AVALIAÇÃO
PROVA PERICIAL
PENHORA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
HERANÇA INDIVISA
Sumário

I - A herança, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal ou quota-parte da herança e não a bens certos e determinados.
II - Penhorados os quinhões hereditários dos executados numa herança, cujo valor depende do valor dos bens determinados nela integrados, e até por um dos herdeiros se propor adquirir um bem determinado a ela pertencente, justifica-se a sua avaliação pericial em ordem a determinar o seu valor real ou de mercado.

Texto Integral

Proc. nº 570/14.6TYVNG-AJ.P1 (3ª Secção - apelação)
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - J 5


Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
Na execução instaurada por MASSA INSOLVENTE DE T..., LDA. contra AA e BB na sequência da sentença proferida no apenso da qualificação de insolvência, aquela requereu, a 6.1.2022, a penhora de vários direitos dos executados e ainda o levantamento do sigilo fiscal, por forma a conhecer a composição do acervo de bens pertencentes a uma herança, em que os executados são interessados, para posterior penhora dos respetivos quinhões hereditários.
Por requerimento de 7.7.2021, a exequente alegou que “da relação de bens apresentada por óbito de CC [NIF ...), resultam duas verbas: a] Um jazigo de sepultura n.º ... e b) um veículo automóvel de matrícula ..-..-IF, sem desconsiderar o prédio rústico indicado, pertencente a CC e à executada (…)
Entre o mais, requereu ali:
«(…)
b) Que V. Exa. se digne, ordenar a penhora do quinhão hereditário da executada na herança com o NIF ..., por óbito de CC, composto pelo jazigo, pelo veículo automóvel e pelo prédio rústico, cujas funções de cabeça-de casal pertencem à executada BB;
c) Que V. Exa. se digne ordenar a penhora do quinhão hereditário do executado na herança com o NIF ..., por óbito de CC, composto pelo jazigo, pelo veículo automóvel e pelo prédio rústico cujas funções de cabeça-de casal pertencem à executada BB;
d) Que V. Exa. se digne ordenar a penhora da meação da executada no prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ..., do concelho de Matosinhos e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ...;
(…).»
Por despacho de 15.7.2021, foi ordenada a penhora dos quinhões hereditários.
Em 4.11.2021, DD, co-herdeira interessada na herança por óbito de CC, manifestou vontade de adquirir o quinhão hereditário dos executados no que respeita ao jazigo e ao referido prédio rústico (inscrito sob o artigo matricial ...).
Os executados manifestaram-se no sentido de que aquela interessada concretizasse a sua proposta, após o que a mesma indicou o valor de €650,00 para o jazigo.
Em 3.1.2022, a exequente, alegando falta de conhecimentos técnicos, requereu que fosse ordenada uma avaliação pericial do imóvel rústico inscrito sob o nº ..., a realizar por perito único a nomear pela Ordem dos Engenheiros Civis – Região Norte, tendo formulado o seguinte quesito:
«Qual o valor de mercado do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ..., do concelho de Matosinhos e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ...?»
Por despacho de 11.1.2022, o tribunal decidiu a questão como se segue, ipsis verbis:
«Uma vez que a penhora não incide sobre o prédio rústico identificado nos autos, indefiro, desde já, a requerida prova pericial.»
No mesmo despacho, o tribunal ordenou a penhora da meação da executada BB “no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, ..., com o número ..../..... (arts. 755º e 781º do Código de Processo Civil)”, ou seja, o prédio com a inscrição nº ....
No dia 7.2.2022, a exequente, confrontada com aquele despacho, ainda insistiu pela realização da perícia, considerando-a essencial, designadamente para efeito de atribuição do valor da venda da meação da executada no prédio rústico em causa, sobre a qual considera ter incidido a penhora.
Sobre o este requerimento, o tribunal, por despacho de 14.2.2022 referiu simplesmente: “O tribunal já se pronunciou acerca da questão em causa, nada mais havendo a determinar.

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Inconformada com a referida decisão de 11.1.2022, a exequente interpôs recurso, onde alegou com as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Por requerimento datado de 03.01.2022 a aqui recorrente requereu a realização de prova pericial ao prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ..., do concelho de Matosinhos e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ..., para aferir da justeza ou não do referido valor, e uma vez que nem a exequente nem a proponente dispõem de conhecimentos técnicos acerca do valor de mercado de imóveis, deverá ser ordenada uma avaliação do imóvel em questão.
II. A decisão de que ora se recorre indeferiu a realização da referida prova.
III. A aqui recorrente intentou a presente accão executiva no seguimento da sentença de qualificação da insolvência como culposa e condenação dos executados já transitou em julgado, sendo que até à presente data os executados não procederam ao pagamento de qualquer quantia e, nessa medida, por requerimentos de 03.01.2021e de 07.07.2021 foi requerida a penhora da meação da executada BB no prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ..., do concelho de Matosinhos e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ....
IV. O referido imóvel além de pertencer ao de cujus CC (herança com o NIF ...) pertence também à referida executada, pois foi adquirido por ambos, casados no regime da comunhão geral de bens, o que se encontra registado pela AP. ... de 1977/03/07, sendo a executada, além de herdeira legitimária de CC é meeira e, por isso, proprietária exclusiva da sua meação dos bens comuns, o que foi alegado.
V. Para aferir da justeza ou não do referido valor, uma vez que nenhuma das partes dispõem de conhecimentos técnicos acerca do valor de mercado de imóveis, deverá ser ordenada uma avaliação do imóvel em questão, requereu a realização de prova pericial ao imóvel em questão, nos termos do art. 467.º do CPC, sugerindo, desde logo perito e oferecendo os quesitos, nos termos do art. 475.º do CPC.
VI. A realização da prova em questão tem como único propósito, precisamente, saber qual o valor de mercado do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ..., do concelho de Matosinhos e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ....
VII. A Meritíssima Juiz a quo indeferiu, sem mais, a realização da referida prova pericial alegando simplesmente “(…) que a penhora não incide sobre o prédio rústico identificado nos autos, indefiro, desde já, a requerida prova pericial”, o que naturalmente não é verdade.
VIII. Acresce que a Meritíssima Juiz a quo no mesmo despacho em que indeferiu a realização da prova pericial para aferir o valor de mercado do imóvel, ordena que se “Proceda à penhora da meação da executada BB no prédio rústico descrito nas Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, ..., com o número ..../..... (arts. 755º e 781º do CPC).”
IX. Ora, a postura adoptada e a parca fundamentação oferecida é, no mínimo, contraditória.
X. A penhora sobre o referido imóvel foi requerida pela recorrente por duas vezes e veio a ser ordenada pela Meritíssima Juiz a quo pelo que não se vislumbra o motivo pelo qual foi indeferida a realização da referida perícia, muito menos com o fundamento que foi.
XI. Em 07.02.2022, crendo a recorrente que o referido indeferimento poderia constituir um mero lapso, apresentou novo requerimento expondo a questão mas, no entanto, por despacho de 14.02.2022, a Meritíssima Juiz a quo manteve a posição anterior, indicando apenas “O tribunal já se pronunciou acerca da questão em causa, nada mais havendo a determinar“.
XII. A Meritíssima Juiz a quo indefere a perícia que foi requerida cujo objecto é, precisamente, o imóvel que ordenou que fosse penhorado nos exactos termos requeridos.
XIII. A exequente, ora recorrente, cumpriu o desiderato exigido no art. 475.º do CPC.
XIV. Ao invés, e em manifesta contradição a Meritíssima Juiz a quo indeferiu a perícia, com recurso a um “fundamento” inexistente”, sem qualquer alusão à impertinência ou à arbitrariedade da perícia requerida, como se lhe impõe o art. 476.º do CPC, o que desde já se alega.
XV. Assim, não se verificando qualquer impedimento à mesma, deveria ter sido ordenada a perícia nos termos requeridos, como se impõe legalmente, por força dos referidos normativos legais e bem assim do art. 467.º, n.º 1 do CPC.
XVI. Não se logrando aproveitamento da decisão, à luz deste quid, ela é nula e de nenhum efeito, o que desde já se argui para todos os legais efeitos.
XVII. A Meritíssima Juiz a quo olvidou de fundamentar a decisão de indeferimento da requerida prova pericial.
XVIII. Indeferiu por indeferir, sem qualquer lógica uma vez que foi ordenada a penhora do imóvel, isto é, sem critério substantivo, o mesmo é dizer legal.
XIX. Verifica-se, sem dúvida, a obscuridade dos fundamentos fácticos que, per se, torna a decisão ininteligível, daí que a mesma seja nula e de nenhum efeito, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), 2.ª parte do CPC, nulidade que desde já se argui para todos os legais efeitos.
XX. A sentença recorrida é totalmente omissa relativamente à fundamentação jurídica.
XXI. O art. 607.º, n.º 3 do CPC obriga a que o julgador interprete e aplique «as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final» pelo que, de igual modo a norma do art. 615, n.º 1, al. b) determina a nulidade da sentença quando esta «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão» (destaque nosso).
XXII. Não carece de alegação adicional, uma vez que basta discorrer sobre a decisão proferida e não se encontra, em lado algum, os fundamentos de direito da decisão tomada, motivo pelo qual a mesma é nula e de nenhum efeito, nulidade que desde já se argui para todos os legais efeitos.
XXIII. Tudo o alegado demonstra o desajuste da decisão recorrida.
XXIV. Foram violados, entre outros, as normas dos arts. 195.º, 467.º, n.º 1, 475.º, 476.º, e 607.º, n.º 3 do CPC.» (sic)
Pretende, assim, a recorrente que, na procedência do recurso, seja a decisão recorrida substituída por outra que ordene a realização da prova pericial requerida.
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do atual Código de Processo Civil).
Somos chamados a decidir se:
1. A decisão é nula por falta de fundamentação e por obscuridade (art.º 615º, nº 1, al. b) e c), do Código de Processo Civil).
2. Deve ser realizada a avaliação de um bem imóvel que integra uma herança relativamente à qual foram penhorados os quinhões hereditários de dois herdeiros executados e na qual um deles é também titular da meação.
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III.
Releva essencialmente a matéria contante do relatório que antecede.
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IV.
Apreciemos então as questões que nos são colocadas.

1. Nulidade da decisão recorrida
a) Nulidade por falta de fundamentação
Alega a recorrente que que a Ex.ma Juiz não fundamentou a decisão, sendo, por isso, nula.
Nos termos do art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.” Este (como ou outros) fundamento de nulidade estende-se aos despachos (art.º 613º, nº 3, do Código de Processo Civil).
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida e na medida em que o seja, gere a sua nulidade. Tal falta, quer se trate de um mero despacho ou de uma sentença, há de revelar-se por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira.
A norma penaliza a falta absoluta de fundamentação da decisão de uma das suas questões a tratar e decidir, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação simplificada, deficiente, medíocre ou mesmo errada. Este é o entendimento praticamente uniforme na doutrina e na jurisprudência. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão.[1]
Já o Professor Alberto dos Reis escrevia[2] que «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões de facto e de Direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador. Menos exigentes devemos ser quando se trata de decisões interlocutórias, como resulta implícito do nº 2 do art.º 154º do Código de Processo Civil.
A decisão recorrida, interlocutória, negou à exequente o direito à avaliação pericial de um determinado bem; ou seja, decidiu a questão que, por ela, foi colocada ao tribunal. E fê-lo com fundamento. Resulta expresso do despacho recorrido que o indeferimento do pedido de avaliação do bem ocorre porque o tribunal entendeu que esse bem não foi objeto de penhora ou, recorrendo à expressão utilizada pelo tribunal a quo, “a penhora não incide sobre o prédio rústico identificado nos autos”.
Pode dizer-se que a fundamentação da decisão é singela, muito simples, porventura incompleta. Não deixa, porém, de constituir fundamentação e permitir, enquanto tal, à exequente, reagir na defesa de que aquele fundamento não é verdadeiro ou que, sendo-o, nem por isso o bem não pode ser objeto de penhora, sendo de admitir a avaliação pretendida. Pela decisão, a exequente ficou a conhecer o motivo do indeferimento da pretendida diligência de prova, podendo reagir fundadamente contra ele, como reagiu efetivamente por esta via de recurso.
A decisão não é nula por falta de fundamentação.

b) Nulidade por obscuridade da decisão
Dispõe a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil que a sentença (ou o despacho – art.º 613º, nº 3) é nula quando os fundamentos estão em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A decisão é ambígua quando é equívoca, imprecisa, dúbia, podendo ter mais do que um sentido, contém plurissignificações argumentativas ou decisórias, deixando o intérprete sem saber o caminho que foi racionalmente seguido na fundamentação ou qual a decisão ou deliberação efetivamente tomada; é obscura quando não é clara, é confusa, é difícil de entender, bloqueando qualquer compreensão analítica do seu substrato legal (i) ou da racionalidade do seu discernimento jurídico (ii), tendo repercussões tanto a nível declarativo (efeito imediato), como da sua consequência prática (efeito mediato).
De acordo com o referido normativo, a ambiguidade e a obscuridade só funcionam como causa de nulidade se forem de tal modo graves que tornem a decisão ininteligível, ou seja, incompreensível. Se assim não for, a decisão pode estar viciada, a merecer correção, mas o vício, pela sua menor gravidade, não justifica a nulidade.
Não vemos onde esteja, no caso, a ambiguidade ou a obscuridade. A decisão recorrida é clara e precisa, tem um sentido unívoco, sendo perfeitamente inteligível no seu fundamento, no sentido preciso de que não é determinada a avaliação de certo bem (na execução) porque esse bem não está penhorado, ou seja, porque a avaliação só seria possível caso o bem imóvel em causa tivesse sido objeto de penhora.
A discordância da recorrente com a fundamentação da decisão, não constitui este (ou outro) fundamento de nulidade do despacho. A decisão não é ininteligível por o juiz, eventualmente ter decidido erradamente.
O despacho, até pela sua simplicidade, é unívoco¸ o intérprete normal e razoável compreende-o bem, ainda que possa discordar da sua decisão. É esta, verdadeiramente, a discordância da R.
Improcede também esta causa de nulidade invocada.
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2. Pode ser avaliado um determinado bem imóvel que integra uma herança relativamente à qual não foi penhorado, mas foram penhorados os quinhões hereditários de dois herdeiros executados e na qual um deles é também titular da meação?
A herança, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio[3]. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados[4].
Como escreve Rabindranath Capelo de Sousa[5], “(…) nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha, uma vez que até aí a herança indivisa constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota-parte do património hereditário”.
O pensamento do Prof. Pereira Coelho[6] é o mesmo quando esclarece que “não se trata de uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens certos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si considerada”.
Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados[7].
Só com a realização da partilha este regime se modifica. Então, o direito de cada titular concretiza-se em elementos determinados; cada um deles deixa de ter direito sobre o objeto da herança e passa a ter direito exclusivo sobre bens determinados (sem prejuízo de poder adquirir da herança em compropriedade com outrem).
Assim, tendo sido penhorados os quinhões hereditários dos executados na herança aberta por óbito de CC, o prédio rústico inscrito sob o nº ..., integrante daquela herança, poderá vir, ou não, a preencher aqueles quinhões, ou mesmo a integrar a meação da executada BB no que foram os bens comuns do casal. O que é penhorado é a parte no direito à universalidade, e não as quotas-partes nos direitos que a compõem.
A recorrente na conclusão III do recurso, alega que “foi requerida a penhora da meação da executada BB no prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (…)”, o que efetivamente solicitou pelo requerimento de 7.7.2021, tendo sido ordenada a penhora, nesses exatos termos, por despacho de 7.7.2021.
Ora, tendo falecido um dos elementos do casal, sobrevivendo-lhe o cônjuge/viúvo, com direito à sua meação na comunhão, que o art.º 1730º, nº 1, do Código Civil, lhe atribui aquando da dissolução daquele património comum, não tem o sobrevivente direito a metade de cada bem concreto desse mesmo acervo patrimonial, mas apenas o direito ao valor de metade desse conjunto de bens. Só na partilha a sua meação nos bens comuns vai ser concretizada ou preenchida com bens determinados.
Os cônjuges são titulares de um único direito que não é divisível antes da dissolução patrimonial, pelo que não pode haver penhora ou apreensão de um suposto direito à meação em cada um dos bens comuns, por esse direito não existir enquanto tal, no património de cada um dos cônjuges. O que pode ser penhorado é a meação do cônjuge sobrevivo nos bens comuns do casal ou um determinado prédio enquanto parte integrante dos bens comuns do casal por dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges ou de apenas um deles.
Em todo o caso, independentemente da incorreção da ordem de penhora da meação da executada num prédio determinado --- quando deveria ser a penhora da própria meação da executada nos bens comuns do casal --- o prédio cuja avaliação se requer integra a massa patrimonial a partilhar, sobre a qual, como observámos, incidem os quinhões hereditários de ambos os executados e o direito à meação da executada.
Como é sabido, o valor matricial dos bens inscritos, sem prejuízo de eventual avaliação corretiva pela autoridade tributária, é da responsabilidade do interessado declarante/proprietário e serve fins de natureza fiscal. A um valor matricial mais baixo corresponde normalmente uma tributação mais reduzida, como acontece desde logo com o IMI[8]. Não é raro serem indicados pelo proprietário do bem imóvel, para efeitos matriciais fiscais, valores inferiores ao seu valor real ou de marcado, sendo recorrente estes valores divergirem entre si.
Os bens também não têm necessariamente o valor que os interessados numa partilha lhe atribuem, e os credores do de cujus ou dos seus herdeiros não podem ficar reféns desses valores, prejudicados pela sua subavaliação, seja no inventário, seja na partilha extrajudicial. Se assim fosse, estaria aberta a porta para a frustração do pagamento das dívidas do titular da herança ou dos próprios herdeiros sempre que estes o quisessem, em benefício ilegítimo e abusivo deles próprios.
Note-se que no processo de inventário para partilha de bens, estes são relacionados com indicação valor tributável (art.º 1098º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil), mas pode não ser esse o valor real ou o valor da adjudicação. Numa situação em que o credor pode exigir o pagamento imediato da dívida vencida quando seja reconhecida por todos os interessados ou esteja judicialmente reconhecida --- caso em que se procede à venda de bens da herança (ainda não partilhada) para pagamento ao credor ou se lhe adjudicam os bens (art.º 1106º, nºs 5, 6 e 7, do Código de Processo Civil) --- não desejarão os herdeiros, sem mais, que os bens sejam vendidos ou entregues ao credor, em regra, pelo valor matricial!
No processo de inventário, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens até à abertura das licitações, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído (art.º 1114º, nº 1, do Código de Processo Civil)
Também na execução há de ser encontrado o valor real dos bens ou direitos penhorados, sendo curial que podem ser avaliados antes das diligências de pagamento. Tratando-se, como se trata aqui, da penhora de quinhões em património autónomo (a herança) e podendo os notificados fazer as declarações que entendam, nos termos do art.º 781º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Civil, de modo a que se proceda à venda do património na sua totalidade, não será descabido o conhecimento prévio do seu valor, para o que poderá ser necessário fazer a sua avaliação técnica.
Não obstante o imóvel inscrito sob o nº ... não tenha sido diretamente objeto de penhora, está integrado no acervo hereditário sobre o qual incidem os direitos penhorados, não sendo possível estimar o valor destes direitos sem conhecer o valor dos bens da herança.
No caso, ocorre até a possibilidade do imóvel vir a ser adquirido por um dos interessados na partilha da herança e de haver alguma composição de interesses entre a exequente e os executados, também dependente do valor da avaliação pretendida.
Está justificada a avaliação pericial do prédio, sendo que o direito à prova, previsto no art.º 341º do Código Civil, surge, como uma consequência natural da garantia inscrita no art.º 20º, nº 1 da Constituição da República.
Com efeito, procede a apelação, devendo ser revogada a decisão recorrida e determinada a avaliação do imóvel em causa.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, devendo o tribunal a quo diligenciar pela avaliação pericial do prédio rústico identificado pela exequente MASSA INSOLVENTE DE T..., LDA., deferindo-se o seu requerimento de 3.1.2022.

Custas da apelação pela exequente apelante, por não ter havido oposição do executados ao recurso, e dele terem tirado proveito (art.º 527º, nº 1, parte final, do Código de Processo Civil).
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Porto, 19 de maio de 2022
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396. Cf. ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[2] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[3] J. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, pág.s 470 e seg.s
[4] Acórdão do STJ de 17.04.1980, in BMJ 296º-298.
[5] Lições de Direito das Sucessões, pág. 185.
[6] Direito das Sucessões, 2ª ed., 1966-1967.
[7] Acórdão deste STJ de 17.04.1980, in BMJ 296/298.
[8] Imposto Municipal sobre Imóveis.