SENTENÇA PENAL
FACTOS RELEVANTES
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE
DECISÃO FINAL
Sumário

I. Em consonância com o disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 369.º, todos do Código de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar da sentença, traduz-se na tomada de posição por parte do Tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá que recair, incluindo os que, embora não fazendo parte da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revistam relevância para a decisão.
II. E a enumeração factual, da forma como a lei a exige, assume a importância de evidenciar os factos que foram efetivamente considerados e apreciados pelo Tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.
III. Tendo o Senhor Juiz que elaborou a sentença dado a conhecer a versão dos acontecimentos apresentada pelo arguido e explicado as razões por que não a aceitou, não reveste qualquer utilidade a sua inserção entre os factos não provados.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 251/20.1PCSTB, do Juízo Local Criminal de Setúbal [Juiz 3] da Comarca de Setúbal, o Ministério Público acusou
AAA, divorciado, (…) nascido a 3 de setembro de 1973 (…), pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal.

O Arguido apresentou contestação escrita com o seguinte teor [transcrição]:
«Oferecendo o merecimento dos autos, e tudo o mais que possa resultar em sua defesa da audiência de discussão e julgamento.»

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada a 30 de novembro de 2021, foi, entre o mais, decidido:
«a) Condeno o arguido AAA como autor material de um (1) crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 374.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de um (1) ano e um (1) mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período de um (1) ano e um (1) mês, a contar da data do trânsito em julgado desta sentença.
b) Mais condeno o arguido no pagamento dos encargos do processo [art. 514.º, n.º 1 do C.P.P.], fixando-se a taxa de justiça em duas (2) UC – [artigos 374.º, n.º 4, e 513.º, n.º 1 do C.P.P., e art. 8.º, n.º 9 do R.C.P. e tabela III a este anexa]
(…)»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«A. A sentença proferida pelo tribunal a quo padece de nulidade.
B. Em primeiro lugar, porque não foi tomada pelo tribunal uma posição sobre todos os factos relevantes para a boa decisão da causa, como impõe o artigo 374.º, n.º 2, do CPP.
C. De acordo com o artigo 368.º, n.º 2, os factos que relevam são, nomeadamente, os importantes para as questões de saber se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, e se o arguido atuou com culpa.
D. Tendo o ARGUIDO e as testemunhas (…) e (…) apresentado uma versão inteiramente dos factos totalmente distinta da Acusação, impunha-se uma tomada de posição sobre os mesmos.
E. Pelo que está a Sentença inquinada de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, por não conter a completa enumeração dos factos provados e não provados, exigida no artigo 374.º, n.º 2.
F. Em segundo lugar, na sentença recorrida, não existe qualquer fundamentação para o facto de BBB e CCC, as queixosas, se enquadrarem no conceito de “funcionário” plasmado no artigo 347.º do Código Penal.
G. De facto, são apenas referidas na mesma generalidades sobre este conceito, não sendo nunca explicitado por que motivo se subsume a situação das vítimas do crime por que vem o ARGUIDO condenado a esta previsão.
H. Assim, não fica clara, nem subentendida, a relação entre os factos e o Direito, não podendo o ARGUIDO compreender qual a razão subjacente à sua condenação, nesse ponto.
I. A falta de fundamentação da sentença quanto às razões para o preenchimento do tipo plasmado no artigo 347.º do Código Penal impossibilita ao arguido a compreensibilidade e sindicabilidade da sentença nesta parte, ferindo-a de nulidade.
J. Estando, também, a sentença inquinada de nulidade por falta de fundamentação, por não tornar inteligíveis as razões de Direito que fundamentam a decisão, nos termos dos artigos artigo 379.º, n.º 1, alínea a), primeira parte e 374.º, n.º 2 do CPP.
K. Além disto, a sentença padece ainda de vícios no julgamento da matéria de facto.
L. Desde logo, decorre da intervenção do Meritíssimo Juiz do tribunal a quo que o mesmo parecia ter efetuado um juízo acerca da factualidade em causa antes da produção integral de prova, como decorre das declarações do ARGUIDO (prestadas no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 13:41 a 13:54, 15:04 a 15:13 e 15:21 a 15:43) e das declarações finais do mesmo (feitas no dia 23/11/2021, com início às 11:10:07 e fim às 11:17:18 (00:07:11), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 02:42 a 03:14).
M. Os factos constantes do n.º 1 dos factos provados estão parcialmente incorretos.
N. Decorre das declarações do ARGUIDO (prestadas no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 07:40 a 08:47 e 09:18 a 09:43) e do depoimento da testemunha (…) (ouvida no dia 23/11/2021, com início às 10:06:30 e fim às10:35:12 (00:28:42), cfr. ficheiro áudio 20211123100631_3655132_2871798, minutos 07:42 a 08:46) que o arguido esteve, no dia 14 de Março de 2020, entre as 12h00 e as 12h25, o arguido entre o patamar do oitavo andar e o do nono, junto à morada (…).
O. Este facto não é contrariado por outra prova testemunhal, e decorrem de declarações coerentes entre si, e coerentes em si mesmas, não existindo razões para que exista dúvida acerca da sua veracidade.
P. No n.º 1 dos factos provados, deverá passar a ler-se “No dia 14 de Março de 2020, entre as 12h00 e as 12h25, o arguido estava entre o patamar do oitavo andar e o do nono, junto à morada sita na Rua (…), então, sede da empresa “… Lda.” e da qual era o legal representante, para receber notificação judicial avulsa, no âmbito do P.º 1154/20.5T8STV.”
Q. Os factos constantes do n.º 2 dos factos provados estão, também, parcialmente incorretos.
R. Retira-se do aviso com dia e hora certos, cuja cópia consta dos presentes autos, com a ref.ª 5030242, de 24/03/2020, que a mencionada notificação seria feita no dia 14/03/2020, entre as 12h00 e as 12h15.
S. E do facto n.º 1 do elenco dos que foram dados como provados na sentença recorrida, bem como do auto de notícia, com cópia junta aos presentes autos no documento com ref.ª 5030242, que apenas ficou provado que os factos se passaram após as 12h25, tendo, portanto, BBB e CCC chegado ao local descrito após as 12h25, o que é depois das 12h15, fim da janela horária em que a notificação deveria ser feita.
T. Conforme o ofício n.º 89898142, o documento de identificação do agente de execução n.º 8wxEkGETXD07, de 16/03/2020, e o aviso para dia e hora certos que agenda o momento da feitura da referida notificação, todos com cópia junta aos presentes autos no documento com ref.ª 5030242, apenas se solicitou a notificação a BBB, constando apenas o seu nome profissional, BBB, no aviso a que o ARGUIDO havia tido acesso, o que é corroborado pelo depoimento de CCC (ouvida no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 14:24 a 14:30).
U. E resulta dos depoimentos das testemunhas BBB (ouvida no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 00:25 a 00:33) e CCC, (ouvida no dia 16/11/2021, com início às 11:13:29 e fim às 11:36:14 (00:22:45), cfr. ficheiro áudio 20211116111330_3655132_2871798, minutos 04:43 a 04:50) bem como das declarações prestadas pelo ARGUIDO (no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 11:36 a 12:36) que o ARGUIDO e BBB não se conheciam anteriormente aos factos ora em questão.
V. Pelo que não haveria forma de o ARGUIDO saber que era BBB que chegava,
W. Quanto a CCC, de acordo com o que se conclui das declarações do ARGUIDO (prestadas no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 17:15 a 18:07), do depoimento de BBB (prestado no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 14:15 a 14:22) e do de CCC (prestado no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 12:38 a 13:29), que não tinha o ARGUIDO um ângulo de visibilidade que lhe permitisse saber que era dela que se tratava.
X. Pelo que não existia forma de o ARGUIDO se aperceber que eram BBB e CCC que chegavam.
Y. Também não existia forma de o ARGUIDO saber que alguma das duas o iria notificar, visto que chegaram fora da hora definida para a notificação, o mesmo não tinha conhecimento de qual o aspeto físico de BBB, que o iria notificar
Z. Além disso, a única explicação avançada para que ele tivesse este conhecimento é dada pelo próprio Tribunal, que supõe terem BBB e CCC tocado à campainha do notificando, sendo que CCC não consegue fornecer qualquer característica da pessoa que atende essa campainha (cf. depoimento do dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 13:35 a 15:48 e 16:01 a 17:00), e que DDD afirma que ninguém terá tocado à campainha da residência onde se encontrava, que era a morada em que o ARGUIDO iria ser notificado (cf. depoimento do dia 23/11/2021, com início às 09:46:39 e fim às 10:05:27 (00:18:48), cfr. ficheiro áudio 20211123094639_3655132_2871798, minutos 09:11 a 10:07).
AA. Pelo que não poderia o ARGUIDO ter-se apercebido da chegada de CCC e BBB.
BB. Além do mais, apenas BBB foi atingida pela água que se encontrava no balde, como se conclui pelas declarações do ARGUIDO (prestadas no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro
Áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 11:36 a 12:36, 18:07 a 18:15, 19:44 a 20:07 e 24:44 a 25:00), e pela incoerência entre o depoimento de CCC (no depoimento do dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 05:12 a 05:34) e o de EEE (prestado no dia 16/11/2021, com início às 11:36:52 e fim às 11:42:28 (00:05:36), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 01:59 a 02:09), que afirmam que também CCC foi atingida,
CC. Bem como pelas incoerências entre o depoimento de CCC (ouvida no dia 16/11/2021, com início às 11:36:52 e fim às 11:42:28 (00:05:36), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 03:57 a 04:18 e 05:36 a 05:45), que afirma que estava de frente para o ARGUIDO, e a ideia de CCC, indo à frente, ter ficado menos molhada do que BBB, com a de BBB ter ficado molhada num dos ombros e com a ideia transmitida por BBB (no depoimento prestado no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 05:43 a 06:05), segundo a qual o ARGUIDO se encontrava por trás.
DD. Acresce, ainda, que BBB foi meramente atingida por água nos olhos e no cabelo, não tendo ficado encharcada, como se conclui pelas suas declarações (do dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 04:17 a 04:30, 16:40 a 16:48).
EE. Bem como que, após a espera pela notificação, o ARGUIDO foi lavar o chão do local onde havia estado, com um balde e uma esfregona, conforme o afirmado por FFF (ouvida no dia 23/11/2021, com início às 10:06:30 e fim às 10:35:12 (00:28:42), cfr. ficheiro áudio 20211123100631_3655132_2871798, minutos 11:30 a 11:47 e 12:22 a 12:47) e DDD (ouvida no dia 23/11/2021, com início às 09:46:39 e fim às 10:05:27 (00:18:48), cfr. ficheiro áudio 20211123094639_3655132_2871798, minutos 06:52 a 08:26).
FF. Na sequência, o ARGUIDO atingiu acidentalmente BBB com a água com que lavava o chão (cf. declarações do ARGUIDO do dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 09:46 a 12:39).
GG. Este facto é, ainda, reforçado pela ausência de justificação por parte das testemunhas CCC e BBB para a sua convicção, segundo a qual o ARGUIDO terá atirado água de forma propositada (cf. depoimento de CCC, ouvida no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 18:08 a 18:13 e de BBB, ouvida no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 04:30 a 04:42).
HH. Pelo que o que consta do n.º 2 do elenco dos factos provados deveria ter a seguinte redação: “No momento em que chegaram BBB, agente de execução, e CCC, advogada, o Arguido, que se encontrava a lavar o chão, com um balde de água e uma esfregona, atingiu BBB com água, acidentalmente.”
II. Segundo a Sentença, decorre dos depoimentos de CCC (no depoimento do dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 05:56 a 08:09 e 19:00 a 19:10) e de BBB (ouvida no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 04:48 a 05:52, 06:10 a 07:02, 07:17 a 09:20, 17:00 a 17:13, 18:20 a 18:55) que o ARGUIDO proferiu palavras suscetíveis de criar medo em CCC.
JJ. No entanto, afirma o ARGUIDO que tal não é verdade (no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45), cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 14:23 a 15:00 e 17:15 a 19:05),
KK. Sendo que, no depoimento de BBB (ouvida no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 07:17 a 09:20), existe contradição quanto ao momento em que cada ideia foi expressa, a que, quando apontada, a testemunha reage evasivamente, bem como uma repetição da ideia segundo a qual a testemunha não tem nada contra o ARGUIDO (cf. depoimento prestado no dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 19:44 a 19:47).
LL. No mesmo sentido, faz a testemunha CCC questão de repetir, variadas vezes, que aquilo que afirma é verdade (cf. depoimento prestado no dia 16/11/2021, com início às 10:19:33 e fim às 10:52:18 (00:32:45),cfr. ficheiro áudio 20211116101934_3655132_2871798, minutos 05:59 a 06:05 e 07:41 a 08:09),
MM. O que indica ser provável que as declarações feitas não correspondam à realidade.
NN. Deverá, então, o ponto 3 dos factos provados passar a integrar o elenco dos factos não provados.

OO. No que toca ao ponto 4 do elenco de factos provados, como exposto supra, o ARGUIDO não sabia, nem podia saber, que CCC o iria notificar, porque não ia, nem que BBB se encontrava lá para esse efeito, por não a conhecer e por apenas a ver depois do fim do período designado para a notificação.
PP. Pelo que deveria o ponto 4 da lista de factos provados da Sentença recorrida ser eliminado, passando a integrar a lista de factos não provados.
QQ. Quanto ao n.º 5 do elenco de factos provados, tendo em conta tudo o explanado acima, e o que de Direito se exporá infra, o ARGUIDO não praticou condutas proibidas, pelo que não o poderia saber.
RR. Assim, deveria o ponto 5 dos factos provados constar da lista de factos não provados.
SS. De acordo com o aviso para dia e hora certos que agenda o momento da feitura de notificação judicial avulsa, no âmbito do processo n.º 1154/5T8STB, com cópia junta aos presentes autos no documento com ref.ª 5030242, encontrava-se a referida diligência agendada para dia 14/03/2020, entre as 12h00 e as 12h15,
TT. Pelo que deveria constar do elenco de factos provados o seguinte: “Encontrava-se agendada, por aviso de dia e hora certos, feitura de notificação judicial avulsa ao ARGUIDO, para o dia 14/03/2020, entre as 12h00 e as 12h15.”.
UU. Consoante as declarações do ARGUIDO (do dia 16/11/2021, com início às 10:52:20 e fim às 11:12:25 (00:20:05), cfr. ficheiro áudio 20211123111005_3655132_2871798, minutos 09:15 a 09:45), o depoimento de FFF (do dia 2 3/11/2021, com início às 10:06:30 e fim às 10:35:12 (00:28:42), cfr. ficheiro áudio 20211123100631_3655132_2871798, minutos 11:15 a 11:40) e o de DDD (do dia 23/11/2021, com início às 09:46:39 e fim às 10:05:27 (00:13:48), cfr. ficheiro áudio 20211123094639_3655132_2871798, minutos 07:34 a 07:50), o ARGUIDO, após o período agendado, pensou que a diligência não iria ser efetuada, tendo procedido à lavagem do chão do local onde tinha esperado pela notificação, com um balde e uma esfregona.
VV. Assim, deveria integrar o elenco de factos provados o seguinte: “Após o período agendado, o ARGUIDO pensou que a diligência não iria ser efetuada, tendo procedido à lavagem do chão do local onde tinha esperado pela notificação, com um balde e uma esfregona.”.
WW. Decorre, então, da factualidade alegada no presente recurso que o ARGUIDO não praticou qualquer facto que preencha um tipo ilícito penal.
XX. O facto de o ARGUIDO ter atingido BBB com água, de forma acidental, não configura, de modo algum, o exercício de violência, prevista no artigo 347.º do Código Penal.
YY. Ainda que se considere ter existido violência, interpretou o tribunal a quo de forma errada o artigo 347.º do Código Penal, ao afirmar que se preenchia o conceito de “funcionário” com recurso ao artigo 386.º do mesmo diploma.
ZZ. De acordo com DAMIÃO DA CUNHA, “funcionário”, para efeitos do artigo 347.º do Código Penal, é o indivíduo que exerce «atividade ao serviço das pessoas coletivas de direito público, sob a direção dos respetivos órgãos»[[1]]
AAA. De acordo com os artigos 163.º e 173.º do ESAG, o Agente de Execução é um profissional liberal e, portanto, não se enquadra neste conceito, muito menos se enquadrando, do mesmo modo, um advogado,
BBB. Pelo que nunca poderiam BBB, agente de execução, e CCC, advogada, poderiam ser Consideradas funcionárias, para efeitos de preenchimento do tipo do artigo 347.º do Código Penal.
CCC. Ainda que se adote posição contrária, é elemento essencial deste tipo que exista no agente a finalidade de se opor a que o funcionário pratique ato relativo ao exercício das suas funções.
DDD. O ARGUIDO desconhecia que alguma das ofendidas iria praticar uma notificação, pelo que nunca poderia ter a finalidade de se opor a um ato que não sabia que estava na iminência de ser praticado.
EEE. Assim, não está preenchido o tipo objetivo.
FFF. Quanto ao dolo, decorrente do artigo 14.º do Código Penal, não está presente o elemento intelectual, visto que o arguido não representava tratar-se de funcionárias e, muito menos, que iriam praticar atos no âmbito do poder jurisdicional do Estado, nem, bem assim, o elemento volitivo.
GGG. Pelo que também a tipicidade subjetiva se encontra claramente excluída.
HHH. Por tudo o exposto, não praticou o ARGUIDO qualquer facto suscetível de configurar o crime por que foi condenado, impondo-se a sua absolvição.
III. Ainda que se decida manter a factualidade assente na sentença recorrida, o tipo objetivo do artigo 347.º do Código Penal não se encontra preenchido.
JJJ. BBB e CCC, enquanto profissionais liberais, não integram o conceito de “funcionário”, porque a notificação judicial avulsa não pode ser exercida coativamente por funcionário do Estado, pelo que não se trata de um ato protegido pela previsão do artigo 347.º do Código Penal.
KKK. Não se encontrando, portanto, o tipo objetivo previsto no artigo 347.º do Código Penal preenchido, impondo-se a inevitável absolvição do ARGUIDO.
LLL. Subsidiariamente, ainda que se considerasse que o tipo objetivo está preenchido, não decorre da factualidade dada como provada que qualquer das ofendidas estivesse no local da prática dos factos para notificar o ARGUIDO e, muito menos, que lá estivessem para praticar a específica notificação judicial avulsa por que o ARGUIDO esperava.
MMM. Pelo que, no máximo, a atuação do ARGUIDO configuraria uma tentativa impossível, por inexistência do objeto essencial à consumação do crime, nos termos dos artigos 22.º e 23.º n.ºs 1 e 3, a contrario, do Código Penal.
NNN. Assim, no máximo, poderia considerar tratar-se de um caso de tentativa impossível, punível com moldura especialmente atenuada, nos termos do artigo 23.º, n.º 2.
OOO. Nos termos dos artigos 73.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 41.º, n.º 1, do Código Penal, a moldura penal para este caso fixar-se-ia, portanto, entre um mês e um ano e oito meses, podendo existir dispensa de pena, nos termos do artigo 73.º, n.º 2 e 74.º.
PPP. Tendo andado, portanto, mal o Tribunal a quo ao condenar o ARGUIDO pelo crime consumado.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem revogar a Sentença recorrida e absolver o ARGUIDO, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Na resposta que, sem conclusões, foi apresentada pelo Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, concluiu-se pela improcedência do recurso.

û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer [transcrição]:
«O recorrente vem invocar a nulidade da sentença por falta de menção dos factos não provados incorrendo em falta de fundamentação da matéria de facto e em erro de direito, pelo que peticiona a sua absolvição.
Para além do que já foi dito pelo magistrado do Ministério Público em primeira instância, compete-nos assinalar o seguinte:
1. O recorrente tem razão quer a lei, quer a Jurisprudência quer a Doutrina, obrigam a que seja fixada a matéria de facto apresentada ao julgador em provada e não provada.
2. E foi o que o Julgador fez no presente caso.
3. Na verdade, o arguido apresentou Contestação no processo, mas nesta não indicou qualquer matéria de facto para ser apreciada e submetida a prova no julgamento.
4. Assim, o julgador só tem que pronunciar-se expressamente como provados e não provados sobre os factos que constavam da acusação e eventualmente sobre qualquer outro facto que resultasse da produção da prova se considerasse que o mesmo tinha relevância para a decisão da causa.
5. O que existiram foi declarações em julgamento não coincidentes com os meios de prova produzidos pela acusação , que o juiz não tem que estar nesta parte expressamente a fixar como não provado o que o arguido declarou, bastando em nosso entender a expressou que utilizou na sentença para se referir à Matéria de Facto não provada, sem que incorresse em qualquer nulidade por falta de enumeração dos factos não provados ou por falta de fundamentação da matéria de facto na correlação com as provas.

Advoga o recorrente que deveria integrar o elenco dos factos provados o seguinte: “Após o período agendado, o ARGUIDO pensou que a diligência não iria ser efetuada, tendo procedido à lavagem do chão do local onde tinha esperado pela notificação, com um balde e uma esfregona”.
Ora aqui o recorrente não só pretende que seja o julgador deva fixar matéria que não foi levada pelas partes a julgamento, nem na acusação nem na contestação, mas que, em seu entender, resultaria da prova que se teria feito em julgamento.
Ou seja, aqui além da questão anterior (e como dissemos o Tribunal pode/deve fixar matéria relevante para a boa decisão da causa mesmo que não conste dos articulados) mas sobretudo está em causa o princípio da livre apreciação da prova!
É o julgador que analisa de forma crítica a prova, de acordo com as regras da experiência, sem usar provas proibidas e decide, podendo o arguido recorrer. Mas não é este que define a versão dos factos…

E continua o recorrente:
Decorre, então, da factualidade alegada no presente recurso que o ARGUIDO não praticou qualquer facto que preencha um tipo ilícito penal.
O facto de o ARGUIDO ter atingido Fernanda Marcos com água, de forma acidental, não configura, de modo algum, o exercício de violência, prevista no artigo 347.º do Código Penal.
Ainda que se considere ter existido violência, interpretou o tribunal a quo de forma errada o artigo 347.º do Código Penal, ao afirmar que se preenchia o conceito de “funcionário” com recurso ao artigo 386.º do mesmo diploma.

O ARGUIDO desconhecia que alguma das ofendidas iria praticar uma notificação, pelo que nunca poderia ter a finalidade de se opor a um ato que não sabia que estava na iminência de ser praticado.
Assim, não está preenchido o tipo objetivo.
Quanto ao dolo, decorrente do artigo 14.º do Código Penal, não está presente o elemento intelectual, visto que o arguido não representava tratar-se de funcionárias e, muito menos, que iriam praticar atos no âmbito do poder jurisdicional do Estado, nem, bem assim, o elemento volitivo.
Pelo que também a tipicidade subjetiva se encontra claramente excluída.
que foi condenado, impondo-se a sua absolvição.
Ainda que se decida manter a factualidade assente na sentença recorrida, o tipo objetivo do artigo 347.º do Código Penal não se encontra preenchido.
BBB, enquanto profissionais liberais, não integram o conceito de “funcionário”, porque a notificação judicial avulsa não pode ser exercida coativamente por funcionário do Estado, pelo que não se trata de um ato protegido pela previsão do artigo 347.º do Código Penal.
Não se encontrando, portanto, o tipo objetivo previsto no artigo 347.º do Código Penal preenchido, impondo-se a inevitável absolvição do ARGUIDO.
Subsidiariamente, ainda que se considerasse que o tipo objetivo está preenchido, não decorre da factualidade dada como provada que qualquer das ofendidas estivesse no local da prática dos factos para notificar o ARGUIDO e, muito menos, que lá estivessem para praticar a específica notificação judicial avulsa por que o ARGUIDO esperava.
Pelo que, no máximo, a atuação do ARGUIDO configuraria uma tentativa impossível, por inexistência do objeto essencial à consumação do crime, nos termos dos artigos 22.º e 23.º n.ºs 1 e 3, a contrario, do Código Penal.
Assim, no máximo, poderia considerar tratar-se de um caso de tentativa impossível, punível com moldura especialmente atenuada, nos termos do artigo 23.º, n.º 2.
Nos termos dos artigos 73.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 41.º, n.º 1, do Código Penal, a moldura penal para este caso fixar-se-ia, portanto, entre um mês e um ano e oito meses, podendo existir dispensa de pena, nos termos do artigo 73.º, n.º 2 e 74.º.
*
Esta é a versão do recorrente, ou a que gostaria de ver fixada na sentença, mas que não tem qualquer suporte na prova, e muito menos lógica ou sustentabilidade para ser colocada à apreciação por um tribunal superior!
Quanto á noção de funcionário consta bem definida na lei, com tradição no direito penal português, remontando a redação do atual artigo 386.º, n.º 1 (apenas com a alteração da alínea c), que passou a ser a alínea d)), ao artigo 437.º do Código Penal de 82.
A ratio de tal preceito com a impressiva epígrafe “conceito de funcionário” radica, como consta da atas do Anteprojeto, na ideia de reiterar no Código Penal 82 um conceito de funcionário autónomo, amplo e voltado para “evitar lacunas de punibilidade”.
*
A notificação judicial avulsa advém duma autorização prévia do juiz, que analisa a legalidade do pedido – o notificante está investido com o poder dado pelo Tribunal.
Resulta da matéria provada que o arguido sabia ao que iam, estava à espera das mesmas e além de as molhar e sujar com água, também proferiu palavras de onde decorre que bem sabia o que iam fazer e quem eram…

Em nosso entender, deverá ser mantida a sentença recorrida

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[2]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[3]]

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões:
- da nulidade da sentença por insuficiência de descrição factual e de fundamentação;
- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- da incorreta subsunção dos factos ao direito.
û
Consta da sentença recorrida [transcrição]:
«Da audiência de julgamento e com relevo para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:[[4]]
Da acusação em especial
«1. No dia 14 de Março de 2020, pelas 12h25, o arguido estava na morada sita na Rua (…), então, sede da empresa … Lda.” e da qual era o legal representante, para receber notificação judicial avulso, no âmbito do P.º 1154/20.5T8STB.
2. Ao aperceber-se da chegada de BBB, agente de execução, e de CCC, advogada, o arguido que previamente havia subido ao 9.º andar, com um balde de água, derramou este para cima das mesmas, atingindo-as e encharcando-as.
3. Ato seguido, o arguido, dirigindo-se a estas, dizendo: “vi o aviso, passei toda a noite aqui à vossa espera, estou de quarentena, isto é propriedade privada, vocês não podem estar aqui, a mim ninguém me notifica” e, depois quando já estavam no r/c, disse: “vocês têm de ter muito cuidadinho comigo. A mim ninguém me notifica. Tenho uma arma, tenho porte de arma. Vocês devem vir sempre acompanhadas da polícia. Estou a filmar tudo.”
4. Ao agir da forma descrita, o arguido atuou de forma livre e consciente, com o propósito de impedir BBB e CCC de o notificarem, bem sabendo que estas eram agente de execução e advogada, que as mesmas agiam no exercício das suas funções e por causa delas e que a sua conduta era suscetível de colocar em causa a autonomia funcional das mesmas, bem como a sua integridade física e liberdade, fazendo-as temer pela sua vida.
5. O arguido sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
*
Das condições socioeconómicas do arguido e seus antecedentes criminais em especial
6. O arguido nasceu em 03-09-1973, e está divorciado.
7. O arguido exerce a profissão de (…), através da qual aufere, em média, uma quantia mensal na ordem de € 15.000,00.
8. O arguido atualmente vive sozinho e tem três filhos.
9. O arguido vive em casa emprestada, pagando a título de despesas correntes com água, luz e gás, em média, a quantia mensal de € 150,00.
10. Como habilitações literárias, o arguido tem uma licenciatura em pilotagem e um mestrado em higiene e segurança.
11. O arguido é tido pelos seus familiares e amigos, como sendo um bom profissional e afável.
12. O arguido não regista antecedentes criminais.»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Com relevância para a boa decisão da causa, inexistem factos por provar.»
*
Consigna-se que o julgador não levou à factualidade dada como não provada a versão negativa dos factos apurados, ensaiada pelo arguido em sede de julgamento, por tal se mostrar despiciendo

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«Nos termos do disposto pelo art. 124.º do C.P.P. constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.
O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127.º, n.º 1 do C.P.P.: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
Vale por dizer que o princípio da livre apreciação da prova não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras de experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo - [Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de Abril de 2006, disponível em www.dgsi.pt/jtrp]
*
Por fim, frisa-se que toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento se encontra gravada por sistema de CD, permitindo uma ulterior reprodução da mesma. Desde modo, possibilita-se um rigoroso controlo dos meios de prova que estiveram na base da convicção formada por este Tribunal, no que concerne à matéria de facto, o que legitima uma motivação da matéria de facto mais concisa.
*
Feita esta breve análise sobre os princípios que norteiam a aquisição, apreciação e valoração da prova, importa, pois, explanar das razões quanto à concreta decisão crítica sobre a matéria de facto.
Assim, deve dizer-se que a convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, bem como do teor dos documentos constantes dos autos, sobre os quais todas as dúvidas foram esclarecidas em audiência, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum e da livre convicção do julgador – [art. 127.º do C.P.P.]
*
(i) Da indicação da prova probanda e produzida em sede de audiência de julgamento
Os meios de prova utilizados por este Tribunal para formar a sua convicção (positiva ou negativa) dos factos, foram os seguintes:
A) – Por declarações
· O arguido prestou declarações em sede de audiência de julgamento.
*
B) – Testemunhal
· (…)

As inquirições das demais testemunhas arroladas pela Il. defesa do arguido foram prescindidas.
*
C) – Documental
· Auto de notícia de fls. 2;
· Cópia de documentos do P.º 1154/20.5T8STB de fls. 4, 5 e 6; e  CRC do arguido junto aos autos.
*
(ii) Da Explanação Racional sobre a Formação da Convicção do Julgador subjacente à sua Decisão de Facto, resultante da valoração e apreciação crítica efetuada aos meios de prova supra indicados
Vejamos então, em detalhe, como os diversos meios de prova produzidos, contribuíram para a formação [positiva e negativa] da convicção do Tribunal, relativamente aos factos relevantes para a boa decisão da causa.
É que a sentença, para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, há-de conter, também, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico, sobre provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido» - [Acórdão do STJ, de 13-02-92, CJ, Tomo I, p. 36, e Acórdão do TC, de 02-12-98, D.R. na Série de 05-03-99]
*
Explicação Prévia
Desde já se diga que o julgador dá aqui por adquiridos os teores dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, que se encontram gravados e por isso facilmente acessíveis, sendo, pois, inútil estar-se nesta sede a fazer «súmulas exaustivas» — passe o paradoxo — dos mesmos.
O julgador irá sim infra explanar o seu raciocínio crítico sobre a credibilidade e relevância dos diversos meios de prova, tendo em vista legitimar, através de uma fundamentação racional e lógica (apelando às regras da experiência comum e da normalidade da vida – cf. art. 127.º do C.P.P.), a sua decisão sobre a matéria de facto; sendo, aliás, isso que o legislador reivindica do julgador.
*
Concretizando.
Quanto aos factos dados como provados incluídos nos pontos 1) a 3), deve dizer-se que os mesmos resultaram comprovados com base nos testemunhos prestados por BBB e CCC, as agentes de execução encarregadas pelo Tribunal para procederem à notificação judicial avulsa do arguido.
Vejamos, porém, com maior detalhe e pormenor tal asserção.
Ora, cada uma destas testemunhas confirmou que nas apontadas circunstâncias quando diligenciavam pela notificação judicial avulsa do arguido na morada que lhe foi indicada pelo Tribunal, foram atingidas, de forma intencional e deliberada, pelo arguido com água por este despejada com o balde, a partir do piso superior àquele onde elas estavam.
Perante tal conduta despropositada, interpelaram o arguido por que razão assim procedeu com elas, tendo aquele, sem pedir desculpas pelo sucedido, começado a dirigir-lhes expressões, tais como tivera de quarentena toda a noite à espera delas, mas que a ele ninguém o notifica.
Assustadas com tal reação e temendo pelas suas seguranças, explicaram estas testemunhas que, de imediato, desceram através do elevador para sair do prédio, sendo que quando chegaram ao r/c, vislumbraram o arguido que, entretanto, havia descido pelas escadas, tendo ido ao encontro delas, dizendo-lhes que estaria a filmar tudo, com um telemóvel pendurado ao peito, a mim não me notificam, têm que vir com a policia e que tinha uma arma e seu uso de porte.
Perante tal conduta, a testemunha CCC chamou a PSP ao local, ocorrendo uma patrulha ao local, tendo sido apenas nessa altura que a testemunha BBB declarou verbalmente considerar o arguido notificado.
Mais se diga que ouvido a testemunha GGG, agente da PSP que tomou conta da ocorrência, confirmou ter visto as duas testemunhas BBB e CCC molhadas e deveras assustadas com o arguido, oferecendo, assim, um importante fator de corroboração externa dos testemunhos por estas prestados.
*
Sic ut supra,
Na fixação da factualidade apurada em 1) a 3) foram, assim, determinantes os testemunhos prestados por BBB e CCC, as agentes de execução encarregadas pelo Tribunal para procederam à notificação judicial avulsa do arguido, já que confirmaram tal factualidade de uma forma isenta, séria e credível nos termos supra apurados, podendo, assim, o julgador formar a sua convicção sobre a reconstituição dos factos a respeito.
Em apreciação crítica destes depoimentos, os mesmos se revelaram sérios, precisos, coerentes, objetivos e, destarte, credíveis, razão pela qual contribuíram para a formação da convicção positiva do tribunal quanto a esta factualidade nos termos supra indicados, sendo que estando tais depoimentos devidamente registados pelo sistema de gravação sonoro, se dispensam, por isso, outras considerações a respeito.[[5]]
As circunstâncias de tempo e lugar foram apuradas também com base na leitura do auto de notícia de fls. 2 e ss., cujos teores se dão aqui por reproduzidos.
*
Por outro lado, atentos o circunstancialismo e o modo de execução dos factos materiais pelo arguido nos termos supra apurados, deve dizer-se que resulta das regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido atuou com cognoscibilidade e intencionalidade [[6]] [[7]], quando despejou o balde de água sobre as agentes de execução que estavam encarregadas pelo Tribunal de realizaram a notificação judicial avulsa, bem como quando as assustou com as expressões apuradas que então lhes dirigiu e, assim, obstou a que elas realizassem tal notificação nos termos apurados, o que quis e conseguiu, estando ciente de que tais condutas eram proibidas e puníveis por lei, assim se dando como provada a matéria de facto vertida nos pontos 4) e 5).
*
Uma vez que o arguido também prestou declarações cumpre apreciá-las criticamente, o que se fará infra [[8]]. O arguido tentou fazer crer que jamais teria despejado de forma propositada tal balde de água sobre BBB e CCC, as agentes de execução, tendo admitido apenas que quando estava a lavar o patamar das escadas no 9.º piso, ao despejar o balde de água sobre o chão, inadvertidamente, terá escorrido água do chão do patamar superior onde se encontrava no 9.º piso, para o piso de baixo, ou seja, para o 8.º, no exato momento em que aquelas agentes de execução passavam, atingindo BBB, mas negando que sequer tivesse atingido CCC, precisou.
Por outra banda, o arguido negou ainda que tivesse proferido as expressões que lhe são imputadas na peça acusatória, visando as agentes de execução, BBB e CCC, referindo, além disso, que jamais tivesse recusado em ser notificado por elas.
Por fim, o arguido alegou que sequer o agente policial arrolado como testemunha teria sido o agente policial que o havia interpelado na altura, enfim…
Ora, em apreciação crítica e como já explanamos supra, deve esclarecer-se que, no confronto das duas versões apresentadas pelas testemunhas BBB e CCC e pelo arguido, não tivemos dúvidas em conferir credibilidade à versão apresentada por aquelas testemunhas em detrimento da ensaiada pelo arguido, por aquela versão oferecida pelas testemunhas BBB e CCC se ajustar com o normal acontecer neste tipo casos, não sendo crível, de acordo com o nosso entendimento, que o arguido estivesse a lavar o chão das escadas, quando sabia que estava na iminência de ser notificado por agentes de execução e, ademais, o arguido pretendeu fazer crer que lava as escadas lançando o balde de água para o chão enfim… convenhamos não se mostra deveras verosímil, já que segundo as regras normais, lava-se primeiro o chão com uma esfregona torcida e, após, lança-se a água do balde para um local adequado, o qual certamente não será o chão, onde se esteve previamente a lavar, enfim sinal de que tal verão ensaiada pelo arguido não faz qualquer sentido lógico…
Ou seja e em suma, de acordo com a nossa livre apreciação crítica e salvo melhor opinião, não ficámos com quaisquer dúvidas de que o arguido visou, de facto, atingir BBB e CCC com a água do balde que sobre elas derramou (e frisamos elas, no plural, já que a comprovação de que ambas foram atingidas pela água, se estribou não só com base nas declarações destas, mas também do agente da PSP, que asseverou ter visto ambas molhadas, não fazendo qualquer sentido a alegação feita pelo arguido de que teria visto a testemunha CCC com uma garrafa de água na mão, insinuando, ao que se crê, que ela se teria molhado com tal garrafa de água somente para o incriminar, enfim… rebuscado de demais), bem como visá-las com tais expressões, como aquelas asseveraram em julgamento nos termos supra explicitados, e pese embora a negação vaga e lacónica depois feita pelo arguido, nada existindo nos autos que nos faça crer que tais testemunhas tivessem imputado tais condutas ao arguido para, faltando à verdade, deliberadamente o prejudicar, enfim… qual teoria da conspiração...
Vale por dizer neste conspecto factual que tal versão oferecida pelo arguido se mostrou assaz inverosímil e incongruente nos seus próprios termos, digamos que quase roçou o ridículo próprio de um filme de comédia, sem desdouro para as vítimas claro está, fragilizando, dessa forma e deveras, a sua valia probatória e, por isso, sendo assaz insegura e insuficiente para com base nela se poder refutar a versão apresentada pelas testemunhas BBB e CCC, nos termos supra indicados, dado que esta última versão se mostrou mais consentânea com as regras da experiência comum e da normalidade da vida neste tipo de casos.[[9]]
Ou seja, diga-se que subjacente ao discurso mantido pelo arguido, denotando alguma preparação prévia quanto ao enredo meticulosamente engendrado, estando, pois, ausente qualquer espontaneidade, diga-se, esteve sempre uma postura de vítima, enfim… palavras para quê.
Destarte, debalde logrou o arguido colocar em crise a prova resultante dos depoimentos prestados pelas testemunhas BB e CCC, pois este tribunal, como é evidente, deverá apreciar tais declarações criticamente à luz das regras de valoração de prova explicitadas supra.[[10]] [[11]]
Aproveita-se ainda aqui o ensejo para se esclarecer que nada obsta que o julgador alicerce a sua convicção no depoimento do ofendido, no caso, em larga medida, nas declarações pelas testemunhas BBB e CCC, desde que tais declarações se lhe afigurem pertinentes e credíveis, como foi o caso, uma vez que há muito deixou de vigorar a velha regra do unus testis, testis nullius, ultrapassado que está o regime da prova legal ou tarifada, substituído pelo princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do Cód. Proc. Penal) [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (DE ARNAUD, BLACKSTONE, BENTHAM, MEYER, BONNIER), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação - cf., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero COLOMA, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, pp. 69 a 91 – apud do acórdão da Relação de Guimarães, datado de 25-02-2008 e relatado excelentemente por José Manuel Saporit Machado da CRUZ BUCHO, disponível em www.dgsi.pt]
Aliás, já defendia o nosso melhor processualista, o Prof. José ALBERTO DOS REIS, que: «No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas» - [Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, p. 357]
*
Consigna-se, por fim, que em nossa livre apreciação permitida pelo citado art. 127.º do C.P.P., o testemunho prestado por FFF, ex-esposa do arguido, não mereceu qualquer credibilidade e, destarte, valia probatória, tendo sido, por isso, por nós completamente desprezado, tal a falta de isenção, espontaneidade e objetividade que denotou ostensivamente o seu depoimento, limitando-se esta testemunha a gizar, com o arguido, seu ex-marido, um enredo muito mal “amanhado”, por força do qual tentaram, em vão, diga-se, enjeitar a responsabilidade deste último, esboçando ao longo do seu testemunho flagrantes incongruências e até contradições [v.g. se esta testemunha demonstrou, à data, ter várias preocupações e cuidados por causa da COVID-19, a ponto de solicitar ao arguido que recebesse as agentes de execução nas escadas do prédio e não em casa, enfim, o que já se si se estranha, por tal ser desnecessário e despropositado à luz das regras normais, já que bastaria, aquando do toque da campainha, o arguido se dirigir, quiçá, ao r/c chão, onde seria notificado, mas não impunha a adoção de tal conduta; ademais, se se fosse verídico tal cuidado e preocupação, então por que razão a arguida continuou a receber visitas em casa, como foi o caso da testemunha Ermelinda, quando já na altura se recomendava o isolamento social e, mais, se tinha assim tanta preocupação, então por que razão a testemunha, quando ouviu barulho lá em baixo, numa altura em que sequer imaginava que era por causa do seu ex-marido, decidiu descer as escadas e ir ver o que se passava, enfim tal conduta, digamos, aventureira, não se mostra compaginável com tal apreensão e zelo que esta testemunha declarou aplicar à data, por causa da pandemia, enfim… entre outras tantas incongruências que nos dispensamos de estar aqui a ser exaustivos, bastará ouvir tal testemunho] e, além disso, ínfimos detalhes alegadamente ocorridos na ocasião [p. ex. lembrou-se de ouvir alguém puxar o puxador da porta corta-fogo, quando ela estaria na casa de banho, mas não se lembra de ouvir água a ser projetada no chão, enfim…], que não é suposto que nesta altura se lembrasse pelas naturais limitações da memória humana [[12]], sendo, pois, sinal evidente de que elaborou previamente uma versão que depois relatou convenientemente em julgamento… estando, pois, ausente qualquer espontaneidade, sendo tal depoimento assaz tendencioso e favorável à posição do arguido, seu ex-marido, estando, além disso, eivado por «detalhes oportunistas a favor do arguido» [[13]], que lhe retira isenção e objetividade.
Ou seja e em suma: numa palavra esta última testemunha denotou um discurso marcadamente tendencioso em prol da posição do arguido, seu ex-marido, retirando-lhe clara objetividade e veracidade, de tal sorte que este julgador, de acordo com a sua imediação e livre convicção, não conferiu qualquer valia probatória a tal testemunho.

*

Pouca ou nenhuma valia probatória mereceu outrossim o testemunho prestado por DDD, já que a mesma declarou nada ter presenciado sobre os concretos factos aqui em apreciação, tendo-se limitado, ao cabo e ao resto, a abonar a favor da personalidade do arguido, seu conhecido há largos anos.
Outrossim a testemunha HHH, pai do arguido, apenas abonou a favor do seu filho, não denotando ter qualquer conhecimento pessoal e direto dos factos aqui em apreciação.
*
Sic ut supra,
Deverá dizer-se que o Tribunal concatenou todos os elementos probatórios disponíveis e concluiu que todos apontam num único sentido, de tal forma que tornam praticamente impossível que a realidade tenha sido outra que não a dada como provada.
Logrou-se, pois, afastar qualquer dúvida razoável que pudesse pôr em causa tal decorrer dos acontecimentos.
Volvendo agora aos elementos probatórios decisivos [quais sejam: a prova documental constituída pelo auto de notícia de fls. 2 e 3, auto de denúncia de fls. 8, em conjugação com os testemunhos prestados por BBB, CCC e EEE, agente da PSP, nos termos dos quais, na sua essência, confirmaram tal factualidade, de acordo com as suas perceções, tendo, desse modo, contribuído para que se considerasse provada a matéria de facto acima descrita], na formação da convicção do Tribunal, ter-se-á de entender que com base nos mesmos apurados nos termos supra, apreciados à luz da teoria da prova indiciária estribada na inferência das regras da experiência comum, da normalidade da vida e da lógica nos termos supra explicitados, logrou estabelecer-se, para além de toda a dúvida razoável, a ligação direta e efetiva do arguido com a prática dos factos com relevância criminal aqui em apreciação.
Quer isto dizer que todos os indícios existentes são concordantes e unívocos, sem que existe qualquer contraindício que os possa infirmar.
E o contraindício terá de assumir a mesma forma dos indícios existentes, ou seja, terá de ser concreto, efetivo, real ou minimamente verosímil, e não apenas de natureza hipotética.
Ou seja e em suma: temos para nós que não existem dúvidas razoáveis ou insuperáveis de que o arguido foi um dos agentes dos factos com relevância criminal aqui em apreciação.
Destarte, in casu, salvo o devido respeito por opinião em contrário, cremos que de uma leitura integral da fundamentação de facto constante desta decisão resulta inteiramente percetível a apreciação lógica da prova levada a efeito por esta 1.ª instância, alicerçada em guias ou diretrizes objetivas que conduziram a uma consubstanciação histórica dos factos razoavelmente compatível com o acervo probatório produzido e constante dos autos, com respeito pelos princípios do Estado de Direito Democrático e da Dignidade da Pessoa Humana, plasmados nos artigos 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa.
É consabido que com base no princípio in dubio pro reo, em sede probatória tem de ser sempre valorado o non liquet a favor do(s) arguido(s).
Contudo, isso impõe-se apenas quando esse non liquet existe.
In casu, sempre se diga ainda que este Tribunal, no que tange à pertinente materialidade fáctica constitutiva do referido tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia aos arguidos não chegou a qualquer estado de dúvida que justificasse a intervenção do apontado princípio.
Deste modo, concluímos que as provas não impunham, em juízo de certeza e sem margem para quaisquer dúvidas, outra apreciação e decisão, pelo que a matéria de facto apurada e acima fixada não merece qualquer reparo.
Com efeito, tal análise da prova teve por base a imediação, sendo elaborado um juízo objetivável e racional; sendo que o princípio in dubio pro reo, à luz do princípio da investigação apenas deve ser entendido no sentido de que não devem ser julgados provados os factos relevantes para a decisão que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos a dúvida razoável.
Tal princípio só é desrespeitado quando o Tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas decidiu em tal situação contra o(s) arguido(s).
Verificamos assim que a violação do princípio in dubio pro reo pressupõe que num estado de dúvida insanável, o Tribunal opte por decidir de forma desfavorável ao(s) arguido(s).
Como é sabido, este princípio tem aplicação no domínio da apreciação da prova, refletindo-se nos contornos da decisão de facto. Assim, não se descortinando quais das versões apresentadas é verdadeira, chegando uma situação de não prova dos factos, por contradição insanável da prova produzida, cumpre valorar a versão fáctica que mais beneficia o(s) arguido (s).
Ora, in casu, resulta que, na sua fundamentação, este tribunal, no que tange à pertinente materialidade fáctica constitutiva do referido tipo legal de crime de maus-tratos a animal de companhia aos arguidos, não manifesta dúvidas sobre a ocorrência dos factos e de quem foi o seu “autor.”
A prova produzida corroborou a materialidade fáctica imputada aos arguidos, conforma supra se enfatizou.
Verificamos, assim, que no que à materialidade fáctica constitutiva do aludido crime de maus-tratos a animal de companhia concerne, a dúvida não resultou da prova produzida, nem razão com força legal bastante existe para ter permanecido no espírito do julgador em relação a qualquer facto fundamental, ficando amplamente provada toda a materialidade fáctica tida por relevante relativa a estes o imputado crime.
Ora, mesmo quando tal posição é expressamente tomada, não basta a mera contradição ou negação da factualidade que consubstancia o ilícito para que se recorra ao princípio in dubio pro reo. Pelo contrário, necessário se torna que exista dúvida insanável e irremovível, o que in casu, no que tange aos factos constitutivos do crime de maus-tratos a animal de companhia aos arguidos, face à prova produzida, mais uma vez se enfatiza, não se verificou.
Na verdade, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável aos arguidos, mas sim e apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”).
Por sua vez, cabe dizer com José Manuel Saporiti Machado da CRUZ BUCHO, na esteira do que já há muito tempo decidido foi pelo Tribunal Supremo de Espanha, que tal princípio “não estabelece os pressupostos ou condições em que os juízes podem ou devem duvidar mas tão-somente como devem proceder em caso de dúvida insanável.”
*
Ainda neste domínio, convém sublinhar-se que todos os elementos de prova com base nos quais este tribunal formou a sua convicção sobre a ocorrência dos factos relevantes nos termos supra indicados, são válidos e legais, tendo além disso este tribunal observado o cabal respeito pelas garantias de defesa e de contraditório do arguido, conforme atestam os autos.
É que como ensina, por todos, Paulo DÁ MESQUITA [[14]], a propósito da verdade processual e proibições de prova no processo penal português: “[…], o material probatório não é selecionado e utilizável exclusivamente em função do seu valor gnoseológico, existindo vias com potencial epistémico que são recusadas e material informativo disponível que não pode ser utilizado por outros motivos. Mesmo os mais extremos defensores de um conceito operativo de verdade material remetem-no para uma dimensão também formal – verdade licitamente adquirida de acordo com as regras do processo.”
Mais se diga que, ao decidir como se decidiu, não se alcança que este Tribunal tivesse valorado contra o arguido, qualquer estado de dúvida razoável em que tenha ficado sobre a existência dos factos com relevo criminal, do mesmo modo que também não se infere que este Tribunal devesse ter ficado com dúvidas razoáveis ou insuperáveis, i. e. devesse efetivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, de tal sorte que impusesse a aplicação do princípio in dubio pro reo, daí que não se mostre violado este princípio, é o que se entende.
Donde se conclui que este tribunal, no que respeita aos factos constitutivos do crime de maus tratos a animal de companhia aos arguidos, não tenha ficado em estado de dúvida razoável quanto à ocorrência de qualquer facto relevante (nomeadamente que integrasse qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa) e que, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra os arguidos, nem que face à globalidade da prova produzida devesse ter ficado na dúvida positiva, racional sobre factos relevantes, que ilida a certeza contrária, ou por outras palavras impeça a convicção do Tribunal.
Ou seja e em suma: nos termos expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de forma crítica e ponderados segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, este tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos supra indicados. Ou seja, depois de produzidas todas as provas julgadas pertinentes, dever-se-á esclarecer (e enfatizar) que nenhuma dúvida razoável ou/e insuperável (i. e. “a doubt for which reasons can be given”), se formou no espírito do julgador neste domínio, que impusesse a aplicação do princípio in dubio pro reo.[[15]]

Quanto aos dados pessoais, familiares e profissionais do arguido vertidos nos pontos 6) a 10), o tribunal considerou as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento. As testemunhas DDD, FFF e HHH abonaram a favor da personalidade do arguido, assim se dando apurada a factualidade inscrita em 11).

*
Por fim, relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido consignada no ponto 12), teve-se em consideração o teor do seu C.R.C. junto aos autos, e cujo teor se dá aqui por reproduzido para os efeitos legais
û
Conhecendo.
Para o que importa fazer anteceder as considerações de facto sobre as de direito e, no domínio destas últimas, dar prioridade aos aspetos da previsão jurídica sobre aqueles outros que decorrem da sua verificação.
As causas de nulidade da sentença, pelos efeitos que acarretam quando ocorrem, devem preceder o conhecimento de todas as outras questões.

(i) Da nulidade da sentença
O julgamento, no nosso processo penal, surge como um momento, obrigatório, de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.
Terminado o julgamento, é proferida a sentença.
A sentença é a decisão final do Juiz - aquela onde se decide o conflito de interesses apresentado através do processo.
Exige a lei – no artigo 374.º do Código de Processo Penal – que a sentença contenha relatório, fundamentação e dispositivo.

A fundamentação, que se segue ao relatório, há-de conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – n.º 2 do artigo 374.º referido.
Esta norma corporiza exigência consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
Dever de fundamentação que, reportado à sentença, abrange a matéria de facto e a matéria de direito, para que tal peça processual contenha os elementos que, por via das regras da experiência ou de critérios lógicos, conduziram o Tribunal a proferir aquela decisão e não outra.
A finalidade da fundamentação dos atos decisórios [consagrada no artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal] e da sentença encontra-se, nas palavras de Germano Marques da Silva[[16]], em «lograr obter uma maior confiança do cidadão na Justiça, no autocontrolo das autoridades judiciárias e no direito de defesa a exercer através dos recursos

«(…) a fundamentação constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, funcionando como condição de legitimação externa das decisões dos tribunais, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que as determinaram[[17]]
«Para além disso, assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido, na medida em que assegura o conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, de modo a facultar a opção reativa (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos, revelando-se, assim, essencial para o exercício do direito ao recurso[[18]]
«Serve também um propósito intraprocessual voltado para a reapreciação da decisão no âmbito do sistema recursório, permitindo ao tribunal superior conhecer o modo e o processo de formulação do juízo levado a cabo pelo julgador e que este transpôs para a decisão, a partir do qual efetuará o juízo próprio da sindicância que cumpre realizar[[19]]

Relativamente à sentença penal, ou seja, ao ato decisório que a final conhece do objeto do processo – alínea a), do n.º 1, do artigo 97.º do Código de Processo Penal –, o mencionado dever [de fundamentação] «concretiza-se através de uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, n.º1, da Constituição da República.
Assim, de acordo com o artigo 374º, a sentença, para além de requisitos formais ali expressamente previstos, deve incluir a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os deve enumerar, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, impondo, ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável, sendo que em caso de condenação está o tribunal obrigado, como não podia deixar de ser, à determinação motivada da pena ou sanção a cominar, posto o que deve proceder à indicação expressa da decisão final, com indicação das normas que lhe subjazem.
Certo é que relativamente à escolha e à medida da pena ou sanção, o artigo 375º, n.º 1, pormenorizando e acentuando o disposto no artigo 374º, impõe um especial cuidado ao tribunal, estabelecendo, de forma expressa, que a sentença condenatória deve especificar os fundamentos que à escolha e à medida da pena ou sanção presidiram, e indicar, sendo caso disso, o início e o regime de cumprimento da sanção, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social.»[[20]]

Dispõe-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º
Ou seja, de acordo com as disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, a falta de fundamentação gera a nulidade da sentença.


1. A insuficiência da descrição factual
Entende o Recorrente que a ausência de factos não provados no acórdão – em concreto aqueles que resultam da versão dos acontecimentos por si apresentada no decurso da audiência de julgamento e corroborada pelas testemunhas Geliane Júnia do Carmo Damas e Ermelinda Maria de Carvalho Mendes Bragança – acarreta a nulidade da sentença, em conformidade com o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.

Não lhe assiste razão.
Vejamos porquê.

Como resulta do que já se deixou dito, a fundamentação da sentença exige, no domínio da matéria de facto, que nela se enunciem os factos provados e os não provados.
Factos estes que surgem perfeitamente identificados no n.º 4 do artigo 339.º do Código de Processo Penal, por referência ao objeto do processo – e que são, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa [que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes] e os factos que resultarem da prova produzida em audiência [que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar].
Dito de outra forma – que se pretende mais inclusiva –, em consonância com o disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 369.º, todos do Código de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar da sentença, traduz-se na tomada de posição por parte do Tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá que recair, incluindo os que, embora não fazendo parte da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revistam relevância para a decisão.

E a enumeração factual, da forma como a lei a exige, assume a importância de evidenciar os factos que foram efetivamente considerados e apreciados pelo Tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.[[21]]

Na situação que nos ocupa, importa recordar que da sentença em recurso consta, relativamente a factos não provados, que «Com relevância para a boa decisão da causa, inexistem factos por provar.»
Ao que se acrescentou «Consigna-se que o julgador não levou à factualidade dada como não provada a versão negativa dos factos apurados, ensaiada pelo arguido em se de julgamento, por tal se mostrar despiciendo

Isto posto, percebemos que o Senhor Juiz que realizou o julgamento e elaborou a sentença não se distraiu quanto à prova perante si produzida. E que a ponderou.
Deu a conhecer que a versão dos acontecimentos apresentada pelo Arguido, porque contrária à que julgou prevalecente e, por isso, provada, não justificava se elencasse como factualidade relevante, entre os factos não provados.
Acresce que da análise da fundamentação da factualidade constante da sentença resulta qual o teor das declarações do Arguido, em sede julgamento, e as razões porque não se aceitaram, não obstante os depoimentos das testemunhas Geliane Júnia do Carmo Damas e Ermelinda Maria de Carvalho Mendes Bragança serem com elas coincidentes – fls. 10 a 16 do acórdão.

Pelo que a não inserção, entre os factos não provados, da versão dos acontecimentos apresentada pelo Arguido em sede de julgamento não reveste qualquer utilidade.
E o recurso, neste segmento, não procede.

2. A insuficiência de fundamentação
Invoca o Recorrente que na sentença recorrida não existe qualquer explicação para o facto de BBB e CCC poderem integrar o conceito de funcionário plasmado no artigo 347.º do Código Penal.
A sentença quedou-se por generalidades sobre tal conceito, não esclarecendo por que motivo se subsume a situação da BBB e CCC à previsão do crime de resistência e coação sobre funcionário.
E neste contexto, o Recorrente afirma não compreender a razão subjacente à condenação que lhe foi imposta e, por isso, estar impedido de a sindicar.

A propósito «do conceito de Funcionário ou Membro das Forças Armadas, Militarizadas ou de Segurança», diz-se na sentença recorrida [transcrição]:
«No que toca á qualidade de funcionário, coloca-se a questão de saber, em primeiro lugar, o que se deve considerar como funcionário. O conceito de funcionário, em sentido amplo, encontra-se definido no art. 386.º do Cód. Penal, abrangendo todas as pessoas que desempenham funções em organismos de utilidade pública. Nas palavras de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, sendo o crime de resistência e coação sobre funcionário um crime contra a autoridade pública, tem todo o sentido a subsunção do conceito de funcionário definido no art. 386.º do Código penal a este tipo de crime. Não obstante, atente-se que no n.º 2 do art. 347.º do Cód. Penal se prevê a desobediência ao sinal de paragem, o que impõe que se questione sobre qual o funcionário que tem o poder de dar ordem de paragem aos cidadãos. Sobre esta questão, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE defende que se deverá proceder a uma interpretação restritiva do art. 347.º, n.º 2 do Cód. Penal, sob pena de, no caso contrário, ocorrer uma violação do princípio da proporcionalidade, pois que, nem todos os funcionários, na definição dada pelo artigo 386.º do Cód. Penal, têm o poder de dar ordem de paragem aos cidadãos.
De facto, só os Magistrados Judiciais e do Ministério Público têm o poder legal de dar ordem de paragem aos cidadãos, nomeadamente com o poder de detenção fora de flagrante delito (artigos 254.º e 257.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). Para saber a definição de membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, podemos, por um lado, recorrer à Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional (Decreto-Lei n.º 183/2014, de 29/12), ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas (Decreto-Lei n.º 90/2015, de 29/05) e à Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29/08). Atente-se que apenas os estatutos da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública definem estas entidades como forças de segurança. Por outro lado, a Lei n.º 53/2008, de 29/08 – Lei de Segurança Interna – no seu artigo 25.º, sob a epígrafe Forças e Serviços de Segurança, atribui funções de segurança, para além da Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública, aos seguintes organismos públicos: a Polícia Judiciária, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Serviço de Informações de Segurança e ainda aos órgãos da Autoridade Marítima Nacional e do Sistema da Autoridade Aeronáutica

É patente o desconcerto desta argumentação.
O Senhor Juiz que a apresenta tratou de um qualquer outro assunto que não o que importa nos presentes autos.
Assiste, por isso, razão ao Recorrente – a sentença com que não se conforma carece de fundamentação quanto à subsunção da situação da AAA e BBB no conceito de “funcionário”.
E porque assim é, está, nesse aspeto, por fundamentar a subsunção dos factos provados à previsão do crime de resistência e coação sobre funcionário.
E esta omissão impede o Recorrente de sindicar os aspetos acabados de mencionar e esta Relação de os avaliar.

Pelo que se mostra desrespeitado o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, ocorrendo, assim, a nulidade prevenida na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.

Posto isto, não resta senão concluir que o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação relativamente ao aspeto acabado de assinalar.
O que conduz à sua nulidade.

O suprimento da nulidade, com a reformulação da parte da sentença que se considera viciada, deve ser levada a cabo pelo Tribunal que a elaborou.
Resta referir que a decisão sobre a nulidade, com a sua procedência, afeta a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso, razão pela qual se torna inútil prosseguir no seu conhecimento.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, dando parcial provimento ao recurso, decide-se declarar nula a decisão recorrida, por insuficiência de fundamentação, determinando que o Tribunal a quo profira nova sentença, expurgada do vício supra assinalado.

Sem tributação.
û
Évora, 24 de maio de 2022
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Gilberto da Cunha – Presidente da Secção

__________________________________________________
[1] ] Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo II, 1980, p. 645, apud J.M. Damião da Cunha , idem , p.813
[2] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[3] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[4] ] Na sequência da prova produzida em julgamento, o Tribunal procedeu a meras concretizações ou explicitações da matéria factual imputada ao arguido, não tendo, porém, autonomia na aferição da sua responsabilidade criminal, por não ter «relevo para a decisão da causa» na fórmula utilizada pelo art. 358.º, n.º 1 do C.P.P.
[5] ] O valor da prova baseada em declarações ou testemunhos mede-se em CREDIBILIDADE, fator que será composto pelos seguintes subfactores: (i) Seriedade (boa motivação da testemunha para depor); (ii) Isenção (falta de interesse na causa – pode estar ligada à anterior); (iii) Razão de Ciência (fonte de conhecimento dos factos); (iv) Coerência lógica: -Interna (depoimento confrontado consigo mesmo); - Externa (depoimento confrontado com os demais). É no âmbito da coerência lógica que podem (e devem) ser ponderados aspetos como o rigor (total coerência interna) e a forma objetiva (ausência de divagações, ou depoimento sobre factos irrelevantes). A lógica é equiparada às leis matemáticas. As leis que determinam que um determinado acontecimento só se pode ter verificado dessa maneira e não de outra qualquer. Se a lógica pura e simples não der resposta, aí entra em consideração a livre apreciação do juiz, a sua livre convicção, segundo regras da experiência – [art. 127.º do C.P.P.]
[6] ] Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24-05-2005, disponível em www.dgsi.pt., donde se retira que: “pertencendo ao foro interno do agente, o dolo é insuscetível de direta apreensão, apenas sendo possível captar a sua existência através de factos materiais que lhe dêem expressão plástica, segundo as regras da experiência comum”.
[7] ] Como ensinava Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 292:”«Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indireta como são todos os elementos de estrutura psicológica”; sufragando esta asserção, diz-nos N. F. MALATESTA, A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pp. 172 e 173: “Excetuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intelectual, senão por meio de provas indiretas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas passa-se a concluir pela sua existência.”
[8] ] Como avisadamente nos diz o acórdão da Relação de Évora, datado de 06-11-2012, relatado por Maria BARATA BRITO, disponível em www.dgsi.pt: “I - É nula, por deficiente fundamentação da matéria de facto, a sentença que omite a análise da prova por declaração de arguido (...). II - Optando o arguido por responder sobre os factos imputados, impõe-se apreciar a versão apresentada, explanando as razões do seu eventual crédito ou descrédito. (...). IV - O exame da prova é a análise de todas as provas, mesmo daquelas de que nada de útil se retirará; se uma prova é irrelevante, há que dizê-lo, pois só assim a sentença revela que foram apreciadas todas as provas.”
[9] ] Segundo José António Henrique dos SANTOS CABRAL, Prova Indiciária e Novas Formas de Criminalidade, in Revista Julgar, n.º 17, Lisboa, 2012, pp.26 e 33: “As regras da experiência ou regras da vida como ensinamentos empíricos que simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efetuar a generalização.”
[10] ] Como bem se afirma no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, recurso n.º9920001, in www.dgsi.pt: “A atividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, recetadores de depoimentos. A sua atividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a atividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem está a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.»
[11] ] O valor da prova baseada em declarações ou testemunhos mede-se em CREDIBILIDADE, fator que será composto pelos seguintes subfactores: (i) Seriedade (boa motivação da testemunha para depor); (ii) Isenção (falta de interesse na causa – pode estar ligada à anterior); (iii) Razão de Ciência (fonte de conhecimento dos factos); (iv) Coerência lógica: -Interna (depoimento confrontado consigo mesmo); - Externa (depoimento confrontado com os demais). É no âmbito da coerência lógica que podem (e devem) ser ponderados aspetos como o rigor (total coerência interna) e a forma objetiva (ausência de divagações, ou depoimento sobre factos irrelevantes). A lógica é equiparada às leis matemáticas. As leis que determinam que um determinado acontecimento só se pode ter verificado dessa maneira e não de outra qualquer. Se a lógica pura e simples não der resposta, aí entra em consideração a livre apreciação do juiz, a sua livre convicção, segundo regras da experiência – [art. 127.º do C.P.P.]
[12] ] É que a reconstrução mnemónica do passado se encontra sujeita a muitos fatores de distorção. Investigações empíricas têm evidenciado que a informação percecionada disponível diminui de forma contínua com o tempo. Assim, em relação ao material considerado irrelevante, calcula-se que cerca de 80% a 90% do memorizado cai no esquecimento num intervalo de 24 horas. Mesmo em relação às informações que reputamos significativas, e que testamos durante mais tempo, muitos dados colaterais vão-se esbatendo - [cf. L.C. NEUBURGER, Esame e controesame nel processo penale – diritto e psicologia, Pádua, Cedam, 2000, 64 e ss., apud de Alberto MEDINA DE SEIÇA, Legalidade da prova e reconhecimentos “atípicos” em processo penal, in “Liber Discipulorum para Jorge de FIGUEIREDO DIAS”, p. 1397, nota (28)]
[13] ] Como bem refere Luís Filipe PIRES DE SOUSA, Prova Testemunhal, pp. 310 e 311, “A existência no depoimento de detalhes oportunistas a favor da parte constitui um preditor da falta de objetividade da testemunha. Trata-se de situações em que a testemunha faz referência a dados, mesmo desnecessários, que pretendem beneficiar uma das opções que estão em debate no processo. (…). Uma atuação nestes termos é desnecessária se a declaração é verídica. Sendo tal declaração falsa, é ostensivo que a testemunha pretende ajudar uma das partes. Quer num caso quer noutro, do próprio facto de serem proferidas essas declarações se infere a falta de objetividade da testemunha.”
[14] ] A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento (Tese de Doutoramento), 2011, p. 266.
[15] ] Com efeito, apenas nos casos em que se forma uma situação de dúvida razoável, insanável ou insuperável [ou seja a dúvida que deve indubitavelmente beneficiar o arguido, não pode ser uma dúvida qualquer; ela tem de ser uma dúvida séria, plausível, inultrapassável para o julgador e sobre os factos relevantes; o que implica que, na apreciação dos factos, se atue de forma séria, experiente e fria e que se possua uma experiência de vida ampla, equilibrada e diversificada – cf. Manuel FERREIRA ANTUNES, Psicologia Judiciária, Apontamentos, p. 75] no espírito do julgador deve necessariamente ser resolvida em benefício da presunção de inocência do arguido, em obediência ao seu corolário probatório do in dubio pro reo - [art. 32.º, n.º2 da C.R.P.; art. 11.º, n.º1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948; e art. 6.º, n.º2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º65/78, de 13 de Outubro]. Sem embargo, importa, pois, expender outras singelas considerações adicionais sobre a teleologia e o recorte jurídico do aludido princípio do in dubio pro reo, tendo em vista a fundamentar-se a sua não aplicação ao caso. Desde já se diga que a prova em processo penal, não é, nem pode ser nunca, a certeza absoluta da ocorrência do facto [ela tem como função, para usar a expressão do art.º 341.º do Cód. Civil, a demonstração da realidade dos factos], em razão da impossibilidade de fuga à deformação sofrida até à apreensão pelo recetor dos factos. É, aliás, da natureza das coisas e, como é afirmado, «suspeita, dúvida, certeza, evidência, são etapas de um caminho até à verdade» – [cf. Sentis MELENDO, apud de Miguel Pedrosa MACHADO, O princípio in dubio pro reo e o novo C.P.P., ROA 49, pp. 583 a 611]. Os factos, quando ocorrem, esgotam-se em si mesmos, tornando impossível a sua reconstituição natural. O que se pretende – e pretendeu – fazer nesta fase de instrução foi reconstituir o que se passou, através do que ficou retido naqueles que nela testemunharam por estarem presentes. Assim, a verdade que surge ao Tribunal é a verdade da instrução, do que nela se passou, já com o filtro do tempo e com os depoimentos dos arguidos, dos assistentes e das testemunhas, com o perigo que estes trazem ínsitos: como assinalava a doutrina, «o erro espreita insidiosamente a decisão, pelo lado do testemunho verbal» – [veja-se Dário MARTINS DE ALMEIDA, O Livro do Jurado, p. 94] e são elas, as testemunhas, justamente «os auxiliares do juiz, são os olhos e os ouvidos da justiça» e Pietro ELLERO, citando MITTERMAIER, De la certidumbre en los juicios criminales o Tratado de la Prueba en matéria penal, p. 114; vd., por todos, quanto à apreciação da prova testemunhal, pp. 109 a 132]. Continuando na doutrina, sendo incerta a prova impõe-se ao Tribunal que não use um critério formal, como resultante do ónus legal da prova, para decidir da condenação do arguido, a qual terá sempre que assentar na certeza dos factos probandos, impondo-se antes o recurso ao princípio de direito probatório in dubio pro reo, comportando o mesmo a presunção de inocência do arguido – [cf., neste domínio, Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português, I, p. 111]. Trata-se, com efeito, de um princípio vigente no que diz respeito à decisão da questão-de-facto. Quer se entenda que constitui «um princípio natural de prova imposto pela lógica e pelo senso moral, pela probidade processual» – [veja-se, neste ponto, Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, in op. cit., p. 310], quer como princípio fundamental do processo penal em qualquer Estado de Direito – [cf. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, in Direito Processual Penal, p. 214], trata-se de um princípio indiscutível no que concerne à apreciação da prova na decisão da questão-de-facto. Tanto no que diz respeito à prova dos elementos constitutivos do crime, como à prova dos factos extintivos ou causas de exclusão da responsabilidade criminal – [vejam-se, neste domínio, Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, in op. cit., p. 312, e Jorge de FIGUEIREDO DIAS, in op. cit., p. 215]. Tal princípio, em suma, significa que «em caso de dúvida razoável», após a produção de prova, tem de atuar em sentido favorável ao arguido – [veja-se a formulação de J. FIGUEIREDO DIAS, in op. cit., p. 215]. Já se vê assim, que não é uma qualquer dúvida que obriga à aplicação do referido princípio, mas apenas a dúvida razoável, que persiste no espírito do julgador, após a produção de todas as provas e sua avaliação de acordo com a lei e as regras da experiência comum, nos termos acima referenciados. Se após a ponderação da prova – toda a prova – o julgador se convenceu, com base numa análise objetiva e racional, de acordo com os critérios legais e doutrinais de valoração da prova sem que no seu espírito se tenha instalado a dúvida consistente ou razoável, não se verifica, pois, a violação de tal princípio axial do processo penal.
[16] ] In “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo 2008, 4ª Edição Revista e atualizada, II Volume, páginas 153 e 154.
[17] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de março de 2005, proferido no processo n.º 05P662 e acessível em www.dgsi.pt
[18] ] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 147/00, de 21 de março de 2000, acessível em www.tribunalconstitucional.pt
[19] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, indicado na nota 17.
[20] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Julho de 2009, proferido no processo n.º2956/07 – e acessível com a referência 5607/2009, em www.colectaneadejurisprudencia.com
[21] ] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2012, de 20 de junho de 2012, acessível em www.tribunalconstitucional.pt