EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CAUSA DE PEDIR
CASO JULGADO
DEFESA POR EXCEÇÃO
Sumário


I. O executado, ao deduzir oposição à execução/embargos de executado, não está obrigado a concentrar nos embargos toda e qualquer defesa, ao contrário do se impõe ao réu quando apresenta contestação numa ação declarativa.
II. A oposição à execução não deve ser perspetivada como uma contestação ao pedido executivo, pelo que não lhe será aplicável a norma prevista no artigo 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
III. Ao entendermos a oposição à execução como uma petição de uma ação declarativa autónoma, em que o seu objeto é definido pelo executado, cada um dos fundamentos que invoca são verdadeiras e autónomas causas de pedir.
IV. O decurso do prazo para a oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo, não existindo fundamento legal para que se possa entender que a respetiva preclusão produz efeitos fora do mesmo, e daqui que a não dedução de oposição à execução não impede o executado de propor ação declarativa.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


           

I. Relatório


1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o réu BB pedindo que:

“a) Se declare a inexistência do título executivo constante do processo n.º 397/08.... e corre termos no Juízo de Execução ... - Juiz ..., do Tribunal da Comarca ..., porquanto a assinatura é falsificada e não foi aposta pelo punho da A., não produzindo o mesmo qualquer efeito relativamente à A., por nele não ter intervindo;

Caso assim se não entenda,

b) Se declare a nulidade do título executivo constante do processo n.º 397/08.... e corre termos no Juízo de Execução ... - Juiz ..., do Tribunal da Comarca ..., porquanto a assinatura é falsificada e não foi aposta pelo punho da A., não produzindo o mesmo qualquer efeito relativamente à A., por nele não ter intervindo.

c) Em qualquer dos casos, seja a ré condenada a pagar à A. a quantia de 10.000,00€, a título de indemnização por danos morais, acrescido de juros legais contados desde a citação até efetivo e integral pagamento”.

Para tanto, alegou, em síntese:

- ter sido instaurada pelo Réu ação executiva tendo por título executivo uma letra de câmbio subscrita e aceite pela autora e pelo seu ex-marido, no valor de €26.691,90 (trinta e seis mil seiscentos e noventa e um euros e noventa cêntimos), emitida em 23.04.2008;

- nunca subscreveu a referida letra ou aceitou, desconhecendo que elaborou a assinatura dela constante, tendo apresentado a respetiva queixa crime;

- foi notificada, pela primeira vez, no processo executivo apenas em fevereiro de 2009;

- o Réu usou título executivo falso o que lhe provoca danos não patrimoniais no valor de €10.000,00 (dez mil euros), pugnando, assim, pela procedência da ação.

2. Citado, o Réu veio contestar, alegando, em suma, que a Autora não deduziu embargos de executado ou incidente de falsidade no processo executivo, pelo que o exercício do direito que pretende exercer deveria ter sido exercido no processo executivo, encontrando-se o mesmo precludido.

3. Notificada para se pronunciar ao abrigo do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil), a Autora veio alegar que não foi citada para a ação executiva tendo invocada a falta de citação, sendo certo que tal não a pode impedir de exercer no presente processo o seu direito, com vista à restituição da quantia injustamente recebida pelo réu.

4. Proferida decisão, o Tribunal de 1.ª instância julgou totalmente improcedente os pedidos formulados pela Autora absolvendo, em consequência, o Réu.

5. Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação.

6. O Tribunal da Relação ... veio a “julgar improcedente o recurso interposto, confirmando, em consequência, a decisão proferida”.

7. Novamente inconformada, a Autora veio interpor recurso de revista excecional, invocando o disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, recurso de revista que foi admitido pela Formação de Juízes a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Considerou o Tribunal “a quo” que: “Os embargos não são um meio facultativo de oposição à execução, mas o único meio para essa oposição. Se não houvesse um efeito preclusivo decorrente da não dedução de embargos de executado, ter-se-ia de admitir que, durante a pendência da execução, o executado poderia escolher entre embargar ou defender-se numa acção própria. Ora, é precisamente para obviar à instauração de uma outra acção que existe e se destina o processo de embargos de executado, a fim de permitir ao executado que se defenda, no âmbito da execução, fazendo valer o seu direito perante o exequente.”

2.ª Invoca A Recorrente que o facto de não ter apresentado oposição/embargos na ação executiva, anteriormente apresentada pela ré, aqui recorrida, não impede a mesma de, por ora, recorrer à ação declarativa por forma a ver ser restituído o que foi prestado indevidamente, por via da nulidade ou da inexistência, devidamente peticionada nesta ação.

3.ª De facto, o resultado dum processo executivo não goza, via de regra, da irrevogabilidade análoga à do caso julgado material,

4.ª não obstando, em princípio, à propositura, pela executada, duma ação de restituição do indevido, uma vez que, não representando a oposição à execução uma contestação da ação executiva esta se deve ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu qualquer oposição.

5.ª Só não será admissível a ação de restituição do indevido por força do enriquecimento sem causa, nos casos em que a falta de causa da deslocação patrimonial (produzida na execução) invocada na ação de restituição do indevido tiver a ver com a mesma situação jurídica que já foi invocada na oposição deduzida à execução, que aí foi alvo de decisão de mérito (naturalmente, de improcedência) e que por isso fez caso julgado material e não pode voltar a ser discutida entre as partes.

6.ª Ainda que haja total identidade entre o deduzido na oposição e na posterior ação de repetição do indevido, se a oposição tiver terminado sem decisão de mérito, por, tendo o executado pago a quantia exequenda e a execução ter sido julgada extinta por ter ocorrido tal pagamento, tal ação de restituição do indevido terá de ser necessariamente admitida.

7.ª A executada, neste caso, ora recorrente, podia, assim, defender-se em ação declarativa, como fez na presente ação, invocando a nulidade ou inexistência do título executivo, por o mesmo ter sido falsificado e do mesmo constar assinatura falsa, visando a restituição do indevido, mediante a invocação do que podia ter sido fundamento de uma eventual oposição.

8.ª Pois, só as decisões transitadas que incidam sobre o mérito da causa, ou seja, que apreciem a relação material controvertida que se discute na ação adquirem a força de caso julgado material e têm a virtualidade de poder ter força obrigatória fora do processo em que foram proferidas.

9.ª A não dedução de oposição à execução apenas preclude, no âmbito de tal execução, o exercício do direito processual (em que a oposição se traduz), não impedindo a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição, noutro processo, visando a restituição do indevido, devendo, assim, ser restituído tudo o que tiver sido prestado.

10.ª Por outro lado, a nulidade e a inexistência podem ser invocadas a todo o tempo, conforme preceitua o artigo 286º CC.

11.ª Decorrendo da lei que a declaração de nulidade tem efeito retroativo, “devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado” (artigo 289º, nº 1, CC).

12.ª A declaração de nulidade do contrato traz consigo a destruição retroativa das atribuições patrimoniais prestadas, no caso concreto, pelos ora recorrentes, como se o negócio não tivesse sido realizado.

13.ª Assim, as prestações efetuadas em cumprimento de um contrato nulo ou anulável são prestações 'indevidas'. Neste sentido, cfr. o acórdão do TRC de 21-01-2014, no processo nº 1117/09.1T2AVR.C1, em que foi relator Barateiro Martins, o acórdão do TRL de 07-02-2013 no processo nº 4279/10.1TBVFX.L1-6, em que foi relator Fernanda Isabel Pereira, e o acórdão do TRP de 20-04-2009, no processo nº 2842/06.4TBVLG.P1, em que foi relator Barateiro Martins.

14.ª Consoante consta do art. 619.º do CPC, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º,

15.ª quando constitui uma decisão de mérito, a sentença produz, também fora do processo, o efeito de caso julgado material.

16.ª O que precedeu a presente ação foi uma ação executiva intentada pelo R., ora recorrido, contra a A., aqui recorrente, em que aquele alegava ser “legítimo portador de uma letra de câmbio, subscrita e aceite pelos executados, no valor de 36.691,90€, emitida em 23.04.2008 e com vencimento para 23.05.2008. Os executados não pagaram a referida letra, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente, não obstante terem sido intentados a fazê-lo pelo exequente por diversas vezes. Os executados, devem assim, ao exequente a quantia de 36.691,90, acrescida de juros vencidos desde 23.05.2008 até à presente data - 16.07.2008 - que perfazem o montante de 596,72€. Entretanto, os executados devem ainda ao exequente a quantia de 445,85€ correspondente às despesas de devolução e despesas bancárias suportadas pelo exequente. Devem, assim, os executados ao exequente a quantia global de 37.734,47€, além dos juros que se vencerem a partir da entrada em juízo da presente execução sobre o capital de 36.691,90€.”

17.ª No âmbito dessa execução a aqui recorrente (ora A.) – que então não deduziu oposição – tem, em virtude da penhora levada a cabo pelo aqui recorrido (ali Réu), procedido ao pagamento da quantia exequenda.

18.ª Tal não pode impedir que a ora A. (recorrente) venha, agora, invocar neste processo (isto com vista à restituição da quantia injustamente recebida pelo Réu naquela execução) os fundamentos (excepções) que podia ter invocado na oposição, pois a não dedução de oposição à execução não impede o executado de lançar mão de uma ação declarativa autónoma que tenha por base o título dado à execução, uma vez que se trata de um título falso, com assinatura falsa de acordo com a perícia realizada no âmbito do processo de inquérito n.º 210/09.....

19.ª E a não utilização dos meios de defesa na execução não preclude a posterior invocação de excepções ao direito exequendo em outras ações, sendo que o efeito preclusivo só se verifica no processo executivo e relativamente aos meios de defesa específicos desse processo.

20.ª No mais, trata-se de uma situação da mais elementar justiça, que decidida como decidiu o Tribunal da Relação ... prejudica quer a A. quer outros interessados que vejam o seu direito postergado sem ser de facto decidido.

21.ª Assim, que a decisão proferida naqueles autos de execução não se configura como obstáculo a uma decisão de mérito no presente processo, uma vez que o objeto processual antecedente não é repetido no objeto processual do processo agora em análise.

22.ª No caso dos autos não se formou caso julgado material em ação declarativa de embargos de executado, nem precludiu o direito da recorrente intentar ação para declarar a inexistência ou nulidade da letra dada à execução, uma vez que estes não foram deduzidos, não tendo sido proferida decisão de mérito sobre as questões relativas à assinatura da letra, validade formal da letra e à responsabilidade da A., aqui recorrente.

23.ª Pelo exposto, e em face das decisões proferidas nos acórdãos do TRC de 21-01-2014, no processo nº 1117/09.1T2AVR.C1, em que foi relator Barateiro Martins, o acórdão do TRL de 07-02-2013 no processo nº 4279/10.1TBVFX.L1-6, em que foi relator Fernanda Isabel Pereira, e o acórdão do TRP de 20-04-2009, no processo nº 2842/06.4TBVLG.P1, em que foi relator Barateiro Martins, em que se decidiu casos semelhantes aos dos autos, deverá ser dada procedência ao presente recurso e, em consequência, deverá ser revogando a decisão do Tribunal da Relação ...     , substituindo-a por outra de forma a que o processo declarativo siga os seus termos.

E conclui: “… confrontando o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ... nos presentes autos com os acórdãos do TRC de 21-01-2014, no processo nº 1117/09.1T2AVR.C1, acórdão do TRL de 07-02-2013 no processo nº 4279/10.1TBVFX.L1-6 e acórdão do TRP de 20-04-2009, no processo nº 2842/06.4TBVLG.P1 (que se junta cópia) e verificando-se os entendimentos diversos relativamente à preclusão ou não do direito de intentar ação declarativa nos termos em que esta foi intentada, bem como que a A. não vê o seu direito precludido ao não ter apresentado oposição à execução, deve ser julgado procedente o presente Recurso de Revista Excecional, revogando a decisão recorrida, substituindo-a por outra de forma a que o processo declarativo siga os seus termos”.


8. O Réu contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso de revista excecional e pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões (excluídas a que se reportavam à inadmissibilidade do recurso):

1.ª Ressalvando o muito respeito, é para nós insofismável, que a não dedução de embargos de executado por parte da Autora, ora recorrente, no âmbito do processo nº 397/08.... e que corre termos no Juízo de Execução ... – Juiz ..., do Tribunal da Comarca ..., constitui um efeito de vinculação extraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.

2.ª Com efeito, com a presente ação declarativa, a Autora/recorrente pretende ardilosamente e de forma camuflada, exercer um direito que deveria ter exercido em incidente próprio de oposição mediante embargos (o que não fez), transparecendo a ideia de que está em causa a restituição da quantia injustamente recebida pelo réu, todavia não é esse o pedido formulado pela mesma, já que o pedido tem como fundamento a inexistência ou inexequibilidade do título (cfr. artigo 729º, nº 1, al. a) do CPC).3.ª Pretendendo a Autora que se declare um direito, poderá interpor ação própria, porém, não é toda e qualquer ação, mas apenas aquela que não seja incompatível com a preclusão advinda da não dedução de embargos.

4.ª Isto porque, se a Autora/recorrente pretendia impedir a prossecução da execução e impedir que a mesma realize os seus fins, cabia-lhe cumprir o ónus de deduzir oposição à execução por embargos.

5.ª Portanto, a tutela declarativa passível de serdeduzida pela Autora/recorrente e que não se mostra precludida, é aquela que não contende com os fins próprios da oposição à execução e, assim, que não fica precludida pela não dedução de embargos.

6.ª Como tal, a ação própria não pode ser suscetível de contrariar a execução e os seus fins, porquanto para tanto, cabe deduzir embargos (artigo 728º, nºs 1 e 2, do CPC), para os quais a lei fixa um prazo perentório que, para os factos supervenientes, encontra assento nº 2 do artigo 728º n.º 2 CPC, e que no caso não ocorreu.

7.ª Assim, forçosamente se tem de concluir que, não está na livre disponibilidade dos executados optarem por opor-se à execução por embargos ou deduzir ação autónoma, com os mesmos fundamentos em que poderiam alicerçar a sua oposição à execução.

8.ª Veja-se neste sentido os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 15/12/2020, da relatora Carla Câmara e da Relação de Guimarães, de 25/06/2020, da relatora Margarida Sousa, Acórdão da Relação de Évora, datado de 08.06.2017, do relator Rui Machado e Moura, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2016 (processo nº 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2, relator Fonseca Ramos), bem como Teixeira de Sousa, in “Preclusão e caso julgado” (https://www.academia.edu/22453901/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Preclus%C3%A3o_ e_caso_julgado_02.2016_?email_work_card=view-paper, e ainda comentários aos Acórdãos da Relação de Lisboa, de 16/1/2018 (1301/12.0TVLSB.L1-1) e da Relação de Coimbra, de 16/10/2018  (158/14.1TBCBR.C1), em, respetivamente: https://blogippc.blogspot.com/2018/04/jurisprudencia-2018-4.html e e Lebre Freitas, in Ação Executiva e Caso Julgado, págs. 232, 242/243).

9.ª Destas proposições parece, desde logo, resultar, no que para o caso interessa, que, afirmada a existência de um ónus de concentração na oposição à execução se deve, sem mais, concluir pela inadmissibilidade de invocação das exceções extintivas da obrigação exequenda que poderiam ter sido invocadas na dita oposição e o não foram. E isto dentro ou fora do processo executivo em causa, pois só assim se cumprirá verdadeiramente a função de estabilização reconhecida à preclusão.

10.ª No caso dos presentes autos, o    que a Autora/recorrente pretende verdadeiramente, é deduzir em ação própria (a presente ação declarativa), os fundamentos de embargos que obviariam, sendo procedentes, ao pagamento da 0brigação exequenda.

11.ª Ora, não tendo a Autora deduzido embargos de executado, meio adequado a fazer extinguir ou modificar, a instância executiva, a não preclusão do seu direito de ação não lhe confere o direito a interpor a ação declarativa destinada a obter os mesmos efeitos dos embargos de executado, no âmbito dos preceitos legais que o disciplinam (artigos 728º e segs), que não deduziu, por tal lhe estar vedado pelo efeito extraprocessual da preclusão, conforme o entendimento da jurisprudência e doutrina citadas, o qual sufragamos na íntegra.

12.ª Por todo o supra explanado, não violou o tribunal recorrido qualquer disposição legal, pelo que o douto acórdão recorrido não merece a censura que lhe é feita, devendo o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se aquela, na íntegra.

E conclui pela improcedência do recurso.

9. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se, não tendo a aqui demandante apresentado oposição/embargos na ação executiva, anteriormente instaurada pelo aqui demandado, nada impede aquela de recorrer à ação declarativa, por forma a ver ser restituído o que foi prestado no âmbito daquela ação executiva, invocando, para tal, a nulidade ou inexistência do titulo exequendo.


III. Fundamentação

1. Em face da causa de pedir e pedidos formulados pela Autora e da defesa apresentada pelo Réu, é relevante a seguinte materialidade fáctico-jurídica, para a decisão do presente recurso:

1.1. Autora AA intentou a presente ação de processo comum contra o Réu BB pedindo que:

a) Se declare a inexistência do título executivo constante do processo n.º 397/08.... e corre termos no Juízo de Execução ... - Juiz ..., do Tribunal da Comarca ..., porquanto a assinatura é falsificada e não foi aposta pelo punho da A., não produzindo o mesmo qualquer efeito relativamente à A., por nele não ter intervindo;

Caso assim se não entenda,

b) Se declare a nulidade do título executivo constante do processo n.º 397/08.... e corre termos no Juízo de Execução ... - Juiz ..., do Tribunal da Comarca ..., porquanto a assinatura é falsificada e não foi aposta pelo punho da A., não produzindo o mesmo qualquer efeito relativamente à A., por nele não ter intervindo.

c) Em qualquer dos casos, seja a ré condenada a pagar à A. a quantia de 10.000,00€, a título de indemnização por danos morais, acrescido de juros legais contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

1.2. Alegou que o Réu instaurou contra si ação executiva, em que apresentou como título executivo uma letra de câmbio subscrita e aceite pela Autora e pelo seu ex-marido, mas na verdade nunca assinou nem aceitou a referida letra, tendo apresentado queixa crime.

1.3. O Réu apresentou contestação, pugnando pela preclusão do direito da Autora intentar a presente ação, por não ter deduzido embargos de executado no processo executivo.

1.4. A autora não deduziu oposição à execução no processo executivo.

2. Apreciação do recurso

O Réu intentou ação executiva contra a ora Autora reclamando o pagamento de uma determinada quantia com fundamento em ser legítimo portador de uma letra de câmbio, subscrita e aceite pela Autora e pelo seu ex-marido.

A Autora, então Executada, não deduziu embargos de executado.

A Autora intentou a presente ação, alegando que não subscreveu a letra de câmbio e que a sua assinatura foi falsificada.

A Recorrente entende que no caso dos autos não se formou caso julgado material em ação declarativa de embargos de executado, nem precludiu o direito da recorrente intentar ação para declarar a inexistência ou nulidade da letra dada à execução, uma vez que estes não foram deduzidos, não tendo sido proferida decisão de mérito sobre as questões relativas à assinatura da letra, validade formal da letra e à responsabilidade da A., aqui recorrente.

O Acórdão recorrido, que confirmou a sentença, entendeu que os embargos não são um meio facultativo de oposição à execução, mas o único meio para essa oposição. Se não houvesse um efeito preclusivo decorrente da não dedução de embargos de executado, ter-se-ia de admitir que, durante a pendência da execução, o executado poderia escolher entre embargar ou defender-se numa acção própria. Ora, é precisamente para obviar à instauração de uma outra acção que existe e se destina o processo de embargos de executado, a fim de permitir ao executado que se defenda, no âmbito da execução, fazendo valer o seu direito perante o exequente.

O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou acerca desta matéria, ainda que em situações fácticas não totalmente similares, uma vez que nestes arestos havia sido intentada oposição à execução/embargos de executado com fundamentos diversos da ação declarativa.

Tem entendido este Tribunal que é admissível a dedução de ação declarativa, após a dedução de oposição à execução, desde que com fundamentos (exceção) diversa da apresentada no processo executivo.

Como se referiu no Acórdão do STJ, de 6/12/2016 (processo n.º1129/09.5TBVRL-H.G1.S2), seguindo os ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa (Preclusão e Caso Julgado), “a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um ato processual pela parte depois do prazo perentório para a sua realização, sendo que uma das funções que realiza é a de estabilização: uma vez inobservado o ónus de praticar o ato, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do ato, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico. Quando referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. A correlatividade entre ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não o consiga obter, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito. Na oposição à execução, o embargante tem o ónus de concentrar na petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado. A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados naquela petição.

Após o trânsito em julgado da decisão proferida na oposição à execução, aquela preclusão, em vez de operar per se, atua através da exceção de caso julgado, apesar de não existir entre a primeira e a segunda ação identidade de fundamentos e, portanto, identidade de objetos. A preclusão extraprocessual pode operar num outro processo antes de se constituir qualquer caso julgado nesse processo: portanto, os efeitos da preclusão não estão dependentes do caso julgado. O caso julgado e a exceção de caso julgado não produzem nenhum efeito preclusivo distinto daquele que, quanto aos factos não alegados, se verifica no processo em que é proferida a decisão transitada em julgado. Depois de haver no processo uma decisão transitada em julgado, a preclusão extraprocessual deixa de operar per se se, passando atuar através da exceção de caso julgado. Em suma: pode falar-se de “preclusão e caso julgado”, mas não de “caso julgado e preclusão”.

- cf. Acórdão do STJ, de 19/03/2019 –


No caso dos autos, não tendo a Autora deduzido embargos de executado, no âmbito da ação executiva, estará impedida de intentar a presente ação?


Como se afirmou no citado Acórdão de 4 de abril de 2017, “De acordo com entendimento corrente (assim, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4.ª edição, pp. 190 e 191; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., pp. 303 a 305; e, de certa forma, Castro Mendes, Acção Executiva, p. 54), o executado não está sujeito a qualquer ónus de oposição à execução (aliás, não é citado ou notificado sob qualquer cominação para o caso de não deduzir oposição), e daqui que, não deduzindo oposição, tal não acarreta uma cominação, mas tão só a preclusão, no processo executivo, de um direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso, mas sem que se possa falar de caso julgado a impor-se noutra ação posterior ou de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo. Nessa medida, será de entender (e é o que, no fundo, significam os dois supra citados autores) que deixando o executado de deduzir oposição, nada impedirá que venha depois a invocar em outro processo (isto com vista à restituição da quantia injustamente recebida pelo exequente na execução) os fundamentos (exceções) que podia ter invocado na oposição.

… o decurso do prazo para a oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo, não existindo fundamento legal para que se possa entender que a respetiva preclusão produz efeitos fora do mesmo, e daqui que a não dedução de oposição à execução não impede o executado de propor ação declarativa que vise a repetição do indevido…

Este ponto de vista assume toda a lógica desde que, como parece dever ser o caso, se encare a oposição à execução, não como uma contestação ao pedido executivo (e, assim, não se lhe aplica a regra do n.º 1 do art. 573.º do CPCivil), mas como uma petição de uma ação declarativa autónoma cujo objeto é definido pelo executado (valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causa de pedir).

Diferentes serão as coisas se o executado enveredar pela dedução da oposição à execução, e a oposição for objeto de decisão de mérito. Pois que nos termos do n.º 5 do art. 732.º do CPCivil … a decisão de mérito proferida na oposição constituirá, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda…”

Também Carlos Oliveira refere: “O decurso dos prazos processuais para a prática da oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo; impede, dentro desse processo, a prática do acto. Mas não existe fundamento legal para que se possa entender que essa preclusão produz efeitos fora do processo.” (O Caso Julgado na Acção Executiva, Themis, ano IV, n.º7, 2003, A Reforma da Acção Executiva, pp. 243 a 251)..

Acaba por concluir, em adesão aos argumentos do Prof. Lebre de Freitas, que:

- não devemos assimilar a oposição à execução a uma contestação, pelo que não existirá para o executado nem o ónus de impugnação nem de alegar exceções perentórias;

- a atribuição da força de caso julgado material a uma decisão, nos termos do atual artigo 619.º do Código de Processo Civil, pressupõe que esse acto constitua o julgamento de uma controvérsia entre as partes que tenha decorrido no âmbito de um procedimento tendente a atingir esse resultado, o que não acontece na ação executiva devido à autonomia da oposição à execução.

Por fim, conclui Carlos Oliveira Soares que numa situação em que, na ação executiva, o crédito exequendo é satisfeito e o executado não deduz oposição à execução, e o executado intenta ação declarativa para restituição do indevido, com fundamento na existência de uma causa extintiva da obrigação exequenda que poderia ter alegado em oposição à execução, o caso julgado não poderá servir de fundamento à defesa do réu na ação declarativa.

Atente-se, igualmente, no n.º 5 do artigo 732.º do Código de Processo Civil, introduzido no novo Código de Processo Civil que prevê expressamente o seguinte, “Para além dos efeitos sobre a instância, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade, e exigibilidade da obrigação exequenda”. Esta era já a posição defendida por Lebre de Freitas (In A acção executiva à Luz do Novo Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra 1997, 2.ª Edição, pp. 159 a 163.), e bem assim por Miguel Teixeira de Sousa (In Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, p. 191), conforme aponta Carlos Oliveira Soares, no citado artigo.

O prof. Miguel Teixeira de Sousa (In Preclusão e Caso Julgado, Maio de 2016, https://blogippc.blogspot.com/2016/05/paper-199.html. ), por seu lado, porém, vai mais longe e entende que (…) do disposto no art. 732.º, n.º 5, não decorre que é o caso julgado da decisão proferida nos embargos que preclude a invocação de um fundamento diverso daquele que o executado invocou nos embargos à execução. Na verdade, a preclusão da invocação de um outro fundamento de inexistência, de invalidade ou de inexigibilidade da pretensão exequenda não ocorre no momento do trânsito em julgado da decisão, mas no momento em que o executado apresenta a petição de embargos. É a partir deste momento que, ressalvada a admissibilidade da alteração da causa de pedir da oposição à execução (cf. art. 265.º, n.º 1), o executado não pode invocar nenhum outro fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda. A referência temporal da preclusão que afecta o executado não é o trânsito em julgado da decisão de embargos, mas o anterior momento da entrega da petição inicial dos embargos à execução.

Posto isto, supõe-se que o sentido do estabelecido no art. 732.º, n.º 5, só pode ser este: a partir do momento em que se verifica o trânsito em julgado da decisão de improcedência da oposição à execução deduzida com um certo fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda, a preclusão da invocação de um fundamento distinto daquele que foi alegado pelo executado passa a operar através da excepção de caso julgado. Quer dizer: a preclusão da alegação de um fundamento distinto que já se verificava a partir do momento da entrega da petição inicial dos embargos de executado passa a actuar através da excepção de caso julgado, se esse fundamento for indevidamente alegado numa acção posterior. Portanto, a excepção de caso julgado não origina a preclusão do fundamento não alegado nos embargos de executado, antes é um meio para impor a estabilização decorrente da preclusão desse fundamento num outro processo.

Lebre de Freitas (In A Ação Executiva – À luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, pp. 214 e 215), em análise ao CPC de 2013, na sua versão original, entende que nada impede a invocação de uma exceção, fora do processo executivo, com vista à restituição do indevido, caso essa exceção não tenha sido invocada nos embargos de executado. Justifica a sua posição com o facto de não se tratar de uma contestação, na qual a falta de invocação de todas as exceções determinaria a preclusão deste direito. Mas, por se tratar da oposição à execução/embargos de executado o princípio da preclusão não atua de modo tão efetivo.


Descendo, novamente ao caso dos autos, temos que, por motivos não apurados, a Autora não deduziu embargos de executado no processo executivo onde lhe foram penhoradas quantias monetárias e, pretende, agora, que nos presentes autos de processo comum, seja declarada a inexistência do título executivo.

Em face da mais recente jurisprudência, os Acórdãos do STJ de 19-03-2019 (Revista n.º 751/16.8T8LSB.L2.S1), e de 4-04-2017 (Revista n.º 1329/15.9T8VCT.G1.S1), pelos fundamentos aí apontados:

- o executado, ao deduzir oposição à execução/embargos de executado, não está obrigado a concentrar nos embargos toda e qualquer defesa, ao contrário do se impõe ao réu quando apresenta contestação numa ação declarativa. Na ação executiva, o executado ao ser citado/notificado para deduzir oposição, não lhe é feita qualquer cominação, pelo que o efeito preclusivo da falta de oposição ou da não dedução de todos os fundamentos, ocorre apenas no processo executivo. Conforme se aduz no citado Ac. do STJ de 19-03-2019, não representando a oposição à execução uma contestação da ação executiva (e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão), esta (a ação de restituição do indevido) se deve ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu qualquer oposição;

- a oposição à execução não deve ser perspetivada como uma contestação ao pedido executivo, pelo que não lhe será aplicável a norma prevista no artigo 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Ao entendermos a oposição à execução como uma petição de uma ação declarativa autónoma, em que o seu objeto é definido pelo executado, cada um dos fundamentos que invoca são verdadeiras e autónomas causas de pedir;

- o artigo 732.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (anterior 732.º, n.º 5), prevê que a decisão de mérito ocorrida numa oposição à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, mas não coloca qualquer óbice à dedução de ação declarativa em diferente causa de pedir, pois tão só as decisões transitadas em julgado e que incidam sobre o mérito da causa, através da apreciação da relação material controvertida discutida na ação é que são suscetíveis de adquirir força de caso julgado material e, como tal de adquirir força obrigatória fora do processo em que foram proferidas, cf. artigos 619.º, 620.º e 621.º do Código de Processo Civil, o direito da Autora não se mostra afastado por força da preclusão, nem por força de caso julgado material na ação executiva.


Deste modo, o recurso tem de proceder, devendo os autos prosseguir os seus termos.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, e, consequentemente, em revogar o Acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos

Custas pelo Recorrido.


Lisboa, 24 de maio de 2022


Pedro de Lima Gonçalves (relator)

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães