CRIME PERMANENTE (NOVO)
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
COVID
Sumário


1 - Uma coisa é o crime permanente, outra é o crime instantâneo, mas com efeitos permanentes, mais propriamente, efeito duradouros.
2 - Assim, o início do prazo de prescrição do procedimento criminal ocorre quando o agente publicou o comentário alegadamente difamatório nas páginas da rede social Facebook e do Google Business, sítios da internet de divulgação dos serviços da assistente, e não no momento em que retirou esse comentário dessas redes sociais.
3 - A suspensão da prescrição prevista nas Leis 1-A/2020 de 19/3 e 4-B/2021 de 1/12 só se aplica aos factos posteriores à sua vigência.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do processo 1407/18.2T9LAG.E1 foi proferido o seguinte despacho:

“Notificados para se pronunciar quanto à eventual ocorrência da prescrição do procedimento criminal, a Assistente veio pugnar pelo não decurso do prazo prescricional, tendo-se o Ministério Público e o Arguido pronunciado no sentido da verificação da prescrição.

Ora, vem imputado ao Arguido AA o cometimento de um crime de ofensas a pessoa colectiva na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Tal crime, ao abrigo dos mencionados preceitos legais, é punível com pena de prisão até 8 meses.

Ora, tendo por base a aludida pena, resulta do plasmado no artigo 118.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal que o procedimento criminal prescreve ao fim de 2 anos se não houver qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição.

O prazo de prescrição começa a correr desde o dia em que o facto foi consumado e suspende-se ou interrompe-se nos casos previstos nos artigos 120.º e 121.º do Código Penal, respectivamente.

Como decorre da acusação deduzida a publicação que deu origem aos presentes autos foi realizada no dia 25 de Setembro de 2018.

Defende a Assistente de que o crime em causa se trata de um crime permanente «(…) uma vez que perdurou em quanto se manteve em execução a atividade lesiva do bem protegido pela norma incriminadora», e que, como tal, o prazo de prescrição apenas se pode iniciar a partir do momento em que a publicação é retirada.

Ora, em consonância com o defendido por M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio entende-se que « importa não confundir o crime instantâneo com o crime permanente quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, dado prolongarem-se no tempo. Todavia, são efeitos que dizem respeito às consequências nocivas que podem derivar do crime, em nada alterando a sua estrutura no que se refere à instantaneidade da consumação.»

A realidade é que, um crime de efeitos permanentes, não tem a virtualidade de se transmutar num crime permanente.

1 M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio in Código Penal, Parte Geral e Especial, Almedina, Setembro de 2018, página 530

Com efeito, ainda que se admitisse que, eventualmente, uma qualquer publicação na internet pudesse ter repercussões volvidos dois anos da mesma, isso não tem qualquer influência quanto ao momento da consumação do crime, que foi o momento da publicação.

Aliás, e fazendo um paralelismo do crime ora em discussão com o crime da difamação – que lhe é tão próximo – adere-se à posição vertida no teor do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 5/96 de 24 de Maio que plasma que « o momento da prática do crime em causa é o da publicação, não considerando que o crime perdura enquanto não se repuser a situação anterior (…) a difamação, mesmo que cometida através de publicação unitária, constituindo crime de abuso de liberdade de imprensa, não tem a natureza de crime permanente, consumando-se com a publicação do texto ou imagem, pelo que o prazo da prescrição do respectivo procedimento criminal tem início no dia da referida publicação, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal.»

Destarte, dúvidas não subsistem de que o crime se consumou no dia 25 de Setembro de 2018, tendo-se iniciado nessa mesma data a contagem do prazo de prescrição.

Subsequentemente, o visado foi constituído como Arguido no dia 17 de Dezembro de 2019 (vide fls. 126), o que constituiu uma causa de interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal, tendo-se este reiniciado nesta data. Cf. artigo 121.º, nº 1, alínea a) do Código Penal

Contudo, dispõe o artigo 121.º, n.º 3, do Código Penal que «sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.», prazo esse que teria terminado no dia 25 de Setembro de 2021.

Concluindo que o prazo prescricional já havia decorrido à data da notificação da acusação -pressupondo a inexistência de causas de suspensão do mesmo – é agora necessário verificar se ocorreu algum evento que tenha levado à suspensão do prazo prescricional, conforme alega a Assistente.

Verifica-se que o n.º 3 do artigo 7.º da Lei 1-A/2020 de 19 de Março que definiu as medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARSCoV-2 e da doença COVID-19 previu que «a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.»

Pelo que se diria que o procedimento teria estado suspenso, desde 9 de Março de 2020 (cf. artigo 6.º, n.º 2, primeira parte, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril) a 3 de Junho de 2020 (vide artigo 8.º da Lei 16/2020 de 29 de Maio.

Já o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021 de 1 de Fevereiro, que alterou a Lei 1-A/2020 de 19 de Março definiu novo prazo de suspensão da prescrição, que se iniciou em 22 de Janeiro de 2021 e terminou no dia 6 de Abril de 2021.

Coloca-se, porém, a questão de aferir se as medidas definidas pela referida Lei 1-A/2020 de 19 de Março – nas suas várias versões – podem ser aplicadas no caso vertente, ou se, pelo contrário, apenas podem ser aplicadas aos factos praticados durante a sua vigência.

Com efeito, a mencionada lei cria uma nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal a par das indicadas nos artigos 120.º e 125.º do Código Penal, respetivamente.

Atento o acima exposto, afigura-se que a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, sendo prejudicial ao Arguido – pois alargará necessariamente tais prazos de prescrição – apenas poderá ser aplicada aos factos praticados na sua vigência.

Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal se aplica a prazos, que à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, seria conferir-lhe um efeito retroativo proibido – em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa – porque mais gravoso para a situação processual do Arguido, alargando a possibilidade da sua punição.

Note-se, aliás, que o próprio n.º 6 do artigo 19.º da Constituição da República Portuguesa expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar […] a não retroactividade da lei criminal o direito de defesa dos arguidos […]» tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/86.

Assim ficou igualmente expresso nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º 1), 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º, n.º 1), e 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º, n.º 1), e nos demais diplomas que o renovaram.

Pelo que se entende que a suspensão do prazo prescricional prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei 1-A/2020 de 19 de Março e no artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021 que a alterou, não é aplicável in casu.

2 Neste sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Julho de 2020, processo n.º 76/15.6SRLSB.L1-5 e de 24 de Julho de 2020, processo n.º 128/16.5SXLSB.L1-5

3 Rui Cardoso e Valter Baptista in Estado de Emergência - Covid-19 ʹ Implicações na Justiça, 2.ª edição, páginas 608 a 610

Pelo que, não tendo ocorrido qualquer causa de suspensão – somente uma causa de interrupção – desde o mês de Setembro de 2018, decorreu o período correspondente ao prazo de prescrição, acrescido de metade, tendo-se a prescrição do procedimento criminal verificado a 25 de Setembro de 2021 – ainda antes da notificação da acusação, que consubstanciaria uma nova causa de interrupção/suspensão do prazo de prescrição que apenas se verificou a 25 de Outubro de 2021 –, data limite de acordo com o consagrado neste artigo 121.º, n.º 3, do Código Penal.

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Destarte, declara-se o procedimento criminal movido contra AA extinto por prescrição nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal.”

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Inconformado com a referida decisão, dela recorreu a assistente BB, Lda, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“I. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de direito do despacho proferido nos presentes autos, o qual declarou o procedimento criminal movido contra o Arguido extinto por prescrição, nos termos do disposto no artigo 118, nº1, alínea d) do Código Penal.

II. O Arguido vinha acusado pela Recorrente (na acusação particular), acompanhada pelo Ministério Público de:

a. “Em 25 de Setembro de 2018, o arguido publicou nas páginas da rede social Facebook e do Google Business, sítios da internet de divulgação dos serviços da assistente BB, Lda., o seguinte comentário em língua inglesa “We used BB one year to rent out our apartment and we were very disappointed. They didn´t reach any of their targets and the apartment was empty for most of the Spring, autumn and winter. Also we found out they fake the cleaning costs and mark them up twice as much from 7 to 14 euros per hour, so be ware! Very bad attitude and very tricky business that takes 60% of the revenue rather than the 30% they tell you. Use Airbnb instead, much better and much cheaper” que traduzido para a língua portuguesa quer dizer “Eles não alcançaram nenhum dos objetivos e o apartamento ficou vazio a maior parte da primavera, outono e inverno. Também descobrimos que eles falsificaram os custos da limpeza e cobram-nos a dobrar de 7 a14 euros, então tenham cuidado. Eles dizem que só cobram cerca de 30% da receita, mas através de um sistema complexo de serviços ocultos, são cerca de 60%. Nós também informamos que eles agora usam o Airbnb assim acabamos por pagar serviços a dobrar. Para resumir, eles também têm uma atitude muito ruim e maneiras. Evite esta gente e use em seu lugar Airbnb, que é muito melhor e muito mais barato”.

b. O arguido fê-lo no perfil público da rede social Facebook e do Google Business, relatando factos que não correspondem à verdade, publicações que são visíveis e facilmente acessíveis por um grande número de utilizadores das referidas páginas, e que deu origem a que diversos comentários.

c. O arguido sabia que ao disponibilizar publicamente estas publicações, fazendo referência a factos que não correspondiam à verdade, estava a ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que a assistente tem perante o mundo dos negócios, e mesmo assim, não se coibiu de o fazer, recorrendo sítios da internet conhecidos e utilizados grande número de utilizadores, facilitando, assim, a divulgação da sua publicação.

d. Sendo que não era possível a assistente apagar esses comentários difamatórios e injuriosos por parte do arguido, pois só ele mesmo o podia fazer, o que demonstra a continuação da sua atividade criminosa para com a assistente.

e. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

f. Tal conduta consubstanciava um crime de ofensas a pessoa coletiva na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 187º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

III. O douto Tribunal a quo, considerou que estaríamos perante um crime instantâneo, ao contrário do entendimento ora Recorrente, que considera o tipo de crime em causa, como um crime permanente.

IV. Estamos em presença de um crime permanente, uma vez que a atividade do arguido perdurou enquanto se manteve em execução a atividade lesiva do bem protegido pela norma incriminadora.

V. No crime em causa, a lesão do bem jurídico manteve-se durante todo o tempo em que os comentários se mantiveram publicados, e que só poderiam ser removidos pelo arguido, situação que só veio a terminar em novembro de 2021.

VI. Pois, sempre que alguém pesquisasse a página Google da Assistente iria encontrar o comentário do Arguido, e nos crimes permanentes, não só a consumação, como a execução, permanecem enquanto se mantiver o estado de compressão do interesse objeto jurídico do crime.

VII. No crime em causa, tendo em conta a conduta concreta do arguido, que se consubstancia no crime de ofensa à pessoa coletiva, não são os efeitos do crime que continuam no passar do tempo, mas é sim a conduta do arguido que perdura (a conduta termina com o retirar dos comentários que só pode ser feita pelo próprio arguido).

VIII. Pelo exposto, o douto despacho recorrido, andou mal, ao considerar que o crime em causa, é um crime instantâneo e não um crime permanente.

IX. Ora, nos termos do artigo 119.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal só se inicia desde do dia em que cessar a consumação do facto criminoso.

X. Logo, dado que o último comentário só foi retirado pelo Arguido pouco tempo antes do início da Audiência de Discussão e Julgamento (04/11/2021), o início do prazo da prescrição só começou a correr nessa data, pelo que o procedimento criminal não se encontra prescrito, pois tal só ocorre passados dois anos (artigo 118.º, n.º 1, alínea d) e 119.º, n.º 2 alínea a), ambos do Código Penal.

XI. Sem prescindir do supra alegado, sempre se dirá que ainda que se considere que o crime em causa não é um crime permanente (e ainda que seja), o procedimento criminal interrompe-se nos termos do artigo 121.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, logo com a constituição de Arguido, isto é, em 17/12/2019, sendo que a partir desta data voltou-se a contar novo prazo de prescrição.

XII. Decorre assim que, não pode considerar-se como certa que a notificação da acusação, tenha ocorrido apenas em 25/10/2021, uma vez que o próprio arguido refere em contestação que foi notificado já em 26/04/2021 da data de Audiência de Discussão e Julgamento, que seria a 08/06/2021.

XIII. Ora, se o arguido foi notificado a 26/04/2021, existe uma causa de suspensão da prescrição do prazo do procedimento criminal, nos termos do artigo 120.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

XIV. Com efeito, para além da interrupção ocorrida por via da constituição de arguido em 17/12/2019, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 121.º do Código Penal, o prazo de prescrição sofreu também uma nova interrupção, com a notificação da acusação ao arguido (que terá sido em 26/04/2021), de acordo com o disposto na al. b) do n.º 1 do art. 121.º do Código Penal, começando a correr novo prazo de prescrição, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 121.º do Código Penal.

XV. Atendendo a que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre no crime permanente desde do dia em que cessar a consumação, de acordo com o artigo 119.º, n.º 2 alínea a) do Código Penal, no presente caso, o prazo iniciou-se no dia do último ato de execução, pouco tempo antes de 04/11/2021.

XVI. Mas, ainda que não se considere o crime em causa como um crime permanente, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde do dia em o facto ilícito se tiver consumado, nos termos do artigo 119.º, n.º 1 do Código Penal, sendo que o prazo de prescrição teria o seu início a 25 de setembro de 2018.

XVII. O prazo prescricional foi interrompido com a constituição de arguido, a 17/12/2019 (cfr. folhas 126), e novamente interrompido com a notificação da acusação a 26/04/2021, nos termos do artigo 121.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal.

XVIII. De salientar que, com a referida notificação da acusação ao arguido (26/04/2021), também suspendeu o prazo de prescrição por força do disposto do artigo 120.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal, sendo que, esta suspensão terminou com a notificação da Audiência de Discussão e Julgamento ao arguido que foi em 17/09/2021.

XIX. Este prazo, contado desde a data da prática dos factos, momento em que se inicia a contagem do prazo de prescrição, se considerarmos que é um crime instantâneo (que não é o entendimento da Recorrente), iniciou-se no dia 25/09/2018 e terminou a 25/09/2021.

XX. Porém, importa ainda contabilizar o período relevante de suspensão, nos termos já indicados supra, pois é nesse sentido que o artigo 121.º, n.º 3 do Código Penal alude à expressão “ressalvado o tempo de suspensão”.

XXI. Ora, o tempo de suspensão foi de 4 (quatro) meses e 22 (vinte e dois) dias, por força da notificação da acusação ao arguido.

XXII. Portanto, o termo do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal ocorreria apenas a 16/02/2022.

XXIII. Importa ainda referir, com as interrupções de prazo prescricional que existiram e que levou à contagem de um novo prazo de 3 (três) anos, o mesmo só irá terminar em 26/04/2024.

XXIV. Não entende a Recorrente, e salvo melhor e douta opinião, porque considerou Tribunal a quo que existiu uma interrupção do prazo prescricional, conforme douto despacho, com a constituição de arguido no dia 17/12/2019, e não contabilizou o novo prazo prescricional, conforme estabelece o disposto do artigo 121.º, n.º 2 do Código Penal.

XXV. Em suma, não restam dúvidas que em 24/11/2021, data do despacho ora recorrido, o procedimento criminal ainda não se encontrava extinto por prescrição.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO E, EM CONSEQUÊNCIA SER DECRETADO QUE O PROCEDIMENTO CRIMINAL NÃO SE ENCONTRA PRESCRITO.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!”

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A Ministério Público respondeu ao recurso sem apresentar conclusões e pugnando pela improcedência do recurso.

Também o arguido respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“a) A douta sentença proferida não merece qualquer reparo, estando o procedimento extinto, por prescrição.

b) O arguido vinha acusado de um crime de ofensas a pessoa coletiva, previsto e punido pelos artigos 187.º e 183.º, n.º1 alínea a), ambos do Código Penal.

c) O procedimento criminal por este crime prescreve ao fim de 2 anos se não houver qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição.

d) O prazo de prescrição inicia-se no dia em que o facto foi consumado e suspende-se ou interrompe-se nos casos previstos nos artigos 120.º e 121.º do Código de Processo Penal, respetivamente.

e) O facto/publicação que deu origem aos presentes autos foi consumado no dia da referida publicação, ou seja, no dia 25 de setembro de 2018.

f) O acusado foi constituído arguido no dia 17 de dezembro de 2019 o que, em abstrato, constituí caso de interrupção do procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 121.º, n.º1 alínea a) do Código Penal.

g) O arguido foi notificado da acusação no dia 25 de outubro de 2019, o que, em abstrato, poderia configurar uma causa de interrupção e de suspensão da prescrição.

h) Porém, nos termos do disposto no artigo 121.º, n.º3 do Código Penal, a dita suspensão não pode vigorar além do prazo normal de prescrição, de 3 anos no caso em apreço.

i) Nos presentes autos não ocorreu nenhuma causa de suspensão, mas tão-somente uma causa de interrupção.

j) Desde o mês de setembro de 2018 decorreu o período correspondente ao prazo de prescrição, acrescido de metade, em setembro de 2021, antes mesmo da notificação da acusação ao arguido.

k) Sendo o mês de setembro de 2021 a data limite, de acordo com o disposto no referido artigo 121.º, n.º3 do Código Penal.

l) Trata-se de um crime instantâneo e não de um crime permanente.

m) Quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, por se prolongarem no tempo, são todavia os seus efeitos, isto é, as suas eventuais consequências nocivas que dai podem advir, em nada alterando a sua estrutura no que se refere à instantaneidade da consumação, conforme jurisprudência uniformizada proferida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º5/96, de 24 de maio, relativamente a um crime de difamação (próximo do crime dos autos).

n) Os factos de que o arguido vem acusado foram praticados no dia 25 de setembro de 2018, tendo-se iniciado nessa mesma data a contagem do prazo de prescrição.

o) O arguido foi constituído como tal no dia 17 de dezembro de 2019, o que constituí causa de interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal, tendo-se este reiniciado nesta data.

p) Porém, nos termos do disposto no n.º3 do artigo121.º do Código Penal, “sem prejuízo do disposto no n.º5 do artigo 118.º,a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.”

q) O prazo prescricional já havia decorrido à data da notificação da acusação.

r) Sendo certo que, nos presentes autos, não ocorreu nenhum evento que tenha determinado a suspensão do prazo de prescrição.

s) A suspensão do prazo prescricional prevista no artigo 7.º, n.º 3 da Lei 1-A/2020, de 19 de março e no artigo 6.º-B, n.º3 da lei 4-B/2021, que a alterou, não é aplicável nos presentes autos.

t) Desde setembro de 2018 decorreu o período correspondente ao prazo de prescrição, acrescido de metade, tendo-se a prescrição do procedimento criminal verificado a 25 de setembro de 2021.

u) Antes mesmo da notificação da acusação ao arguido, que consubstancia uma nova causa de interrupção/suspensão do prazo de prescrição, a qual apenas se verificou a 25 de outubro de 2021.

v) Termos em que deve o procedimento criminal ser extinto, por prescrição, nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º1 alínea d) do Código Penal.

Nestes termos e nos melhores de direito aplicável, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se, na íntegra, a douta decisão recorrida, concluindo-se pela extinção do procedimento criminal, por prescrito, como é de JUSTIÇA.”

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Neste tribunal da Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

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APRECIAÇÃO

Está em causa no presente recurso saber se o procedimento criminal se encontra prescrito por prescrição, tal como se entendeu no despacho recorrido.

Para isso há que verificar:

- qual o prazo de prescrição;

- desde quando se inicia esse prazo, designadamente saber se se trata, ou não, de um crime permanente;

- se ocorreu alguma causa de interrupção e/ou suspensão da prescrição.

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Prazo de prescrição

Está em causa a prática pelo arguido de um crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelos artºs 187ºnºs 1 e 2 al. a) e 183º, nº 1, al. a), do Cód. Penal.

Tal crime é punível, para além da alternativa da multa, com pena de prisão até 8 meses.

Assim sendo, nos termos do artº 118º, nº 1, al. d), do Cód. Penal o prazo de prescrição do procedimento criminal é de dois anos.

Início do prazo de prescrição

Entende a recorrente que se trata de um crime permanente e, por consequência, o prazo de prescrição só se inicia no dia em que cessar a consumação, nos termos do artº 119º, nº 2, al. a), do Cód. Penal.

Ainda no entender da recorrente, a consumação só cessou quando o arguido fez cessar a publicação do texto em causa nas páginas da assistente no facebook e no Google.

No entendimento do despacho recorrido, trata-se de um crime que não é permanente, embora os seus efeitos possam ser permanentes, e, por isso, o prazo de prescrição inicia-se na data em que ocorreram as publicações, ou seja, em 25/9/2018 (segundo a acusação particular, pois na acusação pública consta apenas o mês de Setembro de 2028), tudo nos termos do nº 1 do artº 119º do Cód. Penal.

Adianta-se já que acompanhamos o entendimento do despacho recorrido, sufragado pelo Ministério Público, quer na 1ª instância, quer neste tribunal da relação.

Com efeito, uma coisa é o crime permanente, outra é o crime instantâneo, mas com efeitos permanentes, mais propriamente, efeito duradouros.

Como refere Eduardo Correia, Direito Criminal, I, págs. 309 e 310, “Tipos de crimes permanentes são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo. É um exemplo de crime permanente o crime de cárcere privado. Na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um resultado anti-jurídico, que não tem aliás nada de caraterístico em relação a qualquer outro crime; outra, e esta propriamente típica, que corresponde à permanência, ou, vistas coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que, para alguns autores, consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz”.

Também no dizer de Maia Gonçalves, Código Penal Português, 18ª edição, pág. 453, “ Não confundir também a categoria de crimes permanentes, que são aqueles cuja execução se prolonga no tempo, como o sequestro, a deserção (crime essencialmente militar) e a omissão do cumprimento do dever de alimentos, com a categoria próxima de crimes de estado, como a bigamia. Nos crimes permanentes a execução persiste no tempo, porque há uma voluntária manutenção da situação anti-jurídica, até que a execução cesse, ficando então o crime exaurido; por isso o início do prazo de prescrição do procedimento criminal só se verifica quando cessa a execução, v.g., quando num crime de sequestro, o sequestrado readquire o jus ambulandi. Nos crimes de estado o agente cria uma situação, um estado anti-jurídico, do qual seguidamente se desprende, sem que esteja permanentemente e a todo o tempo a persistir na resolução (como sucede nos casos de crime permanente)”

O que ocorre aqui é uma situação parecida à dos chamados crimes de estado. Com efeito, o arguido publicou o texto em causa e a partir daí “desliga-se” dessa publicação. Não lhe interessa se o mesmo vai ser lido por mais alguém, ou não; não lhe interessa saber quantas pessoas mais o vão ler. A sua intenção de “ofender” não é persistente. É certo que quanto mais tempo permanecer a publicação, mais provável é que o número de pessoas que a vão ler aumente, mas isso tem que ver com as consequências, mais ou menos graves, da conduta do arguido e não com a persistência da vontade de “ofender”.

Tais consequências mais gravosas podem, e devem, ser tidas em conta para a fixação da pena nos termos do artº 71º, nº 2, al. a), do Cód. Penal, mas não mais do que isso. Não tornam o crime de instantâneo em permanente.

Já, por exemplo, num crime de sequestro, persiste a vontade de coarctar a liberdade do sequestrado, até que lhe seja restituído o jus ambulandi. Se não se considerasse que num crime deste tipo a prescrição só se inicia com essa restituição, corria-se o risco de, no limite, e se se considerasse o início do sequestro, o crime poder prescrever com o sequestrado ainda coarctado da sua liberdade.

Aqui não se passa nada disso: a publicação do texto é o acto que ofende a assistente, independentemente do número de pessoas que a vão ler.

É certo que o arguido podia retirar a publicação quando o entendesse e podia tê-lo feito mais cedo. Mas é a mesma coisa: o que ele faz, ao não retirar a publicação, é potencialmente aumentar o número de pessoas que a podem ler, não mais do que isso. Aumentam as consequências da sua conduta, mas não aumenta o número de ofensas, ou a duração da ofensa.

Até porque nada garante que mesmo que o arguido logo retirasse a publicação, a mesma, entretanto, não pudesse já ter sido divulgada por qualquer forma para uma outra qualquer “rede social” e aí continuasse a ser lida.

Na tese da assistente, se tal acontecesse, o arguido já tinha feito o que estava a seu alcance, mas ela continuava a ser “ofendida”.

O mesmo se passa com a situação que esteve subjacente ao acórdão de fixação de jurisprudência 5/96, d.r. de 24/5/1996, assim sumariado:

“A difamação, mesmo cometida através de publicação unitária, constituindo crime de abuso de liberdade de imprensa, não tem a natureza de crime permanente, consumando-se com a publicação do texto ou imagem, pelo que o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal tem início no dia da referida publicação, nos termos do artº 119º, nº 1, do Cód. Penal..”

Bem sabemos que ali se tratava de uma publicação unitária (um livro) e que se fez apelo ao que então constava na Lei de Imprensa, mas as razões que no essencial fundamentaram aquela decisão, são também aqui válidas.

Desde logo porque resulta do texto do referido acórdão que o entendimento é extensível às publicações periódicas (cfr. 1º parágrafo do ponto 3.3).

Depois porque a comparação com o crime de furto aí feita, tem também aqui plena validade e é bem elucidativa: também neste crime o “desapossamento” da coisa subtraída persiste enquanto não for devolvida ao seu legítimo dono, mas o crime consuma-se no momento da subtracção, independentemente do tempo pelo qual perdurar o “desapossamento”.

Também no furto está nas mãos do agente devolver o bem subtraído, tal como aqui estava nas mãos do arguido retirar a publicação, mas em ambos os casos o crime já está consumado: a ofensa à propriedade, no primeiro caso, e a ofensa à credibilidade, prestígio ou confiança, no segundo caso.

Temos, portanto, que o início do prazo da prescrição do procedimento criminal ocorre na data da publicação: 25/9/2018 (ou se se tiver em conta a acusação pública, o mais tardar em 30/9/2018, o que para o caso é indiferente).

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Eventuais causas de interrupção ou de suspensão do prazo prescricional

A recorrente veio agora em sede recurso (que não no requerimento que apresentou em 10/11/2021, na sequência de “convite” que lhe foi feito para se pronunciar sobre a eventual prescrição), suscitar a questão quanto à data em que o arguido foi notificado da acusação, notificação essa que nos termos do artº 120º, nº 1, al. b), do Cód. Penal seria causa de suspensão do decurso do prazo de prescrição.

Seja como for, o que resulta dos autos é que a prova de depósito relativo a essa notificação tem a data de 20/10/2021 (cfr. fls. 364º vº) e, por consequência, por força do artº 113º, nº 3, do C.P.P., considera-se feita a notificação 5 dias depois, ou seja, em 25/10/2021, tal como se considerou no despacho recorrido.

Não se tratou da “normal” notificação da acusação nos termos da 1ª parte do nº 5 do artº 283º do C.P.P., uma vez que conforme consta a fls. 168, o inquérito foi remetido para a distribuição nos termos da última parte do referido nº 5, ou seja, por se terem revelado ineficazes os procedimentos de notificação.

Assim sendo, foi apenas com a notificação de 25/10/2021 que o arguido teve conhecimento da acusação, sendo indiferente tudo o mais referido pela recorrente, designadamente a recusa do arguido, em 1/2/2021, em assinar a carta rogatória por não estar na sua língua (questão não suscitada na 1ª instância, mas da qual resulta que efectivamente o arguido não foi notificado, contrariando até o que se referiu no despacho que recebeu as acusações de que bastaria a “certificação que a correspondência foi entregue na caixa de correio da morada do arguido”), ou ter o arguido sido notificado da data do julgamento em 26/4/2021, ou ter o arguido comparecido para o julgamento.

Quanto à notificação para o julgamento, importa referir o seguinte: no início da contestação apresentada em 16/5/2021 (fls. 300 e segs.) o arguido alegou que “só em 26 de Abril de 2021 teve conhecimento de que se encontrava agendada a audiência de julgamento nos presentes autos através de SMS recebido no seu telemóvel e enviado pelas autoridades suecas”.

De tal não resulta, pois, que lhe tenha sido entregue cópia da acusação.

É certo que o teor da contestação revela o conhecimento do teor da acusação, mas isso é indiferente, uma vez que esse conhecimento pode ser da Mandatária do arguido e a contestação seguir “instruções” dadas pelo mesmo.

O que é certo, e isso é que importa, é que nos termos do artº 113º, nº 10, 2ª parte do C.P.P., a notificação da acusação (bem como do despacho que designa o julgamento) tem que ser feita na pessoa do arguido, e essa notificação só ocorreu em 25/10/2021, juntamente com a notificação daquele despacho, como, aliás, se determinou no despacho proferido em 14/9/2021 (cfr. fls. 363).

Temos, portanto, que quando ocorreu a notificação da acusação já tinham decorridos 3 anos desde a data da prática do crime.

Ora, nos termos do artº 121º, nº 3, do Cód. Penal, ocorre sempre a prescrição do procedimento criminal quando desde a data da prática do crime tenha decorrido prazo de prescrição acrescido de metade, ressalvado o período da suspensão.

Significa isto que o facto suspensivo da prescrição (notificação da acusação) ocorreu depois de ultrapassado o prazo de prescrição acrescido de metade, ou seja, 3 anos.

A interrupção ocorrida por virtude da constituição como arguido é indiferente porque há que ter em conta o referido nº 3 do artº 121º do Cód. Penal.

O procedimento criminal está, pois, prescrito, pelo menos desde 30/9/2021.

Uma última nota: no seguimento do que maioritariamente tem sido defendido pela jurisprudência, é nosso entendimento que a suspensão da prescrição prevista nas Leis 1-A/2020 de 19/3 e 4-B/2021 de 1/12 só se aplica aos factos posteriores à sua vigência, o que não é o caso.

É questão que se entende não abordar mais desenvolvidamente porque i) é questão que nem sequer foi abordada no recurso, ii) mesmo que se considerassem os dois períodos de suspensão por virtude das referidas Leis (de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021), tendo em conta a data (limite) de 30/9/2018, sempre estaria agora prescrito o procedimento criminal.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Deverá a recorrente suportar as custas com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (artº 515º, nº 1, al. b), do C.P.P.).

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Évora, 10 de Maio de 2022

Nuno Garcia

Edgar Valente

Gilberto da Cunha