Cabe ao condenado, quando a multa não for paga voluntária ou coercivamente, obstar à execução da prisão subsidiária pagando o respectivo valor ou requerendo, se o Ministério Público o não fizer, a suspensão da dita prisão, provando que a razão do não pagamento devido não lhe é imputável.
1.1. O Ministério Público interpôs recurso do despacho sentença proferida pelo Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que indeferiu o requerimento do arguido a solicitar o pagamento em prestações de multa que lhe fora aplicada nos autos como pena principal, tendo determinado a conversão daquela pena de multa em prisão subsidiária por considerar que o requerimento apresentado pelo arguido era extemporâneo, considerando o recorrente que aquele requerimento do arguido – face ao contexto dos autos – deveria ter sido interpretado ou avaliado como princípio de prova de falta de culpabilidade do arguido no não pagamento, de forma a permitir a suspensão da prisão subsidiária.
1.2. No recurso em apreciação o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
1. Decorre do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, lido conjuntamente com o prescrito pelo artigo 491.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que compete ao arguido requerer, se o Ministério Público o não fizer, a suspensão da prisão subsidiária, provando que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável.
2. Todavia, no caso concreto, julgando equivocadamente que ainda se encontrava em tempo de requerer o pagamento da pena de multa em que foi condenado, o arguido alegou, através do requerimento que apresentou a 04-03-2021, que apenas se encontra empregado desde 08-02-2021 – tendo feito juntar o respectivo contrato de trabalho -, o que, face ao teor do requerimento que apresentou 23-01-2020, em que alega que iria ter ajuda de terceiros para pagar tal pena de multa, porque se encontrava desempregado, aliado às pesquisas nas bases de dados disponíveis, permite o juízo de que nunca deixou de estar desempregado.
3. Mais, no sobredito requerimento que apresentou 23-01-2020, o arguido referiu que, por não auferir rendimentos, iria ter “ajuda de terceiros” para proceder ao pagamento da pena de multa, o que, face ao teor literal do seu mais recente requerimento remetido aos autos, permite o juízo indiciário de que, mesmo a ter recebido tal ajuda, ela não tenha sido suficiente para obstar à impossibilidade de pagamento da pena de multa ou que, em última instância, ela não tenha sequer sido providenciada ao arguido.
4. Ora, no despacho recorrido, ao fazer consignar que, face ao mais recente requerimento do arguido, não se vislumbra que exista um princípio de prova do pressuposto da suspensão da execução da prisão subsidiária, o Tribunal a quo parte do princípio de que o arguido, por ter requerido, num primeiro momento, a substituição da multa em que foi condenado por trabalho a favor da comunidade e depois revertido tal pedido porque iria ter “ajuda de terceiros”, deixou de poder gozar da possibilidade da não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa, uma vez que naquele segundo momento afirmou ter meios para a pagar.
5. Em bom rigor, tal interpretação, tendo por base a alegação do arguido de que havia recebido “ajuda de terceiros” (ainda que no mesmo momento tenha referido que não auferia quaisquer rendimentos), é insensível, não só ao alegado, mas também ao esforço probatório trazido aos autos pelo arguido, que logrou provar que apenas começou a trabalhar na data que referiu no seu requerimento, e ignora todas as vicissitudes que sempre podem ocorrer nas dinâmicas interpessoais, naturalmente mais acentuadas durante um período de crise sanitária e, por arrastamento, económica, como a que vivemos.
6. Em face do exposto, entende o Ministério Público que, pelo menos, indiciariamente o arguido demonstrou que o não cumprimento da pena de multa em que foi condenado lhe não é imputável, reputando-se, portanto, ilegal o raciocínio vertido no despacho recorrido, em confronto com o disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal.
7. Pois bem, tendo em conta que o alegado pelo arguido relativamente à sua situação económica é susceptível de fundar um juízo de não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa, deve o Tribunal cuidar de saber se a concreta situação económica e financeira do arguido justificava ou não a falta de pagamento da multa em que foi condenado.
8. Em face do exposto, o Ministério Público pugna pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que, para efeitos do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, se solicite à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de breve informação acerca da situação económica do arguido, devendo tal informação conter os deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro a cumprir pelo mesmo, em caso de eventual suspensão da prisão subsidiária.
1.3. O arguido não respondeu ao recurso.
1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de ser julgado procedente o recurso, concordando genericamente com a posição do recorrente.
III – Fundamentação de Direito
a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995);
b) A única questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se o Tribunal a quo deveria ter considerado o requerimento do arguido no qual manifestou não ter já interesse na substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade, alegando ter angariado meios para proceder ao pagamento da pena de multa em prestações, deverá ser considerado como princípio de prova relativamente à impossibilidade que permitiria a suspensão da execução da prisão subsidiária.
c) Iniciando a apreciação do recurso, a norma a considerar é o art 49º do Cód. Penal, que dispõe:
1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º
2 - O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
4 – (…)
d) Recorde-se que a o tribunal a quo decidiu - por despacho, nessa parte, já transitado em julgado - que já se mostrava ultrapassado o prazo para pedir o pagamento da multa em prestações (como o arguido expressamente pediu). Todavia, o Ministério Público, ora recorrente, defende a possibilidade daquele requerimento do arguido ser avaliado, não já como um pedido de pagamento da pena de multa em prestações, mas sim como a apresentação de um princípio de prova que permitirá eventualmente a suspensão da execução da prisão subsidiária nos termos do citado n.º 3 do art 49º do Cód. Penal.
e) Apreciando:
O ordenamento penal português, resultante da reforma legislativa de 1982, assenta na ideia de que as sanções privativas da liberdade constituem a última ratio da política criminal, aqui relevando os princípios da necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e da proporcionalidade das sanções penais (art 18º n.º 2 da CRP e, por exemplo os arts 70º e 98º do Cód. Penal) – cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, p. 17, Ed. Almedina.
Em coerência com essa orientação, o legislador de 1982 privilegiou a pena de multa, em contraponto com a pena de prisão, elevando-a a pena principal, vertente que veio a ser aprofundada com a revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, onde se pode ler no preâmbulo que “impõe-se, pois, devolver à pena de multa a efectividade que lhe cabe. A dignificação da multa enquanto medida punitiva e dissuasora passa por um significativo aumento, quer na duração (…) quer no montante máximo diário (…). E assim sendo, afastado o carácter residual ou secundário que a pena de multa assumia antes de 1982, o legislador rodeou aquela pena dos mecanismos aptos a acentuar a sua natureza de verdadeira pena criminal, conferindo-lhe a dignidade que esse estatuto reclamava, sob pena de não conseguir responder ao desafio de relegar a pena detentiva para o papel de ultima ratio do sistema penal. E tal desiderato passou – para além do mais - pelo estabelecimento de um sistema de execução da pena orientado para a preservação da dignidade penal da pena pecuniária, visando evitar que esta se convertesse numa (…) forma disfarçada de absolvição ou (…) de uma dispensa ou isenção da pena que se não tem a coragem de proferir “- Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», § 123.
Assim sendo, a interpretação do regime legal relativo à execução da pena de multa, “deverá ser em sintonia com as finalidades apontadas às penas; sem que se ignore, pois, em momento algum, no decurso da respectiva execução, que constituindo a pena de multa uma verdadeira pena criminal haverá que assegurar sempre a tutela do bem jurídico violado e a reintegração social do condenado, qualquer que seja a modalidade da execução que venha a ser seguida, porquanto é através da execução da pena, qualquer que ela seja, que se confere razão prática à sentença condenatória e se asseguram as finalidades de prevenção. Dito de outro modo, precisamente porque se trata de uma pena criminal, o condenado tem que a sentir como tal, sob pena de frustração das finalidades visadas através da sua aplicação; razão que justifica que as alternativas de cumprimento da pena de multa exijam a sua intervenção concreta e interessada, pois é a ele que cabe explicar o não cumprimento da pena em que foi condenado e para cujo cumprimento foi devidamente notificado sendo, pois, ao condenado que cabe requerer a suspensão da pena de prisão subsidiária e provar que o não pagamento lhe não é imputável - – cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra de 13-5-2020, processo n.º 36/16.6T9LSA-A.C1, in www.dgsi.pt, em que foi relator o 1º adjunto deste acórdão, cuja doutrina seguimos de perto, tal como já tinha sucedido no Ac. desta mesma Relação de 13-10-2021, processo n.º 111/19.9GBACB-A.C1 (com o mesmo relator deste acórdão); na doutrina, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, C.P.P. anotado, 3ª edição, p. 1237.
f) Assim concluímos que o condenado em pena de multa só poderá beneficiar de algum mecanismo da suspensão da prisão subsidiária caso o requeira.
E é essa conclusão que se impõe não só face à salvaguarda dos efeitos que a pena de multa deve produzir, atenta a sua dignidade de pena principal, como ainda da interpretação da própria lei, como veremos de seguida:
Após o tribunal decidir pela aplicação de uma pena de multa ao condenado, cabe a este a iniciativa de pedir o diferimento do prazo de pagamento, ou o pagamento em prestações (como aliás ocorreu no caso em apreciação, mas já após o prazo concedido para o efeito), o que resulta das expressões («…o tribunal pode autorizar (…) ou permitir…» - art. 47º, nº 3, do Cód. Penal.
Tal como se estabelece expressamente, que a substituição da multa por dias de trabalho depende de manifestação e vontade do condenado nesse sentido («A requerimento do condenado (…)» - art. 48º, nº 1, do CP. – tal como ocorreu neste processo num primeiro momento, uma vez que o arguido pediu essa substituição, sendo a mesma deferida, e que apenas não foi executada porque o arguido veio apresentar o referido requerimento manifestando vontade de pagar a pena de multa em prestações
g) Igualmente a suspensão da prisão subsidiária, aplicada em consequência do não pagamento da pena de multa, deverá resultar não de uma iniciativa do tribunal, mas sim de um requerimento do condenado, o que se retira da expressão «Se o condenado provar - art. 49º, nº 3, do Cód. Penal, ou ainda da redacção do art. 491º, nº 3, do CPP: «(…) parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente», o que implica que a suspensão tem que ser requerida pelo M.P., ou pelo condenado.
Como se considerou no já citado cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra de 13-5-2020, deixaria de fazer sentido a previsão normativa do n.º 3 do art 49º do Cód. Penal; exigindo o n.º 2 do mesmo art 49º, como pressuposto de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, que o tribunal tente a execução patrimonial, no caso de a mesma se frustrar por inexistência de bens (como ocorreu no caso), então imediatamente o tribunal deveria suspender a execução da pena subsidiária, sem qualquer iniciativa do condenado nesse sentido, e sem ter que alegar e provar que a razão do pagamento não lhe é imputável, o que tornaria inútil, e mesmo contraditório o referido n.º 3 do art 49.
h) Em suma; a pena de multa não se traduz numa indiferenciada prestação patrimonial a favor do Estado, na qual se realizam diligências no sentido de apurar património que possa satisfazer aquela dívida, suspendendo-se o seu pagamento, caso não se encontrem bens ou rendimentos penhoráveis, como se de uma simples execução por custas se tratasse; a pena de multa, ainda que se concretizando através de um sacrifício patrimonial, é uma verdadeira pena, dotada de distinta dignidade jurídico-penal, visando a sua aplicação as finalidades descritas no art 40º do Cód. Penal, tanto que se procura a sua efectivação através da privação de liberdade, situação que não ocorre relativamente à não satisfação de qualquer outra prestação pecuniária no nosso ordenamento jurídico.
Essa específica natureza de pena, exige que, após o seu incumprimento, e sua conversão em prisão subsidiária, seja o condenado a requerer a suspensão dessa prisão, como aliás resulta da interpretação na redacção das normas acima citadas.
No caso, o arguido não só não pediu expressamente essa mesma suspensão, como até apresentou um requerimento no qual pedia a substituição da prestação por dias de trabalho (que lhe tinha sido concedida), por um requerimento (extemporâneo) do pagamento da pena multa em prestações.
Assim sendo, constata-se que o arguido não requereu a suspensão da prisão subsidiária nos termos do art 49º n.º 3 (devendo ser o aquele a tomar tal iniciativa, nos termos acima expostos), não podendo retirar-se de um requerimento no qual pede o pagamento da multa em prestações (declarando ter conseguido celebrar um contrato de trabalho) uma manifestação dessa vontade.
i) No entanto, resta ainda por apreciar uma outra possibilidade.
Apesar de se recusar que o tribunal deva oficiosamente suspender a aplicação da prisão subsidiária (ou, ao menos desenvolver diligências nesse sentido), devendo essa iniciativa caber ao condenado, não é só o condenado que pode assumir essa diligência; como já referimos acima, também o Ministério Público pode requerer a referida suspensão da aplicação da prisão subsidiária, resultando essa legitimidade, inequivocamente, da parte final do n.º 3 do art 491º do C.P.P.
No caso, parece-nos que pode ser retirada, da promoção acima transcrita (II – Fundamentação de Facto - C), a manifestação de vontade do Ministério Público no sentido de dever ser ponderada a possibilidade de suspensão da execução da pena subsidiária.
Recorde-se, que nessa promoção, o Ministério Público para além de avaliar o alegado pelo arguido relativamente à sua situação económica como sendo susceptível de fundar um juízo de não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa, acabou por promover que se solicitasse à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de informação acerca da situação económica do arguido, contendo os deveres ou regras de conduta a cumprir pelo mesmo, em caso de eventual suspensão da prisão subsidiária, citando expressamente o 49º n.º 3 do Cód. Penal .
Assim sendo, ainda que o condenado não tenha exprimido essa vontade através de um requerimento que a consubstanciasse, o Ministério Público expressou-a (posição que coerentemente manteve ao interpor este recurso), tendo legitimidade para tal nos termos do citado art 491º n.º 3 do CPP.
O recurso deve assim proceder.
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em revogar o despacho sob recurso, devendo ser acolhida a promoção do Ministério Público no sentido de se solicitar à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de informação acerca da situação económica do arguido, incluindo os deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro a cumprir pelo mesmo, de forma a ser ponderada a possibilidade de suspensão da execução da prisão subsidiária.
Sem custas.
Coimbra, 15 de Junho de 2022
João Novais (Relator)