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INVENTÁRIO INTENTADO EM CARTÓRIO NOTARIAL
RECLAMAÇÃO DE BENS
RESOLUÇÃO DEFINITIVA DA QUESTÃO (CASO JULGADO)
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Sumário
I - A atribuição de competências ao notário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário envolve a resolução dos litígios atinentes à partilha, impondo ao notário a apreciação e decisão de todas as questões, nelas se incluindo a sonegação de bens, e só legitimando a remessa para os meios comuns quando a questão pela sua complexidade fundamentadamente não pode ser decidida no processo de inventário. II - Quando a tramitação dos autos de inventário seguiu o rito processual próprio do conhecimento de mérito do incidente de reclamação, não tendo sido as partes remetidas para os meios comuns, não podem estas recorrer aos meios judiciais para discutir novamente a questão. III - O alcance do caso julgado que emerge da decisão sobre a reclamação de bens, porque em termos substantivos (de mérito) dela conheceu de modo definitivo, é o de obstar ao conhecimento da pretensão que nos mesmos moldes na ação vem formulada. IV - A verificação da tríplice identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido, por pressupor a repetição de uma causa, conforma a exceção de caso julgado, cujo fundamento constitucional assenta no princípio da segurança jurídica.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I – RELATÓRIO
V. M. veio intentar contra H. P., ação declarativa comum peticionando:
a) A condenação da ré a reconhecer que o saldo levantado ou movimentado pela mesma do montante de € 40.000,00 da conta com o IBAN que identifica é uma poupança e que faz parte dos bens comuns do casal.
b) A declaração que a ré sonegou, ocultando essa quantia à partilha para separação das meações dos ex-cônjuges.
c) A condenação da ré, por efeito da sonegação, a não participar na partilha dessa quantia sonegada.
d) A condenação da ré a pagar ao autor a quantia de 40.000,00 € (quarenta mil euros) que por efeitos de sonegação a este pertence por inteiro, acrescida de juros legais desde a data da citação até integral pagamento.
Para tanto, alegou que no processo de inventário que correu termos para partilha de bens do casal, na sequência da decisão da Srª Notária quanto ao incidente de reclamação, na relação de bens que apresentou relacionou uma quantia monetária como «dinheiro – verba 1 (litigioso)», o que corresponde à remessa da questão para os meios comuns para apurar se tais valores foram sonegados, usurpados ou ocultados pela ré.
A ré apresentou contestação invocando a exceção de caso julgado, sustentando que no processo de inventário foi proferida uma decisão de mérito relativamente à reclamação de bens deduzida, na qual se concluiu que inexistia prova que a reclamante se tenha apoderado e tenha na sua posse a quantia de € 40.000,00.
No exercício do contraditório, veio o autor sustentar que o despacho proferido pela Exma. Sra. Notária não pode ter outra interpretação senão o de declarar a sua incompetência para apreciar a sonegação da quantia de € 40.000,00 e, consequentemente, remeter essa questão, dependente de prova, para os meios comuns.
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Foi proferido saneador sentença em que se entendeu que a questão foi, efetivamente, apreciada e decidida nos autos inventariais, inexistindo qualquer remessa das partes para os meios comuns, concluindo-se pela verificação da tríplice identidade de partes, pedido e causa de pedir pressuposta pela verificação da exceção de caso julgado.
Pelo exposto, julgou-se verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, absolveu-se a ré da instância, nos termos previstos nos artigos 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, al. i) e 578.º, 580.º, nºs 1 e 2 e 581.º do Código de Processo Civil.
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Inconformado, apelou o autor V. M. concluindo as suas alegações da seguinte forma:
I – No Inventário, o cabeça de casal relaciona os bens que integram o património a partilhar;
II – No inventário, subsequente a divórcio, o cabeça de casal relaciona os bens que integram o património comum do casal, à data da cessação dos efeitos patrimoniais do divórcio, que retrotrai à data da propositura da acção de divórcio;
III - O cabeça de casal relaciona os bens, na sua totalidade, quer estejam na sua posse, quer estejam na posse de terceiro, seja partilhante ou não;
IV- Verificando-se a usurpação ou ocultação de bens comuns por um dos cônjuges, e concretamente, na pendência da comunhão, antes de cessarem os efeitos patrimoniais do divórcio, tal questão só pode ser decidida pelos Tribunais Comuns, em acção própria;
V- Essa litigância está fora do objecto do processo de Inventário, e o Notário não pode decidir tal questão, por não ter competência de qualquer espécie;
VI - O despacho proferido pela Senhora Notária sobre o incidente da reclamação à relação de bens não decide, nos termos do artigo 17º do RJPI, a questão do “apoderamento ilícito”, da “ocultação e usurpação” objecto da presente acção;
VII- Aliás, o despacho da Senhora Notária, esclarece, e todos os intervenientes do Inventário ficaram esclarecidos de que tal questão não ficava decidida, quer porque não era do objecto do Inventário, quer porque a Notária não tinha competência para decidir tal questão;
VIII- Por isso, não existindo decisão sobre a questão objecto da presente acção, muito menos existiria a excepção de caso julgado;
IX- A sentença recorrida violou os artigos 576º, nº 1 e 2, 577º, alínea i-), 578º, 580º, nºs 1 e 2 e 581º, todos do Código Processo Civil, e o artigo 17º do RJPI.
Pugna o Recorrente pela revogação da sentença que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento da instância.
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A Recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
A questão a decidir, única colocada no recurso, é a de saber se a decisão proferida no inventário sobre a reclamação de bens, nos termos em que foi proferida, resolveu definitivamente a questão ou remeteu as partes para os meios comuns.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1.OS FACTOS
Os factos que se atenderam na primeira instância foram os seguintes:
i. O processo de inventário com o n.º 1703/18 foi instaurado pela aqui ré em 22 de março de 2018 junto do Cartório Notarial de … para cessar a comunhão conjugal do autor e ré.
ii. O autor, no processo de inventário, apresentou relação de bens, onde se lê sob a epígrafe «Dinheiro», «Verba n.º 1 A quantia de quarenta mil euros que a interessada H. P. levantou da conta com o IBAN PT5 ……… 03».
iii. A ré, no processo de inventário, reclamou contra a relação de bens apresentada, pugnando pela exclusão da sobredita verba n.º 1.
iv. Por despacho notarial datado de 30 de setembro de 2020, a Exma. Sra. Notária decidiu o incidente de reclamação à relação de bens deduzido pela aqui ré, tendo feito, nomeadamente, constar que:
«Dinheiro:
Verba nº 1 – Vem o cabeça de casal relacionar a quantia de 40.000,00€ alegadamente em poder da reclamante e retirados da conta com o IBAN PT5 ....................03. A reclamante vem em sede de reclamação refutar a posse desta quantia, alegando que essa conta seria para receber as quantias enviadas pelo cabeça de casal do Panamá com o objetivo de pagar dívidas e despesas referentes à construção da casa de morada de família e encargos da vida familiar. Esses valores eram transferidos para outra conta dos interessados devido à conversão dos dólares em euros. O cabeça de casal em sede resposta veio solicitar extratos mais alargados da conta – entre os anos de 2014 e 2015. Em sede de produção de prova veio o cabeça de casal invocar que tal quantia seria retirada pela reclamante para uma conta aberta só em nome da mesma onde faria os depósitos dos valores retirados dessa conta conjunta.
Assim, e na sequência deste argumento ambas as partes requereram em ata a notificação do Banco de Portugal para informar os autos sobre as contas que a reclamante e o cabeça de casal detinham entre a data do casamento e data do divórcio. Como resposta apenas duas entidades bancárias – X e Y SA vieram responder afirmativamente quanto à existência de contas bancárias, tendo a primeira junto os respetivos extratos bancários, e a segunda entidade confirmado a existência de uma conta bancária em nome da reclamante nada dizendo quanto ao seu saldo. Foram as partes notificadas em 29 de junho deste ano, da existência destes documentos nos autos e do prazo de 10 dias para se pronunciarem sobre as mesmas se o desejassem fazer. Apenas a reclamante veio quanto a este ponto dizer que não pretendia pronunciar-se.
Ora nestes termos, não conseguiu o cabeça de casal provar que a reclamante se tenha apoderado e tenha na sua posse a quantia de 40.000,00, apenas existindo transferências de dinheiro que foram efetuadas e utilizadas na constância do casamento. O único item que poderia ser relacionado, mas não foi requerido, foi o saldo existente à data da propositura da ação de divórcio. Assim, não deverá esta verba ser relacionada por não se ter provado a existência desse dinheiro como bem a ser relacionado sendo que uma eventual usurpação ou ocultação também nunca poderia ser decidida neste processo de inventário por não ter o mesmo competência.
(…)
Desta forma, determino que os bens a relacionar são apenas os que foram atrás admitidos quanto à sua inclusão, com os valores a atualizar nos termos indicados.
Concedo ao cabeça de casal o prazo de 15 dias para a apresentação da relação de bens em conformidade com o acima decidido, nos termos do n.º 5 do artigo 35.º do RJPI.
Notifiquem-se as partes do presente despacho em conformidade (…)».
v. Por escrito datado de 30 de setembro de 2020, assinado eletronicamente pela Sra. Notária L. C., o aqui autor foi notificado para «da decisão do incidente de reclamação à relação de bens disponível para consulta em www.inventarios.pt e do prazo de 15 dias para juntar aos autos nova relação de bens em conformidade». vi. O autor, no processo de inventário, apresentou nova relação de bens, onde se lê sob a epígrafe «Dinheiro», «Verba n.º 1 (Litigiosa)», inexistindo qualquer relação de bens posterior.
vii. Não foi determinada a remessa das partes para os meios comuns para apreciação das reclamações deduzidas à relação de bens ou quaisquer outras.
viii. Nenhum dos ex-cônjuges requereu a remessa para os meios comuns, não tendo sido apresentados recursos interlocutórios das decisões proferidas.
ix. Apenas a ré interpôs recurso, em 26-08-2021, da decisão homologatória da partilha, não tendo colocado em causa a exclusão da verba n.º 1 da relação de bens.
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3.2. O DIREITO
A questão sob litigio prende-se apenas com a de saber se a decisão proferida pela Sra. Notária conheceu definitivamente a reclamação à relação de bens em falta, verificando-se em consequência a exceção de caso julgado ou se as partes foram remetidas para os meios comuns, conforme propugna o Recorrente.
O segmento decisório a interpretar é do seguinte teor:
«Ora nestes termos, não conseguiu o cabeça de casal provar que a reclamante se tenha apoderado e tenha na sua posse a quantia de 40.000,00, apenas existindo transferências de dinheiro que foram efetuadas e utilizadas na constância do casamento. O único item que poderia ser relacionado, mas não foi requerido, foi o saldo existente à data da propositura da ação de divórcio. Assim, não deverá esta verba ser relacionada por não se ter provado a existência desse dinheiro como bem a ser relacionado sendo que uma eventual usurpação ou ocultação também nunca poderia ser decidida neste processo de inventário por não ter o mesmo competência. (…)
Desta forma, determino que os bens a relacionar são apenas os que foram atrás admitidos quanto à sua inclusão, com os valores a atualizar nos termos indicados.»
O processo de inventário foi intentado em Cartório Notarial em 22 de março de 2018, durante a vigência do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de março, sendo esse o regime jurídico aplicável em virtude da sua pendência e prosseguimento de tramitação no notário aquando da entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (artigos 11.º, n.º 2 e 15.º deste diploma).
Os normativos legais do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), com pertinência para a apreciação do caso são os seguintes:
Artigo 16.º Remessa do processo para os meios comuns
1 - O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade.
2 - O notário pode ainda ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º
3 - A remessa para os meios judiciais comuns prevista no n.º 1 pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado.
(…)
6 - O notário pode autorizar, a requerimento das partes principais, o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração, em conformidade com o que vier a ser decidido, quando:
a) Ocorra demora injustificada na propositura ou julgamento da causa prejudicial;
b) A viabilidade da causa prejudicial se afigure reduzida; ou
c) Os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória.
Artigo 17.º Questões definitivamente resolvidas no inventário
1 - Sem prejuízo das competências próprias do Ministério Público, consideram-se definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados a que alude o artigo 4.º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às ações competentes.
2 - Só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes.
Artigo 32.º Reclamação contra a relação de bens
1 - Apresentada a relação de bens, todos os interessados podem, no prazo previsto no n.º 1 do artigo 30.º, reclamar contra ela:
a) Acusando a falta de bens que devam ser relacionados;
b) Requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir; ou
c) Arguindo qualquer inexatidão na descrição dos bens, que releve para a partilha.
(…)
Artigo 35.º Respostas do cabeça de casal
1 - Quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens, é o cabeça de casal notificado para, no prazo de 10 dias, relacionar os bens em falta ou dizer o que lhe oferecer sobre a matéria da reclamação.
2 - Se confessar a existência dos bens cuja falta foi invocada, o cabeça de casal procede imediatamente, ou no prazo que lhe for concedido, ao aditamento da relação de bens inicialmente apresentada, notificando-se os restantes interessados da modificação efetuada.
3 - Não se verificando a situação prevista no número anterior, são notificados os restantes interessados com legitimidade para se pronunciarem, no prazo de 15 dias, aplicando-se o disposto no n.º 2 do artigo 31.º e decidindo o notário da existência de bens e da pertinência da sua relacionação, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
4 - A existência de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a invocação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando provada, a sanção civil que se mostre adequada, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 17.º
5 - As alterações e aditamentos ordenados são sempre introduzidos na relação de bens inicialmente apresentada.
Artigo 36.º Insuficiência das provas para decidir das reclamações
1 - Quando a complexidade da matéria de facto ou de direito tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o notário abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns.
2 - No caso previsto no número anterior, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu.
3 - Pode ainda o notário, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às ações competentes, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 17.º
Fixado o quadro normativo, competirá à luz dele interpretar o excerto decisório sob escrutínio.
O cabeça de casal relacionou sob a verba nº1 a quantia de 40.000,00€ dizendo estar esta quantia na posse da interessada que a retirou da conta com o IBAN PT5 ....................03. A interessada reclamou contra a relação de bens apresentada, pugnando pela exclusão da sobredita verba n.º 1.
A Sra. Notária produziu prova e concluiu que o cabeça de casal não logrou demonstrar que a reclamante se tivesse apoderado e tenha na sua posse a sobredita quantia, pelo que a verba não deveria ser relacionada.
Tendo a questão sido decidida no confronto dos dois interessados (cabeça de casal e reclamante), após a produção de prova por estes indicada e requerida, seria de considerar-se tal questão definitivamente resolvida.
Sucede que a referência feita pela Sra. Notária de que «uma eventual usurpação ou ocultação também nunca poderia ser decidida neste processo de inventário por não ter o mesmo competência», é interpretada pelo recorrente como uma decisão de remessa das partes para os meios comuns.
Cremos não lhe assistir razão.
A atribuição de competências ao notário no âmbito do RJPI envolve a resolução de uma multiplicidade de litígios atinentes à partilha, como seja a definição da composição do acervo hereditário ou comum a partilhar, implicando a dirimição das reclamações contra a relação de bens, que necessariamente envolve a definição da natureza e titularidade de direitos sobre bens relacionados. Ocorrendo reclamação, não sendo caso de remessa para os meios comuns, o notário, após realização das diligências necessárias, deve decidir todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar.
A alegação e apreciação dos pressupostos da sonegação pode ser feita no processo de inventário, como prescreve no artigo 35º, nº 4, do RJPI segundo o qual “a existência de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando provada, a sanção civil que se mostre adequada”. (1)
Dotado de maior ou de menor litigiosidade, o processo de inventário, na sua regulamentação, não afasta obviamente a verificação de divergências entre os diversos interessados, impondo ao notário a apreciação e decisão de todas as questões, nelas se incluindo a sonegação de bens, e só legitimando a remessa para os meios comuns quando a questão pela sua complexidade fundamentadamente não pôde ser decidida nos autos de inventário.
No caso, a tramitação dos autos de inventário seguiu o rito processual próprio do conhecimento de mérito do incidente de reclamação.
Ao invés, nada no desenrolar processual autoriza a conclusão de que as partes foram remetidas para os meios comuns.
Como vem evidenciado pelo tribunal a quo, a interpretação da tramitação dos autos de inventário e do que foi ou não decidido pela Exma. Sra. Notária não poderá descurar, salvo melhor opinião, aquele que é o rito processual imposto para os casos em que o notário se exime de proferir uma decisão em virtude da sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito, resultando do artigo 16.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Processo de Inventário que o notário deverá suspender a tramitação do processo e remeter as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, identificando as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade.
Sempre se poderia replicar que àquela decisão está subentendida a remessa para os meios comuns e a determinação do prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração, em conformidade com o que viesse a ser decidido, contudo tal entendimento falece na medida em pressuporia o requerimento das partes bem como a verificação de certos pressupostos como sejam a demora injustificada na propositura ou julgamento da causa prejudicial, a viabilidade da causa prejudicial se afigurar reduzida ou se constate que os inconvenientes no diferimento da partilha superam os que derivam da sua realização como provisória.
Ora, percorridos os autos de inventários, observa-se com meridiana clareza que todo o rito processual associado à remessa das partes para os meios comuns não ocorreu, inexistindo nos autos qualquer decisão nesse sentido, notando-se que nenhum dos intervenientes notariais requereu tal remessa para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3 do sobredito regime legal.
De grande relevo apresenta-se também a certidão emitida pelo Cartório Notarial onde vem asseverado que as partes não requereram nem foram remetidas para os meios comuns, inexistindo nos autos inventariais qualquer requerimento ou decisão nesse sentido.
Donde, contrariamente ao sustentado pelo Recorrente a decisão da Srª Notária não foi no sentido de declarar e fundamentar que só podia decidir sobre os bens existentes à data da cessação dos efeitos patrimoniais do divórcio, ao invés, a Srª Notária decidiu que a verba não deveria ser relacionada por não se ter provado que a reclamante se tenha apoderado e tenha na sua posse a quantia de € 40.000,00.
Também a circunstância de o cabeça de casal ter apresentado nova relação de bens em que descreve: “Dinheiro, verba nº 1 (litigiosa)”, se mostra sem relevância dada a inocuidade de tal asserção no posterior desenrolar do inventário, que a partir de então deixou de atender à verba nº1, que não foi adjudicada a qualquer dos interessados nem tida em conta nas operações de partilha. Tudo isto sem que os interessados a tal reagissem.
Interessa neste ponto ter presente o regime de impugnação das decisões do notário, como também se sobreleva na decisão recorrida, para o qual o Regime Jurídico do Processo de Inventário define um duplo regime consoante estejam em causa:
i. As decisões a que aludem os artigos 16.º, n.º 4 (decisão que indefere o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns) e 57.º, n.º 4 (despacho determinativo da forma à partilha);
ii. Outras decisões.
Relativamente ao primeiro conjunto de decisões, a lei estabelece um regime de impugnação autónoma e imediata, mas as demais decisões, não sendo passíveis de apelação autónoma e imediata, são suscetíveis de recurso para o Tribunal da Relação na oportunidade temporal prevista no n.º 2 do artigo 76.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, i.e., aquando da interposição de recurso da decisão homologatória da partilha.
Da respetiva disciplina normativa resulta que das decisões dos notários sobre reclamações contra as relações de bens não é admissível recurso autónomo, devendo ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da sentença que homologa a partilha, tornando-se a decisão definitiva se não for objeto de reclamação nem de recurso no momento oportuno.
Como afirma Lopes Cardoso, “o caso julgado da decisão (sentença) homologatória da partilha, sobre valer por si mesmo quanto à própria partilha efectuada, solidifica os casos julgados que as decisões intercalares foram estabelecendo e, do mesmo passo, consolida as resoluções tomadas pelos interessados no decurso do inventário”. (2)
Na situação em análise, a decisão notarial tornou-se definitiva, resultando a sua definitividade da circunstância de o Recorrente dela não ter recorrido.
O alcance do caso julgado que emerge da decisão sobre a reclamação de bens, porque em termos substantivos (de mérito) dela conheceu de modo definitivo, é o de obstar ao conhecimento da pretensão que nos mesmos moldes nesta ação vem formulada.
Do exame comparativo dos processos, verifica-se que:
- as partes que intervieram no processo de inventário são as mesmas que intervêm na presente ação;
- o autor funda a sua pretensão na mesma conduta da ré que, de acordo com o autor, se terá «apoderado» da quantia de € 40.000,00 que se encontrariam depositados na conta com o IBAN PT5 ....................03, pretendendo, nestes autos, o reconhecimento que a sobredita quantia é uma poupança e integra os bens comuns do casal, sendo que os demais pedidos por si formulados pressupõem a procedência daquele primeiro pedido, concluindo-se que ocorre, de igual modo, a identidade da causa de pedir e de pedidos entre os dois processos.
Logo, ocorre a verificação da tríplice identidade de sujeitos, causa de pedir e pedidos, conformadora da exceção de caso julgado, que conduz à absolvição da instância por pressupor a repetição de uma causa.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 10.03.2022 “A exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º do CPC expressa legalmente o efeito negativo do caso julgado, cujo fundamento constitucional assenta no princípio da segurança jurídica, ínsito ao Estado de Direito, do artigo 2.º da Constituição Portuguesa, à semelhança do que sucede com o trânsito em julgado”. (3)
No mesmo sentido, e de forma elucidativa, referiu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães de 11.01.2021 que “A melhor maneira de interpretar e aplicar o instituto do caso julgado é ter presente o que dispõe o art. 580º, 2 CPC: “tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Essa aferição só pode ser feita em concreto, num raciocínio circular e concêntrico que parta dos factos concretos para cada um dos requisitos abstractos da existência do caso julgado (mesmos sujeitos, pedido e causa de pedir), e destes para a visão de conjunto que permita perceber se poderemos estar a contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” (4).
Do que se deixa exposto, bem decidiu a primeira instância considerando que a questão foi definitivamente resolvida no inventário, assim julgando verificada a exceção de caso julgado.
Nestes termos, improcede a apelação.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida
Custas pelo Recorrente.
1. Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 28.04.2016, disponível em www.dgsi.pt.
2. In «Partilhas Litigiosas», Volume III, Almedina, 2018, pag. 33.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Disponível em www.dgsi.pt.