No processo de inventário não é admitida segunda avaliação dos bens.
RELATÓRIO
AA instaurou em Cartório Notarial processo de inventário na sequência de sentença de divórcio transitada em 4-05-2016 que declarou dissolvido o seu casamento com BB.
Em 8-07-2020 veio a requerente requerer a remessa do presente inventário para o tribunal judicial competente.
Através do requerimento de 10-12-2020, o requerido concordou com essa remessa.
Por despacho de 14-12-2020 determinou-se o cumprimento ao disposto no artigo 12, n.º 2, al. b), da Lei 117/2019 de 13/09.
Por despacho de 7-05-2021 foi deferida a avaliação requerida dos bens descritos sob as verbas 117, 118 e 119, da relação de bens, bem como os prédios identificados nas alíneas c) e d) do art.º 6º da reclamação á relação de bens.
Em 2-11-2021 foi junto aos autos o relatório de peritagem.
Por requerimento de 18-11-2021 veio a requerente reclamar do relatório pericial, pedir esclarecimentos e requerer segunda perícia.
Por requerimento de 24-11-2021 veio o requerido dizer que não tem nada a objetar aos pedidos de esclarecimento apresentados pela interessada; no entanto, e apesar de verificar algumas questões pouco claras no relatório, ou de difícil compreensão, entende que as informações dele constantes são suficientes para o esclarecimento dos objetivos pretendidos, que é uma mera informação sobre valores de mercado e valores intrínsecos em funções de critérios objetivos, e não qualquer instrumento probatório como se afirma no final do requerimento da interessada.
Com a data de 3-12-2021 foi proferido o seguinte despacho:
“Avaliação
Face à divergência quanto ao valor atribuído a algumas das verbas, atendendo à vontade das partes, foi antecipada a avaliação dos bens, prevista no artigo 1114.º do Código de Processo Civil.
Note-se que não se trata de matéria que se inclua no âmbito do incidente de reclamação à relação de bens, que visa tão só definir a relação de bens a partilhar.
A antecipação tem lugar ao abrigo do princípio da adequação processual e visa a promoção de uma solução consensual para a partilha, facilitada com o conhecimento do valor a atribuir a cada bem.
Contudo, tal não significa que a avaliação dos bens assuma diferente natureza, continuando como não poderia deixar de ser a reger-se pela referida norma legal, a saber o artigo 1114.º do Código de Processo Civil.
Neste figurino do processo de inventário não há lugar à produção de prova relativamente ao valor a atribuir a cada uma das verbas, limitando-se o Tribunal a deferir e promover a avaliação dos bens, verificados os condicionalismos legais.
Não havendo lugar à produção de prova, não poderá também haver lugar a uma segunda avaliação, sob pena de não existir qualquer critério para valorizar uma em detrimento da outra.
O propósito da avaliação é o de fixar o valor dos bens, na sequência do parecer de um perito avalizado.
As partes tiveram oportunidade de indicar um perito e entenderam que deveria ser o Tribunal a indicá-lo, optando por uma avaliação singular.
Terão agora de se conformar com o resultado obtido.
Consequentemente e ao abrigo da disposição legal citada, indefiro a requerida segunda avaliação, passando as verbas avaliadas a assumir o valor decorrente da avaliação realizada.”
Inconformado com esta decisão, a requerente AA interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1- Em reclamação à relação de bens, como o Cabeça-de-Casal relacionasse, laconicamente, sob a verba 117 da relação de bens, um crédito comum/benfeitoria no valor unilateralmente atribuído de 5.000,00€, veio a Recorrente, desde logo, requerer avaliação pericial;
2- Ao abrigo do principio da celeridade, cooperação e adequação processual foram as partes convocadas para comparecerem a juízo no dia 07/05/2021;
3- Foi deferida a realização antecipada de avaliação pericial dos bens descritos sob as verbas 117, 118 e 119 da relação de bens, bem como os prédios identificados nas alíneas c) e d) do art.º 6º da reclamação à relação de bens, com concessão de prazo para formulação de quesitos;
4- Por requerimento de 11/05/2021 a Recorrente apresentou o seu questionário;
5- Por notificação expedida a 3/11/2011 a Recorrente foi notificada do teor do relatório pericial e para querendo, do mesmo reclamar ou pedir esclarecimentos a Recorrente foi notificada do teor do relatório pericial e para querendo, do mesmo reclamar ou pedir esclarecimentos;
6- À detecção de deficiências, obscuridades e contradições, mas também de inexactidões, a Recorrente veio aos autos reclamar, pedir esclarecimentos e, bem assim, requerer segunda avaliação, o que fez nos termos do seu requerimento de 18/11/2021 que aqui se tem por reproduzido.
7- Em 24/11/2021 o Cabeça-de-Casal veio dizer nada ter a objetar aos pedidos de esclarecimento apresentados pela Recorrente, convergindo na existência de algumas questões pouco claras no relatório, ou de difícil compreensão.
8- Segundo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 780/11.8TBCVL-A.C1 (António Carvalho Martins) “atento o actual quadro legal (…) constitui condição de deferimento do pedido de realização da segunda perícia a alegação fundamentada das razões de discordância relativamente aos requisitos da primeira perícia, sendo tal alegação especificada o único requisito legal do requerimento em causa a formular (…)”;
9- A questão coloca-se na articulação entre as especificidades do processo de inventário (art.º 1114º do C.P.C.) e do processo declarativo comum, mormente saber se há remissão para o regime geral da produção de prova pericial (que prevê a realização de segunda perícia);
10- No sentido da admissibilidade de segunda avaliação pericial convocam-se várias decisões dos Tribunais superiores:
a)- no Ac. Relação de Coimbra de 27/10/1998 (Artur Dias), CJ, Ano XXIII, tomo IV, pág. 44, pugnou-se pela admissibilidade de uma segunda avaliação em processo de inventário, em função da inexistência de uma opção expressa do legislador de excluir ou excepcionar;
b)- no Ac. Relação de Coimbra de 20/06/2012 (Sílvia Pires), Proc. 3796/08.8TJCBR-D.C1, pode ler-se que “o facto de se impor a avaliação por um único perito nomeado pelo tribunal não impede que se aplique o disposto na parte geral do C.P.Civil, no artigo 589º, ou seja a possibilidade de qualquer das partes requerer a realização de uma 2ª perícia, caso não concorde com os resultados da primeira (…)”;
c)- no Ac. relação de Évora de 7/10/2009 (Fernando Bento); Proc. 0/05.6TBNIS-B.E1 foi decidido que “em processo de inventário, é admissível/segunda avaliação” recuperando Acórdão da Relação do Porto em que fora decidido que “sendo a possibilidade conferida pela lei geral, no sentido da admissão das duas avaliações, haveria que ser concludente na rejeição desse modelo, se rejeição o se pretendesse” e doutrina de Lopes Cardoso:
d)- no Ac. Relação de Guimarães de 26/05/2004 (Manso Rainho), Proc. 1083/04-1.A, outrossim se decidiu que “em processo de inventário é admissível uma segunda avaliação dos bens”, recuperando, no mesmo sentido, outras decisões- Ac. RP de 28.06.01 (www.dgsi.JTRP), Ac. RC de 27.10.98 (Col Jur. 1998, 4º, pág. 44), Ac. RC de 21.1.03 (www.dgsi.JTRC), Ac. STJ de 6.6.02 (www.dgsi.JSTJ) e Ac. STJ de 6.3.03 (www.dgsi.JSTJ):
11- A Recorrente alegou, fundadamente, as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado; indicou os pontos de discordância (as inexactidões a corrigir) e justificou a necessidade de outra apreciação técnica;
12- Acresce que também reclamou contra o relatório, pedindo esclarecimentos, sendo a reclamação o meio de reação contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição (artigo 485º, do C.P.C.);
13- Não se vislumbra qualquer elemento, literal ou teleológico, conducente à eliminação da reclamação e pedido de esclarecimentos na avaliação pericial levada a cabo em inventário; a Recorrente foi até notificada para tal efeito;
14- A reclamação, pedido de esclarecimentos e segunda perícia são compatíveis entre si - a serem as vicissitudes apontadas eventualmente corrigidas, a segunda perícia (meio de reacção contra inexactidão da primeira) poderia, eventualmente, tornar-se desnecessária (art.º 487º, n.º 3, do CPC);
15- Ao indeferir, além da segunda perícia, a reclamação e pedido de esclarecimentos, o Tribunal a quo negou à parte, mais do que o contraditório, o complemento (esclarecimentos) a um meio de prova que a lei expressamente admite;
16- Atento o teor do requerimento sob apreciação, com descrição das razões de discordância do relatório pericial apresentado, estavam reunidos os requisitos para que:
a)- à presença de deficiências, obscuridades e contradições, fosse deferida a reclamação e ordenada a prestação de esclarecimentos;
b)- à presença de inexactidões, fosse ordenada a realização de uma segunda avaliação pericial;
17- “O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art.º 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios” – Acórdão da Relação de Coimbra acima citado;
18-A avaliação prevista no art.º 1114º, do C.P.C. não deixa de constituir um meio de prova, mormente nos casos em que, como no presente e conforme Ac. Relação de Coimbra de 26/04/2006, Proc. nº 4033/05, “constitui benfeitoria e não acessão a construção, por ambos os cônjuges, de uma casa no terreno de um deles” e que, no que decorre, “sobre a verba que inclui essa casa não pode haver licitações, no inventário para separação de meações, funcionando a avaliação como meio eficaz e idóneo para ajustamento do valor”;
19-O Tribunal a quo indeferindo, reclamação, pedido de esclarecimentos e segunda avaliação pericial negou à Recorrente o direito constitucionalmente garantido à prova, in casu, crítica;
20-Foram violadas as normas jurídicas acima, sucessivamente, convocadas.
São os termos em que,
e com outros que, melhores de direito, esse Venerando Tribunal suprirá, deve a decisão ora impugnada ser revogada e substituída por outra que, reconhecendo a existência de deficiências, obscuridades, e contradições no relatório pericial defira a reclamação e ordene a prestação dos solicitados esclarecimentos e, bem assim, à alegação fundamentada de inexactidão dos resultados, ordene a realização de segunda perícia oportunamente requerida pela Recorrente.
Assim se fará JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
OBJETO DO RECURSO
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se em processo de inventário é admissível uma segunda avaliação de bens.
FUNDAMENTOS
De Facto
Os factos (ocorrências processuais) a considerar são apenas os aludidos no relatório acima referido.
De Direito
No regime jurídico do processo de inventário, na reforma introduzida pelo DL nº 227/94, de 8-09, entendia-se que a remissão para o regime geral respeitante à prova pericial decorrente do artigo 1369º, do CPC, envolvia a admissibilidade de segunda avaliação, nos termos do artigo 589º[1] .
Dispunha o artigo 1369º, que a “a avaliação dos bens que integram cada uma das verbas da relação é efetuada por um único perito, nomeado pelo tribunal, aplicando-se o preceituado na parte geral do Código, com as necessárias adaptações”.
Na parte geral do código previa-se a possibilidade de a uma primeira perícia, se suceder uma segunda, que terá por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira, e com a finalidade expressa de corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (nº 3 do art.º 589º).
Para o efeito, a parte inconformada com a primeira perícia, requeria a segunda perícia, em 10 dias, expondo fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (nº 1 do art.º 589º).
Segundo o artigo 33º da Lei nº 23/2013, de 5 de março (que entrou em vigor em 2-09-2013):
1- Com a oposição ao inventário pode qualquer interessado impugnar o valor indicado pelo cabeça de casal para cada um dos bens, oferecendo o valor que se lhe afigure adequado;
2- Tendo sido impugnado o valor dos bens, a respetiva avaliação é efetuada por um único perito, nomeado pelo notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial.
Com a Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, estabeleceu-se nos artigos 1082.º a 1135.º do CPC a regulação normativa dos processos de inventário instaurados nos tribunais judiciais a partir de 1 de janeiro de 2020 (cf. artigo 15.º da referida Lei) e dos processos pendentes nessa data nos cartórios notariais que venham a ser remetidos a tribunal judicial, de harmonia com o disposto nos artigos 12.º e 13.º da mesma Lei.
A resolução da questão passa, essencialmente, pela interpretação a dar ao disposto no artigo 1114º do CPC.
Dispõe este preceito com a epígrafe “Avaliação”:
1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:
a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;
b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.
A letra do art.º 1114º do CPC que excluiu a remissão para o "preceituado na parte geral do Código" ou para o “disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial” deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusiva do regime de uma única avaliação.
Ademais, o facto de se prever que a avaliação deve ocorrer, em regra, num prazo limitado de 30 dias, constitui um elemento que converge para a ideia de que só existe uma única avaliação no processo de inventário.
De harmonia com a letra da lei como do seu espírito, entendemos que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário.
Assim sendo, a presente apelação tem de improceder, com a consequente confirmação da decisão recorrida.
(…)
DECISÃO
Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, e, em consequência, confirma-se, a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Coimbra, 10 de maio de 2022
Mário Rodrigues da Silva- relator
Cristina Neves- adjunta
Teresa Albuquerque- adjunta
Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original