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AUDIÊNCIA PRÉVIA
EMBARGOS
INSOLVENTE
AVALISTA
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário
I)–Tendo os presentes embargos de executado valor inferior a metade da alçada da Relação, em conformidade com o disposto no artigo 597.º do CPC, não era obrigatória a designação de audiência prévia, cabendo ao juiz titular do processo, determinar ou não, a sua realização, consoante o juízo de necessidade ou adequação do ato ao fim do processo.
II)–Considerando o referido em I), não padece de nulidade o despacho que dispensou a realização de audiência prévia, nem o mesmo viola o princípio do contraditório.
III)–Na medida em que a recorrente não cuidou de concretizar quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, nem indicou os concretos meios probatórios que justificariam diverso julgamento, impõe-se a rejeição do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, não tendo sido observadas as prescrições das alíneas a) e b) do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.
IV)–A declaração de insolvência da subscritora de livrança, muito embora determine o vencimento das obrigações do insolvente não subordinadas a condição suspensiva (artigo 91.º, n.º 1, do CIRE), não impede o acionamento do avalista, que se vincula pela simples e formal aposição de assinatura no título.
V)– Sendo o avalista responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (cfr. artigo 32.º, I, da LULL) o prazo de prescrição de três anos referente ao direito de ação contra o aceitante/subscritor (cfr. artigo 70.º, I, da LULL) também se aplica ao respetivo avalista, uma vez que este responde, nos mesmos termos que a pessoa por si avalizada.
VI)–O juiz conhecerá – total ou parcialmente – do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se, em tal situação, habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente.
VII)–Importando dilucidar questão invocada, atinente à inexistência/existência de pacto de preenchimento que in/viabilizasse à embargada o preenchimento do título, com reflexo nas demais questões que cumpre apreciar (como a da prescrição e de abusivo preenchimento invocadas, entre outras), encontram-se controvertidos factos que se mostram carecidos de prova, pelo que, o saneador-sentença proferido o foi, prematuramente.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1.–Relatório:
AC veio, por apenso à ação executiva que ARES LUSITANI STC, S.A. lhe move, deduzir oposição à execução por embargos, tendo invocado a nulidade da citação e alegado, em suma, a falsidade da assinatura constante da livrança dada à execução, a falta de título executivo, a ineptidão do requerimento executivo, a ilegitimidade da exequente, a prescrição da livrança, a incerteza e inexigibilidade da obrigação exequenda e requereu a suspensão da execução.
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Os embargos foram liminarmente recebidos, nos termos do despacho de 02-06-2021.
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A exequente contestou, concluindo pela improcedência dos embargos e pelo prosseguimento da execução.
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Após exercício de contraditório pela embargante, em 26-11-2021 foi proferido o seguinte despacho: “(…) A presente execução para pagamento de quantia certa foi instaurada em 3-III-21 por “Ares Lusitani – Stc, S.A.” contra AC, MC, e JC – sendo apresentado como título executivo uma “Livrança” (com vencimento em 26-I-21, e valor de 5.824,20€). Por despacho de 2-VI-21 foram liminarmente admitidos os embargos deduzidos pela 2ª executada – tendo a exequente deduzido contestação. (…) Tendo em conta as regras dos artigos 732º/2, 593º/1, 591º/1d) e 595º/1 do CPC, dispensa-se a realização da audiência prévia. O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas - fixando-se o valor da causa em 5.866,09€. (…) A embargante alega não existir título executivo, por não ter sido apresentado com o requerimento executivo o pacto de preenchimento – sem razão, conforme resulta da simples leitura do artigo 703º do CPC: um “título de crédito”, como uma livrança, é um “título executivo”. Motivo por que se julga improcedente a excepção. A embargante invoca ineptidão do requerimento executivo, por não ter sido alegada a “relação controvertida subjacente” – sem razão, conforme resulta da simples leitura do artigo 724º do CPC (aliás, referido no artigo 37º da petição de embargos): “1 – No requerimento executivo, (…), o exequente: (…) e) Expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, (…).”. No caso dos títulos de crédito, atento o princípio da literalidade, não é necessário alegar qualquer “relação subjacente”. Motivo por que se julga improcedente a excepção. (…) A embargante excepciona a ilegitimidade da exequente, alegando o crédito que a “C.E.M.G.” detinha sobre a subscritora da livrança (‘Prazeres & Caetano Lda’) foi vendido à “Hefesto STC, S.A.” em 31-X-15 – pelo que tal crédito não pode ter sido vendido à “Mimulus Finance DAC” em 27-XII-18 pela ‘C.E.M.G.’, nem por aquela à ora embargada em 12-IV-19. Respondeu a embargada que foi habilitada como cessionária no processo …/…, relativamente a uma operação que constituirá a dos presentes autos. Por depender de produção de prova, relega-se para a sentença a apreciação desta excepção. (…) A embargante demonstra que a subscritora da livrança foi declarada insolvente por sentença de 21-IX-16, data em que se venceu a obrigação de pagamento da livrança (C.I.R.E. 81º); assim, decorridos três anos sobre aquela data, a livrança prescreveu (L.U.L.L. 70º), sendo o preenchimento de I-21 um acto ilegal (uma vez que não pode ser o credor a fixar a data do vencimento), ou “abusivo”. Face às regras do artigo 91º do C.I.R.E., não há dúvida que a obrigação de pagamento da subscritora da livrança (e, consequentemente, da avalista ora embargante) se venceu na data do trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência – pelo que, ao escolher outra data para preencher a livrança, a sua portadora agiu ilicitamente. O preenchimento abusivo (que só assim pode ser qualificado) importa a inexigibilidade do título – verificando-se que, caso tivesse sido aposta a data de vencimento correcta, a livrança estaria prescrita, como alega a embargante. Conclui-se, assim, pela inexistência de título executivo válido. Fica, assim, prejudicada a apreciação da impugnação da “liquidação da obrigação”, bem como da nulidade da citação (que dependeria de produção de prova quanto à qualidade e legibilidade dos documentos entregues com a citação) e de ilegitimidade. (…) Estabelece o nº 1 do artigo 733º do CPC que “O recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução se: (…) c) Tiver sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução.” Face à decisão supra, justifica-se, nesta fase, suspender o prosseguimento da execução até ao trânsito em julgado do presente saneador-sentença. Decisão Pelo exposto, julgam-se os embargos procedentes, e declara-se extinta a execução relativamente à ora embargante. Custas pela embargada. Registe e notifique – e dê conhecimento ao Agente de Execução (…)”.
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Não se conformando com esta decisão, dela apela a embargada, pugnando pela revogação da mesma e substituição por outra que determine a improcedência dos embargos, formulando as seguintes conclusões: “1.–Verificou-se o incumprimento de várias formalidades legalmente prescritas e que, em boa verdade, influenciam o exame e a decisão da causa. 2.–Decidiu o Tribunal “a quo” sem Audiência Prévia, entenda-se, sem dar a possibilidade às partes de exercerem o contraditório, proferindo uma decisão surpresa. 3.–Desta forma, violou o Meritíssimo Juiz “a quo” as formalidades da Audiência Prévia e prescrita na al. a) do n.º 1 do artigo 591.º e 593.º, ambos do CPC, bem como o Princípio do Contraditório previsto no artigo 3.º n.º 3 do CPC. 4.–E assim sendo, a não realização da Audiência Prévia, aqui em apreço é nula atenta a preterição de formalidades essenciais legalmente consignadas. 5.–No seguimento do que supra melhor se mencionou, os fins da Audiência Prévia são os de, em contraditório, determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, proferir o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova e programar os actos a realizar na audiência final. 6.–Acontece que, o Meritíssimo Juiz “a quo”, entendeu que os autos já possuíam todos os elementos necessários à decisão sobre o mérito da causa e, como tal, proferiu o respectivo despacho saneador, proferindo decisão no âmbito dos presentes autos. 7.–Porém, ao arrepio da lei, designadamente, ao abrigo do disposto no artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC, o Tribunal Recorrido decidiu sobre o mérito da causa sem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito. 8.–Ora, a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito constitui uma formalidade legalmente imposta pelo supra mencionado preceito legal, cuja violação acarreta a nulidade da decisão o que, desde já se invoca, com todas as consequências legais que daí advêm. 9.–Deste modo, violou o Meritíssimo Juiz “a quo” um dos mais elementares princípios processuais, nomeadamente, o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º n.º 3 do CPC. 10.–Entendeu o Tribunal “a quo” que as partes através dos respectivos articulados cumpriram suficientemente com o contraditório, pelo que não agendou a Audiência Prévia e procedeu à prolação do saneador-sentença, não dando às partes, todavia, oportunidade para se pronunciarem sobre questões suscitadas. 11.–Não se pode entender que o princípio do contraditório se possa concretizar apenas e só através dos articulados apresentados pelas mesmas, caso contrário, o nosso Legislador não exigia, como exige, que as partes tenham que estar presentes na respectiva audiência prévia. 12.–A prolação da decisão final é proferida com preterição de uma formalidade essencial e, que se encontra prescrita na lei, ou seja, foi a mesma efectuada sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito. 13.–Verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, a sentença é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 d) do CPC, nulidade que ora se deixa invocada. 14.–O nosso Legislador não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco, pelo que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implica a estrita validade da data de Vencimento que o portador inscreve no título, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, o qual confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco, sendo essa a base, caso exista, para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram. 15.– O artigo 91.º, n.º 1, do CIRE permite ao credor do devedor insolvente reclamar no próprio processo de insolvência esse seu crédito ainda não vencido, sendo certo que, por força do princípio da par conditio creditorum e como resulta do artigo 90.º do CIRE, os credores da insolvência terão de exercer os seus direitos em conformidade com os termos previstos neste código e durante a pendência do processo, sob pena de a satisfação dos mesmos se mostrar prejudicada. 16.–Perante isto, é questão isenta de dúvidas que o decretamento da insolvência da subscritora da livrança emitida em branco, ou seja, da obrigada principal, importou o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia da relação subjacente perante o credor. 17.– No entanto, sucede que o nosso Legislador não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco. 18.– Por isso, a jurisprudência portuguesa tem vindo a perfilhar, de forma que se crê ser unânime, o entendimento de que o prazo prescricional previsto no artigo 70.º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento. 19.– Tal como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 07.01.2019, Processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1 (Jorge Seabra), in www.dgsi.pt, a emissão de um título em branco (cujo vencimento virá a ocorrer em momento posterior e não determinado à partida) não é equiparável à emissão de um título completo quanto aos seus elementos essenciais, nomeadamente quanto à data do seu vencimento. 20.– Assim, o preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que ambas podiam objectivamente deduzir ou interpretar a partir do acordado, à luz das regras de interpretação previstas no artigo 236.º do CC. 21.– Porquanto, é o pacto de preenchimento que confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco, sendo essa a base para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram, sem prejuízo do eventual recurso à própria relação subjacente. 22.– Face ao exposto, porque existem documentos e matéria de facto alegada assente, por não oposição, nos quais constam factos que não foram atendidos, nem relevados, pelo Meritíssimo Juiz “a quo” na decisão, entendemos, com todo o respeito, haver manifesto erro de julgamento e de apreciação do direito aplicável; impugnando-se, assim, a decisão proferida.(…)”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório – por despacho de 31-01-2022 - e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2.–Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso - , as questões a decidir são: A)–Se a decisão recorrida que dispensou a realização de audiência prévia é nula, violando o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 591.º, n.º 1, al. b), 593.º e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, devendo ser revogada e substituída por outra que convoque as partes para audiência prévia nos termos do artigo 591.º, n.º 1, al. c) do CPC? B)–Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC? C)–Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito?
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3.–Enquadramento de facto:
São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso os elencados no relatório.
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4.–Fundamentação de Direito:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a)- As normas jurídicas violadas; b)- O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c)- Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, o recurso apresentado.
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4.–Enquadramento jurídico:
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A)–Se a decisão recorrida que dispensou a realização de audiência prévia é nula, violando o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 591.º, n.º 1, al. b), 593.º e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC?
Invoca a recorrente que a decisão recorrida viola os preceitos acima enunciados.
Em causa está o despacho do Tribunal recorrido, segundo o qual, “[t]endo em conta as regras dos artigos 732º/2, 593º/1, 591º/1d) e 595º/1 do CPC”, se dispensou a realização da audiência prévia.
Invocou a recorrente, para o efeito o seguinte: “(…) os fins da Audiência Prévia são os de, em contraditório, determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, proferir o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova e programar os actos a realizar na audiência final. Acontece que, não obstante a existência de matéria controvertida, o Meritíssimo Juiz “a quo”, entendeu que os autos já possuíam todos os elementos necessários à decisão sobre o mérito da causa e, como tal, proferiu o respectivo despacho saneador, proferindo decisão no âmbito dos presentes autos. Porém, ao arrepio da lei, designadamente, ao abrigo do disposto no artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC, o Tribunal Recorrido decidiu sobre o mérito da causa sem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito. Ora, a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito constitui uma formalidade legalmente imposta pelo supra mencionado preceito legal, cuja violação acarreta a nulidade da decisão o que, desde já se invoca, com todas as consequências legais que daí advêm. Deste modo, violou o Meritíssimo Juiz “a quo” um dos mais elementares princípios processuais, nomeadamente, o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º n.º 3 do CPC. Sucede que, nos presentes autos o Meritíssimo Juiz “a quo” entendeu que o processo reunia todos os elementos necessários para ser proferida decisão de mérito, não carecendo os autos de produção de mais prova, pelo que tal decisão foi proferida de imediato. Ou seja, entendeu o Tribunal “a quo” que as partes através dos respectivos articulados cumpriram suficientemente com o contraditório, pelo que não agendou a Audiência Prévia e procedeu à prolação do saneador-sentença, não dando às partes, todavia, oportunidade para se pronunciarem sobre questões suscitadas. Atente-se que, não se pode entender que o princípio do contraditório se possa concretizar apenas e só através dos articulados apresentados pelas mesmas, caso contrário, o nosso Legislador não exigia, como exige, que as partes tenham que estar presentes na respectiva audiência prévia. Face ao exposto, não restam dúvidas de que a prolação da decisão final é proferida com preterição de uma formalidade essencial e, que se encontra prescrita na lei, ou seja, foi a mesma efectuada sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito. Em face disso e, uma vez que a omissão de tal formalidade influi no exame ou na decisão da causa, tal decisão é nula, atenta a violação do artigo 3.º n.º 3 e do artigo 591.º, n.º 1, al. b) ambos do CPC. Em suma, não se conforma, de modo algum, o ora Recorrente com a douta decisão em crise, por entender que a decisão judicial proferida é nula, atenta a violação de formalidades legais, conforme supra melhor se explanou, com todas as consequências legais daí decorrentes (…)”.
Vejamos:
Estamos nos presentes autos, num apenso (cfr. artigo 732.º, n.º 1 do CPC) ao processo de execução pelo qual se visa julgar a oposição deduzida pelo executado, apenso esse que segue os termos do processo declarativo (cfr. artigo 732.º, n.º 2, do CPC), para além das especificidades consignadas nos artigos 728.º e ss. do CPC.
Sendo remetidos para o processo declarativo, verificamos que, na fase imediatamente ulterior à apresentação dos articulados das partes, o Código do Processo Civil regula, no artigo 590.º e ss., os termos da gestão inicial do processo e da audiência prévia.
Nesta fase, com diversos e amplos objetivos, o juiz assume um papel determinante, assumindo a direção do processo, procura verificar a regularidade da instância ao nível dos pressupostos processuais e eventuais exceções dilatórias, promovendo pelo seu suprimento, convida as partes à erradicação de irregularidades e deficiências verificadas nos articulados, podendo ainda determinar a junção de documentos, o que ocorre no âmbito do despacho pré-saneador.
Ultrapassados estes eventuais entraves ao prosseguimento da causa, é convocada a audiência prévia, por despacho que indique concretamente as finalidades da sua realização.
Como refere Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, vol. II, 2015, p. 190): “Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do artº 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo artº 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do artº 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no artº 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no artº 593º (em que o juiz a entenda dispensável). Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também se não realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no artº 567º, por reporte ao artº 56º.»
Assim, “por princípio, no processo comum de declaração, é obrigatória a realização de audiência prévia” (cfr. João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira; Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73) referindo os mesmos Autores (ob. cit., p. 77) que, “(…) sempre que o juiz projecte conhecer no despacho saneador de uma excepção peremptória ou de algum pedido (independentemente do possível sentido da decisão), deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artº 591º.1.b)”, considerando estar em causa o assegurar do contraditório, designadamente, na acepção do direito a produzir alegações antes de uma decisão final.
A audiência prévia contempla um vasto leque de finalidades possíveis, segundo o preceituado no artigo 591.º.
Assim, a audiência prévia pode comportar uma tentativa de conciliação nos termos do artigo 594.º do CPC, embora esta possa, ainda, ser tentada numa fase processual posterior (cfr. artigo 591.º, n.º 1, al. a) do CPC).
Para além disso, outra finalidade da audiência prévia é a promoção da discussão de questões a decidir de imediato relativas a exceções dilatórias ou ao mérito da causa e assim fazer cumprir o contraditório, tal como pode também ser convocada no intuito de possibilitar a discussão das posições das partes sobre a delimitação dos termos do litígio e proporcionar a supressão de deficiências ao nível da exposição da matéria de facto que ainda subsistam (cfr. artigo 591.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC).
Na audiência prévia pode, igualmente, ser proferido o despacho saneador que será ditado para a ata e poderá ainda haver lugar à programação da audiência final que terá lugar na fase seguinte, com a designação das respetivas datas, número de sessões previsivelmente necessárias e programação dos atos a desenvolver em cada uma delas (cfr. artigo 591.º, n.º 1, al. d) do CPC).
A audiência prévia pode também ter cabimento para a possibilidade de determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processuais que pode consistir na adoção da tramitação processual mais adequada e na adaptação do conteúdo e da forma dos atos processuais, em função das particularidades do caso e uma vez ouvidas as partes (cfr. artigo 591.º, n.º 1, al. e) do CPC).
Outra finalidade da audiência prévia é a de nela se proceder à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova (cfr. artigo 591.º, n.º 1, al. f) do CPC).
E, finalmente, poderá a mesma destinar-se a programar, após audição dos mandatários das partes, os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões, a sua provável duração e designar as respetivas datas (cfr. artigo 591.º, n.º 1, al. g) do CPC).
A audiência prévia poderá não se realizar em duas situações: quando a lei assim o determine ou quando o juiz dispense a sua realização. Nesse sentido, estabelece o artigo 592.º do CPC que não há lugar à realização da audiência prévia quando em ações não contestadas a revelia seja inoperante e também sempre que o juiz entenda que deve proferir despacho saneador a julgar procedente exceção dilatória debatida nos articulados e assim absolver o réu da instância.
Para além disso, o juiz pode considerar, por via de despacho devidamente fundamentado, que não se justifica a realização desta audiência quando se destine apenas a proferir despacho saneador, a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processuais ou a proferir despacho que identifique o objeto do litígio e enuncie os temas da prova, situação em que proferirá esses despachos nos vinte dias subsequentes ao termo da fase dos articulados.
Conforme se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2018 (Pº 3054-17.7T8LSB-A.L1-6, rel. CRISTINA NEVES), “no NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artº 591 do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (nº1 b). A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º. A dispensa da audiência prévia fora destes casos, só é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC”.
De todo o modo, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-10-2018 (Pº 1121/13.5TVLSB.L1-1, rel. RIJO FERREIRA): “A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz”.
Assim, “a decisão de dispensa da audiência prévia, sendo uma decisão de gestão processual, é reveladora do uso de um poder discricionário do juiz, como tal não admite recurso. No entanto, uma vez notificadas dos despachos previstos nas als. b) a d) do n.º 1 do artigo 591.º, podem as partes deles reclamar e assim introduzir, por meio de requerimento, a realização da denominada audiência prévia potestativa (anteriormente dispensada pelo juiz), na qual as reclamações serão apresentadas, contrapostas pela parte contrária e decididas pelo juiz” (Lília Sofia Marques de Oliveira; A Condensação do Processo: Do questionário aos temas da prova; FDUC; 2016, p. 61, consultado em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/41201/1/A%20condensa%C3%A7%C3%A3o%20do%20processo.pdf).
No caso de o juiz pretender conhecer do mérito da causa, há que distinguir consoante esse conhecimento seja parcial ou total.
Sobre o ponto discorrem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil; Vol. I, Almedina, 2013, p. 494) o seguinte: “A audiência prévia é de realização necessária, com o fim de facultar às partes a discussão de facto e de direito, quando o juiz tencione conhecer parcialmente do mérito da causa (art. 591.º, n.º 1, al. b) ), se a questão parcelar não tiver sido debatida nos articulados. O conhecimento da totalidade do mérito não é de considerar, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: ‘ações que hajam de prosseguir’. A audiência prévia é de realização necessária quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa, se a questão não tiver sido debatida nos articulados, o que vele dizer que pode ser dispensada no caso oposto (art. 547.º). Esta decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art. 3.º, n.º 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.
Assim, no caso de pretender conhecer integralmente do mérito da causa o juiz apenas poderá dispensar a realização da audiência prévia, depois de auscultadas as partes e usando dos mecanismos de gestão processual e de adequação formal, em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 547.º do CPC.
O princípio da adequação formal, ínsito no artigo 547.º do CPC, permite ao juiz, precisamente, adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, cabendo no seu exercício a aludida possibilidade de não realização de audiência prévia para os fins de conhecimento integral do mérito da causa, desde que, verificadas as condições, acima mencionadas, para tal efeito.
Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 591.º do CPC, o juiz, no despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objeto e finalidade, mas o mesmo não constitui caso julgado quanto à possibilidade de imediata apreciação do mérito da causa.
Refere Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 225.) que, “a marcação da audiência é feita por meio de despacho, o qual deve indicar, concretamente, o seu objecto e finalidade (art. 591º 2). O teor desse despacho é muito importante. Na realidade, a previsão desta audiência no nosso processo civil resulta do reconhecimento das vantagens do diálogo proporcionado pelo contacto directo dos intervenientes no processo. Tal diálogo só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo. Ora, essa preparação supõe que as partes e seus mandatários saibam o que vai acontecer, o que vai discutir-se, o que vai tratar-se na audiência prévia. Disso devem ser informados pelo despacho que marca a audiência. O mesmo é dizer que o juiz deve ter o cuidado e o rigor de indicar, expressamente, o objecto da audiência prévia, tanto mais que, podendo, em abstracto, a audiência prévia cumprir diversas finalidades, há que definir quais as finalidades a considerar em cada concreto processo. Nessa conformidade, se pretender procurar a conciliação das partes, o juiz deve referir isso no despacho. Se pretender ouvir as partes acerca de uma excepção dilatória, deve identificar a excepção. Se a audiência tiver por fim esclarecer este ou aquele ponto de facto alegado nos articulados deve ser dada nota disso. Se o juiz projectar conhecer do mérito da causa e houver vários pedidos formulados (originais ou reconvencionais) ou houver excepções peremptórias, é indispensável indicar de qual aspecto do mérito da causa pretende conhecer-se, para que as partes preparem a sua intervenção sobre esse tema (…)”.
Mais adiante (ob. cit., p. 230 e ss.) o mesmo Autor salienta que, “quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa, decisão que, a ter lugar, será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, nessa audiência [arts. 591º l.d), 595º l.b) e 595º 2], a audiência prévia será então destinada a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projecta decidir. É de toda a conveniência que o juiz não decida o litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa, sendo que o âmbito dessas alegações depende do caso concreto. Assim, nessas alegações, as partes poderão fazer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respectivas pretensões. Além disso, as alegações poderão servir também para as partes tomarem posição sobre eventuais excepções peremptórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda poder conhecer oficiosamente. Acresce que deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados. A convocação das partes para a audiência prévia, no contexto da alínea b) do n.º 1 do art. 591º, é pertinente a vários títulos. Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art. 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito. Expressão disso mesmo é a segunda parte do n.º 2 do art. 591º, referindo que o despacho determinativo da audiência prévia para este efeito não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa, de modo a não vincular o juiz à intenção por si manifestada. Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações complexas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria”.
A respeito do n.º 2 do art. 591.º do CPC referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 646) que, “o facto de o juiz considerar possível o conhecimento imediato do pedido e o indicar como finalidade da convocação da audiência prévia não o vincula a fazê-lo no despacho saneador. É o que se quer significar, no n.º 2, com a negação da constituição de “caso julgado sobre a possibilidade de apreciação do mérito da causa” (...). O juiz permanece, pois, livre de, no despacho saneador, após a discussão entre as partes ou mesmo que esta acabe por não ter lugar, entender que o processo deve prosseguir”.
Assim, conclui-se como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-03-2018 (Processo 1920/14.0YYLSB-A.L1-6, rel. TERESA SOARES): “I.–Em face do NCPC, a audiência prévia apresenta-se como diligência praticamente obrigatória. II.–A dispensa de audiência prévia apenas está consentida quanto às ações que hajam de prosseguir os seus termos (artigo 593.º do Código de Processo Civil Revisto), sendo ainda concebível, mas apenas no quadro da aplicação do princípio da adequação formal, por via do artº 547º do NCPC, sendo que, nesse caso, será exigível que a questão já esteja suficientemente debatida nos articulados, e isto sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC. III.–Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de acto não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a enquadrar no artº 195º do NCPC”.
O despacho subsequente que seja proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final. “A lei impõe, portanto, a clara sujeição ao princípio geral enunciado no artigo 644.º, n.º 3 de recorribilidade diferida e acessória dos despachos interlocutórios” (assim, Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado; Vol. II, Almedina, 2018, p. 135, nota 14).
Salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 692, nota 9) que: “A inércia das partes, não requerendo a realização da audiência prévia, significa que se conformam com o decidido pelo juiz quanto à dispensa da audiência prévia e quanto ao teor dos mencionados despachos, sendo certo que, como decorre da lei, a eventual reação contra o despacho saneador apenas poderá fazer-se por via recursória, nos termos gerais do art. 644.º, n.º 1”.
E, tem-se considerado que, “a arguição da nulidade por preterição da audiência prévia, nos casos em que foi proferido saneador sentença, pode ser invocada nas alegações de recurso, porquanto, esta tem a feição dupla de nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve e de nulidade da sentença por excesso de pronúncia, uma vez que, lhe era vedado, sem a audição prévia das partes, conhecer da causa, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do cpc” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-05-2019, Pº 8764/16.3T8LSB.L1-8, rel. ISOLETA ALMEIDA COSTA).
Ou, dito de outro modo: “(...) o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC” (cfr., neste sentido, os Acórdãos do STJ de 23-06-2016, Pº 1937/15.8T8BCL.S1; de 17-03-2016, Pº 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1, e Miguel Teixeira de Sousa (Jurisprudência 250) in https://blogippc.blogspot.pt/), pelo que, “encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2021, Pº 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, rel. LUIS ESPÍRITO SANTO).
Conforme se referiu neste último aresto, “o conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer. (…) A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria. Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil. A análise da situação e suas consequências seria completamente diferente se o juiz a quo houvesse, antes de proferir a decisão de mérito, notificado as partes, informando-as deste seu propósito e advertindo-as de que o faria na ausência de oposição destas, o que, a verificar-se, significaria, nessas circunstâncias, a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria a sorte do pleito. A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil. O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante”.
Ora, revertendo estas considerações e aplicando-as à situação dos autos, verifica-se que, deduzidos que foram embargos pela embargante, apresentada contestação pela embargada e efetuada nova pronúncia, no exercício de contraditório, pela embargante, o juiz não anunciou, em momento temporalmente prévio ao da prolação do despacho saneador (tendo tal decisão sido contemporânea deste) que pretendia conhecer do mérito da causa, com dispensa da realização da audiência prévia.
Sucede que, como se viu, a não realização da audiência prévia apenas poderia ocorrer nas seguintes situações:
- Sendo algum dos casos de “não realização de audiência prévia”, consignados no artigo 592.º do CPC (ações não contestadas que tenham prosseguido nos termos do artigo 568.º, alíneas b) a d) do CPC e quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados);
- Ocorrendo legítima situação de dispensa de realização de tal audiência prévia, em conformidade com o previsto no artigo 593.º do CPC.
No caso, não se verifica nenhum dos casos de não realização de audiência prévia, consignados no artigo 592.º do CPC, sendo certo que, designadamente, o conhecimento efetuado pelo julgador não se limitou à apreciação de exceções dilatórias, mas consistiu na apreciação de factos (impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente) importando a absolvição do pedido exequendo.
E, quanto ao mais, o juiz apenas poderia dispensar a realização de audiência prévia verificando-se as situações passíveis de dispensa, conforme estatuído no artigo 593.º do CPC, por referência às alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º do mesmo Código.
No caso, o julgador invocou o disposto no artigo 591.º, n.º 1, al. d) do CPC (prolação de despacho saneador).
Contudo, apreciando conjugadamente o disposto nos aludidos preceitos e, em particular, a referência às alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, “o que se retira do teor deste preceito legal é que, quando a acção houver de prosseguir, isto é, quando não deva findar no despacho saneador pela procedência de alguma excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento. É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º. O objectivo é facultar às partes uma última oportunidade para exporem os seus argumentos de modo a poder convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes - neste sentido, cfr. ac. do TRP de 27/09/2017, pº nº 136/16.6T8MAI-A.P1, consultável em www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-07-2021, Pº 974/20.5T8AGD-A.P1, rel. MARIA JOSÉ SIMÕES).
A jurisprudência incidente sobre esta temática tem-se pronunciado, de forma consistente e uniforme, no apontado sentido, citando-se, ainda e entre outras, as seguintes decisões (elencadas por ordem cronológica crescente):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-03-2018 (Pº 1920/14.0YYLSB-A.L1-6, rel. TERESA SOARES):“Em face do NCPC, a audiência prévia apresenta-se como diligência praticamente obrigatória. A dispensa de audiência prévia apenas está consentida quanto às ações que hajam de prosseguir oas seus termos (artigo 593.º do Código de Processo Civil Revisto), sendo ainda concebível, mas apenas no quadro da aplicação do princípio da adequação formal, por via do artº 547º do NCPC, sendo que, nesse caso, será exigível que a questão já esteja suficientemente debatida nos articulados, e isto sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC. Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de acto não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a enquadrar no artº 195º do NCPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10-05-2018 (Pº 2239/15.5T8ENT-A.E1, rel. MATA RIBEIRO): “Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, impõe-se a convocação de audiência prévia para o fim previsto no artigo 591.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil. A preterição da aludida formalidade processual que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efetiva audição das partes em sede de audiência de prévia, devendo no despacho que a designar esclarecer, em concreto, os fins a que se destina”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-10-2018 (Pº 3870/17.0T8FNC-A.E1, rel. CRISTINA DÁ MESQUITA): “Sempre que o juiz pretenda conhecer, no despacho saneador, de uma exceção perentória ou de algum pedido, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artigo 591º, n.º 1, alínea b), do CPC, com vista a assegurar o exercício do contraditório. Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa. Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de ato não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, enquadrável no artigo 195.º do CPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-11-2018 (Pº 1425/17.8T8GDM.P1, rel. JORGE SEABRA):“A realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (artigo 592º, do CPC) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no artigo 593.º do mesmo diploma fica ao critério do juiz dispensar a sua realização. O juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando se proponha julgar de mérito no despacho saneador, seja conhecendo (total ou parcialmente) do mérito do pedido, seja julgando procedente uma excepção peremptória. A não realização de audiência prévia nos casos em que a mesma deve ter lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade que influi no exame e decisão da causa (artigo 195º, n.º 1, do CPC). Mostrando-se a decisão de dispensar a audiência prévia fora do respectivo condicionalismo legal coberta e sancionada pelo despacho saneador - sentença subsequente, a consequente nulidade pode ser arguida tempestivamente no recurso a interpor do despacho – saneador”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-01-2019 (Pº 4833/15.5T8GMR-A.G3, rel. JOSÉ CRAVO):“Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, impõe-se a convocação de audiência prévia para o fim previsto no art. 591º/1, b) do CPC. A preterição da aludida formalidade processual, que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efectiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo, no despacho que a designar, serem esclarecidos, em concreto, os fins a que se destina”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-05-2019 (Pº 4952/17.3T8LSB.L1-8, rel. ISOLETA ALMEIDA COSTA): “No caso de ser proferido saneador sentença que conheça do mérito da causa não pode ser dispensada a audiência prévia ao abrigo do disposto nos artigos 591º nº 1, 593 nº 1 d) e) e f) e 595 nº 1 a) e b) todos do cpc, mesmo, quando foi dada ao autor oportunidade de discutir as excepções e demais questões pertinentes ao mérito, nos articulados. Só nas acções que hajam de prosseguir a lei processual autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia que só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º. Isto é assim, seja pelo que dispõem os artigos 592.º e 593.º, seja pela não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º, seja pela expressa ressalva constante do artigo 592º nº 1 b). A omissão da audiência prévia no caso em que é obrigatória, constitui nulidade processual e simultaneamente nulidade da sentença nos termos conjugados dos artigos. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e 195º , ambos do CPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-06-2019 (Pº 214/16.1T8MFR.L1-7, rel. DIOGO RAVARA):“A audiência prévia é de realização necessária quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa e as razões de facto e de direito atinentes a todas as questões a decidir não tiverem sido debatidas nos articulados; Porém, mesmo na situação descrita em I-, a audiência prévia pode ser dispensada desde que: As razões de facto e de direito atinentes a todas as questões a decidir já se mostrem debatidas nos articulados, e as partes sejam notificadas dessa intenção, e tenham a possibilidade de sobre ela tomarem posição; As partes sejam consultadas, nos termos do art. 3.º, n.º 3 do CPC, e lhes seja concedida a possibilidade de manite4srarem o seu assentimento ou oposição à dispensa da audiência prévia, de forma a garantir o contraditório quanto à gestão processual; As partes sejam informadas, de forma fundamentada, sobre a decisão a proferir, o que implica a enunciação das questões a resolver; Caso alguma das partes não concorde com a dispensa de realização da audiência prévia, esta deve obrigatoriamente realizar-se. A prolação de despacho saneador-sentença com inobservância do procedimento supra descrito configura uma nulidade secundária, nos termos previstos no art. 195º, nº 1 do CPC, suscetível de invocação em recurso de apelação interposto daquela decisão”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019 (Pº 5774/17.7T8FNC-A.L1-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO): “O artigo 593.º, n.º 1, do CPC, prevê a dispensa de audiência prévia em casos que indica por remissão para o artigo 591.º do mesmo Código, omitindo dessa remissão a situação em que o juiz tenciona conhecer imediatamente de todo ou parte do mérito da causa. Da conjugação dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b), e 593.º, n.º 1, do CPC, este a contrario, resulta que a obrigatoriedade legal da audiência prévia quando o juiz se proponha conhecer do mérito na fase do saneador, exceptuada adequação formal ou o prévio acordo das partes, de tal notificadas. O princípio do contraditório independe de o juiz considerar irrelevante a audição das partes, quando persistam no processo questões sobre que se não pronunciaram, v.g., a possibilidade de decisão de mérito sem produção de prova. A omissão de audiência prévia quando a mesma não podia ser dispensada determina a nulidade da decisão. Esta nulidade deve ser invocada em sede de recurso da decisão de mérito, pois é o conteúdo desta que impõe a realização da audiência prévia e revela a omissão de acto prescrito pela lei; a reação adequada é a do recurso da sentença”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2019 (Pº 1970/15.0T8CSC-A.L1-2, rel. ARLINDO CRUA): “Entendendo o Sr. Juiz a quo que podia conhecer, em sede de despacho saneador, acerca do mérito da acção (ainda que de forma parcial, nomeadamente acerca da invocada excepção peremptória de abuso de direito, o que igualmente configura conhecimento do mérito), deveria, em cumprimento do prescrito na alínea b), do nº. 1, do artº. 591º, do Cód. de Processo Civil, convocar audiência prévia ; Não o fazendo, incorreu na prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido praticado um acto que a lei não admite, qual seja o de dispensar a realização da audiência prévia quando esta dispensa não era legalmente viável ; Porém, sempre se poderia argumentar, em defesa da posição assumida, que o Sr. Juiz a quo teria feito uso do poder de gestão processual, na vertente ou segmento do poder de simplificação e agilização processual, nos quadros do legalmente prescrito nos artigos 547º e 6º, ambos do Cód. de Processo Civil. Situação que alguns apenas admitem quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre as mesmas for pacífica, jurisprudencial e doutrinariamente ; Ora, a entender-se a possibilidade de recurso ao presente mecanismo, mesmo nas situações em que a lei impõe a regra da realização da audiência prévia, a decisão de prescindibilidade desta, para além de dever ser fundamentada nesses quadros, o que não sucedeu, sempre deveria ser precedida de devido convite às partes (Autora e Réus) para se pronunciarem acerca da possibilidade de tal dispensa e da permissão destas se pronunciarem, por escrito, nos termos em que o iriam fazer oralmente em sede de audiência, se esta tivesse lugar ; Pelo que ocorrendo o vício de nulidade da decisão que dispensou a realização da audiência prévia, tal determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal decisão e que da mesma dependam em absoluto, devendo ser proferida decisão a convocar as partes (Autora e Réus) para a audiência prévia omitida, nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, ou, em alternativa, ser proferido o despacho previsto nos artºs 547º e 6º, do Cód. de Processo Civil, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais excepções e sobre o mérito da causa”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-01-2020 (Pº 3834/18.6T8GMR.G1, rel. ANA CRISTINA DUARTE):“A audiência prévia não pode ser dispensada quando o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa. A não convocação da mesma, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual, que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13-02-2020 (Pº 3496/18.0T8VCT.G1, rel. RAQUEL BATISTA TAVARES): “O regime regra previsto no artigo 591º do Código de Processo Civil é o da convocação da audiência prévia. Sempre que o juiz pretenda, após a fase dos articulados, conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve convocar a audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito, assegurando dessa forma o respeito pelo próprio princípio do contraditório (cfr. artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil) e evitando uma decisão-surpresa. A preterição pelo juiz de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório, gera para além de nulidade processual, a nulidade do próprio saneador-sentença”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-03-2020 (Pº 1628/18.8T8CBR-A.C1, rel. MARIA CATARINA GONÇALVES): “A situação em que o juiz tencione conhecer do mérito da causa no despacho saneador não está incluída nos casos em que, nos termos previstos no nº 1 do art. 593º do CPC, a audiência prévia pode ser dispensada; nessa situação, a audiência prévia – que, nos termos da lei, se apresenta como obrigatória por não figurar nos casos em que pode ser dispensada – apenas poderá ser dispensada ao abrigo dos poderes de gestão processual que estão atribuídos ao juiz no sentido de adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável, nos termos dos arts. 6º e 547º do CPC, devendo essa dispensa ser precedida de audiência das partes”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-05-2020 (Pº 4282/18.3TA8OER-A.L1-2, rel. NELSON BORGES CARNEIRO):“É obrigatória a realização de audiência prévia, quando o tribunal tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa. O tribunal não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes. A nulidade processual tem a ver com o ato como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do ato praticado pelo tribunal ou pela parte. A não realização da audiência prévia, quando não possa ser dispensada por se ter conhecido do mérito da causa no despacho saneador, traduz-se na omissão de um ato prescrito por lei, consubstanciando uma nulidade processual com influência relevante no processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-01-2021 (Pº 5788/19.2T8SNT.L1-1, rel. FERNANDO BARROSO CABANELAS): “Do cotejo dos artigos 591º, 592º, e 593º, todos do CPC, retiram-se três conclusões imediatas: o primeiro estabelece o princípio geral, o da realização de audiência prévia, e os dois restantes os casos em que, respetivamente, a mesma não se realiza ou pode ser dispensada. Tendo o tribunal recorrido decidido de mérito, não estando verificada nenhuma das hipóteses legalmente contempladas de dispensa ou não realização de audiência prévia, não havendo sequer um prévio despacho que, ao abrigo da gestão processual e da faculdade conferida pelos artigos 6º e 547º, do CPC, auscultasse prévia e especificadamente as partes sobre tal possibilidade, e obtivesse a concordância das mesmas, foi cometida irregularidade processual com relevância para a decisão da causa, contemplada no artº 195º, nº1, do CPC, que assim se transformou em nulidade processual. A consequência de tal nulidade processual é, neste caso, o regresso dos autos ao momento anterior à prolação da sentença recorrida, prosseguindo os autos nos termos expostos com prolação de despacho a convocar as partes para audiência prévia ou, em alternativa, proferindo despacho nos termos dos artigos 6º, e 547º, do CPC, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais exceções e sobre o mérito da causa”; -Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-06-2021 (Pº 1431/20.5T8PVZ.P1, rel. LINA BAPTISTA):“A realização da audiência prévia é – por via de regra – uma diligência processual obrigatória, designadamente sempre que o juiz tenha intenção de conhecer, em sede de saneador-sentença, de uma excepção peremptória”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 1883/20.3T8STR-A.E1, rel. JOSÉ MANUEL BARATA):“A decisão sobre uma exceção perentória é uma decisão que incide sobre o mérito da causa, como estipula o artigo 595.º/1, b), do CPC, onde se equipara o conhecimento do pedido ao conhecimento de uma exceção perentória. Se, no despacho saneador, o juiz pretende conhecer de uma exceção perentória ou do pedido, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artigo 591.º/1, b), do CPC, com vista a assegurar o exercício do contraditório. Mesmo quando a exceção perentória tenha sido debatida nos articulados, deve convocar-se audiência prévia, ao abrigo do artigo 3.º/3, do CPC, assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa. Caso seja dispensada a audiência prévia, para além dos casos previstos no artigo 593.º do CPC, a sua não realização será cominada com uma nulidade processual por prática de ato não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a que alude o artigo 195.º do CPC”.
No caso dos autos, certo é que, muito embora o julgador tenha decidido dispensar a realização da audiência prévia, tal decisão não se encontra afetada por qualquer nulidade, pois, no processo em apreço, atenta a forma processual aplicável aos presentes autos, o juiz não se encontrava vinculado à realização de tal audiência.
É os presentes autos têm o valor de € 5.866,09.
Ora, dispõe o artigo 597.º do CPC que, nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados (sem prejuízo do disposto no artigo 590.º, n.º 2, do CPC), o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo, procede de alguma das formas previstas nas alíneas da mesma norma.
Assim, em conformidade com o disposto no artigo 597.º, al. b) do CPC, nas ações de valor não superior a metade da alçada do tribunal da Relação, como a presente, não é obrigatório convocar a audiência prévia, cabendo ao juiz titular do processo, fazê-lo ou não, consoante o considere adequado (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-11-2021, Pº 908/19.0T8PTL-A.G1, rel. ALEXANDRA ROLIM MENDES).
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 703), “nas ações cujo valor não supere metade da alçada da Relação (15.000,00€) é ao juiz que cabe definir quais os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da ação e a necessidade e adequação dos atos ao seu julgamento”.
Nesta linha, o despacho que dispensou a realização da audiência prévia e conheceu do mérito não colide com alguma das regras aplicáveis à respetiva forma processual, não se alcançando alguma violação do disposto nos artigos 591.º, n.º 1, al. b) e 593.º do CPC.
Invoca ainda a recorrente violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
Nos termos da mencionada alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, uma sentença é nula quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Apenas existirá nulidade da sentença por omissão (ou excesso) de pronúncia com referência às questões objeto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento que tenha sido esgrimido pela parte.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608.º do Código de Processo Civil, preceito do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A “questão a decidir” pelo julgador está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.
De acordo com o nº 2 do artigo 608º do CPC, “o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras, sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção.
“O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA).
Assim, “importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de pronunciar-se efetivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2019, Pº 226/16.5T8MAI-E.P1, rel. NELSON FERNANDES).
Revertendo estas considerações para o caso dos autos e efetuando o confronto entre as questões suscitadas pela embargante na petição de embargos, sobre as quais a embargada se pronunciou na contestação aos embargos e aquelas sobre que o Tribunal recorrido fez incidir a sua apreciação, total congruência entre umas e outras, não se aferindo que o julgador tenha apreciado indevidamente questões que não devesse apreciar, nem que, ao invés, tenha ficado por conhecer alguma questão (sendo legítima a não apreciação de questões que tenham ficado prejudicadas pelo conhecimento de outra ou outras, em conformidade com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Finalmente, considera a recorrente que foi violado pela decisão recorrida, o princípio do contraditório ínsito no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, alegando que “(…) ao arrepio da lei, designadamente, ao abrigo do disposto no artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC, o Tribunal Recorrido decidiu sobre o mérito da causa sem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito”, considerando que, “a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito constitui uma formalidade legalmente imposta pelo supra mencionado preceito legal, cuja violação acarreta a nulidade da decisão”.
No vigente CPC, reconheceu-se como pilar fundamental do processo civil português, o princípio do contraditório, precipitado no artigo 3.º do CPC, preceito de onde consta o seguinte: “1- O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2- Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3- O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 4- Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”. “O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo” (assim, Lebre de Freitas; Código de Processo Civil Anotado, vol 1º, 1999, p. 8).
Impondo a necessidade de que a discussão do litígio se faça com contradição entre as partes, o artigo 3.º, n.º 3, do CPC estatui, em termos imperativos, que o juiz se encontra adstrito a observar e a fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, concretizando a lei que não poderá – salvo caso de manifesta desnecessidade – decidir questões de direito ou de facto (ainda que de conhecimento oficioso), sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, aqui se evidenciando o sub-princípio da audiência prévia aplicado ao processo civil. “O princípio do contraditório é estruturante do direito processual civil, encontrando-se consagrado no artigo 3º do Código de Processo Civil como forma de evitar a denominada “decisão - surpresa”, constituindo corolário do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-04-2019, Pº 699/13.8GCOVR-B.P1, rel. JORGE LANGWEG).
E conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-04-2018 (Pº 533/04.0TMBRG-K.G1, rel. EUGÉNIA CUNHA), “existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema, dinâmico, de comunicações entre as partes e o Tribunal. Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem. Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios. Contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão. A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico”.
De facto, “o princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2017, Pº 28354/16.0YIPRT.P1, rel. FERNANDO SAMÕES).
Porém, não obstante o contraditório constituir um princípio fundamental do processo civil – integrado, desde logo, no Título I (denominado “Das disposições dos princípios fundamentais”) do Livro I do CPC, “importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade. O cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-11-2012, Pº 572/11.4TBCND.C1, rel. JOSÉ AVELINO GONÇALVES).
Evidenciando a estreita correlação entre o princípio do contraditório e a necessidade de celeridade do processo, determinante do “direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo” (cfr. artigo 2.º, n.º 1, do CPC), expressão do direito ao processo equitativo (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da CRP), sublinham Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 20) que: “Tal como o princípio do contraditório não deve obscurecer o objetivo da celeridade processual, também esta não pode conduzir a uma dispensa do contraditório sob o pretexto da sua desnecessidade. Tal dispensa é prevista a título excecional, de modo que apenas se justificará quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final”.
Nalguns casos, a lei determina mesmo que o contraditório se opere de forma deferida. É o que ocorre, por exemplo, com os despachos liminares (neste sentido, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-04-2019, Pº 699/13.8GCOVR-B.P1, rel. JORGE LANGWEG: “Um despacho liminar apenas é precedido de um requerimento, uma petição inicial ou um recurso, não tendo o legislador previsto um despacho prévio ao despacho preliminar. A parte requerente/autora/recorrente, ao apresentar a sua pretensão processual, estando ciente da possibilidade da sua imediata rejeição em despacho liminar previsto na lei, ao ser confrontada com a sua concretização, não pode invocar tratar-se de uma decisão-surpresa. O princípio do contraditório é assegurado, nesses casos, de forma diferida, mediante a arguição, perante o tribunal de primeira instância, de eventual nulidade, ou mediante a interposição de recurso” e, bem assim, exemplificativamente, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-05-2018, Pº 16173/17.0T8LSB.L1, rel. NUNO SAMPAIO e de 10-10-2019, Pº 26411/11.8T2SNT-D.L1-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO).
Conforme dá nota Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil; Lex, Lisboa, 1996, p. 46), “o direito ao contraditório (…) possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção e, portanto, um direito à audição prévia antes de contra ela ser tomada qualquer decisão ou providência, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a poder tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta (…). O contraditório não pode ser exercido e o direito de resposta não pode ser efectivado se a parte não tiver conhecimento da conduta processual da contraparte no processo. Quanto a esse aspecto vale a regra de que cumpre à secretaria notificar oficiosamente as partes quando, por virtude de disposição legal, possam responder a requerimentos, oferecer provas ou, de um modo geral, exercer algum direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz, nem de prévia citação”.
A violação do contraditório insere-se, em geral, na cláusula geral sobre as nulidades processuais, a que se refere o artigo 195.º, n.º 1, do CPC e, dada a importância da observância do contraditório, “é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; Estudos sobre o Novo Processo Civil; Lex, Lisboa, 1996, p. 48).
Revertendo estas considerações para o caso dos autos, vemos que, perante os embargos deduzidos pela embargante, foi notificada a embargada que, em sede de contestação, teve a possibilidade de se pronunciar sobre a petição de embargos.
Após isso, a embargante veio impugnar os documentos apresentados pela embargada, por via do requerimento apresentado nos autos em 01-07-2021, o qual foi notificado à embargada, nada requerendo nos autos sobre o mesmo.
Perante o referido, mostra-se ter sido proporcionado à embargada a faculdade de se pronunciar sobre a pretensão da contraparte, tendo-lhe sido facultado o contraditório exigível, o qual, atenta a forma processual aplicável e o valor da causa - tudo em conformidade com o disposto no artigo 597.º do CPC - não comportava a imposição de designação de audiência prévia para que nela ocorresse a discussão oral ou suplementar da causa.
Assim, o conhecimento operado em sede do despacho recorrido, sequente nos autos, não foi, em conformidade com o exposto, desenquadrado da observância do princípio do contraditório, o qual foi plenamente observado.
Conclui-se, pois, não ocorrer a nulidade a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, nem a decisão recorrida ter violado o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, não se mostrando, de algum modo, comprimido o direito de defesa da recorrente e a um processo justo e equitativo.
Em face do exposto, improcede a questão suscitada pela recorrente/embargada.
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B)–Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
Contesta a recorrente a decisão recorrida dizendo, nomeadamente, “existem documentos e matéria de facto alegada assente, por não oposição, nos quais constam factos que não foram atendidos, nem relevados, pelo Meritíssimo Juiz “a quo” na decisão” (cfr. último parágrafo da alegação, na página 7 das alegações de recurso e conclusão 22.ª destas).
Vejamos se existe motivo para a rejeição liminar do recurso no que toca à impugnação da matéria de facto:
Prescreve o artigo 640.º do CPC que: “1– Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2– No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b)- Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3– O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrentedeverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exactas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I:- Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II:- Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Ora, com vista ao cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto acima identificados, impor-se-ia à recorrente que identificasse os concretos pontos de facto que considerou incorretamente julgados, o que a apelante não efetuou.
Também se imporia, para uma tal finalidade, que a recorrente concretizasse quais os meios de prova que, em seu entender, justificariam uma decisão diversa, o que, a recorrente apenas efetuou em termos genéricos, por alusão ao meio de prova documental, sem outra especificação.
Na medida em que a recorrente não deu cumprimento ao preceito legal acima mencionado, não cuidando de concretizar quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, nem indicando os concretos meios probatórios que justificariam diverso julgamento, impõe-se a rejeição do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, não tendo sido observadas as prescrições das alíneas a) e b) do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.
De acordo com o exposto, rejeita-se o recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
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C)–Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito?
Concluiu ainda a recorrente/embargada o seguinte: “(…)14.–O nosso Legislador não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco, pelo que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implica a estrita validade da data de Vencimento que o portador inscreve no título, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, o qual confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco, sendo essa a base, caso exista, para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram. 15.–O artigo 91.º, n.º 1, do CIRE permite ao credor do devedor insolvente reclamar no próprio processo de insolvência esse seu crédito ainda não vencido, sendo certo que, por força do princípio da par conditio creditorum e como resulta do artigo 90.º do CIRE, os credores da insolvência terão de exercer os seus direitos em conformidade com os termos previstos neste código e durante a pendência do processo, sob pena de a satisfação dos mesmos se mostrar prejudicada. 16.–Perante isto, é questão isenta de dúvidas que o decretamento da insolvência da subscritora da livrança emitida em branco, ou seja, da obrigada principal, importou o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia da relação subjacente perante o credor. 17.–No entanto, sucede que o nosso Legislador não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco. 18.–Por isso, a jurisprudência portuguesa tem vindo a perfilhar, de forma que se crê ser unânime, o entendimento de que o prazo prescricional previsto no artigo 70.º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento. 19.–Tal como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 07.01.2019, Processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1 (Jorge Seabra), in www.dgsi.pt, a emissão de um título em branco (cujo vencimento virá a ocorrer em momento posterior e não determinado à partida) não é equiparável à emissão de um título completo quanto aos seus elementos essenciais, nomeadamente quanto à data do seu vencimento. 20.–Assim, o preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que ambas podiam objectivamente deduzir ou interpretar a partir do acordado, à luz das regras de interpretação previstas no artigo 236.º do CC. 21.–Porquanto, é o pacto de preenchimento que confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco, sendo essa a base para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram, sem prejuízo do eventual recurso à própria relação subjacente. 22.–Face ao exposto, porque existem documentos e matéria de facto alegada assente, por não oposição, nos quais constam factos que não foram atendidos, nem relevados, pelo Meritíssimo Juiz “a quo” na decisão, entendemos, com todo o respeito, haver manifesto erro de julgamento e de apreciação do direito aplicável; impugnando-se, assim, a decisão proferida.(…)”.
Vejamos:
O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. art. 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. art. 724.º, n.º 4, CPC).
Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva - art. 10.º, n.º 5, do CPC.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33): “O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação”.
As espécies de títulos executivos estão enunciadas no artigo 703.º do CPC, entre eles se encontrando, entre outros, os títulos de crédito (cfr. al. c) do n.º 1 do referido preceito legal).
Os títulos de crédito, ainda que mero quirógrafos, constituem base para a demanda executiva, muito embora, neste último caso, os factos constitutivos da relação subjacente devem constar do próprio documento ou ser alegados no requerimento executivo.
Título de crédito é o “documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado” (assim, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, p. 3), muito embora numa definição em sentido estrito apenas são aqueles documentos que incorporam o direito a uma prestação em dinheiro (letras, livranças, cheques). “Não existindo o direito cartular nem a correspondente obrigação cambiária (por exemplo, porque a ação cambiária prescreveu), não se está perante um título de crédito (em sentido próprio), mas sim perante um documento particular despido das caraterísticas da incorporação, literalidade e autonomia, que caraterizam e são essenciais à própria definição de título de crédito” (assim, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, 2014, p. 185). Neste caso, a força executiva dependerá de a relação causal ou subjacente à sua emissão constar do documento ou ser alegada no requerimento executivo.
No caso em apreço, o título dado à execução é uma livrança, com o n.º …, na qual constam os dizeres “Contrato …”, “5.824,20 €”, “Lisboa”, “20-01-26” e “…”, nos campos relativos ao valor, local, data de emissão e data de vencimento, respectivamente. No local destinado aos subscritores constam uma assinatura onde se lê “JAC” e o carimbo da sociedade “PRAZERES & CAETANO, LDA.”. No verso da livrança encontra-se aposta (entre outras) uma assinatura onde se lê “Por bom aval à firma subscritora AC”.
Para além disso, conforme resulta dos documentos juntos com a petição de embargos (doc. 2), a dita sociedade Prazeres & Caetano, Lda. foi declarada insolvente, por sentença de declaração de insolvência decretada em 21-09-2016, no âmbito do processo n.º …/…, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra- Inst. Central- Secção de Comércio, J4.
A livrança constitui um título de crédito à ordem que consubstancia uma promessa de pagamento pela qual o emitente, subscritor ou sacador se compromete a pagar determinada importância em certa data a certa pessoa. Ao subscritor incumbe assinar a livrança, assumindo a respetiva obrigação (art.º 75.º, n.º 7, da LULL), tornando-se responsável na mesma medida que o aceitante de uma letra (art.º 78.º da LULL). Por conseguinte, assinando a livrança, torna-se um obrigado cambiário que, em primeira linha, responde pelo montante titulado no título: "Com o aceite, o aceitante assume uma obrigação abstrata que nasce exclusivamente do ato formal da sua assinatura." (Ac. TRL de 30.03.62, in Jur. Rel., 8.º, 289 e Pereira Coelho, Lições de Direito Comercial, 3.º, 9)
A livrança constitui um título de crédito rigorosamente formal, onde avultam, entre outros, os princípios da literalidade (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título cambiário), da incorporação (a obrigação e o título constituem uma unidade), da autonomia (do direito do portador que é considerado credor originário), da independência (recíproca das obrigações que estão incorporadas no título) e da abstracção (a livrança é independente da sua «causa debendi» - cfr. Abel Delgado; Lei Uniforme sobre Letras e Livranças; 6ª ed., 1990, p. 105).
Sendo o subscritor da livrança responsável nos mesmos termos do aceitante de uma letra (cfr. artigo 78º, I, da L.U.L.L.), aquele obriga-se, desde logo, a pagá-la no vencimento (cfr. Abel Delgado; ob. cit., p. 133 e Oliveira Ascenção; Direito Comercial; vol. III, 1992, p. 135 e ss.).
Assim, os subscritores de uma livrança estão, em princípio, vinculados ao pagamento da mesma.
Como se disse, uma das características dos títulos de crédito é a da abstracção. Contudo, a criação da obrigação cartular não aparece por si só, antes pressupõe uma relação jurídica anterior, que constitui a chamada “relação subjacente, fundamental ou causal”, causa remota da assunção da obrigação cambiária (assim, vd. Abel Delgado; ob. cit., p. 105).
Contudo, por força do princípio da abstracção, a causa debendi em que se traduz a obrigação subjacente encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrendo de uma convenção extra-cartular.
O que isto significa é que a obrigação cartular vincula, independentemente, dos vícios de que padeça a sua causa: as excepções causais são inoponíveis ao portador do título, pois, não assentam nele, sendo-lhes estranhas.
Só assim não será no caso das chamadas «relações imediatas» (isto é, aquelas que se estebeleçam entre um dos subscritores do título e o sujeito cambiário imediato) dado que, entre essas pessoas é conhecido o negócio causal (subjacente à emissão dos títulos de crédito) e os eventuais vícios de que ele padeça. Isso sucede, por exemplo, nas relações subscritor-tomador/ tomador-primeiro endossado, etc.
Isso mesmo é, claramente, reafirmado no artigo 17º da L.U.L.L. (preceito aplicável às livranças por força do artigo 77º), o qual dispõe que: “As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opôr ao portador, as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
O aval, por sua vez, “é um negócio jurídico cambiário autónomo, que faz nascer uma obrigação materialmente autónoma, dependente da obrigação principal apenas quanto ao aspeto formal” (assim, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, volume III, Universidade de Coimbra, 1975, p. 215).
Nos termos do art. 30.º da LULL (aplicável às livranças, ex vi do seu art. 77.º), o aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores.
A função do aval “é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscrito cambiário, a cobri-la e caucioná-la. (...) O fim próprio do aval, a sua função específica, é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário; a responsabilidade de garantia é primária” (assim, Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 7.ª edição, p. 167).
Por via da sua independência e autonomia, a obrigação do avalista, firmada perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente, mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. O que quer dizer que, tudo o que ocorra na relação subjacente não possui a virtualidade de se transmitir à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária.
Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as exceções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento (assim, Vaz Serra, R.L.J, Ano 113.º, p. 186, nota 2; entre muitos outros, Ac. STJ de 19/6/2006, CJ. Ac. STJ, XV, 2º, 118.).
Nos termos do disposto no art. 32.º da LULL, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, ou seja, é considerado responsável pelo pagamento da mesma forma que o aceitante.
De acordo com o mencionado artigo 32.º da LULL, não é estabelecida qualquer distinção entre o aceitante e o avalista, que responderá pelo pagamento do título, solidariamente com os demais subscritores: Conforme deriva do art. 47.º da LULL, os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, que tem direito a acionar todas essas pessoas, individual ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.
A obrigação do avalista molda-se na obrigação avalizada, mas a responsabilidade a cargo daquele é autónoma da do seu avalizado, não dependendo, nem da existência, nem da validade da obrigação avalizada, não se confundindo, assim, com a garantia da fiança.
Como refere Oliveira Ascensão (Direito Comercial - Títulos de Crédito, III, 1992, p. 202): “A obrigação do avalista é autónoma, não é por isso um co-aceitante. Mas isso não significa que essa obrigação seja independente da do aceitante de maneira que se confunda com a situação dos outros obrigados cambiários. O avalista responde (...) na medida objectiva da obrigação do avalizado nos termos e na quantidade em que este seria responsável. Se mesmo que a obrigação não subsistisse contra o avalizado a obrigação do avalista se mantém, por maioria de razão se mantém quando não subsiste contra terceiros, em consequência de não ter havido protesto, mas subsiste contra o aceitante”.
Ainda esse mesmo Autor (ob. cit., p. 204) considera que há dois tipos de responsáveis cambiários: Uma coisa são os responsáveis directos, outra os responsáveis por via de regresso: Aos responsáveis por via de regresso cabe uma responsabilidade que tem fonte diversa da do sacado/aceitante. Eles podem exigir a comprovação solene e literal do incumprimento por parte do aceitante. “Já o avalista toma uma responsabilidade directa: não é aceitante mas responde no lugar do aceitante. Não tem uma expectativa de que o protesto seja realizado, porque a sua obrigação envolve já tudo aquilo porque o aceitante podia responder. A declaração formal de que não houve pagamento é neste caso irrelevante”. Daí que o artº 53º da Lei Uniforme só excepcione o aceitante, precisamente porque pressupõe que o avalista responde por tudo o que responde o aceitante.
Em face dos elementos constantes dos autos, a decisão recorrida concluiu, nomeadamente, o seguinte: “A embargante demonstra que a subscritora da livrança foi declarada insolvente por sentença de 21-IX-16, data em que se venceu a obrigação de pagamento da livrança (C.I.R.E. 81º); assim, decorridos três anos sobre aquela data, a livrança prescreveu (L.U.L.L. 70º), sendo o preenchimento de I-21 um acto ilegal (uma vez que não pode ser o credor a fixar a data do vencimento), ou “abusivo”. Face às regras do artigo 91º do C.I.R.E., não há dúvida que a obrigação de pagamento da subscritora da livrança (e, consequentemente, da avalista ora embargante) se venceu na data do trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência – pelo que, ao escolher outra data para preencher a livrança, a sua portadora agiu ilicitamente. O preenchimento abusivo (que só assim pode ser qualificado) importa a inexigibilidade do título – verificando-se que, caso tivesse sido aposta a data de vencimento correcta, a livrança estaria prescrita, como alega a embargante. Conclui-se, assim, pela inexistência de título executivo válido. Fica, assim, prejudicada a apreciação da impugnação da “liquidação da obrigação”, bem como da nulidade da citação (que dependeria de produção de prova quanto à qualidade e legibilidade dos documentos entregues com a citação) e de ilegitimidade”.
Como se viu, a ora recorrente contesta este entendimento do Tribunal recorrido dizendo, em suma, o seguinte:
- Que a lei não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco, pelo que é válida a data de vencimento que o portador inscreve no título, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento;
- Que o artigo 91.º, n.º 1, do CIRE permite ao credor do devedor insolvente reclamar no processo de insolvência esse seu crédito ainda não vencido;
- Que o decretamento da insolvência da subscritora da livrança emitida em branco, importou o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia;
- Que por a lei não fixar limite temporal ao preenchimento da livrança em branco, a jurisprudência portuguesa tem perfilhado o entendimento de que o prazo prescricional (artigo 70.º LULL) corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, que constitui a base para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram, sem prejuízo do eventual recurso à própria relação subjacente; e
- Que porque existem documentos e matéria de facto alegada assente, por não oposição, nos quais constam factos que não foram atendidos, nem relevados, na decisão recorrida, considera existir erro de julgamento e de apreciação do direito aplicável.
Vejamos:
Nos termos do artigo 90.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo D.L. n.º 53/2004, de 18 de março e, abreviadamente, CIRE), o exercício dos créditos sobre a insolvência é disciplinado da seguinte forma: “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.
Por seu turno, estabelece o artigo 91.º do CIRE o seguinte: “Artigo 91.º Vencimento imediato de dívidas 1- A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva. 2- Toda a obrigação ainda não exigível à data da declaração de insolvência pela qual não fossem devidos juros remuneratórios, ou pela qual fossem devidos juros inferiores à taxa de juros legal, considera-se reduzida para o montante que, se acrescido de juros calculados sobre esse mesmo montante, respectivamente, à taxa legal, ou a uma taxa igual à diferença entre a taxa legal e a taxa convencionada, pelo período de antecipação do vencimento, corresponderia ao valor da obrigação em causa. 3- Tratando-se de obrigação fraccionada, o disposto no número anterior é aplicável a cada uma das prestações ainda não exigíveis. 4-No cômputo do período de antecipação do vencimento considera-se que este ocorreria na data em que as obrigações se tornassem exigíveis, ou em que provavelmente tal ocorreria, sendo essa data indeterminada. 5-A redução do montante da dívida, prevista nos números anteriores, é também aplicável ainda que tenha ocorrido a perda do benefício do prazo, decorrente da situação de insolvência ainda não judicialmente declarada, prevista no n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil. 6-A sub-rogação nos direitos do credor decorrente do cumprimento pelo insolvente de uma obrigação de terceiro terá lugar na proporção da quantia paga relativamente ao montante da dívida desse terceiro, actualizado nos termos do n.º 2. 7-O disposto no número anterior aplica-se ao direito de regresso face a outros condevedores.”.
Sobre o efeito do disposto no artigo 91.º do CIRE sobre as obrigações de avalistas de títulos de crédito subscritos pela empresa insolvente, concluiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-01-2018 (Pº 12989/15.0T8LSB-A.S1.L1-6, rel. MARIA DE DEUS CORREIA) que: “Nos termos do art.º 91.º n.º1 do CIRE “a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva”. Vencida a obrigação do insolvente, o credor tem o direito de acionar a respectiva garantia, ou seja, a realizar o preenchimento dos títulos cambiários que foram subscritos pelos avalistas, ora Apelantes. Os avalistas são devedores cambiários pelo que, sendo a obrigação cambiária de natureza formal e abstracta e, portanto, independentemente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, o signatário fica vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título”. Conforme se refere em tal aresto, “as letras e livranças são sujeitas a uma disciplina jurídica especial. Esta especialidade sintetiza-se nos seguintes princípios: a)– Incorporação da obrigação no título (a obrigação e o título constituem uma unidade); b)– Literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título) c)– Abstracção da obrigação ( a letra é independente da “causa debendi”) d)–Independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título e)– Autonomia do direito do portador. Geralmente quem assina uma livrança e assume a respectiva obrigação cambiária, não o faz senão porque está já vinculado por efeito duma relação jurídica anterior. Esta é a obrigação causal ou subjacente, também chamada contrato originário ou relação jurídica fundamental. A relação subjacente tanto pode determinar a emissão duma letra, como o endosso ou o aval. Note-se, no entanto, que tudo se passa como se tal obrigação não existisse, tudo se passa como se a obrigação cambiária fosse uma obrigação sem causa. A obrigação cambiária é uma obrigação abstracta. A obrigação cambiária é de natureza formal e abstracta e, portanto, independentemente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título”.
Assim, a declaração de insolvência da subscritora de livrança, por si só, não parece afetar a existência e a conformação da obrigação, autónoma do avalista.
Disso mesmo se deu conta no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-03-2021 (Pº 268/20.6T8OVR-A.P1, rel. FILIPE CAROÇO) onde se concluiu o seguinte: “Declarada a insolvência, os credores têm de exercer os seus direitos de crédito no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados nele, sendo esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, enquanto execução universal, assim caraterizada pelo art.° 1° do CIRE. Independentemente de o devedor estar a cumprir as suas obrigações relativamente a um determinado credor, da declaração de insolvência decorre que, por regra, todas as obrigações do devedor se consideram vencidas a partir da respetiva data. Por regra, o plano de insolvência não interfere com as garantias reais e pessoais dadas por terceiro ao devedor insolvente, podendo ser executadas apesar do plano. O aval é um ato cambiário que origina uma obrigação autónoma independente e pessoal, cujos limites são aferidos pelo próprio título. Por ele, o avalista assume, ele próprio, a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento da letra, da livrança ou do cheque. Não obstante a literalidade e a abstração que caraterizam o título executivo e as obrigações (cambiárias) nele assumidas, assim como a autonomia do aval relativamente à obrigação do avalizado, pode - independentemente de qualquer pacto de preenchimento e da relação jurídica causal ou fundamental - ser estabelecida uma convenção extracartular entre o avalista e o credor, designadamente quanto ao modo como, em concreto e perante o avalista, o credor é admitido a exercer a sua pretensão cambiária. Por se tratar então e uma relação imediata entre avalista e credor, pode ser suscitada e discutida entre eles em sede de embargos de executado”.
Mas, a obrigação do avalizado é, como se viu, autónoma de qualquer causa atinente à relação fundamental, ficando o avalista vinculado pela aposição da sua assinatura, com as prescrições atinentes à obrigação de garantia correspondente, no título cambiário. É o que resulta do artigo 31.º da LULL: “O aval é escrito na própria letra ou numa folha anexa. Exprime-se pelas palavras "bom para aval" ou por qualquer fórmula equivalente; é assinado pelo dador do aval. O aval considera-se como resultando da simples assinatura do dador aposta na face anterior da letra, salvo se se trata das assinaturas do sacado ou do sacador. O aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta de indicação, entender-se-á ser pelo sacador”.
Esta autonomia da obrigação do avalista face à do respetivo avalizado exprime-se também em face do que dispõe o artigo 32.º, n.º 2 da LULL: “A sua obrigação [do dador de aval] mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”.
Dito de outro modo, “a aposição de assinatura no título em branco implica, desde logo, na constituição de obrigação cambiária; a obrigação cambiária dos avalistas não está dependente do preenchimento da livrança (…)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-03-2017, Pº 1973/16.7T8STR-A.E1, rel. ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO).
Conforme salienta Luís Menezes Leitão (Garantias das Obrigações; 4.ª ed., Almedina, 2012, p. 117): “Por maioria de razão, também não poderão aproveitar ao avalista as excepções pessoais de que beneficia o avalizado. Para além disso, o avalista não responde subsidiariamente, mas antes solidariamente com o avalizado (art. 32 I e 27 I LULL). Os vícios de forma da obrigação principal que dão origem à invalidade do aval têm que se reconduzir à subscrição do título. São vícios de forma as declarações cambiárias formuladas incorrecta ou incompletamente ou a que a lei não atribua eficácia cambiária. Deve igualmente considerar-se como vício de forma a falta de algum dos elementos necessários para que o título valha como tal”.
Assim, declarada a insolvência do avalizado, conforme conclui Rui Pinto (“A execução do aval – algumas notas com ilustração jurisprudencial”, in Julgar on line, junho de 2019, p. 30), “[m]anifestamente não há nenhum impedimento substantivo à execução do avalista. Assim, pode obter-se a declaração de insolvência do avalizado e, depois, executar o avalista. O artigo 88.º, n.º 1, CIRE obsta, tão só, à instauração ou ao prosseguimento das execuções contra o insolvente”.
Mas, por outro lado, a obrigação dos outorgantes do titulo cambiário não tem caráter perpétuo, estando sujeita a prescrição.
Conforme decorre do artigo 70.º, n.º 1, da LULL, o prazo de prescrição para todas as ações contra o aceitante relativas a letras – e livranças por força do artigo 77.º da LULL – é de três anos a contar do seu vencimento.
Na decorrência do previsto no mencionado artigo 32.º da LULL – sendo o avalista responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada – é pacificamente aceite que o prazo de prescrição de três anos referente ao direito de ação contra o aceitante/subscritor também se aplica ao respectivo avalista, uma vez que este responde, nos precisos termos que a pessoa por si avalizada (cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2019, Pº 1025/18.5T8PRT.P1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS).
Nesta linha, a decisão recorrida, concluindo que com a declaração de insolvência da subscritora da livrança, declarada por sentença de 21-09-2016, se venceu, em conformidade com as regras do artigo 91.º do CIRE, a obrigação de pagamento da livrança, a qual, decorridos 3 anos (cfr. artigo 70.º, n.º 1, da LULL) após aquela data, prescreveu, considerando que o preenchimento da data de vencimento da livrança com a data de janeiro de 2021 corresponde a um ato ilegal ou abusivo, por não poder ser o credor a fixar a data do vencimento, que determina a inexigibilidade do título.
A recorrente considera, contudo, que não existindo a fixação de um limite temporal para o preenchimento da livrança em branco, é válida a inscrição efetuada, considerando não prescrita a obrigação da avalista, considerando que o prazo de três anos do artigo 70.º, n.º 1, da LULL apenas começa a correr a partir da data de vencimento inserida pelo portador da livrança até aí em branco.
A questão que se coloca no presente caso é a de saber qual é o início da contagem do prazo, previsto no artigo 70.º, n.º 1, da LULL (aplicável ex vi artigo 77º da LULL à livrança).
Diversos arestos concluem no sentido de que o início do prazo de contagem da prescrição coincide com o que consta aposto no título cambiário, valorizando a natureza formal do título cambiário. Entre outros podem citar-se as seguintes decisões (elencadas por ordem cronológica crescente): - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-04-2016 (Pº 313/13.1TBVVD-A.G1, rel. FRANCISCA MICAELA VIEIRA): “O aval é o acto pelo qual uma pessoa estranha ao título cambiário, ou mesmo um signatário - art. 30.º da LULL - garante, por algum dos co-obrigados no título, o pagamento da obrigação pecuniária que este incorpora. Como resulta do art. 32º LULL, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, pelo que, a medida da responsabilidade do avalista se mede pela do avalizado. Ao dar o aval ao subscritor de livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento. Para que se coloque uma questão de preenchimento abusivo, enquanto excepção pessoal do obrigado cambiário, é necessário que se demonstre a existência de um acordo, em cuja formação tenham intervindo o avalista e o tomador-portador do título, acordo que este último, ao completar o respectivo preenchimento tenha efectivamente desrespeitado. Se não se invoca qualquer desrespeito do convencionado no pacto de preenchimento da livrança, então não há objecto sobre o qual possa ser alegado e discutido preenchimento abusivo, carecendo o avalista de fundamento para discutir uma eventual excepção. Na falta de invocação da violação do respectivo pacto, o preenchimento do título tem de considerar-se, em princípio, legítimo, dele decorrendo a perfeição da obrigação cambiária incorporada na livrança e a correspondente exigibilidade em relação aos avalistas do subscritor que se obrigaram solidariamente, eles próprios, a título pessoal, como meio de garantirem a prestação devida pelo subscritor”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-07-2019 (Pº 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, rel MARIA DA GRAÇA TRIGO): “Nos termos do art. 76º da LULL, a consequência da falta dos requisitos formais da livrança é a ineficácia e não a invalidade, sendo que a livrança em branco produzirá efeitos quando, em momento ulterior, for preenchida com as indicações em falta, de acordo com o pacto de preenchimento. A questão de saber se o início da contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 70º, nº 1, da LULL (aplicável ex vi art. 77º da LULL) se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança tem sido respondida em sentido afirmativo pela jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada. Quanto à questão do preenchimento abusivo ou indevido das livranças dos autos, tendo os pactos de preenchimento autorizado a exequente embargada a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora “ou para efeitos de realização do respectivo crédito”, não é possível concluir-se que aquela – ao apor nas livranças uma data mais de três anos ulterior em relação à declaração de insolvência da devedora, e alguns meses anterior à acção executiva – tenha incorrido em preenchimento abusivo. Acresce que, mesmo que os termos dos pactos de preenchimento dos autos não atribuíssem à exequente tal margem de discricionariedade, atento o regime normativo da prescrição, sempre seria discutível se o simples decurso do tempo sem exigir o cumprimento das obrigações bastaria para configurar uma situação de abuso do direito”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-05-2020 (Pº 56/19,2T8LOU-B.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES): “O pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária, verificando-se abuso do seu preenchimento tais elementos não são respeitados. Tendo os pactos de preenchimento autorizado a exequente embargada a preencher as livranças em caso de incumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades inerentes à relação subjacente, pelo valor que for devido, não é possível concluir-se que aquela, ao apor nas livranças uma data mais de três anos ulterior à verificação do citado incumprimento, tenha incorrido em preenchimento abusivo, por violação do princípio da boa fé. Não havendo violação do pacto de preenchimento, numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70.º “ex vi” 77.º da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da mesma obrigação”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2020 (rel. PINTO DE ALMEIDA, disponível em http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:7062.16.7T8LSB.A.S1): “Se, no pacto de preenchimento, a credora/exequente foi autorizada a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento da livrança, verificado o incumprimento das obrigações pela devedora, quando decida recorrer à realização coactiva do respectivo crédito, não pode dizer-se que haja preenchimento abusivo ao apor na livrança uma data posterior, em mais de três anos, à data da declaração de insolvência da devedora, mas tendo em conta a data do último pagamento parcial efectuado pelo avalista. Não procedendo a excepção de preenchimento abusivo, o prazo de prescrição deve ser contado a partir da data do vencimento inserida na livrança”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-12-2020 (Pº 4161/18.4T8PBL-A.C1, rel. FONTE RAMOS): “Quem emite ou subscreve uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato - o pacto de preenchimento - pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida, no que respeita, designadamente, à fixação do seu montante e data de vencimento. Como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos - enquanto factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título. O nosso legislador não consagrou um limite temporal ao preenchimento do título em branco. Se não há violação do pacto de preenchimento, numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70º (ex vi do art.º 77º), da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, coincida ou não com o incumprimento do contrato (vencimento da obrigação) subjacente”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-02-2021 (Pº 51/19.1T8SRE-B.C1, rel. FREITAS NETO): “O prazo de prescrição a que se reportam os art.º 70º e 77º da LULL inicia-se a partir da data de vencimento que vier a ser aposta pelo portador de uma livrança que lhe tenha sido entregue incompleta nesse elemento, contanto que tal data não seja anterior ao momento em que se verificou o facto que, à luz do respectivo pacto, legitimou o preenchimento do título”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-06-2021 (Pº 12604/19.3T8SNT-A.L1-7, rel. CRISTINA COELHO): “A obrigação do avalista, embora dependente da do avalizado quanto ao lado formal, é materialmente autónoma, assim, não sofrendo o aval de vício de forma, nem sofrendo a obrigação cambiária que garante desse mesmo tipo de vício, o avalista responde perante o portador da livrança, não podendo opor-lhe quaisquer vícios que atinjam a obrigação do avalizado, à exceção do pagamento (total ou parcial). A declaração de insolvência do avalizado não é impedimento substantivo à execução do avalista. Se no pacto de preenchimento foi dada autorização à mutuante para fixar livremente a data de vencimento da livrança, sem qualquer limite temporal, e sem referência a qualquer facto relevante, não há preenchimento abusivo da mesma quando aquela a preenche anos depois do incumprimento ou da resolução do contrato garantido pela livrança, e desde que da factualidade provada não resulte ser o seu comportamento abusivo. Inexistindo violação do pacto de preenchimento, o prazo de prescrição previsto no art. 70º da LULL, aplicável ex vi do art. 77º da mesma Lei, conta-se a partir da data de vencimento aposta no título pelo portador”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-10-2021 (Pº 2404/19.6T8AGD-B.P1, rel. RODRIGUES PIRES): “Atendendo a que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, daí decorre que ao avalista do subscritor da livrança é aplicável o mesmo prazo prescricional de três anos que se refere ao subscritor e que se inicia na data do respetivo vencimento. A declaração de insolvência do subscritor da livrança determina o imediato vencimento da obrigação que para o mesmo emergia da relação subjacente estabelecida com o credor, o que permite a este exigir, desde logo, a respetiva obrigação cambiária, podendo proceder, nessa data, ao preenchimento para esse fim da livrança emitida em branco, designadamente apondo-lhe como data de vencimento a data da sentença de insolvência. Porém, o preenchimento, nesta situação, de livrança emitida em branco com a aposição na mesma de uma data de vencimento posterior à da sentença de insolvência é de admitir se tal não constituir violação do que fora acordado no respetivo pacto de preenchimento. Assim, não havendo violação desse pacto de preenchimento o prazo de prescrição de três anos previsto no art. 70º da LULL conta-se a partir da data de vencimento que seja aposta na livrança pelo respetivo portador”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-10-2021 (Pº 703/20.3T8SNT-B.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE): “Não obstante a livrança em branco se tornar exigível a partir da data em que a sua subscritora foi declarada insolvente, o início do prazo prescricional de três anos para o seu portador exercer o direito de ação cambiária contra o avalista, reporta-se à data de vencimento inscrita no título cambiário e não à data daquela declaração”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-11-2021 (Pº 5999/20.8T8SNT-B.L1-6, rel. MANUEL RODRIGUES): “A certeza e a liquidez de dívida garantida por livrança em branco, em relação à qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art.º 10.º da LULL, aplicável por força do art.º 77.º do mesmo diploma, alcança-se após o vencimento da obrigação exequenda e o preenchimento e completude desse título cambiário, que, assim, fica revestido de força executiva As obrigações a que se encontrem adstritos devedores insolventes têm-se por vencidas por força da declaração da sua insolvência, como consequência da impossibilidade de cumprimento de tais obrigações (artigos 91.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1, do CIRE). Tendo as livranças dadas à execução sido transmitidas para a exequente/recorrente por efeito de negócio de cessão de créditos (art.º 582.º do Cód. Civil), podem os avalistas, aqui recorridos, opor àquela portadora e cessionário todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (artigo 585.º do Cód. Civil). Numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70º ex vi do artigo 77º, da LULL conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento da obrigação subjacente ou com o vencimento dessa mesma obrigação decorrente da insolvência do subscritor, em conformidade com o preceituado no artigo 91º, n.º 1, do CIRE”.
Noutra orientação jurisprudencial, contabilizou-se o prazo de início da prescrição de forma coincidente com a resolução do contrato subjacente ao título. Situa-se neste âmbito o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-06-2019 (Pº 5046/16.4T8CBR-A.C1, rel. SÍLVIA PIRES): “I– É comum que a subscrição de uma livrança em branco garanta a satisfação de um direito de crédito, facultando ao credor o acesso a uma ação executiva na hipótese de incumprimento da respetiva obrigação, sendo a livrança preenchida de acordo com o que tiver sido pactuado aquando da sua subscrição em branco pelo devedor, sob pena do preenchimento se revelar abusivo. II–A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva nos contratos sujeitos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (RCCG). III–Uma liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permitiria ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis, sendo certo que o nosso ordenamento não permite uma renúncia antecipada à prescrição – art.º 302º, n.º 1, do C. Civil – e comina com a nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição – art.º 300º do C. Civil –, o que suscita até a hipótese de invalidade do previsto naquela cláusula, por força do art.º 280º do C. Civil. IV– Destinando-se a livrança subscrita em branco a facilitar a cobrança do crédito em causa, na hipótese de se verificar o incumprimento da respectiva obrigação, resolvido o contrato, com fundamento nesse incumprimento, a boa-fé determina que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento, a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL.”.
Sobre esta questão discorreram, em termos diametralmente opostos a estas orientações, Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira (“Aval e prescrição”, in Revista de Direito Comercial, 2022, pp. 207-220, disponível no endereço: https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/61ed64968875f377643ed030/1642947735425/2022-05+-+0199-0228.pdf) assinalando o seguinte: “O artigo 70.º, n. º1, da LULL refere que todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. Resta saber se esta data de vencimento é a que o Banco, no exercício do seu direito de preenchimento, escolhe colocar na livrança ou deverá considerar-se como data de vencimento da livrança aquela que o Banco, no exercício do seu direito de preenchimento, deveria ter colocado na livrança, isto é, quando ocorreu a resolução do contrato de abertura de crédito a que a livrança servia de garantia, por parte do Banco, quer se entenda ser devido a incumprimento definitivo das obrigações pelo devedor, quer por vencimento antecipado das obrigações decorrente da declaração de insolvência da sociedade anónima avalizada na livrança (…). A questão do preenchimento da livrança em si é uma questão diferente do direito de o Banco poder escolher a data de vencimento da livrança. O momento do preenchimento pode ser (quase sempre é) diferente do momento do vencimento, pois este, normalmente, terá ocorrido em momento anterior, desde logo porque só nesse momento o Banco fica a conhecer o valor da obrigação que terá de preencher. Não está, portanto, em causa o direito de o Banco preencher a livrança, nem tão pouco que o prazo de prescrição se inicia a contar da data do vencimento da livrança, conforme prescreve o artigo 70.º, n.º 1, da LULL. Está sim em causa o poder do Banco em escolher livremente a data de vencimento que coloca na livrança. É verdade que no ordenamento jurídico português não se estipula, de forma expressa, quais os limites temporais para o exercício do direito de preenchimento da livrança em branco, e também é verdade que dos pactos de preenchimento préformulados pelos Bancos não resulta, na grande maioria das vezes, uma estipulação de prazo para o preenchimento nem a definição de qualquer critério que presida a esse preenchimento para efeitos de fixação da data de vencimento a colocar na livrança. Mas isso não significa, nem pode significar, que o Banco seja titular do poder soberano de escolher, segundo a sua vontade e só, qual a data de vencimento vai apor, porque isso não é o que resulta das regras de interpretação e integração das vontades dos negócios jurídicos. No caso em análise, em que existe uma situação de incumprimento das obrigações por vencimento antecipado das mesmas em virtude da declaração de insolvência da sociedade anónima avalizada, esta questão assume importância decisiva. Se se considerar, sem mais, que o Banco pode escolher o momento em que preenche a livrança e, ao fazê-lo, pode inserir de forma arbitrária o momento de vencimento da letra, sem ter em conta outros critérios, os quais são até de índole legal, isto seria equivalente a dizer que o Banco pode, se assim o quiser, contornar o prazo de prescrição previsto no artigo 70.º, n.º 1 da LULL, mesmo sabendo-se que esta norma tem natureza imperativa. Quer dizer, o factor estruturante do início do prazo de prescrição seria determinado pela vontade unilateral do Banco. Todavia, não cabe na vontade do Banco decidir sobre a aplicação daquela norma, pelo que, conceder-se que o prazo de três anos apenas começa a contar a partir da data de vencimento que o Banco escolhe colocar na livrança, é dizer que o prazo de três anos de prescrição começa a contar a partir da manifestação de vontade do Banco. Com isto fica desvirtuado de forma completa e grosseira o instituto legal da prescrição e a ratio legis daquela norma, concebida toda ela em função da celeridade dos processos cambiários. A admitir-se tal tese, seria o mesmo que dizer que o Banco pode decidir tornar os seus créditos imprescritíveis e dar como letra morta o estipulado no artigo 70.º, n.º 1 da LULL. Este resultado perverso que leva à inversão da finalidade do instituto da prescrição que é a de criar certeza, paz e segurança jurídicas, faz com que nunca haja certeza quanto ao fim do prazo de prescrição e, mais ainda, que pudesse nunca ocorrer a prescrição, na medida em que o seu início poderia ser manipulado. Ora bem, é precisamente isto que a lei não permite. É neste sentido que o artigo 300.º do Código Civil determina, expressamente, que são nulos os negócios jurídicos destinados a dificultar “por outro modo” as condições em que a prescrição opera os seus efeitos. E um destes outros modos é precisamente a manipulação do início do prazo de prescrição que impossibilita alcançar o justo equilíbrio dos interesses de credor e devedor, em prejuízo manifesto deste último que em relação ao Banco será sempre a parte mais fraca. A sociedade anónima Y, S. A., foi declarada insolvente, por sentença, a (…), e um dos efeitos da declaração de insolvência é o vencimento antecipado das obrigações, nos termos do artigo 91.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas. O artigo 43.º da LULL refere as situações a partir das quais o portador de uma livrança pode exercer os seus direitos de ação contra os obrigados cambiários, consignando que o pode fazer após a declaração de insolvência do devedor da obrigação garantida. Mais, o artigo 44.º da LULL refere que “no caso de falência declarada do sacado, quer seja aceitante, quer não, bem como no caso de falência declarada do sacador de uma letra não aceitável, a apresentação da sentença de declaração de falência é suficiente para que o portador da letra possa exercer o seu direito de acção”. É igualmente a partir deste momento que pode ser preenchida a livrança nela se apondo como data de vencimento a data da declaração de insolvência da sociedade anónima avalizada. Assim, claro fica que é a partir do momento da declaração de insolvência da sociedade Y, S. A., que o Banco passou a ter o direito de accionar a sua garantia, devido ao incumprimento da obrigação extracartular subjacente, podendo preencher a livrança contra o avalista e inserindo a data de vencimento, contando-se a partir desta data o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70.º, n.º 1 da LULL e não de um dia posterior qualquer que o Banco, arbitrariamente, resolve colocar no título como data de vencimento. Se fizermos um paralelismo rápido com as obrigações puras previstas no artigo 777.º do Código Civil, verificamos que apesar de exigíveis a todo o tempo as mesmas só se vencem com a interpelação do devedor para pagamento, mas não é neste momento que começa a contar o prazo de prescrição do direito de crédito correspondente, mas antes a partir do momento em que o credor tem a possibilidade de exigir esse cumprimento. Caso contrário, nessa situação, o credor poderia optar por interpelar o devedor para pagamento no limite do prazo de prescrição ordinário e, se só com a interpelação deste se iniciasse o referido prazo, poderíamos ter uma obrigação que prescreveria ao fim de quase quarenta anos, o que a lei não permite, uma vez que os prazos de prescrição não estão à disposição de um credor. Assim, tendo a insolvência da sociedade Y, S. A., sido decretada a 15.07.2011, o Banco podia ter preenchido a livrança, aliás como o fez, e demandado o avalista embargante/executado com base na mesma, porém a data de vencimento da livrança que colocou nunca poderia ser 15.05.2017 mas a de 15.07.2011, o que levaria a que o Banco tivesse de intentar a ação cambiária contra o avalista embargante/executado, in extremis, até 15.07.2014 e nunca depois dessa data, pois aqui a acção cambiária encontrar-se-ia prescrita. Queremos com isto salientar que não está em causa o direito do Banco para escolher livremente a data para preencher a livrança, mas, isso sim, o direito de o Banco poder escolher livremente a data de vencimento da livrança. A este respeito está condicionado. É verdade que a LULL não determina um prazo limite para o preenchimento da livrança, mas daí não se pode concluir que o credor a possa preencher quanto ao vencimento do título com qualquer data em que se lhe apraz fazê-lo, sem dependência de prazo ou limite de tempo, arbitrariamente e sem consideração pela outra parte. Se assim fosse, o direito de demandar o avalista, com base no título cambiário, seria susceptível de nunca prescrever, correspondendo-lhe uma vinculação virtualmente vitalícia, contrária aos ditames da ordem jurídica. Não pode o credor exequente preencher a livrança “apenas porque a detinha”. É evidente que pode exercer os seus direitos cambiários, mas deve fazê-lo dentro dos parâmetros da razoabilidade e com respeito pelas regras que determinam a prescrição. Quando um indivíduo exerce poderes que se configurem como direitos subjectivos ele é obrigado a manter-se dentro dos limites do razoável («within reason»). Pois em direito não existem direitos de exercício arbitrário. É sempre ilegítima a conduta manifestamente contrária ao razoável (…). Quem possuir um direito deve exercê-lo de maneira correcta e na altura devida. Caso contrário, o exercício é abusivo. Admitir que um avalista, ao celebrar o pacto de preenchimento que permite ao Banco indicar a data de vencimento, teria consentido em que este podia inserir qualquer data no futuro que lhe seria conveniente é falta de sensatez e de razoabilidade. Ninguém no seu perfeito juízo consente numa situação dessas, ainda por cima sem ter sido alertado para o efeito e sem ter tido explicações quanto ao risco que corre. A data de vencimento com que a livrança pode ser preenchida e com que o avalista consente é uma data legitimamente previsível dentro do contexto negocial cambiário – entre Banco e avalista – como é óbvio, e a previsibilidade para o avalista está correlacionada com a data em que a própria livrança ainda pode ser accionada. Sustentar uma “autonomia” do aval desligada do seu específico contexto negocial, à solta, abandonado à sua sorte, à espera de uma altura mais ou menos longínqua no futuro em que se vai inserir a data de vencimento na livrança, não é a autonomia que caracteriza o aval, mas uma perversão dessa autonomia. Na percepção do avalista, ao assinar o pacto de preenchimento nos termos em que ele lhe foi apresentado (e pré-formulado para ser assinado) e que permitiu ao Banco a inserção da data do vencimento, o prazo pelo qual se vinculava não era, e nem podia ser, um prazo indeterminado quanto à sua duração, mas sim um prazo enquadrado no seu contexto negocial e pelo período em que a obrigação cambiária que o seu aval garantia ainda era exigível, ainda não tinha prescrito. Não se pode esquecer que o pacto de preenchimento, como negócio jurídico que é, deve interpretar-se com base nos critérios previstos no artigo 236.º do Código Civil (…), que consagra a teoria da impressão do declaratário (…) Note-se, o Banco dentro dos três anos que correspondem ao período de prescrição, tem liberdade para escolher o momento do preenchimento da livrança e a partir daí accionar a garantia à mesma inerente, mas não pode esse seu poder exceder o limite dos três anos (…), o qual não está na sua alçada, antes resultando da lei com uma finalidade específica, o da segurança e certeza jurídicas, que não podem ser abandonadas nem contornadas por expedientes que não colhem qualquer utilidade ou vantagem para o tráfico jurídico. Mais, com esta inércia, o Banco além de contrariar esta lógica de celeridade, poderia até ser premiado se, fazendo os devidos cálculos temporais, usque ad terminum, o Banco viesse peticionar juros. E a imprescritibilidade não pode ser um prémio. E se assim não se entendesse, na prática, nunca um avalista teria hipótese de ver procedente a sua defesa sustentada na invocação desta excepção de prescrição, porquanto a experiência diz-nos que quando o Banco pretendesse executar, bastaria preencher a livrança com data de vencimento para os dias que antecedesse a entrada da acção executiva, aliás, de resto, o que aconteceu neste caso, em que apenas medeiam dez dias entre a data de entrada da ação executiva e a data de vencimento aposta pelo Banco na livrança. E não pode o Banco alegar que fica prejudicado com esta interpretação, dado que dispõe de três anos para preencher a livrança e intentar a acção executiva respectiva após o incumprimento das obrigações garantidas subjacentes, tempo que se afigura como perfeitamente razoável e adequado ao exercício de um direito (…)”.
Sendo percursor desta orientação doutrinal, referiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-09-2010 (P.º 425/07.0TBSCD-A.C1.S1, rel. PIRES DA ROSA, sumariado em “A Insolvência na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça”, Sumários de Acórdãos de 2005 a Julho de 2012, Gabinete de Juízes Assessores do STJ – Assessoria Cível, p. 45, disponível em: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/insolvencia.pdf) que: “Quem avaliza uma livrança sabe que subscreveu, autonomamente, uma obrigação que permanece (e cujo cumprimento lhe pode ser exigido) enquanto o título subsistir ou a obrigação incorporada não tiver sido extinta pelo pagamento, e isto independentemente de o avalista estar mais ou menos perto do avalizado, de continuar a ser ou deixar de ser sócio ou administrador ou gerente da sociedade que se avalizou. A declaração de insolvência determina o vencimento imediato de todas as obrigações do insolvente avalizado (art. 91.º, n.º 1, do CIRE) e sedimenta por completo a bondade do preenchimento da livrança exequenda, efectuado à luz do pacto celebrado para o efeito”.
Apreciando a ocorrência de abuso de direito, concluem os referidos Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira (“Aval e prescrição”, in Revista de Direito Comercial, 2022, pp. 222-228) o seguinte: “No que concerne ao venire contra factum proprium, (…), o exercício de um direito é sempre ilegítimo quando a conduta excede os limites do razoável. É a figura do abuso do direito que nos fornece a decisiva expectativa global do controlo da razoabilidade da solução. Com base no conteúdo do pacto de preenchimento da livrança havia uma legítima expectativa das partes de que a livrança, ao ser preenchida, seria completada de forma honesta, íntegra, conscienciosa e em respeito e com observância das regras da boa fé. É nisto que o avalista que avalizou a livrança podia e tinha que confiar. Na verdade, o avalista realiza um enorme investimento de confiança na pessoa do emitente da livrança, uma vez que será ele que vai, nos termos do pacto, preencher o título. Em princípio, o risco de um preenchimento abusivo é limitado quando os emitentes são Bancos ou outras instituições de crédito(…). Todavia, no caso em apreço, isto não sucedeu, porque ao preencher a livrança e inserir nela uma data de vencimento, que o avalista nunca podia prever, o Banco desiludiu e abusou da confiança que o avalista nele depositou. Obviamente, o Banco deu origem a uma situação que não pode deixar de ter criado no espírito do avalista a expectativa de que iria exercer os seus direitos de modo expectável, razoável e enquadrado nos ditames de boa fé. Posteriormente, com a forma com que preencheu a livrança o Banco frustrou de todo as legítimas expectativas do avalista e a confiança que este depositou nele Efetivamente, no exercício do seu direito de preenchimento, o Banco apenas olhou para os seus próprios interesses, apondo a data que melhor lhes servia e nem sequer justificou o motivo pelo qual colocou a data de 15.05.2017 como sendo de vencimento, e não a de 15.07.2011 como o avalista podia esperar(…). Tudo indica que a escolha da data serviu para a propositura da acção executiva, contornando com isso o início do prazo prescricional previsto no artigo 70.º, n.º 1, da LULL (…) o Banco ao apor na livrança dada à execução uma data que ultrapassa em muito mais que três anos a data da declaração de insolvência da sociedade anónima avalizada, mais precisamente cinco anos e dez meses, e tendo lançado mão de uma acção executiva com base nessa livrança apenas dez dias após a data de vencimento que, unilateral e arbitrariamente, colocou na mesma, demonstra que o preenchimento que efetuou foi “por encomenda e à medida da sua (e única) conveniência”, sem com isso se preocupar com as expectativas que legitimamente o avalista embargante/executado criou de que, decorridos os três anos da data da resolução do contrato de abertura de crédito, o Banco não poderia usar a referida livrança como título executivo, nos termos em que o fez, por estar prescrito o seu direito à ação cambiária. O princípio subjacente a todo o direito é uti non abuti, e este direito de escolha da data de vencimento da livrança em branco por parte do Banco não pode ser entendido de maneira diferente, a não ser como abuti (…). Em face do que foi exposto e analisado só nos resta concluir que o embargado/exequente, ao exigir, apoiado no aval prestado pelo embargante/executado, o pagamento do montante inserto na livrança, que serviu de título à acção executiva, invocou um direito já prescrito além de agir com abuso do direito nas modalidades do venire contra factum proprium e da Verwirkung (supressio)”.
Expostas, no essencial, as principais orientações que se defrontam sobre a problemática em apreço, importa sublinhar que as letras ou as livranças em branco devem vir a ser preenchidas em conformidade com o denominado “acordo de preenchimento”, o qual pode ser expresso ou estar implícito no negócio subjacente à emissão do título, podendo ser contemporâneo ou posterior à aquisição do título pelo exequente (cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2006, Pº 06A2589, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS), “sob pena de vir a ser considerado tal preenchimento como “abusivo”. O ónus da prova desse preenchimento abusivo impende, nos termos do artigo 342° nº 2 do C.Civil, sobre o obrigado cambiário, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do titulo de crédito” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-11-2004,Pº 04B34253, rel. FERREIRA DE ALMEIDA). “[O] pacto de preenchimento pode definir-se como o acto pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, nomeadamente no que concerne ao montante, à data do seu vencimento ou ao lugar de pagamento. Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito. Intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas, pode o executado/embargante/subscritor ou avalista opor ao exequente/beneficiário a violação desse preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título, sendo sobre o opoente que incumbe/incide o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-09-2020, Pº 913/19.6T8CVL-A.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA).
Conforme explica Pedro Pais de Vasconcelos (“Aval, informação e responsabilidade”, in Colóquios STJ – Comércio, Sociedades e Insolvências, CEJ, Abril 2020, pp. 56-57, disponível em: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/ebook_cej_coloquioinsolvencias_abr2020.pdf): “No campo extracambiário, regem as regras gerais dos pactos, no que tange ao pacto de preenchimento e ao pacto de aval, e regem os negócios subjacentes. Mas independentemente da enorme diversidade que podem assumir as convenções subjacentes, importa desde logo distinguir dois tipos de situações: aquelas em que o avalista é um verdadeiro terceiro face à relação subjacente e ao ato cambiário relacionado com o aval, e os casos em que o avalista participa nessa relação subjacente. Ambas as situações são frequentes, mas importa distinguir. Há casos em que o avalista é mesmo terceiro, em que não participou no contrato ou na relação de negócio que é subjacente ao ato cambiário do avalizado. O avalizado não tem de ser necessariamente o sacador ou o aceitante da letra nem o subscritor da livrança. É mais frequente que assim seja, mas pode ser outro interveniente na cadeia cambiária, por exemplo, um qualquer dos endossantes. Há casos em que o avalista é um puro terceiro, tanto formalmente como substancialmente. Nestes casos, não existe, entre o avalista e o portador que cobra o título, qualquer relação subjacente; o avalista e o exequente do aval estão no que, imprópria, mas tradicionalmente, se designa por “relações mediatas”. Noutros casos, muito frequentes, o avalista participou no contrato, na relação jurídica ou mesmo no negócio que constituem a relação subjacente ao ato cambiário do avalizado. Nesses casos, existe uma relação tripartida, trilateral ou triangular que envolve o portador que cobra o título, o avalizado (subscritor, ou sacador, ou aceitante, ou endossante) que deve o título e o avalista. Nestes casos, o avalista encontra-se naquilo que tradicionalmente se designa por “relações imediatas” e pode deduzir, contra o portador exequente, exceções emergentes da relação subjacente em que é parte conjuntamente com ele”.
Nesta matéria foi lavrado o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2013 (Ac. STJ de 11/12/2012), dele se alcançando, designadamente, o seguinte: “(…) tratando-se de uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstração e literalidade, se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma. O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito. A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente. Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal”.
Em suma, pode dizer-se, como refere Pedro Pais de Vasconcelos (“Aval, informação e responsabilidade”, in Colóquios STJ – Comércio, Sociedades e Insolvências, CEJ, Abril 2020, p. 53) que: “A posição cambiária do avalista é duma simplicidade e singeleza como dificilmente se encontra fora do direito cambiário: o avalista tem de pagar, sem discutir. Só pode recusar-se no caso de a sua assinatura ser falsa ou de vício de forma (artigo 32.º II LULL), ou em caso de prescrição (artigo 70.º LULL)”.
Contudo, ao abrigo do disposto no artigo 10º da LULL – onde se prevê que “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave” - os avalistas de um título cambiário em branco podem opôr ao credor certas exceções que, à partida, apenas poderiam ser opostas ao credor pelo avalizado (cfr., sobre o ponto, Carolina Cunha; “Aval em branco e plano de insolvência”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 145.º, n.º 3997, mar.-abr. 2016, pp. 210-211).
Assim, nesta perspetiva, haverá abuso de preenchimento quando o portador da letra ou livrança a venha a preencher de modo desconforme com o acordo de preenchimento celebrado entre o portador do título cambiário e o avalizado, quer tenha havido ou não intervenção do avalista em tal acordo.
De acordo com o que defende Carolina Cunha (“Nulidade do contrato garantido e aval em branco, Anotação ao Ac. do TRC de 19.02.2013”, in RLJ, ano 143.º, n.º 3982, p.73), atento o disposto no artigo 32.º da LULL, há uma extensão subjetiva e objetiva da obrigação do avalista, o qual está “segundo os cânones hermenêuticos vigentes no nosso ordenamento jurídico (art. 236 e 238 do CC) e ainda que tacitamente (art. 217 do CC) a declarar que pretende que o preenchimento se faça nos mesmos termos que vierem a vigorar para a concretização da obrigação cambiária do avalizado”.
Nestes termos, o subscritor em branco quer tenha existido uma expressa subscrição do título em branco quer por recurso à extensão objetiva e subjetiva nos termos do artigo 32.º da LULL da vontade manifestada pelo avalista no pacto – através processo de reconstrução da vontade manifestada – assumirá o risco do preenchimento abusivo, desde que, não haja má-fé ou falta grave do portador do título. “Ora, se existir uma divergência entre a vontade manifesta no pacto em relação ao que se encontra posteriormente preenchido no título, cabe ao avalista provar que o portador do título tinha conhecimento pleno da vontade manifestada pelo garante, sendo esta prova mais fácil quando o título não circula. Efetuada a prova da cognoscibilidade por parte do portador do título a pretensão cambiária terá de ser afastada, tal como, a possibilidade de intentar ação executiva contra o avalista” (assim, Sara Aleixo; “O aval cambiário dos sócios em título em branco. A paradoxa solução do AUJ n.º 4/2013”, in Revista de Direito das Sociedades, VIII, 2016, 3, p. 640).
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-12-2016 (ECLI:PT:TRC:2016:1419.13.2TBMGR.A.C1.D3, http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2016:1419.13.2TBMGR.A.C1.D3, rel. ANTÓNIO CARVALHO MARTINS): “1.-Em princípio, o avalista da subscritora de uma livrança posiciona-se fora das relações imediatas que se estabelecem entre o emitente desta e a subscritora, encontrando-se apenas numa relação de imediação com a subscritora avalizada. 2.-Mas já estará naquelas relações imediatas, podendo defender-se com os vícios da relação fundamental perante o credor-emitente-portador da livrança, se, tendo assinado o título em branco, for envolvido por esse emitente no pacto de preenchimento, ou com ele participar numa relação extra-cartular que interfira nas condições para esse preenchimento. 3.-Em tais circunstâncias, o avalista pode sempre opor ao credor cambiário o pagamento total ou parcial do crédito causal da emissão da livrança, ainda que esse pagamento tenha sido efectuado pelo avalizado, mas sem que, todavia, se possa furtar à averiguação circunstancial de enquadramento daquele excepcionado pagamento, ou da sua viabilidade. 4.-A obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado – com a ressalva da projecção do vício de forma desta sobre aquela -, embora a ela equiparada. 5.-A responsabilidade do avalista é, em suma, dada pela medida objectiva da do avalizado, mas independente da deste, sendo ainda aquele, quando avalista do aceitante da letra ou do subscritor da livrança –-a par de quem se colocou e com quem se solidarizou perante os outros obrigados cambiários -, obrigado directo e não de regresso. 6.-Ao dar o aval ao subscritor de livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título como ela «estiver efectivamente configurada» - arts. 10º e 32º-2. 7.-Na ausência de violação do contrato de preenchimento, ou de outro pacto posterior, o preenchimento do título tem de considerar-se, em princípio, legítimo, dele decorrendo a perfeição da obrigação cambiária incorporada na letra e a correspondente exigibilidade, nomeadamente em relação aos avalistas do aceitante que se apresentam como que «co-aceitantes» e, com ele, responsáveis solidários. 8.-Quando o avalista tenha tomado parte no pacto de preenchimento de livrança em branco, subscrevendo-o, devam ser qualificadas de imediatas as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança – pois que não há, nesse caso, entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas -, o que confere ao dador da garantia legitimidade para arguir a excepção, pessoal, da invalidade do pacto de preenchimento. 9.-Para que se coloque uma questão de preenchimento abusivo, enquanto excepção pessoal do obrigado cambiário, é necessário que se demonstre a existência de um acordo, em cuja formação tenham intervindo o avalista e o tomador-portador do título, acordo que este último, ao completar o respectivo preenchimento tenha efectivamente desrespeitado”.
Ora, no caso dos autos, lendo a petição inicial de embargos, deduzida pela embargante, verifica-se que a mesma invocou diversas causas destinadas a colocar em crise a exequibilidade do título dado à execução, invocando, como questão prévia, a nulidade da citação, e em sede de oposição à execução, invocando a falsidade da assinatura que lhe é imputada na livrança, a falta de título executivo, a ineptidão do requerimento executivo, a ilegitimidade da exequente, a prescrição, a incerteza e inexigibilidade da obrigação exequenda e o preenchimento abusivo do título.
Nomeadamente, sobre o pacto de preenchimento do título, a embargante alegou o seguinte: “(…) 11.-A Exequente não diz no requerimento executivo se a livrança lhe foi entregue em branco ou se foi preenchida; 12.-Também não diz em que ano terá sido avalizada (pelas restantes pessoas que alegadamente a assinaram), pela Embargante não foi avalizada seguramente; 13.-Pelo que, ainda que a Embargante, à cautela, quisesse lançar mão de outros argumentos para a sua defesa, está impedida de o fazer pela manifesta ineptidão do requerimento executivo; 14.-Nele não costa em que ano terá sido assinada a dita livrança (que a Embargante viu pela primeira vez no âmbito destes autos), nem o que é que a mesma visava garantir; 15.-Igualmente não é feita qualquer referência se a livrança foi entregue à credora em branco ou preenchida, 16.-E se foi entregue em branco qual é o pacto de preenchimento, nem se existe, nem o que é que este prevê quanto a montantes, prazos de pagamento, etc.; 17.-A Embargante desconhece em absoluto se existe pacto de preenchimento, se a livrança foi entregue em branco ou preenchida; (…) 20.-Assim e tratando-se de uma livrança em branco o título executivo teria que ser composto por esta e pelo pacto de preenchimento, o que não aconteceu, pelo que, também por esta razão se entende não existir título executivo para a presente execução; 21.-Ora, tendo sido a Exequente e preencher a livrança, imperioso se torna conhecer se o fez ou não de acordo com a autorização de preenchimento, que não juntou aos autos em complemento do título executivo nem nada alegou acerca da mesma (…) 39.-Tendo junto apenas a livrança, não reúne esta, no caso dos autos, tais requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade; nem tão pouco alega a Exequente que os Executados não tenham feito parte do pacto de preenchimento; aliás a Exequente nem alega que exista um pacto de preenchimento, não alegando também se se trata de livrança em branco ou não! (…)”.
A embargante juntou prova documental, arrolou prova testemunhal, requereu a prestação de declarações de parte dos executados JC, MC e do legal/legais representantes da exequente e requereu diversas diligências de prova, entre as quais, perícia à assinatura que consta da livrança, como sendo sua, a realizar por laboratório público.
A embargada, na contestação aos embargos, alegou, entre outra factualidade, o seguinte: “(…)II–DA ALEGADA FALSIDADE DA ASSINATURA CONSTANTE DO TÍTULO EXECUTIVO COMO SENDO DA EMBARGANTE: 12.- Alega a Embargante, e passa-se a citar, “A Embargante não assinou a livrança cuja cópia lhe foi enviada com a citação e que é a Livrança nº …, alegadamente emitida a favor do Montepio 13.- Pelo que, a assinatura que ali consta como sendo da ora Embargante é falsa;” 14.- Ora, carece de qualquer correspondência com a verdade, o alegado, cfr. infra se explanará. 15.- A verdade é que a Cedente CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, de boa fé, baseada em todas as garantias que lhe foi possível obter, celebrou com a Sociedade PRAZERES & CAETANO SOCIEDADE CONSTRUCOES, LDA, e a Executada, ora Embargante AC, o Contrato com o n.º … e respectiva livrança dada à execução, tendo procedido com todas as cautelas que lhe eram devidas, não lhe sendo possível conhecer de qualquer vício, nomeadamente o agora invocado pela Embargante, conforme Documento n.º 3 que ora se junta e cujo teor se considera integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos. 16.- Os serviços do banco cedente, agindo com toda a diligência que lhes é devida, pugnaram pela veracidade da assinatura da Embargante, comparando, a assinatura aposta no contrato, bem como, no pacto de preenchimento e respetiva livrança com os documentos de identificação pessoal apresentados. (…)VI– DA PRESCRIÇÃO DA LIVRANÇA: 74.- Mais, do próprio pacto de preenchimento não resulta que tenha sido convencionado qualquer prazo para o preenchimento da livrança no que se refere à data de vencimento, sendo certo que, verificado o incumprimento da relação subjacente, a portador pode – está autorizado a – preencher a livrança, mas não está obrigado a fazê-lo, sendo irrelevante, para o efeito de indicação da data de vencimento da livrança, o incumprimento do contrato ou a data da declaração de insolvência da mutuária. (…) 76.- Seguem, assim, expressamente impugnados os artigos 62.º a 96.º dos Embargos de Executado deduzidos, devendo em consequência improceder por não provados (…)”.
A embargada arrolou igualmente prova testemunhal.
Ora, conforme resulta do alegado, designadamente dos trechos sublinhados, está em causa saber se o Tribunal recorrido, quando, em sede de prolação de despacho saneador-sentença, conheceu do mérito da causa, detinha todos os elementos necessários para o efeito, ou se, ao invés, tal não sucedia e deveria a causa ter prosseguido para instrução, com produção probatória?
Para a resolução da questão em apreço cumpre apreciar em que condições tem de estar o julgador para poder conhecer do mérito da causa, em fase de saneamento dos autos, sem que se mostre necessária a realização de audiência de julgamento, ou seja, sem a produção de quaisquer outras provas.
O CPC permite o conhecimento do mérito na fase do saneador: “O despacho saneador destina-se a: (…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir,sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória” (cfr. artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC).
Assim, o juiz conhecerá – total ou parcialmente – do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se, em tal situação, habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente.
Conforme, elucidativamente, se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-07-2013 (Pº 295/12.7T6AVR.C1, rel. HENRIQUE ANTUNES): “Há que indagar se, entre as diversas soluções possíveis do problema, a adoptada pela decisão impugnada é aquela que, pelo menos, melhor perspectiva de acerto possui face ao sistema jurídico considerado no seu conjunto. Uma solução jurídica não é demonstrável - mas apenas argumentável. O ónus de argumentação que, com a exposição anterior, se procurou cumprir, mostra que há razões ponderosas que são susceptíveis de justificar, para a questão problematizada no recurso, uma solução plausível diferente. O despacho saneador pode apreciar tanto os aspectos jurídico-processuais da acção – como o mérito desta (…). No plano das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença. Na verdade, a apreciação do mérito da acção e o proferimento da decisão sobre a sua procedência ou improcedência é realizada, em regra, na sentença final (…). Mas em certas condições, essa apreciação pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode conhecer do mérito da acção nesse despacho sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, de algum dos pedidos cumulados, do pedido reconvencional ou ainda da procedência de alguma excepção peremptória (…). Caso isso suceda, o despacho saneador fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença e dele cabe, naturalmente, recurso de apelação (…). Portanto, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. Maneira que se os elementos os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final”.
Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 204) enuncia diversos casos em que é admissível ao juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador. Tal sucederá quando: “a)- os factos alegados pelo autor em qualquer dos articulados legalmente admitidos forem inábeis ou insuficientes para extrair o efeito jurídico pretendido (inconcludência), caso em que o réu será absolvido do pedido; b)- todos os factos integradores de uma exceção perentória se encontrem já provados, com força probatória plena (ou pleníssima), por confissão, admissão ou documento, do que resultará a absolvição do réu do pedido; c)- se deverem ter por provados todos os factos integradores da causa de pedir por não existirem exceções perentórias, serem os factos em que se fundariam inconcludentes ou plenamente provada a inocorrência de alguns desses factos, v.g., por prova dos factos contrários (procedência do pedido); d)- se se evidenciar a inconcludência dos factos em que se funda a exceção perentória ou prova, com força probatória plena, dos factos contrários (do que resulta ter a ação que prosseguir para apuramento dos factos que integram a causa de pedir)”.
O mesmo Autor (ob. cit., p. 205) considera que constitui ainda situação admissível de imediato conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, aquela em que todos os factos probandos principais que integrem causa de pedir (ou fundem exceções) apenas sejam suscetíveis de prova documental, constituindo o documento uma formalidade legal ou ad substantiam (art.º 364.º, n.º 1, do CC) ou pelas próprias partes (art.º 223.º, n.º 1, do CC) e, como tal, ser insubstituível por qualquer outra prova (cfr. artigo 364.º, n.º 1, al. c) do CC). “Já se os documentos forem exigidos para a prova de determinados factos (formalidade ad probationem), “podem eles ser substituídos por confissão expressa judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório” (artigo 364.º, n.º 2, do CC); pode assim, a ação ser julgada no despacho saneador se, não tendo sido apresentado o (exigido) documento, for produzido depoimento de parte (pela parte legitimada para confessar) na própria audiência prévia ou em prestação de informações ou esclarecimentos em juízo sobre factos que interessem à decisão da causa, sendo que realizando-se audiência prévia, pode para ela ser convocada – ex-officio ou a requerimento de parte contrária – a pessoa de qualquer um dos litigantes (artºs. 452.º e 453.º).” (assim, Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 205).
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, pp. 696-698) referem que “a antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes”, enumerando diversas situações em que o juiz pode conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o que sucederá sempre que não existam matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e de realização da audiência final.
Tal sucederá quando: “a)-Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento: nestas circunstâncias, é inviável a elaboração de temas da prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica; b)-Quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da ação para audiência final; mutatis mutandis quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados, se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação, inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão; c)-Quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental, caso em que o juiz proferirá despacho saneador-sentença (…). Com efeito, a audiência final, em torno dos factos abarcados pelos temas da prova, não se destina no essencial à apresentação de documentos, antes à produção de outros meios de prova, sujeitos a livre apreciação, pelo que se impõe a antecipação da decisão sobre o mérito da causa; d)-Nem sequer está afastada a possibilidade de apreciação do mérito, apesar da existência de outras soluções plausíveis sustentadas em matéria de facto ainda controvertida, desde que o juiz esteja ciente da segurança da sua decisão, embora neste caso deva avaliar os riscos de uma posterior anulação pela Relação, com fundamento na necessidade de ampliação da matéria de facto (art. 662.º, n.º 2, al. c), in fine); na verdade, a sua eventual revogação (…) pode prejudicar o efeito de aceleração emergente da antecipação parcial da apreciação do mérito da causa; é aqui que a utilização do prudente critério do juiz pode servir para selecionar os casos em que, apesar das divergências, se justifica o julgamento antecipado, no confronto com aqueles em que será preferível a enunciação dos temas da prova e a posterior atividade instrutória, com vista ao apuramento dos factos que interessem à correta e completa integração jurídica; como critério geral de atuação, deve o juiz optar entre proferir a decisão de mérito da causa ou relegá-la para depois da audiência final, depois de fazer um juízo de prognose acerca da relevância ou não dos factos ainda controvertidos; e)-Tratando-se de pedido único, conquanto a lei admita a decisão parcial, julgamos que, em regra, o juiz deve abster-se de tal decisão e deixá-la para final, opção que reflete o equilíbrio entre a celeridade do processo e a coerência das decisões; tratando-se de um pedido principal (v.g. capital mutuado ou reivindicação de prédio) e de pedido acessório (v.g. juros de mora ou avaliação dos prejuízos decorrentes da ocupação ilegal), parece ser mais vantajoso o conhecimento antecipado daquela pretensão; o mesmo ocorrerá quando tenham sido cumulados diversos pedidos principais ou quando tenha sido formulado um pedido principal e um pedido subsidiário e existam fundamentos para conhecer do primeiro”.
A jurisprudência tem apreciado, em diversos casos, a questão em análise. Disso são exemplo as seguintes decisões:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-07-2013 (Pº 295/12.7T6AVR.C1, rel. HENRIQUE ANTUNES): “O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-02-2017 (Pº 4716/15.9T8VCT-A.G1, rel. PEDRO ALEXANDRE DAMIÃO E CUNHA): “O conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador, permitido na alínea b) do n.º 1 do artigo 595º do CPC, só poderá acontecer (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental. Nessa medida, mostrando-se ainda controvertidos factos alegados pelo Autor que, com relevância, contendem com a causa de pedir subjacente aos pedidos sobre os quais o Tribunal decidiu pronunciar-se no despacho saneador, estava vedado àquele Tribunal conhecer imediatamente, nessa fase processual, do mérito desses pedidos”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-05-2019 (Pº 3610/18.6T8MTS.P1, rel. NELSON FERNANDES): “I- O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito. II- Face ao referido em I, apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-05-2020 (Pº 5598/18.4T8LSB.L1-7, rel. ISABEL SALGADO): “Ressalvadas as situações excluídas por lei, à partida toda a causa poderá ser julgada na fase intermédia do processo, posto que o julgador antecipe que, o proveito da fase instrutória dos factos controvertidos, ante a solução plausível de direito, seja indiferente para o destino do litígio. Em ordem a alicerçar a conclusão de que está habilitado a conhecer de imediato do pedido, o juiz não pode, todavia, cingir-se à sua percepção da realidade do facto controvertido, firmada através dos elementos documentais (e outros) já disponíveis nos autos; tal prognose, não se equivale, no momento do saneador, à suficiência da convicção antecipada do julgador sobre a realidade do(s)facto(s)”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-10-2020 (Pº 1002/19.9T8VNF-A.G2, rel. RAMOS LOPES): “Decorre do art. 595º, nº 1, b) do CPC, que o julgamento da causa no saneador, findos os articulados, tem como pressuposto estarem já apurados todos os factos relevantes para a decisão da causa – o que não acontece quando provas admissíveis e aptas à demonstração (e contraprova) de parte deles não foram ainda produzidas em vista de proceder ao julgamento sobre a sua veracidade”.
No caso, o Tribunal recorrido, depois de apreciar a exceção de ilegitimidade da exequente, invocada pela embargante e de sobre ela concluir que, dado que a sua apreciação dependia de prova a produzir e de relegar o seu conhecimento para final, veio, todavia, a julgar prejudicado o conhecimento de tal exceção, por entender que inexiste título executivo válido, nos termos que assinalou.
Tal inexistência de título assenta, na perspetiva do Tribunal recorrido, no abusivo preenchimento do título que imputou à embargada, considerando que, para a apreciação desta questão, o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao respetivo conhecimento a que empreendeu.
Ora, é importante que a decisão jurisdicional seja pronta, mas, é ainda mais relevante, que seja justa.
Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas.
Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento. A esta luz, o conhecimento do mérito da acção, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo. “Para que há-de prosseguir o processo, se não há factos sobre os quais possa incidir a prova ou se há já factos que devam considerar-se assentes que excluem, de harmonia com a lei substantiva aplicável, uma decisão de procedência? Não é razoável que, em nome do direito à prova, i.e., à apresentação de provas destinadas a provar os factos alegados em juízo, como dimensão ineliminável do direito ao processo justo, se prossiga num processo para demonstrar factos que, mesmo a provarem-se, não garantem à parte a procedência do direito que pela acção pretende fazer valer e declarar” (assim, o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-07-2013 (Pº 295/12.7T6AVR.C1, rel. HENRIQUE ANTUNES).
Mas tal apenas deverá suceder no caso de a apreciação do mérito da acção, segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objecto, não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada a decisão para o momento do despacho saneador.
Revertendo ao caso dos autos, afere-se em função da alegação produzida pelas partes nos respetivos articulados, designadamente, dos trechos acima sublinhados, que, aquando da prolação do despacho saneador-sentença, o processo não estava em condições de sobre ele poder ser proferida decisão final, impondo-se que se viabilizasse às partes a produção probatória sobre os factos que alegaram.
Nomeadamente, importava dilucidar a invocada questão da inexistência/existência de pacto de preenchimento que in/viabilize à embargada o preenchimento do título, com reflexo nas demais questões que cumpre apreciar, como sejam, a de prescrição ou a do preenchimento abusivo do título, entre outras.
Aliás, prévia a esta, colocar-se-á ainda a questão atinente à assinatura da livrança pela embargante, assinatura que foi impugnada, por falsa (cfr. pontos 1 a 8 de fls. 6 a 8 da petição de embargos), tendo a embargante requerido a produção de prova pericial à assinatura nela constante como sendo da embargante.
Para além deste aspeto, cumpre salientar que, os elementos documentais já juntos aos autos, não permitem descortinar a existência de algum pacto de preenchimento referente ao título cambiário que sustente a execução (sendo que, por exemplo, junto aos autos, encontra-se um termo de garantia referente a uma garantia de penhor, mas não referenciado a qualquer título cambiário, nem à forma do seu preenchimento, sendo que, os demais documentos juntos aos autos não titulam os termos de preenchimento da livrança em branco), mas, atento o alegado pelas partes, não resulta inviabilizado que tal prova não possa ainda vir a ter lugar.
A matéria de facto basilar para a decisão deste litígio encontra-se, pois, manifestamente controvertida e a decisão do litígio não se pode reconduzir à assunção, não factualmente demonstrada – porque não produzida ainda a prova suficiente sobre tal ponto – de que no preenchimento do título cambiário a embargada, ao escolher a data que ali apôs, agiu ilicitamente.
A nosso ver, não se encontra líquido, no estado que os autos apresentavam à data de prolação do despacho saneador-sentença proferido, nem se existiu, nem na afirmativa, qual a amplitude da autorização que tenha sido concedida à embargada para o preenchimento do título executivo, o que será decisivo para aferir se a embargada pode executar pelo mesmo, pelo valor que indicou, pelo que, permanecem em aberto e por resolver, as questões atinentes à existência da obrigação exequenda, da sua exigibilidade e liquidação e a ilegitimidade da exequente.
Igualmente, não se pode considerar, em face do exposto – e por se tratar de questão prévia, não dilucidada, nem prejudicada pela retoma que deverão ter os autos – a questão atinente à nulidade da citação.
Em suma: Encontram-se controvertidos factos que se mostram carecidos de prova e, assim, ao contrário do gizado na decisão recorrida, não é possível afirmar que, fosse qual fosse a sua prova, os mesmos conduziriam inelutavelmente à procedência dos embargos, pelo que, a decisão tomada, o foi, prematuramente.
Se os elementos fornecidos pelo processo não justificavam a antecipação do juízo sobre o mérito – por existirem outras soluções plausíveis da questão de direito - é meramente consequencial a revogação desse despacho e a sua substituição por outra decisão, com a prolação de despacho saneador, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º do CPC - apreciando, nomeadamente, as questões da nulidade da citação e da ilegitimidade da exequente - e prolação do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 596.º do CPC, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
A responsabilidade tributária incidirá sobre a parte vencida a final, atenta a impossibilidade de, por ora e sem o julgamento final, actuarem os critérios do vencimento ou do proveito recursórios – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5.–Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o saneador-sentença recorrido, prolatado em 26-11-2021 e, em sua substituição, determina-se seja prolatado despacho saneador, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º do CPC - apreciando, nomeadamente, as questões da nulidade da citação e da ilegitimidade da exequente - e despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 596.º do CPC, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique e registe.
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Lisboa, 28 de abril de 2022.
(Carlos Castelo Branco- Relator) (Orlando dos Santos Nascimento - 1.º Adjunto) (Maria José Mouro Marques da Silva - 2.ª Adjunta)