MINISTÉRIO PÚBLICO
INTERESSE EM AGIR
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
FUNÇÕES LEGAIS
Sumário

I - Ainda que tenha sido notificado o Ministério Público para se pronunciar sobre a eventual nulidade insanável do despacho de acusação e que este não se tenha pronunciado, não se pode extrair de tal omissão uma posição do MP de concordância (tácita) com uma hipotética futura decisão de declaração de tal nulidade, na medida em que tal configuraria uma espécie de implícito efeito cominatório em processo penal, sem que exista qualquer razão legal que suporte tal entendimento.

II – Para o efeito de integrar a figura da falta de interesse em agir prevista no art.º 401.º, n.º 2 do CPP, a posição anteriormente assumida no processo a que se refere o AFJ n.º 2/2011, de 16.12.2010 tem de ser uma posição expressa e, consequentemente, inequívoca. I
III - Atribuir à mera omissão de reacção processual a uma notificação de que poderá eventualmente vir a ser decidida questão em determinado sentido, uma intencionalidade concordante com este último, independentemente dos concretos fundamentos que virão a ser adoptados nessa futura decisão (e, como tal, desconhecidos na altura da notificação) é efectuar uma presunção que as premissas não permitem.
IV - Não cabe no âmbito das funções legais do JIC a qualificação formal dos despachos proferidos pelo MP durante o inquérito.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Instrução Criminal de Faro (J2) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro corre termos o processo de instrução n.º 409/21.6T9FAR, tendo aí sido proferido despacho judicial e, inconformado com essa decisão, recorreu o MP, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):

“1 - Ao julgar não ter o Ministério Público promovido o processo penal e verificado a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. b) do CPP, por entender que o Ministério Público não se pronunciou sobre a totalidade do objeto do inquérito, declarando nulo o despacho proferido a fls. 105, bem como todo o subsequente processado e determinando a remessa dos presentes autos novamente para a fase de inquérito, a fim de ali ser proferido despacho de arquivamento ou de acusação pela prática da totalidade dos sobreditos factos que integram a queixa apresentada a fls. 5 e seguintes., o despacho recorrido [fls. 162 e 163] violou os art.º 219.° n.º 1 e 32.° n.º 5 ambos da Constituição da República Portuguesa; 2.°, 3.° e 4.°, n.º 1, als. d) e e) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto; e 48.°, 53.° n.ºs 1 e 2, al. a), 119.º al. b), , 241.°, 262.°, 263.°, 267.° a 269.°, 278.°, 286.º e 287.° n.º 3, todos do Código de Processo Penal;

2 - Com efeito, o Tribunal a quo ignorou que é competência própria e exclusiva do Ministério Público, enquanto Autoridade Judiciária, nos termos do disposto no art.º 53.º n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, receber a queixa que deu origem a estes autos “e apreciar o seguimento a dar-lhe” sendo que, nos termos do disposto no art.º 262.º n.º 2 do mesmo diploma legal, só a notícia de um crime dá lugar à abertura de inquérito;

3 - Sendo o inquérito, nos termos do disposto no art.º 262.º n.º 1 do Código de Processo Penal, “o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”, o Ministério Público, no uso da sua competência própria e exclusiva e enquanto Autoridade Judiciária, nos despachos proferidos a fls. 36 e 62, não determinou a abertura de inquérito quanto aos factos denunciados que entendeu não integrarem qualquer tipo objetivo de ilícito ou já estarem prescritos determinando, inclusive, o Sr. Procurador da República Diretor do DIAP a alteração da complexidade para o crime de abuso de confiança e a redistribuição dos autos à secção genérica por a queixa não conter factos que integrassem crimes de violência doméstica e maus tratos, da competência da anterior titular afeta à secção especializada na investigação de crimes de violência doméstica e maus tratos;

4 - Os despachos que determinaram a não abertura de inquérito por aqueles factos foram oportunamente notificados ao queixoso e seu patrono, de fls. 67 a 69, não tendo sido tempestivamente impugnados por ninguém;

5 - Assim, o despacho recorrido, a fls. 162 e 163 dos autos, impondo ao Ministério Público a tramitação de um inquérito e a realização potestativa de diligências concretas que este antes declinara por despacho fundamentado, violou ostensivamente o quadro Constitucional, estatutário e legal que enforma o Ministério Público, como único titular da ação penal que é, e não o Juiz de Instrução, e a quem cabe exclusivamente a apreciação crítica do seguimento a dar às queixas recebidas bem como a direção funcional do inquérito no caso de constituírem notícia de um crime, violando, desta forma, o Tribunal a quo, o princípio do acusatório;

6 - A intervenção do Juiz de Instrução, em sede de inquérito, está limitada à prática ou autorização dos atos previstos nos art.ºs 268.° e 269.°, ambos do Código de Processo Penal, que contendem com os direitos, liberdades e garantias do arguido, não lhe cabendo imiscuir-se, como fez, na direção funcional do inquérito, que apenas compete ao titular da ação penal, ainda que discorde dos fundamentos dos despachos de fls. 36 e 62;

7 - O Tribunal a quo fez suas as funções que, no caso, apenas competiam ao imediato superior hierárquico dos Magistrados do Ministério Público que proferiram os despachos de abstenção de fls. 36 e 62, superior hierárquico que, nos termos do art.º 278. ° do Código de Processo Penal, era o único que os podia censurar e, por isso, ordenar-lhes a realização do inquérito preterido e, a final, a eventual dedução de acusação em função dos indícios recolhidos;

8 - Assim, é errado o entendimento expresso pelo Tribunal a quo segundo o qual, por aqueles factos pelos quais o Ministério Público não determinou a abertura de inquérito, tivesse de proferir despacho de arquivamento ou de acusação, pois a noção de notícia de crime que justifica a abertura de um inquérito pressupõe necessariamente que os factos integram um tipo objetivo de ilícito, que não se encontre prescrito o respetivo procedimento criminal e que não se encontre caducado o direito de queixa dos respetivos titulares nos casos de crimes semipúblicos e particulares pela simples razão de resultar deserto o objeto de tal eventual inquérito [segundo o n.º 1 do art.º 262.º do Código de Processo Penal].

9 - Quanto aos factos pelos quais não correu inquérito também nunca poderá ser admitida qualquer instrução, pois não foi realizado inquérito que permitisse ao assistente requerer a abertura de instrução e esses são requisitos bem patentes nos artigos 286.º n.º 1 e 287.º n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.

10 - Não há, pois, qualquer vício de falta de inquérito porque tal pressuporia que devesse ter existido inquérito e a decisão do Ministério Público foi precisamente no sentido contrário.

11 - A nulidade que o Tribunal a quo julgou verificada não se aplica sequer à situação que, no seu entender, julgou existir, mas sim quando o Ministério Público exerce a ação penal, acusando sem realizar inquérito quando tal é obrigatório.

12 - Não se antevê também fundamento legal para a conclusão extraída pelo Tribunal a quo para a nulidade que, no seu entendimento, julgou verificada, declarando nulo o despacho proferido a fls. 105, bem como todo o subsequente processado, pois que, não tendo havido inquérito pelos factos que o Ministério Público decidiu não integrarem a notícia de um crime juridicamente válida, nenhum ato concreto havia que declarar nulo por a investigação pelos restantes factos não ter mácula, restando-lhe apenas a decisão de, na lógica do seu entendimento, que não acompanhamos, mandar extrair certidão de todo o processado e remetê-la ao Ministério Público para instauração de inquérito – não obstante sempre se tratar de ordem ilegal e cujo cumprimento violaria o princípio da legalidade pois sobre aqueles factos já havia decisão anterior, emanada pelo Sr. Procurador da República Diretor do DIAP, de não abertura de inquérito.

13 - O despacho do Ministério Público que decidiu não abrir inquérito por determinados factos não está sujeito ao controle por parte do Juiz de Instrução, por ser alheio às suas funções, mas sim do Magistrado do Ministério Público diretor do DIAP.

14 - Embora não contenha relevância para a decisão do recurso, sempre se dirá que o queixoso podia reagir contra os despachos de fls. 36 e 62, dos quais foi devidamente notificado de fls. 67 a 69, não requerendo a abertura da instrução, mas suscitando a intervenção hierárquica.

15 - Essa possibilidade sempre resultaria do poder de fiscalizar e de emitir ordens e instruções que é cometida ao superior hierárquico nos termos do Estatuto do Ministério Público.

16 - Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, o despacho proferido pela Mm.ª Juiz de Instrução a fls. 162 e 163 ser revogado e substituído por outro que rejeite liminarmente o Requerimento de Abertura de Instrução quanto aos factos pelos quais não houve inquérito por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do art.º 287. ° n.º 3 do Código de Processo Penal, e declare aberta a Instrução quanto aos factos objeto do despacho de arquivamento que faz fls. 105 e 106.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o assistente AA concluiu que (transcrição):

“1. O tribunal notificou o Ministério Público para se pronunciar sobre a eventual nulidade insanável do despacho de acusação.

2. O Ministério Público não se pronunciou.

3. E consequentemente foi declarada a nulidade insanável dos presentes autos.

4. Tendo o Ministério Público apresentado recurso desse despacho.

5. Sucede que o Ministério Público não tem interesse em agir.

6. Ao não se ter pronunciado acerca da nulidade insanável o ministério público carece de interesse em agir.

7. Veja-se neste sentido o Acórdão STJ n.º 2/2011, publicado no Diário da República, n.º 19, Série I, de 2011-01-7 que fixou a seguinte jurisprudência: «Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.° a 53.º, e 401.º, do Código de Processo Penal o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo».

8. Ao não assumir qualquer posição o Ministério Público carece de interesse em agir.

9. Termos em que deverá ser rejeitado o recurso apresentado pelo Ministério Público.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Devidamente analisados os autos, constata-se que foi apresentada queixa-crime por factos que, tal como decorre do teor da própria queixa e do despacho proferido a fls. 36, integram a prática de outros ilícitos para além do crime de abuso de confiança sobre o qual versa, de modo exclusivo, o despacho de arquivamento proferido a fls. 105 dos autos.

Nesta sequência, procedeu-se à notificação dos intervenientes processuais para, querendo, se pronunciarem sobre tal facto, tendo sido junto aos autos o requerimento a fls. 159.

Cumpre, portanto, apreciar.

E, para o efeito, importa desde logo salientar que o despacho a fls. 36, consistindo num simples ato através do qual foi suscitada a intervenção do Magistrado do Ministério Público dirigente da secção não constitui um despacho final de inquérito, designadamente um despacho de arquivamento.

Deste modo, ainda que tais crimes pudessem encontrar-se prescritos, ou que faltasse outro pressuposto legal do procedimento criminal, devia o despacho de arquivamento ter versado sobre todos os factos que constam da queixa e que são passíveis de integrar a prática de um crime, mesmo que fosse para declarar fundamentadamente a sua eventual prescrição ou a caducidade da correspondente queixa.

Ocorre que, no despacho a fls. 105, embora se mencione o teor dos despachos a fls. 36 e 62, refere-se expressamente que o inquérito passou, em virtude destes últimos, a correr apenas quanto aos factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança agravado.

Considera-se, porém, que a redistribuição do inquérito se funda apenas em critérios de pura e simples organização de serviço, pelo que os despachos proferidos a fls. 36 e 62 não determinam que o inquérito passa apenas a correr quanto ao crime de abuso de confiança, mas antes que é segundo esse crime principal (o mais grave noticiado, conforme ali se refere) que o inquérito deve ser classificado, unicamente para efeito de distribuição de serviço pelos Magistrados do Ministério Público.

Neste pressuposto, impunha-se que no despacho final de inquérito o Ministério Público se tivesse pronunciado sobre a totalidade dos factos descritos na queixa, mesmo que fosse para considerar os restantes factos denunciados prescritos ou caduco o direito de queixa, o que não se verificou, designadamente quanto aos factos passíveis de integrar os crimes de falsificação de documento, falsas declarações e ofensa à integridade física.

Julga-se portanto que, não tendo o Ministério Público promovido o processo penal relativamente a estes factos, que apresentam natureza pública e semipública, se verifica a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. b) do CPP, a qual é do conhecimento oficioso, porquanto o Ministério Público não se pronunciou sobre a totalidade do objeto do inquérito (neste sentido, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2017, proc. n.º 97/12.0GAVFR.P1, relator Manuel Soares e o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.07.2016, proc. n.º 679/14.6GCBRG-B.G1, relator: João Lee Ferreira, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Pelo exposto, decide-se declarar nulo o despacho proferido a fls. 105, bem como todo o subsequente processado, determinando-se a remessa dos presentes autos novamente para a fase de inquérito, a fim de ali ser proferido despacho de arquivamento ou de acusação pela prática da totalidade dos sobreditos factos que integram a queixa apresentada a fls. 5 e seguintes.

Notifique e, oportunamente, remeta os autos ao DIAP competente, dando a correspondente baixa.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são:

1.ª questão – O MP não tem interesse em agir?

2.ª questão – Encontra-se normativamente escorada a decisão de declarar nula a decisão do MP?

B. Decidindo.

1.ª questão – O MP não tem interesse em agir?

Segundo o art.º 401.º, n.º 2, não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

Considerando que a lei não define tal conceito, o mesmo terá de ser encontrado pela doutrina e jurisprudência.

Assim, pode definir-se o mesmo como “… o interesse em recorrer ao processo porque o direito do requerente foi afectado e está necessitado de tutela judicial.” (2) Por seu turno, quanto à delimitação subjectiva do mesmo, “…este conceito de «interesse em agir» (…) aplica-se a todos os sujeitos processuais (seja ao MP, seja ao arguido). Em geral, o conceito de interesse em agir em processo penal estará directamente ligado a um princípio de proibição de comportamento contraditório por parte dos sujeitos processuais – aquilo a que normalmente se denomina como princípio de preclusão processual – que, no caso do MP, preferíamos denominar de princípio de «auto-vinculação»”, traduzida numa concreta “ausência de contradição (ou o exercício de direitos incompatíveis) (…) não tanto ao aspecto pessoal mas ao aspecto "institucional".” (3)

Especificamente no que respeita à conduta processual de determinado interveniente, pode afirmar-se que “a falta de interesse em agir consiste no resultado da aferição da utilidade que para o recorrente resulta da procedência do recurso, de acordo com um critério formal, pelo que não pode recorrer quem conseguiu pela decisão recorrida o que solicitou ou o que está de acordo com a sua conduta no processo.”(4)

A posição do STJ quanto ao concreto alcance deste conceito sofreu uma evolução frontalmente contraditória. Assim, de acordo com Acórdão para fixação de jurisprudência (AFJ) do STJ n.º 5/94, de 27.10.1994, “[e]m face das disposições conjugadas dos artigos 48° a 52º, e 401 nº 1 ° alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.” Por seu turno, consta do AFJ n.º 2/2011, de 16.12.2010 (que expressamente procedeu ao “reexame da jurisprudência” fixada pelo aludido AFJ n.º 5/94), que “… o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisoÞes concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.”

Independentemente da posição que se possa ter quanto ao estabelecido neste último AFJ (5), entendemos que, mesmo atendendo rigorosamente à jurisprudência nele fixada, não é possível afirmar que o MP, in casu, não tem interesse em agir.

Com efeito, ainda que tenha sido notificado o Ministério Público para se pronunciar sobre a eventual nulidade insanável do despacho de acusação e que este não se tenha pronunciado, entendemos que não se pode extrair de tal omissão uma posição do MP de concordância (tácita) com uma hipotética futura decisão de declaração de tal nulidade. Tal configuraria uma espécie de implícito efeito cominatório em processo penal, sem que exista qualquer razão legal que suporte tal entendimento. Entendemos, assim, que a posição anteriormente assumida no processo a que se refere o AFJ em causa tem de ser uma posição expressa e, consequentemente, inequívoca. Atribuir à mera omissão de reacção processual a uma notificação de que poderá eventualmente vir a ser decidida questão em determinado sentido, uma intencionalidade concordante com este último, independentemente dos concretos fundamentos que virão a ser adoptados nessa futura decisão (e, como tal, desconhecidos na altura da notificação) é efectuar uma presunção que as premissas, pura e simplesmente, não permitem. Por último, a interpretação proposta pelo assistente do art.º 401.º, n.º 2, impedindo em concreto o recurso do MP na decorrência de uma omissão na sequência de uma notificação de uma possível decisão em determinado sentido, viola o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, na medida em que retira daquele comportamento omissivo uma consequência extremamente gravosa para alcançar o fim pretendido, ou seja, sancionar um eventual venire contra factum proprium. (cfr. artigo 18.º, n.º 2 da CRP) Em síntese, falece a demonstração de que o MP, in casu, não tem interesse em agir.

*

2.ª questão – Encontra-se normativamente escorada a decisão de declarar nula a decisão do MP?

Segundo a decisão recorrida, tendo sido apresentada queixa-crime por factos susceptíveis de integrar a prática de outros crimes para além do crime de abuso de confiança e tendo o despacho de arquivamento de fls. 105 dos autos versado apenas sobre este crime, verifica-se a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea b), que é do conhecimento oficioso.

Ao invés, o MP (recorrente) entende que foi aberto inquérito apenas quanto aos factos susceptíveis de integrar o crime de abuso de confiança e, considerando que, no exercício das suas funções, o MP, enquanto autoridade judiciária que dirige o inquérito, tem competência exclusiva para analisar as queixas que lhe são apresentadas e determinar, ou não, a abertura de inquérito, não sendo tal actividade sindicável pelo juiz de instrução, pois que a queixa que não é objecto de inquérito é alheia ao exercício das suas funções.

Vejamos.

Desde logo, entendemos que não se nos afigura que a decisão do MP quanto aos demais crimes para além do abuso de confiança, tenha sido, como parece deduzir-se da posição do recorrente, tomada fora do inquérito. Com efeito, a queixa deu origem a um processo de inquérito e foi no âmbito deste que o MP tomou posição relativamente àqueles crimes. Decorre daí que não se coloca a questão (6) de se saber se, em face de uma queixa qualificada como manifestamente infundada, deve ou não ser necessariamente aberto pelo MP um inquérito.

Segundo o despacho recorrido, impunha-se que no despacho final do inquérito o Ministério Público se tivesse pronunciado sobre a totalidade dos factos (e crimes atinentes) descritos na queixa, mesmo que fosse para considerar os restantes factos denunciados prescritos ou caduco o direito de queixa, o que não se verificou, designadamente quanto aos factos passíveis de integrar os crimes de falsificação de documento, falsas declarações e ofensa à integridade física.

Porém, o MP efectivamente pronunciou-se sobre aqueles crimes, como resulta do teor do despacho de 22.02.2021, com o seguinte teor:

“Nos presentes autos, o denunciante refere que a 1.ª denunciada cometeu o crime de maus tratos sobre a sua pessoa. Porém, os factos relatados para integração do conceito de maus tratos, não integram a prática nem do crime de maus tratos, nem do de violência doméstica por falta de preenchimento dos elementos típicos objectivos – o de maus tratos porque o denunciante nunca esteve sob a guarda, sob a responsabilidade ou direcção da 1.ª denunciada, e o de violência doméstica por estar em falta o requisito da coabitação e também da especial vulnerabilidade do denunciante que só foi acometido de AVC após o alegado cometimento dos factos.

Resta, pois, enquadrar os factos na eventual prática dos demais crimes, todos eles da complexidade IO – os praticados em 2004 (falsificação de documentos e falsas declarações, ambos prescritos, sendo que os factos não integram o de prevaricação por não preencherem o tipo objectivo) e os praticados em 2013 (falsificação de documento e falsas declarações, estando o segundo já prescrito e, quanto ao segundo, cumpre referir que são suspeitos o próprio denunciante, sua esposa e a 1.ª denunciada), a ofensa à integridade física (sem que tenha sido apresentada queixa em 6 meses e estando o crime já prescrito), e o abuso de confiança relatado pelo denunciante como tendo sido cometido contra si e esposa pela 1.ª denunciante.”

O Mm.º Juiz a quo entende que este despacho não é um verdadeiro despacho de arquivamento, mas apenas um despacho interno, tendo como escopo unicamente a “distribuição de serviço pelos Magistrados do Ministério Público”.

Porém, entendemos que não cabe no âmbito das funções legais do JIC a qualificação formal dos despachos proferidos pelo MP durante o inquérito.

Mais entendemos que o despacho de fls. 22.02.2022 configura, substancialmente, um verdadeiro despacho de arquivamento quanto aos crimes ali referidos, do mesmo constando as razões que, na perspectiva do respectivo magistrado, fundamentam tal decisão, sendo certo que tal despacho foi, como prescreve o art.º 277.º, n.º 3, comunicado ao queixoso. Estava, pois, vedado ao Mm.º Juiz a quo, por tal razão meramente formal, declarar a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. b), ou seja, a nulidade decorrente da falta de promoção do processo pelo MP.

Já quanto à insindicabilidade de eventuais razões substanciais do arquivamento, ou seja, avaliar se “… a valoração jurídica ou factual constante do despacho se apresenta errada na parte em que a denúncia como manifestamente infundada” (7), não pode a mesma ser conhecida nos presentes autos, uma vez que não foi objecto da decisão recorrida, pelo que a pedida rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução quanto aos factos “pelos quais não houve inquérito”, por “inadmissibilidade legal da instrução” é, obviamente, improcedente. Igualmente quanto ao pedido de que o Mm.º JIC declare aberta a instrução quanto aos factos objecto do despacho de arquivamento, está também este TR impedido de conhecer do mesmo, uma vez que não é decorrência das questões suscitadas ou do âmbito do despacho recorrido (8), sendo o mesmo improcedente.

Em síntese, o recurso é, muito embora por fundamentos diversos dos invocados, parcialmente procedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 10 de Maio de 2022

Edgar Valente

Laura Goulart Maurício

Gilberto da Cunha

Sumário

I - Ainda que tenha sido notificado o Ministério Público para se pronunciar sobre a eventual nulidade insanável do despacho de acusação e que este não se tenha pronunciado, não se pode extrair de tal omissão uma posição do MP de concordância (tácita) com uma hipotética futura decisão de declaração de tal nulidade, na medida em que tal configuraria uma espécie de implícito efeito cominatório em processo penal, sem que exista qualquer razão legal que suporte tal entendimento.

II – Para o efeito de integrar a figura da falta de interesse em agir prevista no art.º 401.º, n.º 2 do CPP, a posição anteriormente assumida no processo a que se refere o AFJ n.º 2/2011, de 16.12.2010 tem de ser uma posição expressa e, consequentemente, inequívoca. I

III - Atribuir à mera omissão de reacção processual a uma notificação de que poderá eventualmente vir a ser decidida questão em determinado sentido, uma intencionalidade concordante com este último, independentemente dos concretos fundamentos que virão a ser adoptados nessa futura decisão (e, como tal, desconhecidos na altura da notificação) é efectuar uma presunção que as premissas não permitem.

IV - Não cabe no âmbito das funções legais do JIC a qualificação formal dos despachos proferidos pelo MP durante o inquérito.

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1 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, 2020, página 61.

3 José Damião da Cunha in “A Participação dos Particulares no Exercício da Acção Penal”, RPCC, Ano 8 (1998), fascículo 4.°, página 646-7.

4 Acórdão deste TR de 27.06.2017 proferido no processo n.º 61/09.7T3STC.E1 (Relator António João Latas) e disponível em www.dgsi.pt.

5 Em comentário a este AFJ [RPCC, Ano 21 (2011), n.º 1, página 200], José Manuel Damião da Cunha defende que “(…) quando esteja em causa o exercício material da acção penal (as questões processuais que com ela se visam resolver), o MP estará vinculado pelo princípio da confiança (ou da lealdade processual), mas esta vinculação em nada contende com o dever de objectividade a que a instituição MP continua a obedecer, quando seja obrigado a uma qualquer intervenção processual.” Em sentido essencialmente concordante, vide Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Quid Juris, 2020, páginas 940/1, sublinhando que o processo penal “não é um processo de partes”.

6 Efectivamente controvertida.

7 Paulo Dá Mesquita in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2.ª edição, 2022, Almedina, página 923.

8 Desde há muito se mostra incontroverso que os recursos são remédios jurídicos, destinando-se a corrigir erros in procedendo ou in judicando da decisão recorrida. Decorre de tal entendimento, que, “como é próprio da natureza dos recursos, estes não se destinam a apreciar questões novas, que não tenham sido submetidas pelo recorrente ao tribunal de que se recorre, mas apenas a reapreciar uma questão decidida ou que deveria ter sido decidida pelo tribunal a quo.” (Acórdão do STJ de 07.06.2006 proferido no processo 06P650 - Relator Henriques Gaspar)