais se encontrarem encerrados para a realização dos serviços normais e dos bancos estarem a funcionar com serviços mínimos, não sendo possível prever em que data o país regressaria à normalidade.

28. Os autores e os réus prepararam uma minuta para aditamento ao acordo inicialmente celebrado, com vista à prorrogação da data prevista para celebração de escritura pública por um período adicional de 30 (trinta) dias, desde que, cumulativamente, “(i) os PROMITENTES COMPRADORES, até ao termos do referido prazo considerado no segundo, procedam ao pagamento aos PROMITENTES VENDEDORES, a título de reforço de sinal, do montante equivalente a 2,5% (dois e meio por cento) do preço do imóvel prometido vender, e que (ii) adentro dos 30 (trinta) dias indicados se proceda à celebração da escritura pública

29. O que não foi aceite pelos autores.

30. Em 14 de maio de 2020 os autores apresentaram um pedido de simulação para concessão de crédito imobiliário junto do banco Millennium BCP.

31. Os réus enviaram aos autores uma carta datada de 25 de maio de 2020 com o seguinte teor:

“Assunto: escritura de compra e venda /contrato promessa entre nós celebrado

(…)

Como sabem, previmos a realização da escritura de compra e venda até ao próximo dia 2 de Junho de 2020 (ou seja, nos 90 dias seguintes à respetiva assinatura).

(…)

Como V. Exas sabem, a concretização aprazada desta venda é, para nós absolutamente fundamental, uma vez que o imóvel que estamos a vender é a nossa residência familiar e que, como igualmente é de V. Exas sabido, estamos simultaneamente a comprar outro imóvel onde habitar, pelo que o recebimento aprazado do valor desta venda é para nós fundamental, sem o que corremos o risco de sofrer perdas substanciais e grandes transtornos pessoais, económicos e familiares.

Assim, e antes de mais, perguntamos por este meio se estão V. Exas em condições de realizar a prometida escritura de compra e venda até à referida data e, em caso afirmativo, qual a concreta data e Cartório, bem como o que possa necessitar da n/parte.

(…)”.

32. Os autores responderam aos réus através de carta datada de 27 de maio de 2020, com o seguinte teor:

“Assunto: CPCV e resposta à carta por vós endereçada em 25 de Maio 2020

Referente ao contrato de compra e venda por nós assinado os prazos são aqueles que estão especificados no mesmo.

Relativamente à pergunta que fazem expressamente na v/carta sobre se estamos em condições de realizar a escritura até à data de 2 de Junho de 2020 gostaríamos de relembrar factos que são do v/conhecimento:

i. A concretização da compra do v/imóvel estava dependente da venda, ou perspetiva de venda a médio prazo (3-6 meses) do nosso imóvel;

ii. A crise produzida pela pandemia Covid‐19 na situação económica, financeira e social alterou completamente a situação e as condições que se verificavam na altura da celebração do CPCV, inviabilizando as nossas intenções expressas no ponto i atrás,

iii. Em reunião efetuada na v/casa em 29 de abril de 2020, com presença dos representantes da agência imobiliária SORTAMI, FF e GG, foi-vos dado conhecimento da n/parte que se não houvesse extensão do prazo para a concretização do CPCP, não nos seria possível completar a compra do imóvel até dia 2 de junho de 2020,

iv. Ficou acordado, nessa reunião, entre todas as partes que o CPCV seria prorrogado por mais 30 dias e seria feito um aditamento ao mesmo,

Ficamos assim surpresos, pela negativa, com a vossa solicitação de esclarecimentos e respostas sobre factos e situação que são do v/inteiro conhecimento.

Gostaríamos também, já agora, de perguntar por este meio se V. Exas irão honrar a vossa palavra e fazermos o aditamento ao CPCV referido no ponto iv acima.”

33. Em abril e maio de 2020, os autores ainda contactaram outras agências imobiliárias (a MVP – Most Valued Propoerty, sendo uma delas), para tentarem também vender o seu apartamento, tendo as mesmas obtido fotografias do mesmo e tendo chegado a fazer uma visita, com potenciais compradores, que acabou por não se concretizar.

34. De igual modo, a agência imobiliária Sortami, Lda., - que fazia a mediação da venda do apartamento dos réus – ofereceu-se para mediar a venda do apartamento dos autores, com o conhecimento dos réus, o que fizeram, nos meses de maio e junho de 2020, sem, contudo, terem encontrado comprador.

35. Os réus enviaram carta registada com aviso de receção aos autores, datada de 3 de junho de 2020, através da qual comunicaram aos autores o seguinte:

“(…)

Como V. Exas sabem e é aliás referido na v. última comunicação o prazo para a realização da prometida escritura de compra e venda foi já ultrapassado. O prazo prometido para a mesma terminou ontem, 2 de junho, sem que para a mesma tenha sido designada qualquer data por V. Exas como contratado. Gostaríamos, ainda assim, de dizer o seguinte:

1. Temos sempre agido de boa-fé, e ainda na esperança de que se possa concretizar a prometida compra e venda.

2. V. Exas estão neste momento em mora, sendo, desde o início das negociações fomos claros com os nossos propósitos: a venda aprazada e prometida, é para nós absolutamente essêncial, uma vez que estamos a comprar uma nova casa onde habitar e assumimos obrigações nesse sentido. A falha na venda da nossa casa dentro dos referidos prazos, causar-nos-á enormes transtornos e prejuízos.

3. V. Exas referiram que teriam um crédito pré-aprovado a fim de permitir a concretização da promessa de compra e venda entre nós celebrada, sendo certo de que, quando iniciámos estas negociações, a situação de pandemia por Covid-19 existia (ou seja, não é uma circunstância nova ou imprevista no quadro do nosso contrato).

4. Apesar das V. solicitações, sempre fomos claros e honestos (como estamos certos que igualmente o foram V. Exas.).

5. Além de termos aprazada a compra da n/casa – com todos os adiamentos que pudemos até hoje conseguir, e com risco de incumprimento da nossa parte – temos ainda de notar que, para concretizar a n/prometida compra e venda, será necessário de V. parte confirmar a data de escritura com máxima urgência, e ainda assegurar uma antecedência necessária, como é sabido de V. Exas, para emissão do distrate da hipoteca existente sobre na/propriedade (tipicamente o banco necessita de 10 dias úteis para este efeito).

Assim, encontrando-se V. Exas em mora sobre as obrigações entre nós contratualmente assumidas e não sendo possível aumentar o prazo para além do que infra propomos, informamos, pois, que vos concedemos o prazo adicional para a realização da prometida escritura de compra e venda até ao próximo dia 19 de junho de 2020.

Informamo-vos que, em face de todas as circunstâncias supra indicadas, este é o máximo prazo (e portanto o máximo do razoável ao nosso dispor) para a realização da prometida compra e venda, sem o que, a partir desta última data, teremos de vos considerar em incumprimento definitivo da promessa de compra e venda, com todas as consequências legais e contratuais, e teremos lamentavelmente de procurar alternativas para mitigar os nossos consequentes danos (porquanto não dispomos, sem esta venda, da totalidade do dinheiro para concluir a compra de nova habitação para a nossa família).

(…)”.

36. As tais missivas responderam os autores, por meio de carta registada com aviso de receção, enviada aos réus e por estes recebida, datada de 8 de junho de 2020, através da qual comunicaram aos réus o seguinte:

“Reportamo-nos ao assunto acima referenciado, em resposta à vossa notificação datada de 03-06-2020, cujo conteúdo mereceu a nossa melhor análise, mas cujo conteúdo nos apanhou de surpresa.

Muito antes do termo do prazo previsto para a celebração da escritura prometida vos demos nota de que mercê das consequências da pandemia do vírus “Sars Cod-2”, não estávamos a conseguir vender o nosso apartamento e que em decorrência, estávamos impossibilitados de adquirir o vosso, dentro do prazo inicialmente acordado. Pedimos a vossa compreensão para a situação, a que somos alheios e com a qual fomos confrontados, de um dia para o outro, dada a gravidade da crise sanitária e as medidas restritivas que foram aprovadas como forma de conter a propagação da pandemia.

Vimos da vossa parte compreensão pela alteração das circunstâncias verificada e é por isso, com absoluta surpresa que somos agora empurrados contra a parede, com a fixação unilateral de um prazo suplementar de 15 dias para a celebração da escritura. V. Exas. sabem de antemão, que o cumprimento deste prazo exíguo não depende de nós. Tudo continuamos e estamos a fazer para concretizar a venda do nosso apartamento, através de várias agências imobiliárias e se, tal acontecer dentro do prazo concedido, estaremos em condições de honrar tal prazo. Porém, se tal não vier a acontecer, por razões ligadas à crise que se instalou no Mundo e também em Portugal decorrente da pandemia da Covid-19, não conseguiremos cumprir. Como aliás vos foi dito e V. Exas. não podem, em boa-fé, desconhecer. Ou seja, estão deliberadamente a cumprir um formalismo, sabendo à partida, que a condição temporal que nos impõem é injusta e não equitativa, esquecendo as razões que estão na base desta alteração das circunstâncias que nos levaram a contratar. Não é possível de boa-fé, passar uma borracha sobre tudo o que aconteceu e está a acontecer no país, desde o decretamento do estado de emergência em 18 de Março de 2020. A esta data, estamos ainda em estado de calamidade, com a vigência de medidas extraordinárias com vista a prevenir a transmissão da doença. A pandemia está infelizmente longe de estar controlada, sendo que nos últimos dias, registaram-se novos casos de infetados em número diário superior a trezentos, com novos casos também na ....

A pandemia causada pelo vírus SARS -CoV -2, para além de consistir numa grave emergência de saúde pública a que foi necessário dar resposta no plano sanitário, provocou inúmeras consequências de ordem económica e social, que igualmente têm motivado a adoção de um vasto leque de medidas excecionais.

As projeções mais recentes das instituições internacionais apontam para uma quebra acentuada da atividade económica mundial em 2020 que, de acordo com a Comissão Europeia, andará em torno dos −3,5 % (+2,9 % em 2019). Esta redução do produto interno bruto (PIB) só encontra paralelo na Grande Depressão de 1929, sendo extensível a todas as economias avançadas e a um conjunto alargado de países emergentes e em desenvolvimento, com um abrandamento expressivo da Ásia. A queda acentuada da atividade económica reflete o impacto da pandemia da doença COVID -19, mais concretamente a redução da atividade da indústria/comércio/serviços; a deterioração do mercado de trabalho e a maior instabilidade dos mercados financeiros internacionais. No que concerne à área do euro, e de acordo com a Comissão Europeia, é igualmente expectável uma forte deterioração da atividade económica, com o PIB a contrair -se 7,7 % em 2020 (+1,2 % em 2019), com impacto negativo considerável na procura externa dirigida a Portugal (quebra de mais de dois dígitos para a maioria dos principais parceiros comercias do país). O desemprego na área do euro deverá situar-se em 9,6 %, refletindo um aumento de 2,1 pp.

Para 2020, perspetiva-se uma forte contração da economia portuguesa em resultado do choque económico provocado pela pandemia da doença COVID-19 e das medidas de contenção implementadas. Neste contexto, prevê-se uma queda abrupta na taxa de variação real do PIB para 6,9 %, a maior contração que há registo nas últimas décadas. Antecipa-se que o impacto ocorra principalmente no segundo trimestre do ano, após a quebra de 2,3 % registada no 1.º trimestre de 2020.

De facto, as medidas de confinamento e distanciamento social implementadas no âmbito da aplicação do estado de emergência iniciaram-se em meados de março, mas cujo impacto na economia terá tido o seu reflexo mais significativo no 2.º trimestre do ano.

É neste contexto que estamos a viver. Todos!

Por motivos alheios à nossa vontade.

O que gerou um forte desequilíbrio na nossa relação contratual. Que de boa-fé, importa repor segundo as regras da equidade.

Assim, nestas circunstâncias, mantemos empenho em cumprir o contrato promessa, entendemos, porém, que deverá ser considerado um aditamento que reponha o equilíbrio ao nível do prazo, que estimamos em seis meses adicionais, na medida em que se espera a abertura das fronteiras, já no próximo mês de Julho, o que permitirá a reposição das visitas presenciais no mercado imobiliário por parte de potenciais interessados e assim mais facilmente a concretização dos negócios imobiliários.

De outro modo e não querendo V. Exas. aguardar, encaramos ainda permutar o nosso apartamento com o prometido – já que nessa parte nada nos impede de contratar - em condições a negociar, ou se tal também não colher a vossa aceitação, encaramos revogar o contrato promessa entre nós celebrado, recebendo o sinal em singelo.

Aguardamos a vossa prezada resposta.”

37. A esta carta responderam os réus através da sua carta datada de 16 de junho de 2020, com o seguinte teor:

“Assunto: V. Comunicação datada de 8 de Junho de 2020

Exmos. Srs.

Recebemos a vossa comunicação em epigrafe, que temos em consideração e a que respondemos.

Compreendemos as vossas dificuldades referidas, e que respeitamos particularmente, até porque a nossa situação implica iguais dificuldades, aliás acrescidas pois, como V. Exºs., nos encontramos igualmente a comprar outra casa para habitação da nossa família, e que temos absolutamente que honrar. Tal compromisso implica, para nós, uma mudança que não podemos deixar de cumprir, e consideráveis sacrifícios pessoais.

A situação que V. Exas. referem, nomeadamente no que à referida pandemia diz respeito, não era, contudo, uma circunstância nova no quadro das nossas negociações. Ela foi devidamente considerada, de parte a parte, e ambos aceitamos os riscos que respetivamente nos cabiam, o que Vº. Exºas. seguramente não ignoram.

Da nossa parte, e apesar de todos os referidos sacrifícios, e em face da V. referida impossibilidade de cumprir o prometido aprazadamente, estamos, pois, a suportar consideráveis sacrifícios e perdas adicionais, para permitir ainda cumprir o que, de nossa parte, prometemos.

Oferecemos-vos o máximo prazo de que dispomos, para cumprir a promessa de compra. Recordamos-vos que, aquando da negociação e celebração da promessa de compra e venda entre nós, ficou bem claro da nossa parte a absoluta necessidade de venda da nossa casa para a compra da nova habitação familiar, com respeito dos prazos combinados. Sempre fomos e continuamos a ser claros e honestos neste propósito. Compreendemos a vossa posição, mas lamentavelmente ela traduz uma falta de cumprimento do contrato, que V. Exª. poderiam e deviam ter previsto, e não uma alteração anormal das circunstâncias, que V. Exªas. não pudessem ter acautelado. Aliás, nesse quadro a posição por V. assumida foi aliás reconfortante, convencendo‐nos de que, caso não conseguissem vender o vosso imóvel, disporiam de facilidades bancárias para concluir a promessa de compra e venda, connosco celebrada.

Recordamos-vos igualmente que em tempo e dentro do que, na altura, nos era possível, vos propusemos um aditamento que foi por V. Exºs. recusado.

Por tudo o exposto, como V. Exºs. são conhecedores, estamos nós também “entre a espada e a parede” como Vº. Exºs. referem. Ou seja, temos de honrar a promessa de compra que já havíamos feito, para a nossa habitação, e estamos agora obrigados a improvisar para não sofrer, da nossa parte, novos prejuízos em tais obrigações.

Pelos mesmos motivos, não podemos acolher as V. propostas de permuta ou de revogação pura e simples do nosso contrato, com restituição do sinal. Tudo cumprimos, conforme prometemos. Apesar dos sacrifícios pessoais e familiares a que estamos sujeitos.

Resta-nos pois, assim, manter a nossa posição antes assumida, na esperança de que possam V. Exs. compreende-la.”

38. A carta enviada pelos réus aos autores datada de 16 de junho de 2020, só foi recebida pelos autores no dia 29 de junho de 2020.

39. De imediato, os autores remeteram aos réus a missiva datada de 30 de junho de 2020, sob o registo postal ... e por estes últimos recebida, em 06-07-2020, comunicando o seguinte:

“(…)

Reportamo-nos ao assunto acima referenciado, em resposta à vossa carta datada de 16-06-2020, ontem recebida.

Constata-se que, ao arrepio da realidade, que está à vista de toda a gente, V. Exas. nada alteram, nada fazem para equilibrar o contrato promessa, mantendo a posição inicial, na expectativa de se locupletarem com o valor do sinal pago por nós de, “apenas” € 29.500,00.

Como dissemos e mantemos, a realidade das consequências da pandemia da Covid-19 apanhou-nos, a todos, desprevenidos e impotentes para conseguir dar a volta, ainda que com muito esforço. Tudo temos feito para vender o nosso apartamento e comprar o vosso. Mas ainda não conseguimos.

Nem todos os argumentos valem para tentar justificar o injustificável. Rejeita-se em absoluto, que as consequências da pandemia que perdura, ainda hoje, em estado de calamidade, tenham estado nas nossas negociações aquando da celebração da promessa. Tal simplesmente não se verificou. O recurso ao banco, não era alternativa à venda do nosso apartamento, mas seu complemento. Tudo passa pela concretização da venda do nosso apartamento, que se nos afigura possível e por isso, a proposta de prazo adicional requerida, para além da proposta de permuta, que fizemos.

Acontece que sempre nos sentimos apertados, com pedidos de pagamento adicional de valores a título de reforço de sinal (que não temos para satisfazer, como vos fizemos saber) para conseguirmos alguma dilação do prazo para concretizarmos a compra definitiva, mas ainda assim dilação de 30 dias, em plena crise sanitária, com medidas de confinamento activas, que nada serviam na prática para resolver a situação, face à dura realidade que fomos e estamos a conhecer ainda. E chegámos, à proposta que de boa fé vos fizemos em 08-06-2020, a qual traduz aquilo tudo que podemos fazer para honrar os nossos compromissos contratuais.

Não se trata de não querer cumprir. Como bem sabem.

Trata‐se ao invés de adaptar a junho de 2020, os nossos compromissos assumidos em 02-03-2020. Os nossos e os vossos compromissos. Reequilibrar face à manifesta alteração das circunstâncias ditadas pela pandemia da Covid-19, que gerou uma alteração imprevista, profunda e anormal do programa contratual, em nosso detrimento.

E fazê-lo de boa-fé e com equidade. O que não vimos, até agora, do vosso lado.

Essa é a oportunidade que ainda fica em aberto, para evitar o recurso a vias contenciosas.

Aguardamos a vossa prezada resposta.”

40. Nunca mais os autores tiveram quaisquer notícias dos réus, nem sequer resposta à missiva atrás referida, que aguardavam.

41. Entretanto, os autores continuavam a tentar vender o seu apartamento.

42. Através de documento escrito intitulado “CONTRATO DE COMPRA E VENDA E MÚTUO COM HIPOTECA”, devidamente autenticado, datado de 2 de julho de 2020, a empresa “HABISERVE – CONSTRUÇÕES SUL, LIMITADA” declarou vender aos réus a fração autónoma designada pela ..., porta n.º... Tipo T-4, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...03, da mencionada freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...90, pelo preço de € 340 000,00 (trezentos e quarenta mil euros), de que foi dado quitação.

43. Do referido documento consta que o aludido prazo foi pago do seguinte modo: o montante de € 306 000,00 (trezentos e seis mil euros) através de cheque bancário n.º ...94, emitido nessa data e o valor remanescente de € 34 000,00 (trinta e quatro mil euros) a título de sinal, pago através de cheque, emitido em 06/03/2020, com o n.º ...33.

44. E ainda que, para aquisição de tal imóvel, o banco concedeu aos réus um empréstimo no montante de € 294 000,00 (duzentos e noventa e quatro mil euros), mediante constituição de hipoteca sobre o mesmo.

45. [eliminado].

46. No dia 9 de julho de 2020 os réus outorgaram escritura pública de compra e venda, no Cartório Notarial ..., a cargo do Notário HH, lavrada de folhas 02 a folhas 05 do Livro de Notas para escrituras diversas número 326, pelo qual, declararam vender a EE, a fração em causa nestes autos, pelo preço de € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros), pago, a quantia de € 47.000,00 (quarenta e sete mil euros) no dia 26 de junho de 2020 por meio de transferência bancária e a remanescente na data da escritura.

47. A fração em causa encontra-se já inscrita com caracter definitivo, na Conservatória do Registo Predial, a favor do referido EE, por compra aos réus, pela AP. ...60 de 2020/07/09.

48. E inscrita na respetiva matriz predial urbana a favor do seu atual proprietário, o referido EE.

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista importa em saber se existe excesso de pronúncia quanto à matéria de facto e se existe incumprimento definitivo e culposo por parte dos réus ora recorridos do contrato promessa celebrado com os autores ora recorrentes que determine a condenação no pedido

… …

Quanto ao incidente de junção de documentos, os recorrentes requerem no inicio das suas alegações de recurso a junção aos autos de um documento (Autorização de Cancelamento do Registo da Hipoteca que incidia sobre o prédio dos Réus) justificando que o fazem por “necessidade do documento em resultado do julgamento em causa no Recurso (…) relacionada com a novidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação”.

Os réus opõem-se à junção.

Cumpre decidir.

A esta questão (junção de documentos na fase de recurso) refere-se expressamente o artigo 651º, nº 1 do CPC, estabelecendo que “1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.”.

Por sua vez, o art. 425º determina que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, tendo também presente que o “princípio geral” da junção de documentos está contido no art. 423, estatuindo que “1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”

Da articulação lógica destas normas decorre que a junção de documentos em sede de recurso, que é considerada e admitida legalmente a título excecional, dependendo da caracterização pelo interessado (com a alegação e a prova) de uma de duas situações taxativamente previstas: a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; o ter o julgamento da primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objeto da ação ou inútil relativamente a este.

A impossibilidade de apresentação anterior legitima a junção no recurso de documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (até ao julgamento em primeira instância), o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objetiva ou subjetiva do documento pretendido juntar - Vd. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. p. 286 e 287.

Ora, sendo superveniente (objetivamente superveniente) o que só ocorreu historicamente depois de um determinado momento considerado, ou (superveniência subjetiva) o que justificadamente só foi conhecido por alguém depois desse momento, vale a asserção de superveniência aqui relevante – vale, portanto, como integração positiva da facti species do nº 1 do artigo 651º do CPC – pela constatação da ocorrência da situação revelada pelo documento só posteriormente à decisão recorrida (superveniência objetiva, pressupondo esta a criação posterior do documento) ou pela justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a sua existência ser anterior ao momento considerado, só teve lugar posteriormente, por razões que se prefigurem como atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade daquela pessoa - quer o artigo 423º, nº 3 como o artigo 425º, ambos do CPC, falam em “não ter sido possível” - , num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido conhecimento anterior da existência do documento. Estas razões, todavia, pressupõem à partida a respetiva invocação e a prova da não possibilidade (da impossibilidade) de um conhecimento anterior e abrem caminho, quando alegadas, à respetiva e necessária indagação.

Por outro lado, noutra previsão, o artigo 651º, nº 1 do CPC admite também na sua parte final a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento. Pressupõe esta situação, todavia, que exista na decisão em recurso uma novidade que justifique a junção que se reclame como apta a modificar o julgamento, questão essa só revelada pela decisão, o que só acontece, pois, quando essa decisão não se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere expressivamente Abrantes Geraldes, “podem […] ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime, quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” - op, e loc. cit.

Descartando quaisquer razões de superveniência que os próprios recorrentes afastam, para lá de nem a alegaram existir aceitando implicitamente ser o documento cuja junção requerem do seu conhecimento anterior, o que temos para apurar é se existe o caráter de novidade na decisão recorrida. E neste âmbito, os recorrentes limitam-se a referir que para se conhecerem todos os contornos do negócio discutido  o documento fornece conclusões quanto à data em que o mesmo foi solicitado junto do Banco emissor, a qual será anterior à data em que terminava o prazo “razoavelmente” fixado para os Autores, permitindo também lançar uma nova luz sobre o comportamento dos Réus, sendo fundamental para a correta e justa composição do litígio entre as partes, matéria esta que não identifica qualquer novidade quanto ao objeto da ação. Contudo, acrescentam os recorrentes que “Podemos até considerar que esta decisão, no sentido de relevar uma Resolução, de natureza tácita e alegadamente implícita na interpelação admonitória, constitui uma declaração enquadrável no disposto no artigo 3.º n.º 3 do CPC, como decisão surpresa.”

O âmbito do mérito da ação, como o delimitaram autores, reside em decidir se existiu incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa de compra e venda celebrado entre aqueles e os réus imputável aos promitentes vendedores (os réus) com as consequências legais desse incumprimento (qual é o da resolução do contrato). Foi dentro destes limites de conhecimento que a decisão recorrida se manteve. Onde a sentença decidiu haver incumprimento por partes de ambos os contraentes, o acórdão da apelação deliberou inexistir incumprimento definitivo e culposo por parte dos réus (e existir incumprimento dos autores), ou seja, no que interessava ao mérito do pedido deduzido, não existir incumprimento por parte dos réus e, como assim, os absolveu na totalidade do pedido. Se os recorrentes não alegaram em explicação as razões pelas quais existiria novidade no thema decidendum da decisão recorrida, o que se certifica na análise que deixamos realizada é ter sido respeitado objeto do mérito da ação sem qualquer incidência de novidade, quer em matéria de direito quer de facto, tudo se tendo resumido, quer na sentença quer no acórdão da apelação, ao conhecimento do cumprimento/ incumprimento do contrato por parte dos réus e suas consequências. Aliás só as questões suscitadas e a decidir, não os argumentos convocados, é que são critério para apreciar a novidade ou não, num juízo subsidiário daquele que a jurisprudência comenta em matéria de nulidade das decisões por omissão de pronúncia no quadro normativo do art. 615 nº 1 al. d) do CPC.

Por estas razões, por falta de fundamento legal, indefere-se a junção do documento requerida pelos recorrentes

Custas do incidente pelos recorrentes.

… …   

Os recorrentes arguem a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia sustentando que a decisão recorrida não podia ter alterado a redação de um facto impugnado (o ponto 13 do provados na sentença) porquanto, se o pedido de impugnação (realizado pelos ora recorridos) foi o de esse facto tido como provado passasse a ser julgado como não provado, não podia a decisão recorrida ter alterado a redação do mesmo, uma vez que a possibilidade da Relação de modificar a matéria de fato se encontra limitada e balizada pelo peticionado pelos apelantes nas suas alegações, constituindo tal ato um excesso de pronúncia sancionado com nulidade.

Decidindo, a alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil dispõe que “ a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Na apreciação interpretativa deste preceito e de acordo com o ac. deste STJ e secção de 5 de Maio de 2022 - no proc. nº 5080/18.0T8MTS.P1.S1, ainda não publicado e do qual o ora relator foi subscritor - “ele prevê duas situações distintas: a da decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto se mostrar deficiente, obscura ou contraditória e a de ser necessário ampliar a matéria de facto.

Parante esta última situação a Relação tem o poder de, mesmo oficiosamente, anular a decisão a fim de que o tribunal de 1.ª instância proceda à instrução e julgamento dos factos que a Relação mande aditar aos já antes julgados. Perante a primeira situação, a Relação pode igualmente, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1.ª instância para que esta elimine ou sane as deficiências, obscuridades ou contradições indicadas pela Relação. Todavia, a Relação apenas poderá essa fazer essa anulação se não constarem do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida, isto é, não constar do processo o registo de todos os meios de prova atendidos e a atender na decisão. À contrario sensu, se esses elementos constarem do processo a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância e deve proceder ela mesma à eliminação ou sanação das deficiências, obscuridades ou contradições que encontrar.”

O que ocorre na presente ação não sendo igual reconduz-me à mesma previsão normativa e à sua teleologia, que é a de consentir que a Relação de modo oficioso resolver por si as questões que de todo não careçam de uma nova baixa dos autos. E esta solução justifica-se pela elementar razão de a subsunção jurídica dever recair sobre matéria de facto cuja composiçãoo, redação ou motivação não deixe dúvidas, seja clara, não enferme de contradições de modo que se possa saber com segurança jurídica se a mesma preenche as estatuições legais e está sujeita à respetiva consequência jurídica. E ainda pela razão de que sendo a Relação a última instância de fixação da matéria de facto nenhum problema coloca a possibilidade de ela o fazer diretamente quando no processo já se encontram todos os meios de prova a atender e em matéria que até foi objeto de impugnação.

 Sustentar-se que perante a impugnação da matéria de facto, em que se pedisse que o que foi provado passasse a não provado, só coubesse ao julgador na Relação a possibilidade de aceitar in totum a redação elabora em primeira instância, sem permissão de poder alterar a redação seria,, afinal, aceitar que o julgador em segunda instância pudesse o mais (verificadas as condições antes vistas)  procedendo oficiosamente à ampliação da matéria de facto, acrescentado o que não tinha sido julgado provado nem não provado, mas não pudesse o menos que é alterar a redação dada a matéria de facto que foi concretamente impugnada e se encontra em expresso e obrigatório escrutínio de prova.  

Improcedem assim, nesta parte, as conclusões de recurso.

O objeto do presente recurso é o apreciar o cumprimento/incumprimento por parte dos réus do contrato promessa identificado.

Como pontos de referência relevante em termos naturalísticos estacamos que:

- o contrato promessa foi celebrado em 2 de março de 2020 tendo 90 dias como prazo para celebração da escritura pública que seria marcada pelos autores como promitentes compradores;

- Era do conhecimento de ambas as partes que os autores pretendiam vender o seu apartamento para financiarem a aquisição da fração prometida e que por sua vez os réus os réus estavam a vender a sua morada de habitação, a fim de financiar a aquisição de outro imóvel. E tanto assim que em 6 de março de 2020, celebraram como promitentes compradores com a sociedade Habiserve Lda. a promessa de compra desse imóvel cuja escritura seria celebrada no prazo de 90 dias.

- Em 17 de abril 2020 os réus e a sociedade promitente vendedora desse imóvel prorrogaram o prazo da escritura para 4 de julho.

- Pelo teor da comunicação enviada pelos réus aos autores em 25 de maio de 2020 aqueles comunicaram a estes que o prazo da celebração era 2 de junho

- Em 27 de maio os autores respondem dizendo que o prazo tinha sido prorrogado 30 dias.

- Na resposta os réus, em 3 de junho, concedem aos autores um prazo até 19 de junho para marcarem a escritura sob pena de considerarem o contrato incumprido.

- Os autores respondem por carta recebida em 8 de junho mantendo que não podem celebrar a escritura no prazo concedido e propondo a prorrogação do prazo por 6 meses, a permuta do apartamento que tinham (para vender) com o prometido ou a revogação do contrato promessa com a receção do sinal em singelo.

- Em 16 de junho respondem os réus informando que recusam as propostas de prorrogação do prazo, de permuta ou de revogação do contrato com restituição do sinal.

- Em 30 de junho respondem os autores que não se consideram incumpridores definitivos do contrato porque o seu atraso tem justificação na pandemia; que o recurso ao banco, não era alternativa à venda do apartamento para financiarem a compra e que por essa razão a prorrogação por 6 meses ou a permuta propostas resolvem a situação.

- Em 2 de julho os réus celebram a escritura de compra do imóvel prometido comprar à sociedade Habiserve Lda. que em parte foi pago com recurso ao crédito bancário.


Não sofre discussão o que a sentença e a decisão recorrida discorreram sobre a evidência normativa do artigo 808.º do Código Civil. Em verdade, quando ao contrato promessa não se segue o contrato prometido tal implica a ocorrência de duas situações: mora ou incumprimento; sendo que a primeira também é designada de incumprimento transitório, ou retardamento da prestação, enquanto no segundo se verifica um incumprimento definitivo. Por sua vez, o n.º 2 do artigo 442.º do CCivil reporta à reparação do dano, sendo que a sua aplicação só tem lugar no caso de incumprimento que não nas situações de mora.

Em análise, o incumprimento (definitivo) a originar a resolução do contrato, nos termos do artigo 432.º do Código Civil, supõe que antes se verifique uma situação de não cumprimento transitório que se tenha convertido naquele através da ocorrência de uma situação de facto unívoca. E o número dessas situações é restrito reportando ao à declaração antecipada de não cumprir; ao termo essencial; à cláusula resolutiva expressa e à perda do interesse na prestação.

A declaração antecipada de não cumprir - que a doutrina italiana apoda de “riffuto di adimpiere” - é o incumprimento mais evidente ancorado na declaração inequívoca e definitiva que manifeste um absoluto propósito de repudiar o contrato - cfr. ac. STJ de 28-6-2011 no poroc. 7580/05. 2TBVNG.P1.S1 in dhsi.pt e Brandão Proença, “Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral”, 1987, 91. O incumpridor terá de emitir uma declaração, séria e categórica, em termos de não permitir qualquer dúvida, de ser seu propósito não outorgar o contrato prometido. Sendo que neste âmbito o STJ equipara a tal declaração, a conduta do promitente que torne patente e certa a intenção de não cumprir a promessa - cfr., o ac. STJ antes citado e ainda o proferido em 9 de Março de 2010 no proc. 5647/06. 6TVLSB.S1 - aceitando-se a declaração de forma expressa ou tácita de que não cumprirá ou não quer cumprir.

A segunda situação é o “termo essencial” consistente em se ter previsto de forma clara, explícita e inequívoca  nas cláusulas negociais (exceto se tal resultar da natureza ou da modalidade da prestação) um prazo essencial e perentório para a realização do contrato pois, a não ser assim, não se poderá considerar o incumprimento do prazo como uma falta “uma falta definitiva de realização da prestação debitória, mas apenas um simples retardamento, demora ou dilação, no cumprimento da obrigação.” - cfr., Prof. A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 10.ª ed., 345 -. E isto porque, em princípio, o devedor só fica constituído em mora depois de uma interpelação (judicial ou extrajudicial) para cumprir, “ex vi” do n.º 1 do artigo 805.º do Código Civil exceto, e de entre outras exceções, se a obrigação tiver prazo certo [artigo 805.º, n.º 2, alínea a)].

As obrigações de prazo certo são as que têm um termo de vencimento estabelecido pelas partes, no próprio negócio constitutivo ou em ulterior acordo, as que resultem da lei ou as que sejam fixados judicialmente. Daí que se vençam sem necessidade de interpelação, “dies interpellat pro homine”, expressão que numa tradução livre significa que o dia interpela em vez do homem. Como regra geral, esta asserção já valia entre nós no domínio do Código de Seabra (arts. 711 e 732) e projetou-se no regime que subjaz agora ao artigo 805º, nº 2, alínea a) do CCivil relacionando este trecho com o nº 1 do mesmo artigo, na medida em que acaba por definir uma delimitação negativa da “regra” estabelecida nesse nº 1 da necessidade de interpelação para efeito de desencadear a mora. O prazo certo é, como se disse, o prazo fatal, aquele que foi acordado em termos finais e, em princípio, improrrogáveis pois a não ser assim, insiste-se, o seu decurso gera uma simples mora que terá de ser convertida em incumprimento (definitivo).

A terceira situação de resolução/incumprimento definitivo ocorre com a “cláusula resolutiva expressa” que o art. 432 do CCivil admite com fundamento na lei ou em convenção. Tratando-se de contrato bilateral a impossibilidade da prestação por causa imputável ao devedor é um dos fundamentos legais (artigo 801.º, n.º 2 do Código Civil) equiparado ao incumprimento por conversão da mora, se o credor perder o interesse na prestação ou o devedor a não realizar dentro do prazo razoável que lhe for fixado. E para que uma cláusula se constitua como resolutiva é mister que os promitentes acordem, dentro do princípio da liberdade contratual, que o seu conteúdo é de tal modo essencial para a perfeição do contrato prometido que a leva a adquirir uma força de vinculação impositiva e irrevogável sob pena de desaparecendo esta, o contrato perder um elemento fundamental que determine por essa razão e independente de qualquer outra ser resolvido.

Por último, a causa de resolução pode consistir na “perda de interesse do credor” que parte da ideia base de a mora poder provocar a perda do interesse do credor no negócio – art. 808 do CCivil –, resulte esta falta de interesse da inutilidade posterior da prestação ou do prejuízo que a sua realização fora de tempo origine, devendo por imposição do n.º 2 daquele preceito ser “apreciada objetivamente” - cfr. Vaz Serra, in “Mora do Devedor”, in BMJ 48-242 ss e, acs. STJ de de 25 de Junho de 2009 – 08B3694 e de 20 de Outubro de 2009 – 146/2001.S1 - o que exige a sua aferência em termos de razoável normalidade negocial, com apego aos princípios de honestidade no trato contratual. Não depende de circunstancialismos de oportunidade mas antes tem de fundar-se em causas objetivas  que o homem médio de comum diligência possa apreender e compreender, para lá de que terá, sempre, de resultar do retardamento da prestação, isto é,  da mora - cfr. Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in “Obras Dispersas”, I, 1991, 137/146; Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 924 e Antunes Varela, RLJ 118-55” e ainda o ac. STJ de 14 de Abril de 2011 – 4074/05.0TBVFR.P1.S1.

Expostos os requisitos do incumprimento, existindo uma situação de mora, há que, para obter a resolução que signifique transformar esse incumprimento transitório em definitivo, o que só é possível através da interpelação admonitória consistente na notificação do devedor para cumprir, num prazo razoável que, nesse ato, lhe é fixado. Esta interpelação envolve em simultâneo uma intimação de cumprimento, a fixação do prazo para cumprir com a cominação/advertência que o contrato padecerá de incumprimento definitivo resolutório se não outorgado nesse novo prazo o qual não e confundível nem pode somar-se ao prazo inicial nem ao período de mora – cfr. acs. STJ de 27-1-2011– 5462/04. 4YXLSB.L1.S1; de 28-6-2011 antes citado e ainda Antunes Varela op. cit., II, 120.

A importância desta interpelação admonitória é sublinhada por parte da doutrina que não a dispensa ainda que o inadimplente tenha emitido uma declaração, expressa, perentória e inequívoca de não ser seu propósito a outorga do contrato prometido – vd. Pessoa Jorge, “Direito das Obrigações” – sendo antes de acolher a sua dispensa nestes casos como o defende Galvão Telles – “Direito das Obrigações”, 5.ª ed., 224; Almeida Costa – “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 921, e a jurisprudência antes citada –porém, a exigência de interpelação derradeira e definitiva quando haja declaração perentória de não cumprir só se aceita quando exista sobre a univocidade da declaração de recusa, ou sobre o seu valor de acordo com o n.º 1, “in fine” do artigo 217.º do Código Civil, razão suficiente para afastar os requisitos de certeza do seu conteúdo. De igual, será dispensável a interpelação admonitória se o prazo acordado tiver natureza de termo essencial por não haver sentido logico nem normativo em que, tendo sido expressamente clausulado no contrato (ou tal resulte da natureza ou da modalidade da prestação) de forma clara e inequívoca um termo essencial, que se exigisse depois a fixação de outro, também perentório, mas pela via cominatória. Seria transformar um negócio inicialmente fixo absoluto em usual, relativo ou simples, para depois voltar a revertê-lo à primeira categoria - vejam-se estes conceitos no Prof. Vaz Serra, RLJ, 110, 326-327 e Antunes Varela defendendo que no caso de retardamento da prestação a translação deste em incumprimento impõe a fixação de um prazo suplementar cominatório que é “uma ponte de passagem para o não cumprimento (definitivo) da obrigação” – RLJ 128-138.

Realizada esta exposição de enquadramento, a observação da situação em decisão faz concluir que tendo os contraentes fixado, no contrato-promessa que outorgaram, um prazo para a celebração do contrato-prometido e competindo aos promitentes-compradores a obrigação de marcar a escritura de compra e venda, os autores incorreram em mora ao não terem procedido a tal marcação nos 90 dias subsequentes à data da celebração do negócio. E não vale neste domínio qualquer invocação de acordo de prorrogação do prazo fixado porque, ainda que alegado, tal não se provou.

Como antes observámos e agora se repete em concretização, a mora converte-se em incumprimento definitivo nas hipóteses previstas no artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação ou se esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, sabendo-se que a pura “mora solvendi” não extingue a obrigação, continuando o devedor adstrito a satisfazer a prestação respetiva. Não podendo o credor, por via de regra, resolver o contrato que esteja na base da obrigação, enquanto o atraso do devedor não se equipare a incumprimento definitivo, apenas lhe cabe a faculdade de estabelecer um prazo suplementar razoável, mas perentório para a realização da prestação nos termos do art. 808.º, n.º 1 do CCivil porquanto não se compreenderia que a mora se mantivesse por tempo indefinido.

Na análise da carta de 03-06-2020, enviada pelos réus aos autores e pelos mesmos recebida, os primeiros enquanto promitentes-vendedores intimaram os promitentes-compradores para cumprimento da obrigação de marcação da escritura e fixaram um prazo perentório para o efeito – até ao dia 19-06-2020 –, estabelecendo a cominação de considerarem definitivamente incumprida pela contraparte a promessa de compra e venda se a marcação da escritura não se verificasse dentro do indicado prazo, informando que sem a venda do imóvel não dispunham da totalidade do dinheiro necessário à conclusão do negócio que ao mesmo tempo estavam a realizar com outrem (a sociedade Habiserve Lda. para aquisição de um imóvel.

Detendo-nos um pouco neste particular, lembramos que sem que tal constituísse uma condição para a celebração do contrato, os contraentes tinham recíproca informação de que os autores como promitentes compradores tencionavam vender o imóvel em que viviam para financiarem a aquisição do prometido comprar e, por sua vez, em semelhança, também os réus contavam com a venda do prometido para financiarem a aquisição de um imóvel para onde pretendiam ir viver. E se este elemento impõe que liminarmente se entenda que os contraentes não subordinaram a produção dos efeitos deste negócio à eventual venda pelos autores daquele imóvel nem tendo estabelecido qualquer condição suspensiva nos termos permitidos pelo artigo 270.º do Código Civil, por outro lado esta informação pode auxiliar, de acordo com a demais prova, a conformar a valoração da razoabilidade e boa-fé dos comportamentos e vontades expressos das partes.

A interpelação dos réus aos autores para cumprirem contém na sua estrutura, inequivocamente, uma intimação para o cumprimento da obrigação de marcar a escritura; a fixação de um termo perentório para o efeito e a cominação de se considerar definitivamente incumprida a obrigação de marcação da escritura no termo desse prazo, respeitando deste modo a predicação admonitória da comunicação. Todavia, a questão suscitada é a de saber se o prazo fixado se pode ter por razoável ou não, o que teve resposta diferente nas instâncias.

Reesclarecendo o que antes anotámos como razoabilidade do prazo e porque a lei impondo essa razoabilidade não a define nem a alumia com critérios de indicação, a sua definição depende da ponderação deixada a cargo do credor, já que é ele quem tem de fixar o prazo, sujeitando-se apenas ao escrutínio posterior do tribunal. E para essa operação de fixação é essencial a atenção à natureza e complexidade da prestação, bem como às circunstâncias e função do contrato, aos usos correntes e aos ditames da boa fé, de que o prazo permita ao devedor satisfazer, dentro dele, e com respeito pelas circunstâncias do credor, o seu dever de prestar – cfr. Maria da Graça Trigo/Mariana Nunes Martins (Comentário ao Código Civil, Coord. José Brandão Proença, Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1143 e ainda Ana Prata  Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 1016, doutrina citada no acórdão recorrido.

Na indagação da razoabilidade do prazo fixado pelos réus tomamos em consideração que o inicialmente fixado (90 dias) não sofreu alteração e não foi requerida (no caso pelos autores) qualquer modificação do contrato-promessa celebrado com os réus, designadamente por alteração das circunstâncias, com fundamento no regime previsto no artigo 437 nº 1 do CCivil que constitui uma exceção ao princípio da estabilidade dos contratos por imperativos de justiça material ligados ao princípio da proporcionalidade, permitindo a modificação do contrato por vontade de um dos contraentes. E se na análise desse preceito legal se exige, cumulativamente, a ocorrência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; a anormalidade de tal alteração; a existência de uma parte lesada; a afetação grave dos princípios da boa fé pela manutenção do contrato e a não cobertura da situação pelos riscos próprios do contrato, a circunstância de a modificação do contrato celebrado não ter sido objeto de alegação e pedido pelos autores, implica que apenas a boa-fé geral na formação dos contratos do art. 227 nº 1 do CCivil possa ser levada em consideração quando se pondere a razoabilidade do prazo fixado pelos réus para os autores cumprirem. Em suma, a intercorrência de qualquer circunstância que impusesse a modificação dos termos ou condições do contrato, designadamente por força da pandemia, deveria ter sido invocada e não o foi. Invocar em termos de técnica jurídica não é aludir a mas sim alegar e provar para obter determinada consequência jurídica cuja declaração se pede e, nestes termos, o contrato em questão não se pode ter por alterado, sequer no seu prazo.

Na interpelação admonitória que dirigiram aos autores a 03-06-2020, os réus justificaram a fixação do prazo em causa – até ao dia 19-06-2020 – e invocaram as obrigações que haviam assumido no âmbito do contrato-promessa que eles mesmo tinham celebrado com a sociedade Habiserve Lda. E neste ponto é interessante verificar que tendo o contrato promessa discutido na ação sido celebrado no dia 2 de março de 2020 com prazo de cumprimento de 90 dias, o contrato promessa celebrado pelos réus com a sociedade Habiserve é realizado em 6 de março de 2022 (4 dias depois daquele outro) e com igual prazo de cumprimento de 90 dias. Ao mesmo tempo que eram intervenientes num contrato promessa com os autores, os réus eram contraentes num contrato promessa com outrem, tendo esses diferentes contratos a circunstância comum do objeto do celebrado com os autores ser a casa de habitação dos réus e terem estes articulado os dois contratos no sentido da disponibilização do prometido vender aos autores coincidir com a disponibilidade daquele que tinham prometido comprar e que se dizia ser para aí habitarem – é isto que decorre com normalidade, logicidade e segurança de os réus terem celebrado o contrato promessa de compra da nova casa de habitação 4 dias depois da promessa de venda da casa onde habitavam  e terem também fixado como prazo de celebração os 90 dias.

Poder-se-ia argumentar que, se o contrato celebrado com a Habiserve veio a ser prorrogado no prazo de cumprimento até 4 de julho de 2020, então, o prazo que os réus deveriam ter fixado aos autores para cumprirem deveria ter sido o mesmo. Ou até, como os recorrentes sustentam nas suas conclusões de recurso que os elementos do contrato celebrado entre os réus e a Habiserve Lda., deveriam ser tomados em consideração na presente ação no sentido de revelarem que não havia qualquer circunstância que aquele outro contrato impusesse aos réus a fixação de um prazo até 19 de junho. Só que, importa ter bem presente que a celebração dos contratos de autores com os réus e o dos réus com a Habiserve são totalmente independentes e autónomos, sem intercorrências de condição ou suspensivas do segundo sobre o primeiro.

O que temos por decisivo é saber que os autores quando respondem em 16 de junho à interpelação admonitória o prazo que contrapõem como aceitável e razoável ao fixado pelos autores é o de mais 6 meses. Centrados nos seus próprios interesses, não reclamaram que, atendendo ao que julgavam saber como verdadeiro, o prazo da escritura do contrato promessa celebrado com os réus obedecesse ao mesmo prazo máximo que poderia ser permitido para a celebração da escritura do contrato celebrado entre os réus e a Habiserve Lda., limitaram-se a defender que precisam de mais 6 meses para venderem o imóvel em que habitavam para comprarem o dos réus ou então a permuta do imóvel prometido comprar pelo que eles estavam interessados em vender e diziam estar a tenta fazê-lo sem sucesso. 

Neste contexto concluímos que a fixação do prazo, fosse ele como foi para 19 de junho, para 4 de julho ou mesmo que fosse um mês depois dessa data, seria sempre de igual significado útil porque os autores o que pretendiam era um outro que se estendesse por mais 6 meses, fora de qualquer quadro temporal razoável na economia do contrato e que pretendia impor (mesmo assim sem garantia de segurança) que a escritura esperasse pelo efetivação da venda a realizar pelos autores, ficcionando uma condição suspensiva que não tinha sido acordada. 

Independentemente de se concordar ou não com a reflexão que a decisão recorrida realiza - quando escreve que “ não seria aceitável que se concedesse aos autores a totalidade do prazo de que dispunham para cumprimento do contrato-promessa que outorgaram na qualidade de promitentes-compradores, considerando que a compra pelos réus do imóvel a que respeita este segundo contrato impõe o prévio recebimento da quantia correspondente ao preço devido pela venda acordada com os autores.”, - a verdade é que consta dos factos provados que “16. Os autores sabiam, porque na mesma ocasião das negociações tal foi tornado claro (em várias ocasiões), que os réus estavam a vender a sua morada de habitação, a fim de financiar a aquisição de outro imóvel.”, sabendo-se também que o preço da compra e venda à Habiserve Lda. foi pago pelos réus, em parte, através da obtenção por estes de empréstimo bancário. Não sai assim comprometido o raciocínio de os réus contarem com a quantia do preço da venda aos autores para financiarem a sua compra e que, esta (compra) não foi comprometida (sequer em razão da pandemia) com esse não recebimento porque existiu empréstimo bancário, sendo neste particular significativo que os autores tenham declarado a recusa a igual recurso ao crédito bancário (o que os próprios réus fizeram) para poderem celebrar a escritura porque em seu entender não o configuravam como alternativa à venda do apartamento para financiarem a compra. Só que, a venda prévia do imóvel pelos autores não era condição obrigacional para a celebração do contrato promessa enquanto o cumprimento o era.

Não existe assim qualquer atropelo das regras da boa-fé e, em conformidade, o prazo pelos autores fixado pelos réus nas condições e circunstâncias de tempo e modo expostas mostra-se como razoável. E em sintonia com a decisão recorrida, confirma-se que, não tendo os autores procedido à marcação da escritura até ao dia 19-06-2020, deve considerar-se o respetivo incumprimento como definitivo, nos termos do artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil.

O incumprimento definitivo do contrato inscreve-se na previsão do art. 801 do CCivil que permite ao credor a sua resolução e, efetivamente, depois de verificado o não cumprimento definitivo e irremediável do negócio imputável ao devedor nada mais resta que não certificar a extinção da relação negocial celebrada e a resolução é o caminho apontado pela lei. Esta resolução em razão do incumprimento definitivo do contrato-promessa atribui ainda, tendo sido prestado sinal e se o incumprimento for imputável ao contraente que constituiu o sinal, o direito da contraparte a fazer sua a quantia entregue ou, se o não cumprimento do contrato for devido a este último, a faculdade daquele exigir o dobro do que prestou a título de sinal só havendo lugar a esta sanção, estabelecida no artigo 442 nº 2 do CCivil, mediante a resolução do contrato-promessa, nessariamente fundada em incumprimento definitivo e culposo da contraparte.

Na definição da figura, a resolução como forma de cessação do contrato operada por um dos contraentes e baseada num facto posterior à respetiva celebração, destrói retroativamente o vínculo estabelecido, salvo se tal retroatividade contrariar a vontade das partes (artigo 434.º, n.º 1, do Código Civil) – vd. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra. Almedina, 1990, p. 265.

Assistindo aos réus promitentes-vendedores o direito a resolverem o contrato, com fundamento no incumprimento pelos autores da obrigação de procederem à marcação da escritura para celebração do contrato prometido a forma de a realizar consiste na declaração à outra parte não sujeita a qualquer formalidade, valendo o princípio da liberdade da forma não se exigindo uma declaração expressa bastando que seja tácita - arts. 436 e 224.º do CCivil e em comentário Daniela Farto Batista, Comentário ao Código Civil, Coord. José Brandão Proença, cit., p. 148.

Em conformidade com o que deixámos referido três parágrafos antes, quanto à evidência de, depois do incumprimento definitivo e irrevogável do contrato por culpa do devedor, conseguido através de interpelação admonitória, nada mais se poder esperar que não a extinção do mesmo acolhemos o entendimento de Inocêncio Galvão Telles Mário Júlio de Almeida Costa – respetivamente no Direito das Obrigações, 6.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 459, nota 1 e Mário Júlio de Almeida Costa ob. cit., p. 1051-1052 – e ser de todo aceitável por razões de economia, de tempo e até de lógica formal que o credor faça ao devedor uma só declaração em que lhe fixe um prazo para cumprir e desde logo rescinda o contrato se tal injunção não for respeitada. Em vez de duas declarações cronologicamente separadas – primeiro a de fixação do prazo, depois a de rescisão – no mesmo ato realizam-se as duas ficando a resolução condicionada à inobservância do prazo. É esta também a indicação deixada por Batista Machado ao advertir não valer para como interpelação aquela em que o credor se limite a ameaçar o devedor com o incumprimento definitivo ou reserve o direito de resolver o contrato, na hipótese de ele não ser cumprido dentro do novo prazo. Com a fixação de um prazo perentório deve realizar-se uma clarificação definitiva de posições e nesta resulta esclarecido que a interpelação para o cumprimento com a fixação de um prazo razoável e a expressa cominação de se julgar incumprido definitivamente o contrato, realiza em simultâneo a resolução tácita do próprio contrato - Obra Dispersa, scientia ivridica Braga – 1991, p. 165.

No caso em decisão em que a mora dos autores se converteu em incumprimento definitivo, existe na esfera jurídica dos réus o direito à resolução do contrato, com fundamento no incumprimento pelos promitentes-compradores da obrigação de proceder à marcação da escritura para celebração do contrato prometido, direito potestativo de resolução que efetivaram validamente através da declaração tácita de resolução do contrato-promessa condicionada à inobservância do prazo fixado, sendo que a condição estabelecida se considera verificada.

Não sofre assim censura que, como decide o acórdão recorrido, verificando-se dos factos que servem a decisão que à data da celebração da escritura através da qual os  réus procederam venda do imóvel a terceiro, havia já ocorrido o incumprimento definitivo pelos autores do contrato-promessa, bem como a resolução do negócio, operada por declaração extrajudicial dos réus, conforme permite o artigo 436.º, n.º 1, do Código Civil, não ocorre incumprimento do contrato-promessa pelos promitentes-vendedores, não assistindo razão nem direito aos demandantes ora recorrentes quanto á restituição da quantia entregue a título de sinal, que era o pedido deduzido na ação (antes assistindo à contraparte o direito a fazer sua a aludida quantia).

Improcede assim a presente revista na confirmação total da decisão recorrida que absolveu os réus do pedido formulado na ação.

… …

 Síntese conclusiva

Em conclusão:

I – Incorrem em mora os contraentes que estando obrigado pelo contrato promessa a marcarem a escritura do contrato definitivo dentro de um prazo certo o não fazem.

II – A conversão da mora em incumprimento definitivo realiza-se através de interpelação admonitória através da qual o credor comunica ao devedor a intimação para o cumprimento da obrigação de marcar a escritura; fixa um termo perentório para o efeito e adverte para a cominação de se considerar definitivamente incumprida a obrigação de marcação da escritura se não for observada dentro daquele prazo, sendo nos termos do art. 808.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil que se aprecia a razoabilidade do prazo fixado;

III O contrato-promessa mostra-se valida e tacitamente resolvido quando realizada em termos regulares a interpelação admonitória, que contém a cominação da extinção do contrato condicionada à inobservância do prazo fixado, a condição estabelecida se considera verificada;

IV - Assente que, à data da outorga da escritura através da qual procederam os réus à venda do imóvel a terceiro, havia já ocorrido o incumprimento definitivo pelos autores do contrato-promessa, bem como a resolução do negócio, operada por declaração extrajudicial tácita dos réus, não se verifica o incumprimento do contrato-promessa pelos promitentes-vendedores.

… …

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente a presente revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 24 de maio de 2022


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves