PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
VALORES EM DÍVIDA
OPOSIÇÃO
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Sumário

Quando no procedimento especial de despejo com fundamento em falta de pagamento de rendas nos termos do artigo 1083º nº 3 do Código Civil, o senhorio não opta por peticionar também os valores que estejam em dívida, não é exigível ao inquilino que apresente oposição, a prestação de caução a que se refere o artigo 15º - F nº 3 do NRAU.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório


N…, senhorio, nos autos m.id., iniciou junto do Balcão Nacional de Arrendamento e contra K… Ldª, também nos autos m.id., procedimento especial de despejo relativo ao imóvel sito na Rua (…), com fundamento em resolução por falta de pagamento de rendas, nos termos do artigo 1083º nº 3 do Código Civil, relativamente ao qual procedimento a requerida veio deduzir oposição, alinhando previamente quanto à prestação de caução a que se refere o artigo 15.º-F nº 3 da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro (NRAU):
“(…) 3.º- A prestação de caução tem em vista salvaguardar o pagamento das rendas em falta, ou seja, garantir o direito da requerente ao recebimento das rendas em dívida.
(…) 5.º- Assim, sendo a prestação de caução uma forma de acautelar o direito do senhorio a receber as rendas em dívida, a quantia da mesma reverterá a final (e se o pedido de pagamento deduzido pelo senhorio proceder) para aquele.
6.º- Sucede que, a requerente optou por não deduzir pedido de pagamento das rendas em dívida.
7.º- E, por isso, a requerente nunca poderia vir a receber a caução a prestar pela requerida pelo facto de não ter deduzido o pagamento das rendas em dívida.
(…) 9.º- Assim, tendo em conta a finalidade da necessidade da prestação de caução – pagamento das rendas em dívida – a requerida não se encontra obrigada a prestar caução nos termos do referido preceito legal.
10.º- Mesmo que assim não se entenda (…) sempre se dirá que a requerida encontra-se disponível para prestar caução mediante hipoteca, caso venha a ser considerado que sobre si impede tal obrigação.
11.º- Acresce ainda que sendo a caução uma garantia de cumprimento, poderá ser prestada por qualquer uma das formas previstas na lei.
(…)
14.º- De notar que o disposto no artigo 15.º-F, nº 3 apenas refere o pagamento de caução, não prevendo qual a forma de se efectuar tal pagamento.
15.º- E, em tudo o que não esteja previsto no NRAU quanto ao procedimento especial de despejo deverá aplicar-se subsidiariamente as regras do Código de Processo Civil.
(…)
18.º- Pelo que, encontram-se reunidos os pressupostos legais para a prestação de caução mediante constituição de hipoteca a favor da requerente nos seguintes termos:
- valor da caução: €91.499,34 – valor correspondente ao valor máximo de seis meses de renda;
- imóvel: prédio rústico situado em (…)
19.º- O imóvel identificado no artigo antecedente encontra-se livre de ónus ou encargos (…)
20.º- De outro lado, apesar do valor patrimonial do imóvel identificado no artigo antecedente ser apenas de €36,96, no dia 21 de Dezembro de 2017 o referido imóvel foi avaliado nos seguintes termos:
Valor Actual do Imóvel: €1.479.900,00
Valor Após Obras do Imóvel: €4.706.200,00
(…)
21.º- Pelo que, a caução ora proposta constitui meio idóneo”.
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Remetidos os autos à distribuição e após pronúncia, a convite, da Autora sobre a questão da caução, veio a ser proferido em 20.12.2021 despacho judicial versando sobre a obrigatoriedade de prestar caução e o modo da sua prestação, no qual se discorreu:

“Resulta do artigo 15.º F n.ºs 3 e 4 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro: 3- Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça. 4- Não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida

Começando pela questão de saber se, no caso sub judice, a Requerida se encontra obrigada a prestar caução, e em face da citada norma legal, a resposta tem, necessariamente, de ser afirmativa.

Com efeito, o artigo 1083.º n.º 3 e 4 do Código Civil, para o qual remete a citada norma legal, incide sobre dois dos fundamentos da resolução do contrato de arrendamento isto é a “a mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública (…)” e a constituição em “mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato (…)”. 
Ou seja, nos termos do artigo 15.º F n.º 3, não releva (de todo) a circunstância de a Requerente não ter peticionado, paralelamente à resolução do contrato de arrendamento dos autos e do consequente despejo, também a condenação da Requerida no pagamento das rendas em dívida: o que importa é que o pedido de resolução desse mesmo contrato se prenda (ou seja fundado) com a falta do pagamento das rendas em dívida, o que sucede no caso dos autos. 
Pelo que, tendo em conta os termos do litígio, se impõe concluir que ao abrigo do referido normativo (artigo 15.º F n. º 3 do NRAU), a Requerida se encontra adstrita ao pagamento da caução correspondente a 6 rendas mensais.
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Quanto à forma da prestação da caução, podemos também avançar, que não assiste, igualmente, razão à Requerida. De facto, embora do artigo 623.º do Código Civil resulte que a prestação de caução possa assumir diversas formas -  nas quais se inclui a hipoteca (como refere a Requerida) - importa ter presente que estes autos se reportam a um procedimento especial de despejo, com todas as especificidades que dai decorrem. Mais concretamente, não nos podemos olvidar que subjacente a este procedimento está uma ideia de simplificação e celeridade processual, tendo o legislador procurado munir os proprietários de mecanismos processuais ágeis e rápidos com vista à tutela dos seus interesses (o que, aliás, implicou que a sua tramitação assuma uma natureza urgente – cfr. artigo 15.º S n.º 8 do NRAU) 

Esta ideia de simplificação e celeridade processual, que presidiu à criação deste procedimento especial, não se compadece, naturalmente, com a prestação da caução, exigida pelo artigo 15.º F n. º3, através de hipoteca, na medida em que a avaliação da idoneidade desse meio para garantir o pagamento das rendas (ainda para mais no caso sub judice em que esse valor ascende a cerca de €90.000,00) trará, com elevada probabilidade, significativas demoras ao processo.
Por exemplo, face à prova documental carreada para os autos pela Requerida, e tendo em conta a posição já assumida pela Requerente, será provavelmente necessário efetuar nova avaliação patrimonial independente do imóvel ou notificar a primeira para juntar documentação adicional. 
A isto acresce dizer que o elemento literal do artigo 15.º F do NRAU remete-nos, indubitavelmente, para a ideia de que a caução, no âmbito deste procedimento especial, deve ser efetivada, unicamente, através da entrega ou depósito de uma quantia pecuniária (“ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso (...))”.  
Isto contrariamente ao que sucede noutros casos em que a lei fala em “prestação de caução”, e admite as várias formas legalmente previstas no artigo 623.º do CC para o efeito (veja-se, designadamente, e neste sentido, os artigos 368.º n. º3, 647.º n. º4, 694.º, 702.º, 906.º, todos do CPC). 
Ou seja, da análise do referido artigo 15.º F n. º3, que constitui uma norma especial, constatamos que o legislador pretendeu claramente restringir a forma pela qual a caução pode e deve ser prestada neste tipo de processo que, como já se disse, deve ser tramitado de forma célere e simplificada. 
O que é facilmente verificável se atendermos ao disposto da portaria n.º 9/2013 que “regulamenta vários aspetos do procedimento especial de despejo” e que prevê, no seu artigo 10.º que “O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança (…).
Assim, prescrevendo a lei o modo concreto mediante o qual deve ser cumprido o pagamento de caução imposto pelo artigo 15.ºF n. º3 do NRAU, julga-se ser inadmissível que a Requerida o faça através de hipoteca, devendo, no prazo de 10 dias, proceder ao depósito do valor da caução nos termos legalmente determinados (cfr. artigos 15.º F n.º 3 da Lei 6/2006, 10.º da portaria n. º 9/2013 e 17.º da Portaria n.º 419 –A/2009 sob pena de a oposição por si apresentada ser dada sem efeito.
Pelo que, e em face do exposto, notifica-se a Requerida para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento nos autos do valor de 6 rendas mensais a título de caução, através dos meios legalmente previstos para o efeito, sob pena de, não o fazendo, a oposição com ref.ª 1164513 não produzir qualquer efeito”.
Notificada, a Requerida, ressalvando o seu desacordo, veio requerer o pagamento da caução em três prestações, por não ter disponibilidade financeira para o pagamento por uma só vez.
Veio entretanto interposto recurso, pela Requerida, do despacho acima transcrito, o qual não foi admitido por se considerar que do despacho não cabia apelação autónoma.

No mesmo despacho de 14.2.2022, em que se não admitiu o recurso, o tribunal passou a considerar e decidir:
Tal como resulta do processado, a Ré devidamente notificada para proceder ao pagamento da caução, nada fez.
Assim sendo, constituindo a prestação de caução uma condição de admissibilidade da oposição ao procedimento especial de despejo (cf. artigo 15.º-F n.º 3 do NRAU), tem-se por não escrita a contestação deduzida em juízo, nos termos do disposto no artigo 15.º F n.º 4 do NRAU.
Consequentemente, converto o requerimento de despejo em titulo para desocupação do locado, nos termos do disposto no artigo 15.º-E  n.º1/a) e 15.º-H n.º 3, 1.ª parte, do NRAU.
Custas a cargo da Ré – artigo 527.º do C.P.C..
Valor da ação: € 457 496,70”.
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Inconformada, a Ré interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1ª-Vem o presente recurso do douto despacho que ordenou que a requerida procedesse, no prazo de 10 dias, ao pagamento nos autos do valor de 6 rendas mensais a título de caução, através dos meios legalmente previstos para o efeito, sob pena de, não o fazendo, a oposição com ref.ª 1164513 não produzir qualquer efeito. E,
2ª-Também do douto despacho que considerou como não escrita a oposição deduzida e converteu o requerimento de despejo em título para desocupação do locado.
3ª-A prestação de caução constitui uma forma de acautelar o direito do senhorio a receber as rendas em dívida, na medida em que a quantia da mesma reverterá a final para aquele quando tiver sido peticionado o pagamento das rendas em dívida.
4ª-A remissão feita no artigo 15.º-F, nº 3 do NRAU para o artigo 1083.º do Código Civil deve ser interpretada no sentido de ser devida a caução quando o senhorio deduz pedido de pagamento das rendas em dívida.
5ª-Sucede que, a requerente, ora apelada, optou por não deduzir pedido de pagamento das rendas em dívida.
6ª-De outro lado ainda, o disposto no artigo 15°- F nºs 3 e 4 do NRAU constitui um forte condicionamento ao direito de defesa dos interesses do inquilino.
7ª-Isto porque para além do inquilino ter de prestar caução, com o regime imposto pelo NRAU a iniciativa do contencioso também cabe ao inquilino.
8ª-Na verdade, com a comunicação da resolução do contrato por parte do senhorio, é ao inquilino que cabe a iniciativa de, em sede judicial, impedir a formação de um título executivo que serve de base à entrega do locado.
9ª-Este regime constitui uma inversão total dos princípios mais básicos que consistem em fazer recair o ónus de alegação e da correspondente prova sobre quem invoca um direito, conforme resulta do disposto no artigo 342º do Código Civil.
10ª-Tendo em conta a finalidade da necessidade da prestação de caução – pagamento das rendas em dívida – a requerida não se encontra obrigada a prestar caução nos termos do referido preceito legal.
11ª-Acresce ainda que, a gestão do processo não deverá deixar de ter em conta os princípios básicos do processo civil, tais como o princípio da igualdade de armas e o princípio da adequação formal.
12ª-O princípio da igualdade de armas implica que ambas as partes estejam numa situação de paridade.
13ª-Vedar o direito de defesa da requerida por não ter feito o depósito da caução constitui uma violação do princípio da igualdade de armas. Além do mais,
14ª-No caso em apreço, a ora apelante demonstrou a sua intenção de prestar caução através de constituição de hipoteca a favor da requerente, indicando expressamente o imóvel sobre o qual a mesma deveria recair.
15ª-Pelo que, ao princípio da adequação formal deve a constituição de hipoteca ser considerada a forma adequada a proteger os interesses da requerente.
16ª-Isto porque a ora apelante continua a pagar as rendas mensalmente, tendo aceitado que se encontra em dívida o montante das rendas invocadas pela requerente, havendo apenas divergência quanto ao direito de resolução do contrato.
17ª-Sendo a caução uma garantia de cumprimento, poderá ser prestada por qualquer uma das formas previstas na lei, nos termos do artigo 623º do Código Civil.
18ª-Ao procedimento especial de despejo deverá aplicar-se subsidiariamente as regras do Código de Processo Civil.
19ª-Não colhe o facto de que a celeridade do procedimento especial de despejo não se compadecer com a prestação da caução através de hipoteca porque a constituição desta pode ser feita através de acto simplificado e com registo online, o que não iria retardar a tramitação do procedimento especial de despejo.
20ª-Pelo que, encontram-se reunidos os pressupostos legais para a prestação de caução mediante constituição de hipoteca a favor da requerente nos seguintes termos: - valor da caução: €91.499,34 – valor correspondente ao valor máximo de seis meses de renda; - imóvel: prédio rústico situado em (…) com a área total de 13600m2, (…) inscrito a favor da requerida na (…) Conservatória do Registo Predial de Sintra.
21ª-Sendo a caução proposta pela requerida, ora apelante, meio idóneo.
22ª-E, mesmo que assim não fosse entendido (no que não se concede) sempre se dirá que devia ter sido admitido o pagamento da caução em prestações, de forma a encontrar um equilíbrio entre os interesses do senhorio e da inquilina.
23ª-Os doutos despachos interpretaram erradamente o disposto no artigo 15.º-F, nº 3 do NRAU e violaram os artigos 4º, 547º, 911º, ambos do CPC, 623º do Código Civil e artigo 33º do Regulamento das Custas Judiciais.
24ª-Os doutos despachos recorridos ao não aceitar a prestação de caução pela recorrida de forma alguma (através de pagamento em prestações ou por meio de hipoteca) são manifestamente desproporcionais, excessivos e injustificadamente redutores da extensão e alcance do conteúdo essencial do direito fundamental que consta do artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental e, por isso, em patente violação do disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da mesma, resultando dos mesmos uma interpretação materialmente inconstitucional do artigo 15.º-F, nº 3 do NRAU.
25ª-Deverá, portanto, conceder-se provimento ao recurso, revogando-se os doutos despachos recorridos.
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Contra-alegou a Requerida, sustentando o despacho recorrido.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.–Direito

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - as questões a decidir são:
- Saber se a recorrente não tinha que prestar a caução a que alude o nº 3 do artigo 15º - F do NRAU porque a recorrida não deduziu pedido de pagamento de rendas em dívida;
- Saber se a recorrente devia ter sido admitida a prestar a caução por hipoteca ou em prestações;
- Saber se os despachos recorridos, ao não aceitarem a prestação de caução através de pagamento em prestações ou por meio de hipoteca “são manifestamente desproporcionais, excessivos e injustificadamente redutores da extensão e alcance do conteúdo essencial do direito fundamental que consta do artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental e, por isso, em patente violação do disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da mesma, resultando dos mesmos uma interpretação materialmente inconstitucional do artigo 15.º-F, nº 3 do NRAU”.
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III.–Matéria de facto

A constante do relatório supra.
Acresce que, como resulta do requerimento inicial de procedimento e dos documentos que o instruíram, o arrendamento é para fins não habitacionais e o valor mensal da renda foi indicado como sendo €15.249,89, e o valor de rendas em dívida foi indicado como sendo €158.589,67.
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IV.–Apreciação

Dispõe o artigo 15º do NRAU:
1- O procedimento especial de despejo é um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes.
(…) 2- Apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo independentemente do fim a que se destina o arrendamento:               (…)
e)-Em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, bem como, quando aplicável, do comprovativo, emitido pela autoridade competente, da oposição à realização da obra;
(…)               (…)
5- Quando haja lugar a procedimento especial de despejo, o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário pode ser deduzido cumulativamente com o pedido de despejo no âmbito do referido procedimento desde que tenha sido comunicado ao arrendatário o montante em dívida, salvo se previamente tiver sido intentada ação executiva para os efeitos previstos no artigo anterior.
6- No caso de desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, o procedimento especial de despejo segue os demais trâmites legalmente previstos quanto ao pedido de desocupação do locado.
7-Sempre que os autos sejam distribuídos, o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas e, independentemente de ter sido requerida, sobre a autorização de entrada no domicílio.
8-As rendas que se forem vencendo na pendência do procedimento especial de despejo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais”.

Dispõe o artigo 15º - E do mesmo diploma que:
1- O BNA converte o requerimento de despejo em título para desocupação do locado se:

a)- Depois de notificado, o requerido não deduzir oposição no respetivo prazo;

b)- A oposição se tiver por não deduzida nos termos do disposto no n.º 4 do artigo seguinte;

c)- Na pendência do procedimento especial de despejo, o requerido não proceder ao pagamento ou depósito das rendas que se forem vencendo, nos termos previstos no n.º 8 do artigo 15.º.
(…)”.

Dispõe o artigo 15º - F do mesmo regime, que:
1- O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de 15 dias a contar da sua notificação.
2- A oposição não carece de forma articulada, devendo ser apresentada no BNA apenas por via eletrónica, com menção da existência do mandato e do domicílio profissional do mandatário, sob pena de pagamento imediato de uma multa no valor de 2 unidades de conta processuais.
3- Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
4- Não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida.
(…)”.

Dispõe por seu turno o artigo 1083º do Código Civil: 
1- Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2- É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio:
a)-A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio;
b)- A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública;
c)- O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio;
d)- O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º;
e)- A cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio.
3- É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.
4- É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.
(…)
6- No caso previsto no n.º 4, o senhorio apenas pode resolver o contrato se tiver informado o arrendatário, por carta registada com aviso de receção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos”.

Com este enquadramento jurídico, põe-se a questão que a recorrente formula na conclusão 4ª do recurso: “A remissão feita no artigo 15.º-F, nº 3 do NRAU para o artigo 1083.º do Código Civil deve ser interpretada no sentido de ser devida a caução quando o senhorio deduz pedido de pagamento das rendas em dívida”?

O tribunal recorrido respondeu que não, respondeu que em qualquer caso dessa remissão é devido o pagamento da caução. Com efeito, para o tribunal de primeiro grau, se o nº 3 do artigo 1083º se liga com a falta de pagamento de rendas, já o nº 4 se refere à ocorrência repetida de mora, sem implicar com a existência efectiva de rendas em dívida, pelo que, se bem interpretamos, ao legislador seria indiferente, como pressuposto da necessidade de prestação de caução, que existissem rendas em dívida ou não.

Se seguirmos por esta interpretação, se extrairmos as suas consequências, então a caução não serve, segundo a perspectiva do legislador, a garantir o pagamento de coisa nenhuma, tornando-se num ónus adicional de desfavor para o inquilino no acesso à justiça para se defender da pretensão de despejo formulada pelo senhorio, que trata de retirar do mercado de arrendamento com a maior brevidade todo o inquilino que não seja claramente pobre, assim agilizando o mercado a favor – perdoe-se a simplicidade da explicação – do capital estrangeiro, segundo o que foi a lógica das imposições resultantes do Memorando de Entendimento de Maio de 2011, das quais resultou a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, e no seu desenvolvimento, o DL nº 1/2013 de 7 de Janeiro.

Porém, neste sentido de (que a caução representa um) ónus duro e largo imposto, em última instância, pelos credores internacionais, então não faz sentido que o legislador consequente às imposições a não tivesse previsto como condição de admissibilidade da oposição para qualquer que fosse o fundamento pelo qual o despejo fosse pedido pelo senhorio, imaginemos por exemplo o caso previsto no nº 2 al. b) do artigo 1083º do Código Civil, acima transcrito.

Ora, o grande ponto, base ou fundamento do capitalismo moderno e até ao que se tinha visto na época, é a circulação de capital, e que o mesmo não fique improdutivo ou estagnado sob, para o que aqui nos importa, o peso de estruturas de defesa formais, seja o funcionamento da justiça. Em termos muito simples, que o capital investido em imobiliário para arrendamento não fique sem reprodução por causa dum inquilino que não tem dinheiro para pagar as rendas (ou que é sistemático pagador atrasado) e que ainda consegue arrastar, por razões formais e junto dos tribunais, a sua ocupação do locado, impedindo o mesmo de ser recolocado no mercado de arrendamento.

A partir desta lógica, torna-se claro que o propósito não era, nem havia necessidade que fosse, o da colocação permanente do inquilino relativamente ao qual houvesse qualquer motivo que fosse para o despejar, numa posição francamente desfavorável, na comparação com o senhorio, no acesso à justiça e ao direito de se defender. Claramente desfavorável porque é sabido que na mesma época histórica a fasquia de infortúnio qualificativo para apoio judiciário baixou, e em consequência, como lhe chamámos antes, todos os inquilinos não manifestamente pobres estariam então onerados com o pagamento de seis meses de renda para se defenderem dum despejo que lhes fosse pedido, qualquer que fosse o fundamento, voltamos a dizer. Situação que como é manifesto, seria completamente contrária à igualdade e à proporcionalidade previstas na Constituição.

Por esta razão, mesmo historicamente e teleologicamente (do contexto do passado para explicar o que se quis para o futuro) fica claro que a necessidade de prestação de caução está relacionada exclusivamente com a questão das dívidas do inquilino ao senhorio, e neste sentido retoma proporcionalidade do meio visado para obtenção do resultado e não fere a igualdade.

Por outro lado, chegamos a este mesmo afunilamento (de que a prestação de caução está relacionada com a existência de dívida) quando sabemos, ou temos de presumir, que o legislador sabe usar a melhor linguagem e que não desconhece o sentido jurídico das palavras, estranho sendo o uso da palavra “caução” quando com ela não se quis referir uma garantia de pagamento.

No mesmo sentido ajuda pensar nas palavras literalmente usadas: “nos casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas”.

Se era para ser ónus desfavorecedor, não se compreende que não fosse fixado em valor a obter por referência – por exemplo, em todo o caso de oposição ao procedimento especial de despejo o inquilino tem de pagar um valor correspondente a seis meses de renda – e ao invés que o legislador tivesse usado a expressão “no valor (…) em atraso”.

Ainda assim, ponderemos, como o tribunal recorrido, se no campo restrito dos fundamentos de despejo relacionados com a mora (mais ou menos prolongada) faz sentido exigir o pagamento de caução mesmo que o senhorio não tenha formulado tal pedido no procedimento.
           
O propósito de impedir a utilização “abusiva” digamos, dum sistema de justiça lento, a quem não tem capacidade económica para manter o contrato pode ter levado o legislador a um desencorajamento “em qualquer caso” (desses relacionados com rendas em atraso e mora – nº 3 e 4).

Acreditamos em primeiro lugar que a referência literal ao valor de rendas em atraso (e note-se que no caso da mora de 8 dias que se repete, pode, em concreto, quando se recorre ao procedimento do artigo 15º e seguintes do NRAU haver valores em atraso) liga a caução ao valor em atraso. Onde, em que lugar jurídico, na perspectiva do legislador, estará o valor em atraso?
Esse valor em atraso pode estar numa (miríade, mas pelo menos em) três situações diferentes: o senhorio já recorreu à execução, prevalecendo-se do título consagrado no artigo 14º - A do NRAU, o senhorio pede o valor no procedimento especial conjuntamente com o despejo, o senhorio não pede, de todo, o valor (suponhamos neste último caso, que não lhe interessa gastar mais meios atrás dum inquilino que ele sabe que não tem nada com que lhe pagar, ou suponhamos que o senhorio não pede porque já recebeu).

Do caso do meio não precisamos falar. No primeiro caso, a caução no valor das rendas em atraso até ao máximo de seis será um bónus ao senhorio, a acrescer à sua possibilidade de executar o valor integral da dívida, ou será que o senhorio deve (quando simultaneamente estiver a pensar recorrer ao procedimento especial de despejo) indicar como valor da execução “X – 6 meses de renda”? Ou o legislador era claro e dizia sem sombra de dúvida que o senhorio, a partir dos bons ventos da Troika, tinha direito a um prémio sempre que o inquilino se resolvesse opor ao despejo com fundamento em falta de pagamento de rendas, ou não sendo assim, podemos chegar a uma situação de enriquecimento sem causa, o senhorio obtendo todo o valor em dívida na execução que penda ao mesmo tempo que o procedimento especial de despejo, e ainda mais seis meses de rendas. Ou o legislador previu, e não se vê onde, que neste caso o tribunal deveria certificar-se antes de entregar a caução ao senhorio, se ele já havia recebido os valores em dívida.

Do caso final, mais evidente se torna: - se o senhorio não pede, porque não quer, para que é que o legislador prevê um mecanismo que lhe vai dar aquilo que ele não quer? Se o senhorio não pede porque já recebeu, então entra de novo o elemento literal com uma significação de descoberta mais plena, que é dizer-se que, o valor da caução deve corresponder ao dos valores em dívida que, tendo sido pagos, serão necessariamente menores do que seis meses: - serão zero meses, logo a caução corresponderá a zero.

Quer isto dizer que, se bem interpretamos o nº 3 do artigo 15º F do NRAU, a caução só é devida se o credor manifestar nos autos de procedimento especial de despejo a sua vontade em receber os valores de rendas, encargos ou despesas em atraso, isto é, se tiver recorrido à faculdade prevista no artigo 15º nº 5 do NRAU.

Procede assim o recurso nesta parte, devendo revogar-se o despacho que determinou o pagamento da caução como condição de admissibilidade da oposição e subsequentemente o despacho que, em face da não prestação, decidiu não admitir a oposição e converter o requerimento de despejo em titulo para desocupação do locado, e em consequência determinar-se o prosseguimento dos autos para o conhecimento da oposição apresentada.

Fica prejudica a apreciação das restantes questões.

Tendo decaído nos recursos, é a recorrida responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

V.–Decisão

Nos termos supra expostos, acordam conceder provimento ao recurso interposto do despacho que ordenou a notificação da requerida para prestação de caução e ao recurso interposto do despacho que, em face da não prestação de caução, converteu o requerimento inicial em título para a desocupação do locado, e em consequência revogam os despachos recorridos, determinando ao tribunal recorrido o prosseguimento dos autos, desde logo com o conhecimento da oposição deduzida.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.



Lisboa, 12 de Maio de 2022



Eduardo Petersen Silva
Manuel Rodrigues
Ana Paula Albarran Carvalho



Sumário (a que se refere o artigo 663º nº 7 do CPC): supra transcrito

              
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator