CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Sumário


Independentemente da detenção pelo arguido de um documento falsificado ou contrafeito, não se provando que o mesmo tivesse a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, tanto basta para que se considere não estar preenchida a previsão da norma quanto ao crime de falsificação.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica de Sesimbra (J2) do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal corre termos o processo comum singular n.º 234/20.1GBSSB, aí tendo sido, após a realização da audiência de julgamento, proferida a seguinte decisão (transcrição):

“Em face do exposto, o tribunal julga a acusação procedente e, em conformidade, decide:

Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro, com referência ao artigo 121º do Código da Estrada, na pena parcelar de 130 (cento e (seiscentos e cinquenta euros);

Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, alínea c), e 256.º, n.º 1, alínea f), e n.º 3 do Código Penal, na pena parcelar de 200 (duzentos) dias de multa, à diária de € 5,00, o que perfaz o montante de € 1.000,00 (mil euros);

Em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, condenar o arguido AA na pena única de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz € 1.300,00 (mil e trezentos euros).”

Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1 - O presente recurso vem interposto, no seguimento da sentença proferida no dia 2210-2021, no Processo Comum, Tribunal Singular, n.º 234/20.1GBSSB, que condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo Artº. 3º, nºs 1 e 2, do DL 2/98, de 3 de janeiro, com referência ao Artº. 121º do Código da Estrada, na pena parcelar de 130 dias de pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal, na pena parcelar de 200 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz a quantia de 1.000,00€. Em cúmulo jurídico, nos termos do Artº. 77º do Código Penal, condenar o arguido na pena única de 260 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz a quantia de 1.300,00€;

2 - No entanto, apenas se recorre da pena aplicada pela prática do crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal;

3 - Sendo que os fundamentos do recurso são de facto e de Direito;

4 - Assim, do recurso da matéria de facto, entendemos que não deveria o Tribunal a quo ter dado os factos 6., 7. e 8. como provados (no que tange ao crime de falsificação de documento);

5 - Dispõe o Artº., 413º, nº. 3, do Código de Processo Penal que:

“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”

6 - O Tribunal a quo, na Douta Sentença refere na matéria de facto provada que: “ 6) Ao abrir a carteira para fornecer os documentos solicitados, os militares da Guarda Nacional Republicana visualizaram a existência de uma carta de condução, carta essa que não era verdadeira.7) O arguido sabia que aquela carta de condução não correspondia à verdade e mesmo assim decidiu detê-la, bem sabendo não estar legalmente habilitado para a condução de veículos a motor na via pública, não se abstendo, contudo, de conduzir nos moldes como o fez e sendo portador de um título de condução que bem sabia não corresponder à verdade, o que quis e conseguiu. 8) Em todas as suas condutas agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas punidas e proibidas por lei”.

7 - As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, quanto à matéria de facto dada como provada, e que se requer que sejam renovadas: Declarações dos dois Militares da GNR (T e H), gravadas através do sistema de gravação habilus/citius (01m13s 1m21s; 02m04s 02m17s; 02m28s 02m36s; 03m38s 04m01s e 04m02s, bem como, 01m06s 01m32s; 01m38s 02m03s e 02m10s, respectivamente);

8 - Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo violou o disposto no Artº. 127º do Código de Processo Penal, porquanto se entende que não foi efectuada uma valoração racional e crítica da prova, de acordo com a lógica e regras da experiência comum;

9 - De facto, as regras da experiência, por si só, não permitem que, verificando-se que o arguido detinha, na altura dos factos, uma carta de condução apreendida, do cotejo do demais, se alcance, também, que o mesmo tinha intenção de alcançar um benefício ilegítimo;

10 - Desde logo, não foram os Militares da GNR que se aperceberam de que o arguido era detentor da carta de condução falsificada, já que, foi o mesmo, depois de a sua detenção estar absolutamente consumada e cristalizada que transmitiu àqueles que detinha aquele documento;

11 - O arguido, tendo sido abordado e tendo dito, ab initio, aos Militares da GNR, que não era possuidor de carta de condução, não quis tirar qualquer tipo de benefício ilegítimo para si, pelo simples facto de deter, naquele momento, uma carta de condução falsificada;

12 - Não quis, pois, conduzir a viatura, sabendo que a carta de condução era falsa;

13 - Uma carta de condução falsificada teria, quanto a nós, como único propósito, enganar elementos policiais, aquando de uma fiscalização no âmbito estradal;

14 - Como tal, e apesar de o arguido ser detentor de tal documento, não o tendo utilizado, então, dúvidas não podem restar de que o mesmo não quis alcançar um benefício a que sabia não ter direito, não pretendendo conduzir utilizando a carta falsificada, bem como, que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;

15 - E, assim sendo, os factos dos Pontos 6, 7 e 8 referidos supra terão de ser dados como não provados;

16 - Quanto ao do recurso da matéria de Direito, verifica-se que, estando em causa um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f) e n.º 3, ambos do Código Penal, terão de se verificar, além do elemento objectivo, também os elementos subjectivos do tipo criminal;

17 - Prevê o Artº. 256º, nº.1, f)- e nº 3, do Código penal que “1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”;

18 – Este tipo criminal, além do elemento objectivo, prevê, não só o “dolo genérico”, que pode ser directo, necessário ou eventual, mas também, um “dolo específico”, ou seja, uma intenção de alcançar um benefício ilegítimo;

19 - E tal situação, quanto a nós, não se verifica in casu, em virtude de o arguido, quando foi abordado pelos elementos da GNR, ter assumido, de imediato, que não era titular de carta de condução, não obstante saber que detinha uma carta falsa dentro da carteira;

20 - Ora, se o mesmo não se valeu daquela carta falsa, então, não concebemos que se possa considerar que se encontra verificado o referido “dolo específico”;

21 - O mesmo apenas revelou que detinha aquele documento, já depois de a sua detenção estar absolutamente consumada e cristalizada;

22 - Foi o próprio arguido que, em conversa informal, transmitiu aos Militares da GNR, que detinha aquele documento, sendo que, se não o fizesse, tal nunca teria sido detectado;

23 - E, assim sendo, na nossa humilde opinião, entendemos que não está verificado um dos elementos subjectivos do crime em apreço, pelo que, deverá o arguido ser absolvido, quanto ao crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal.

24 - Mas mesmo que assim não se entendesse, o facto é que a carta de condução falsificada é, quanto a nós, uma falsificação grosseira;

25 - E grosseira, porque basta uma observação normal, para se perceber, de imediato, algumas falhas, nomeadamente, a cor esbatida, os grafitis na diagonal, a fotografia incompleta, etc.;

26 - E, não tendo tal documento falsificado a virtude de conseguir enganar outrem, por não ser idóneo, então, verifica-se que tal situação é impune;

27 - Por tudo o exposto, salvo melhor opinião, o Tribunal a quo ao condenar o arguido AA pela prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal, violou o disposto no Artº. 127º do Código de Processo Penal e os Artsº. 255º,c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal;

28 - E, assim sendo, a Douta Sentença recorrida deverá ser revogada por ter violado o disposto nos Artsº. 127º do Código de Processo Penal e 255º, c)- e 256º, nº.1, f)- e nº.3, do Código Penal e substituída por outra que dê como não provados os Pontos 6,7 e 8 dos factos dados como provados e de que não se verifica a presença de um dos elementos subjectivos do tipo de crime dado como provado na Douta Sentença recorrida e, consequentemente, absolva o arguido da prática de crime de falsificação de documento, p. e p. pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal.”

Termina pedindo:

“Nestes termos e nos demais de Direito deve o presente recurso ter provimento revogando-se a Douta Sentença recorrida, em relação ao crime de falsificação de documento, sendo a mesma substituída por outra que absolva o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos Artsº. 255º, c)- e 256º, nº. 1, f)- e n.º 3, ambos do Código Penal.”

O recurso foi admitido.

Não houve resposta.

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP(1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II Fundamentação

2.1. Factos provados

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1 - No dia 04 de março de 2020, cerca das 19h40m, na Avenida …, …, …, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ….

2 - O arguido não tem carta de condução ou outro documento que o habilite a conduzir tais veículos.

3 - O arguido sabia que não tinha documento que o habilitasse a conduzir veículo daquela natureza e que tal documento é obrigatório, mas mesmo assim atuou da forma descrita, o que quis e conseguiu.

4 - Não obstante, alguém a solicitação e no interesse do arguido, com o intuito de ludibriar as autoridades policiais competentes, caso lho solicitassem, elaborou um documento intitulado Carta de condução.

5 - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), o arguido foi abordado pelos militares da Guarda Nacional Republicana da … e foram-lhe solicitados os documentos de identificação, bem como licença/carta de condução ou documento equivalente que o habilitasse a conduzir o veículo acima mencionado.

6 - Ao abrir a carteira para fornecer os documentos solicitados, os militares da Guarda Nacional Republicana visualizaram a existência de uma carta de condução, carta essa que não era verdadeira.

7 - O arguido sabia que aquela carta de condução não correspondia à verdade e mesmo assim decidiu detê-la, bem sabendo não estar legalmente habilitado para a condução de veículos a motor na via pública, não se abstendo, contudo, de conduzir nos moldes como o fez e sendo portador de um título de condução que bem sabia não corresponder à verdade, o que quis e conseguiu.

8 - Em todas as suas condutas agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas punidas e proibidas por lei.

Das condições pessoais do arguido

9 – Consta com última remuneração registada na Segurança Social em Setembro de 2021, com um valor de € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros).

10 - Tem registados em seu nome dois veículos automóveis ligeiros de passageiros: matrícula …, marca …, modelo … e matrícula …, marca …, modelo ….

O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:

11 - Uma condenação no âmbito do processo n.º 58/19.9…, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, …, Juízo Local Criminal, J1, de 28/10/2020, transitada em julgado a 27/11/2020, pela prática, em 17.02.2019, de 1 CRIMES(S) DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL, P.P. PELO ART.º 3º, N.1 E N. 2 DO DEC. LEI 2/98, DE 3 DE JANEIRO, na pena de 50 DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE 5,00, QUE PERFAZ O TOTAL DE 250,00 EUROS. Tal pena foi extinta por cumprimento por decisão de 12.05.2021.

2.2. Factos não provados com relevância para a decisão da causa

12 - Que tivesse sido o arguido a elaborar o documento que detinha, intitulado “carta de condução”.

13 - Que, ao apresentar aquela carta de condução aos militares da Guarda Nacional Republicana do modo descrito, o arguido visasse convencê-los que era detentor de título válido de condução com o qual poderia conduzir, criando desse modo a falsa aparência de que os elementos nele constantes correspondiam à verdade, o que bem sabia não acontecer, e que, com a sua atuação punha em causa a fé pública, a veracidade e a confiança de que gozam tais documentos, o que quis e conseguiu.

Inexistem outros factos não provados com relevância para a decisão da causa.

*

Os restantes factos são conclusivos, respeitantes a matéria de direito ou repetidos, pelo que não foram elencados.

2.3. Motivação da matéria de facto

Serviram de base para formar a convicção do tribunal a análise crítica e conjugada dos elementos probatórios que a seguir serão enunciados, apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, com exceção da prova pericial, relativamente à qual o legislador estabeleceu que o juízo técnico, científico ou artístico que lhe é inerente presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, conforme artigo 163.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. No caso concreto, inexistem motivos para afastar tal presunção, pois a convicção do julgador não é divergente do juízo contido na prova pericial (artigo 163.º, n.º 2, a contrario, do mesmo diploma legal).

(…)

*

Feitas estas considerações, cumpre referir que o tribunal formou a sua convicção através da análise dos seguintes meios de prova:

A - Depoimentos das testemunhas;

B - Prova documental;

C- Prova Pericial

- Relatório de exame pericial datado de 19.03.2020, elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, fls. 46 a 48.

*

Do elenco das provas enunciadas e da análise crítica das mesmas, no confronto das testemunhas e dos documentos juntos aos autos, concretizemos, embora de forma sucinta, em que precisos termos se formou a convicção do Tribunal relativamente aos factos submetidos a julgamento.

O arguido, apesar de regularmente notificado para comparecer em audiência de julgamento, não compareceu.

Foram inquiridas as testemunhas T e H, militares da GNR que, de forma isenta, credível e circunstanciada, confirmaram as circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas no auto de notícia, tendo concretizado que, na sequência uma fiscalização aleatória, abordaram o arguido, não tendo o mesmo qualquer documento que o habilitasse a conduzir, o que assumiu de imediato, em postura colaborante. Mais referiram que, quando o arguido estava a retirar os documentos de identificação da carteira, mencionou que era detentor uma carta de condução que lhe tinha sido entregue numa escola de condução, mas nunca tentou exibir tal documento como habilitação para conduzir, pois sabia que o mesmo não era verdadeiro.

Nessa sequência, procederam à apreensão de tal documento.

O tribunal atendeu ainda à informação do IMT de fls. 50, através da qual é possível concluir que o arguido, na data dos factos, não tinha título de condução válido para qualquer categoria, bem como ao auto de notícia e apreensão junto aos autos e, outrossim, ao teor do relatório pericial, onde consta que o documento apreendido é falso.

Relativamente ao elemento subjetivo enformador da conduta do arguido, o mesmo resulta do cotejo da matéria objetiva dada como provada, que permitiu a este Tribunal, com base na prova produzida, em conjugação com as regras de experiência comum, concluir pela sua verificação.

Consideraram-se os elementos de prova assim elencados suficientes para ter como provada a matéria supra exposta.

As condições pessoais do arguido resultam das pesquisas efetuadas junto das bases de dados e os antecedentes criminais decorrem do Certificado de Registo Criminal.

No que concerne aos factos não provados, os mesmos resultam da absoluta inexistência de prova de que tenha sido o arguido a fabricar ou elaborar o documento e, através dos depoimentos dos militares da GNR foi também possível aferir que o arguido, quando intercetado, nunca tentou exibir a carta de condução falsificada para tentar convencê los de que tinha habilitação legal para conduzir.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objeto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª – Contradição entre a fundamentação e a decisão.

2.ª - Impugnação da matéria de facto.

3.ª – Não integração dos elementos do crime.

B. Decidindo.

1.ª questão – Contradição entre a fundamentação e a decisão.

Segundo o art.º 410.º, n.º 2, alínea b), o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício (2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Dizem-nos Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (3), que “há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.

Como vimos, da fundamentação consta que os militares da GNR que tomaram conta da ocorrência afirmaram que o arguido assumiu de imediato que não tinha qualquer documento que o habilitasse a conduzir, mais afirmando que quando aquele estava a retirar os documentos de identificação da carteira mencionou que era detentor uma carta de condução que lhe tinha sido entregue numa escola de condução, mas nunca tentou exibir tal documento como habilitação para conduzir, pois sabia que o mesmo não era verdadeiro.

Esta fundamentação está em contradição com parte dos factos provados 6 a 8.

Assim, não corresponde à verdade que tenha sido ao abrir da carteira pelo arguido para fornecer os documentos solicitados, que os militares da Guarda Nacional Republicana tenham visualizado a existência de uma “carta de condução” inverídica, uma vez que foi o próprio arguido que mencionou a existência daquela, pelo que deve entender-se que o facto não está provado.

Daí que a referência a tal “carta de condução” no facto provado seguinte (7) deva ser reformulada, ficando apenas provado que o arguido sabia não estar legalmente habilitado para a condução de veículos a motor na via pública, não se abstendo, contudo, de conduzir nos moldes como o fez.

O mesmo devendo acontecer com o facto provado 8), que deverá passar a ter a seguinte redacção: “O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente de ser a sua conduta punida e proibida por lei.”

Atenta a reformulação factual acima mencionada, entende-se que é possível decidir da causa, não sendo necessário determinar o reenvio do processo para novo julgamento. (art.º 426.º, n.º 1)

O conhecimento da impugnação da matéria de facto mostra-se, assim, prejudicado, pelo que se conhecerá de seguida da 3.ª questão.

3.ª questão - Não integração dos elementos do crime de falsificação.

Consta da sentença recorrida que, “apesar de o arguido não a ter tentado exibir aos militares da GNR para fazer crer estar habilitado a conduzir veículos daquela categoria, a verdade é que era detentor de tal documento falsificado, portanto, tal documento estava em circulação. O/a arguido/a agiu, também no que respeita a tais factos, livre e voluntariamente, bem sabendo que não podia conduzir o automóvel na via pública por não ser titular de licença para tanto, e que não podia deter / pôr em circulação um documento falsificado. O/a arguido/a agiu, assim, com dolo direto, por saber e querer praticar os factos que compõem o tipo legal em apreciação.”

De acordo com o disposto no art.º 256.º do Código Penal:

“1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

(…)

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;

é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”

No caso dos autos, independentemente da detenção pelo arguido de um documento falsificado ou contrafeito, não se provou que o mesmo tivesse a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

Tanto basta para que se considere não estar preenchida a previsão da norma quanto ao crime de falsificação.

O recurso é, assim, muito embora por motivo diverso, procedente, devendo o arguido ser absolvido do crime de falsificação em que foi condenado.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que condena o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelos artigos 255.º, alínea c), e 256.º, n.º 1, alínea f), e n.º 3 do Código Penal, na pena parcelar de 200 (duzentos) dias de multa, à diária de € 5,00, o que perfaz o montante de € 1.000,00 (mil euros), absolvendo-se o mesmo de tal crime e desfazendo-se o cúmulo jurídico efectuado, mantendo-se apenas a condenação pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 10 de Maio de 2022

Edgar Valente

Laura Goulart Maurício

Gilberto da Cunha

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1 Diploma a que pertencerão todas as indicações normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Que é de conhecimento oficioso: Acórdão do STJ n.º 7/95, 28.12.

3 Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2020, página 78.