I – Para a integração do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário, devem ser tido em conta, para além das circunstâncias em que os actos são praticados, as características do agente e as especiais qualidades do destinatário (v.g. se é agente policial, que normalmente se faz acompanhar de arma fogo); quanto a este último ponto, a idoneidade da violência há-de ser apreciada através de um critério objectivo-individual, pelo que, membros das forças de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios.
II - Assim, a relevância da violência para efeitos de preenchimento do tipo terá que ser sempre analisada em concreto, tendo em conta as efectivas capacidades e preparação do funcionário ofendido.
III – No caso, não obstante o agente da autoridade pública ser uma das pessoas com especiais qualidades para lidar com situações de “oposição” a uma detenção, a circunstância de o mesmo agente se encontrar sozinho perante o arguido, o nível de violência exercido (o arguido logrou empurrar o agente, deitando-o ao chão, provocando-lhe dores, apenas sendo possível dominá-lo pela acção de quatro pessoas, três das quais não detentores da qualidade de órgão de polícia criminal) e a manutenção de reiteração dos actos de violência permitem concluir que a conduta em causa foi idónea a obstaculizar de forma relevante a referida acção interventiva, encontrando-se, desta forma, preenchido o tipo de crime previsto no artigo 347.º do CP.
d) Defende então o recorrente (conclusões 1ª a 14ª) que para a consumação do crime em causa não basta a execução de uma acção violenta ou ameaçadora susceptível de impedir que o destinatário dessa acção possa exercer as suas funções ou constranger o mesmo que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, sendo ainda necessário que essa acção seja idónea a impedir ou coagir de facto o seu destinatário e que a gravidade da violência ou da ameaça seja suficientemente séria, devendo tal acto ser sempre aferido em função das capacidades do destinatário, considerando que é natural e compreensível que qualquer cidadão possa ter reacções de resistência e hostilidade perante a iminência ou execução da sua detenção. Assim, continua o recorrente, constata-se que em momento algum o agente da PSP se sentiu coagido, constrangido ou intimidado pelo arguido/recorrente mantendo-se sempre calmo, pelo que o comportamento do arguido não constituiu, como não constitui um meio idóneo de impedir o Sr. Agente da PSP de proceder à sua detenção, sendo que o Sr. Agente da PSP não se intimidou e não se coibiu de usar a força necessária para concretizar o acto que se propunha realizar.
e) A decisão recorrida, citando pertinentemente doutrina e jurisprudência (designadamente Leal-Henriques e Simas Santos, Cód. Penal Anot., volume II, p. 1083), considerou que para a consumação do referido crime torna-se necessário que se verifique o uso de violência, fazendo-a equivaler ao emprego de acto de força ou hostilidade idóneo a coagir o funcionário. Mais acrescenta, que essa “violência” a que se refere o n.º 1 do art. 347.º do CP, não tem de ser física, mas tem que constituir uma oposição activa (assim se afastando as hipóteses em que a pessoa em causa se limita a não colaborar passivamente com o funcionário).
Daqui conclui o tribunal a quo, que a mesma violência não tem de ser grave e nem sequer tem de consistir em agressão física; é necessário que se verifique uma simples hostilidade, idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima das autoridades.
f) A dificuldade residirá então em poder definir, no caso concreto, se o acto de violência é ou não idóneo a prosseguir ou obstaculizar a actuação do representante da autoridade pública, relembrando que o bem jurídico protegido pelo artigo 347º do Cód. Penal é a autonomia intencional do funcionário, considerando a liberdade na execução dos poderes das autoridades públicas – cfr. Pinto Albuquerque, Comentário do CP1, 3º ed., p. 1099, Univ. Católica.
Note-se que a nossa jurisprudência tem-se pronunciado de forma aparentemente dissonante: Assim, já foi considerado suficiente para preencher o tipo previsto do art. 347.º, n.º 1 do Código Penal, o simples esbracejamento de alguém que se encontra algemado (v.g. Ac. do TRE, de 18.02.2014, proc., n.º 183/11.4PFSTB.E1, in www.dgsi.pt, citado pela decisão recorrida); por outro lado, já foi avaliado que alguém desferir vários empurrões e insultos a agentes da polícia, não permite concluir pela verificação do crime (v.g. cfr. o Ac. TRE de 20-12-2018, processo nº 1155/16.8PBSTB.E1, e o Ac. da TRP de 17-04-2013, processo n.º 597/12.2GCOVR.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
g) A posição maioritária na nossa jurisprudência defende que para a integração do tipo, devem ser tido em conta para além das circunstâncias em que é praticado, as características do agente, e as especiais qualidades do destinatário (v.g. se é agente policial, que normalmente se faz acompanhar de arma fogo); quanto a este último ponto, defende-se que a idoneidade da violência há-de ser apreciada através de um critério objectivo- individual, pelo que membros das forças de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios – cfr. Cristina Líbano Monteiro e Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do C. P., respetivamente na p. 341 do Tomo III e p. 563 do Tomo I, 2ª ed., Ac do STJ de 24.10.2004, o Ac da R.P. de 26.11.2008 (www.dgsi.pt/jtrp, processo 0815669) e Ac RL de 09.05.2017, Ac. da Rel. de Évora de 26.11.2009, processo n.º 327/08.3PAABT.E1, ou o Ac. da Rel. do Porto de 27-6-2012, processo n.º 268/11.7GAVLC.P1; Assim, a «relevância da violência para efeitos de preenchimento do tipo terá que ser sempre analisada em concreto, tendo em conta as efectivas capacidades e preparação do funcionário ofendido» - Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2011, processo n.º286/10.2GCTND.C1, in www.dgsi.pt.
É esta orientação a que nos parece preferível, designadamente por atender ao bem jurídico em causa acima assinalado (a liberdade na execução das autoridades públicas), e por contemplar a circunstância de o acto de resistência a uma detenção surgir muitas vezes como um reflexo, ou pulsão instintiva, no sentido da preservação natural da liberdade individual, sendo por isso uma conduta socialmente aceitável dentro de certos limites; E se o agente cuja ordem é colocada em causa pela acção hostil, for uma das pessoas especialmente vocacionada para executar a detenção do comum dos cidadãos, a sua formação e treino contemplará precisamente aquela reacção natural de quem pretende preservar a sua autonomia física, mormente manter a sua liberdade de movimentos.
h) No caso concreto, recorde-se que resultou provado que no momento em que o agente da PSP informou o arguido que iria submetê-lo ao exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, o arguido logo recusou e, pretendendo furtar-se à realização daquele exame e às consequências da recusa, empurrou o referido agente de autoridade, projectando-o ao solo, tendo consequência directa e necessária, que o Agente da PSP sentiu dores e viu-se impedido de realizar os actos próprios das suas funções, tendo o arguido continuado sempre a empurrar o referido Agente até ser manietado por três cidadãos que vieram em auxílio deste, e ainda, que nesse contexto, e também depois no interior da esquadra para onde foi conduzido, o arguido repetiu expressões intimidatórias, tais como “vais-mas pagar” e “quando te encontrar na rua à civil logo vais ver”.
i) Avaliando esta factualidade, parece-nos que as atitudes do arguido se não parecem dotadas de idoneidade suficiente para inviabilizar a autonomia intencional do funcionário (no caso, o agente da PSP), acabaram por obstaculizar de forma relevante a prática dos mesmos actos funcionais. Isto porque a atitude do arguido não se limitou àquele reflexo ou instinto de defesa para preservação da liberdade acima assinalado; o arguido não só empurrou o mesmo agente por uma vez (com força suficiente para o deitar ao chão), como principalmente manteve esse comportamento, continuando a empurrá-lo, atitude de rebeldia e resistência que manteve posteriormente, ao dirigir ameaças contra aquele. E note-se ainda que o agente da PSP estava sozinho perante o arguido, e não numa situação de superioridade numérica que lhe permitisse com facilidade controlar a situação; nessa circunstância as atitudes do arguido surgem como especialmente idóneas no sentido da oposição eficaz ao acto relativo ao exercício das suas funções. E elemento decisivo para considerar a idoneidade dos actos do arguido, constitui o facto de a detenção do arguido apenas ter sido possível levar a cabo com a ajuda de 3 cidadãos que vieram em auxílio do agente da PSP, assim se comprovando que a autoridade pública não seria, com toda a probabilidade, exercida apenas por acção do seu agente, como seria desejável que acontecesse.
Por último é de notar que resultou provado o facto n.º 3, no qual se lê que como consequência directa e necessária, o agente da PSP sentiu dores e viu-se impedido de realizar os actos próprios das suas funções. Ainda que esta segunda parte seja algo conclusiva, o certo é que o arguido não recorreu da matéria de facto, assim se adquirindo para o processo que a acção do arguido, em concreto, colocou em causa o livre exercício do poder de autoridade pública confiado ao mesmo agente da PSP.
j) Em suma, não obstante o agente da autoridade pública ser em concreto uma das pessoas com especiais qualidades para lidar com situações semelhantes à dos autos, a circunstância de o mesmo agente se encontrar sozinho perante o arguido, o nível de violência exercido (o arguido logrou empurrar o agente, deitando-o chão, provocando-lhe dores, apenas sendo possível dominar o arguido pela acção de por 4 pessoas, 3 das quais não eram gentes da autoridade pública), a manutenção e reiteração dos actos de violência, permitem concluir pela idoneidade concluir que os referidos actos de violência foram idóneos a obstaculizar de forma relevante a actuação do representante da autoridade pública, sendo assim o recurso improcedente nesta parte.
k) Passemos a apreciar a segunda questão (conclusões 15ª e ss.), defendendo o recorrente que as penas aplicadas pelos crimes de desobediência e desobediência qualificada, são desproporcionais e excessivas. A decisão recorrida, após discorrer adequadamente sobre os critérios que devem presidir à escolha e medida da pena, fixou a pena de multa de 90 dias (dentro de uma moldura que ia dos 10 aos 120 dias) para a prática do crime de desobediência simples, e dentro de uma moldura que varia entre os 10 a 240 dias, aplicou a pena de 190 dias de multa pela prática do crime de desobediência qualificada.
O tribunal a quo fundamentou da seguinte forma aquelas penas:
“(…) Contra o arguido depõem:
- o grau de ilicitude dos factos e o modo de execução destes que se afigura elevado, comum aos três crimes praticados no dia ..., em face do modo de actuação do arguido que se apurou e da diversidade e multiplicidade dos seus comportamentos criminosos no mesmo dia e não se olvidando a manifesta e gravosa violência física que quis usar e usou contra o Sr. Agente da PSP que necessitou, inclusive, de ser auxiliado por três cidadãos, dada a pujança física do arguido;
- a gravidade das consequências dos factos praticados manifestada nas dores que o Sr. Agente da PSP sentiu devido às condutas do arguido;
- o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, comum aos três crimes praticados, que se afigura elevado pois tinha o arguido, como qualquer cidadão, um especial dever de respeito em relação ao Sr. Agente da PSP que apenas exercia as suas funções de manutenção da segurança e da paz social;
- a intensidade do dolo do arguido, também comum aos três crimes, que reveste a forma de dolo directo, constituindo o grau máximo de censura da conduta adoptada;
- a conduta posterior aos factos no que concerne aos três crimes praticados: O arguido não denotou qualquer arrependimento, assumiu uma postura desculpabilizadora e imputou a responsabilidade dos acontecimentos ao Agente da PSP que agrediu e ameaçou, acusando-o ainda, em julgamento, sem qualquer fundamento, de o ter a ele (arguido, que teve de ser manietado por um Agente da PSP e três cidadãos!) tratado de modo desumano, o que só demonstra a total ausência de consciência crítica do arguido e um risco de reincidência.
A favor do arguido depõe:
- a conduta anterior aos factos: o arguido não regista antecedentes criminais. Deste modo, reflectidos e ponderados estes factores, quanto ao arguido, em relação aos três crimes em apreço, a culpa é de valor elevado, uma vez que o seu comportamento merece um relevante juízo de censura ético-penal.
Quanto às necessidades de prevenção geral positiva, as mesmas, como vimos, são elevadas, atento o crescente índice de violência física que se verifica na sociedade portuguesa, nomeadamente, contra agentes de autoridade no exercício das suas funções, sendo necessário o reforço do sentimento de segurança comunitária dado o incremento de crimes deste jaez que se têm verificado na sociedade portuguesa nos últimos anos, crimes que denotam um inerente desrespeito pela autoridade pública, sendo imperioso prevenir este tipo de condutas e garantir a obediência devida às ordens de autoridade, sob pena de se gerar um significativo alarme social, desencadeando-se uma sensação de desordem pública, potenciando-se a multiplicação de actos de descrédito e afronta à autoridade na sua função de manutenção de paz social.
Ademais, as exigências de prevenção especial são, pelo menos, medianas, devido à total ausência de arrependimento e de consciência crítica e à postura de vitimização e de imputação, sem qualquer fundamento, da responsabilidade dos acontecimentos ao Sr. Agente da PSP ofendido que, além de agredido pelo arguido, ameaçado pelo arguido, foi em julgamento acusado (sem processo crime de base), pelo arguido, de lhe efetuará um “tratamento desumano”.
l) Não discordamos dos critérios acima assinalados considerados pela decisão recorrida.
Todavia, há que reconhecer que tendo a maioria das circunstâncias sido consideradas conjuntamente relativamente à fixação das penas quanto aos 3 crimes praticados pelo arguido, ocorre uma discrepância entre a pena fixada para o crime de resistência e coacção sobre funcionário e as penas fixadas para os crimes de desobediência simples e de desobediência qualificada.
Isto porque, enquanto naquele crime, numa moldura penal de 1 a 5 anos se fixou a pena de 2 anos (ou seja, ainda significativamente abaixo do seu meio), no que tange ao crime de desobediência, foi fixada uma pena de 90 dias (ou seja, muito perto dos 3/4 da respetiva moldura), e quanto ao crime de desobediência qualificada, uma pena de multa de 190 dias (já acima dos 3/4 da respectiva moldura abstracta).
Esta discrepância ou incoerência é ainda mais evidente, se tivermos em consideração que quanto ao crime de resistência e coacção sobre funcionário foram enunciadas circunstâncias agravantes que não se verificavam quanto aos outros 2 crimes de desobediência. Note-se que foi considerada a “gravosa violência física, (…) a gravidade das consequências dos factos praticados manifestada nas dores que o Sr. Agente da PSP sentiu devido às condutas do arguido, assim como se avaliou, quanto ao crime de resistência e coacção sobre funcionário que (…) as necessidades de prevenção geral positiva eram elevadas (referindo-se a decisão recorrida ao índice de violência física que se verifica na sociedade portuguesa, nomeadamente, contra agentes de autoridade no exercício das suas funções).
Corrigindo então nesta parte a sentença sob recurso, considerando os elementos acima referidos, e ainda que as necessidades de prevenção geral quanto aos crimes de desobediência não são particularmente elevadas (ao menos no confronto com as que se verificam quanto ao crime de crime de resistência e coacção sobre funcionário), e dentro da moldura penal respectiva decidimos:
- quanto ao crime de desobediência (10 a 120 dias – art 348.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal) fixar a pena de 50 dias;
- quanto ao crime de desobediência qualificada (10 a 240 dias - art 348.º, n. 2 do Cód. Penal) fixar a pena em 100 dias.
m) Passando a fixar a pena de multa única, tendo como pressuposto as novas penas parcelares, novamente com recurso aos critérios acima assinalados determinados pelo artigo 77º do Cód. Penal, a moldura a considerar, terá como mínimo a pena de 100 dias (pena mais alta do concurso), e quanto ao limite máximo, a soma das penas parcelares corresponde a 150 dias.
n) Tudo ponderado, considerando as circunstâncias no sentido do agravação e da atenuação da medida da pena acima enunciadas, concluímos como ajustada a pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa.
Coimbra, 18 de Maio de 2022
João Novais (Relator)