ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
EFEITOS JURÍDICO-PROCESSUAIS
CASO DECIDIDO
ALTERAÇÃO DA DECISÃO DE ARQUIVAMENTO
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
AUDIÇÃO DO DENUNCIADO COMO SUSPEITO
Sumário

I – O arquivamento do inquérito produz efeitos extraprocessuais – contrariamente ao que sucede com a acusação, que gera efeitos endoprocessuais –, uma vez que, decorridos os prazos para a sua impugnação, através da abertura da instrução ou de requerimento para intervenção hierárquica, passa a ter a força de caso decidido.
II – O arquivamento do inquérito apenas poderá ser alterado se surgirem novos elementos que coloquem em causa os fundamentos – não a bondade – da respectiva decisão.
III – A tomada de declarações para memória futura não supõe de forma necessária a prévia constituição de alguém como arguido ou sequer a audição do denunciado como suspeito.

Texto Integral



Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


1. Relatório

A Magistrada do Ministério Público veio interpor recurso da decisão proferida pelo Juiz de Instrução no processo de inquérito n.º 187/21...., da ... Secção do DIAP das ..., Comarca ..., que indeferiu a aplicação de medidas de coação mais gravosas que o TIR ao arguido e a tomada de declarações para memória futura da ofendida.

1.1.  Conclusões do recurso (que se transcrevem na parte relevante):
1. O Ministério Público recorre do despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal a fls. 123 (ref.ª ...65)  dos autos referenciados em epígrafe;
2. No despacho recorrido foi indeferida a promoção de fls. 220 a 228 (ref.ª ...11), porquanto o Mmo. Juiz de Instrução Criminal considerou que: “Motivo da reabertura do inquérito foi a intenção de prestar declarações por parte de AA.

De outra forma, não é justificação a presença de “novos elementos de prova” como estatui o art. 279 do C.P.P., mas tão só a nova “disposição da vítima”, conceito à margem da ordenação legal. Logo, a reabertura baseou-se em fundamento que a lei não prevê.

Em suma, a reabertura de inquérito com fundamento não previsto na lei, está ferido de invalidade, não estando previsto como nulidade, é irregular, cfr. art. 118 n.º 1 e n.º 2 do C.P.P.

Sem dúvida que a reabertura do inquérito é um ato não jurisdicional, e como tal não sujeito a recurso ou a controle judicial, sendo da exclusiva competência do MP; só que o pedido de medidas de coação, e o pedido de produção antecipada de prova (declarações para memória futura) funda-se na subsistência irregular do inquérito, o que faz com que a irregularidade afete o ato que o titular da ação penal promove, o que torna a irregularidade de conhecimento oficioso.

Termos em que, no âmbito da defesa das garantias processuais, se indefere a promoção de medidas de coação e de declarações para memória futura.”;
3. Entendemos que não assiste razão a tal entendimento e que, consequentemente, o despacho de que se recorre viola as disposições legais conjugadas nos artigos 67.º-A, n.ºs 1, alínea a), b), c) e d), e 3, 118.º, n.º 1 e 2, 123.º, n.ºs 1 e 2, 262.º, n.º 1, 267.º, 268.º, n.º 1, alíneas a) a f), 269.º, n.º 1, alíneas a) a f), e n.º 2, e 279.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, no artigo 219.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 33.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Lei n.º 112/2009, de 16/09;
4. Conforme decorre a promoção a fls. fls. 220 a 228 (ref.ª ...11), o Ministério Público descreveu a factualidade indiciada, a qual se dá aqui por reproduzida para todos os efeitos legais, achando-se o arguido suficientemente indiciado da prática de crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, cometido na pessoa de AA,  e promoveu-se que fosse aplicada ao arguido medida de coação mais gravosa que o TIR e que a vítima fosse inquirida para memória futura;
5. No entanto, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal entendeu no despacho de fls. 263 (ref.ª ...65) – objeto do presente recurso -, que aqui se dá por integralmente proferido, que (…)
6. Com o devido respeito, o Ministério Público entende que não lhe assiste razão ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, tendo feito uma incorreta apreciação das normas contidas nos artigos 67.º-A, n.ºs 1, alínea a), b), c) e d), e 3, 118.º, n.º 1 e 2, 123.º, n.ºs 1 e 2, 262.º, n.º 1, 267.º, 268.º, n.º 1, alíneas a) a f), 269.º, n.º 1, alíneas a) a f), e n.º 2, e 279.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, no artigo 219.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 33.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Lei n.º 112/2009, de 16/09;
7. Nos presentes autos, o arguido acha-se suficientemente indiciado da prática de crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal;
8. Pois, resulta do inquérito que, por despacho proferido a fls. 111 a 112 (ref.ª ...14), em 01/10/2021, foi determinado o arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por se ter concluído “pela inexistência de meios de prova que corroborem a versão apresentada aquando a denúncia, atendendo que a vítima se recusou a depor e o arguido não confessou a prática dos factos”;
9. Sucede que, posteriormente ao despacho de arquivamento, em 12/10/2021, foi junto aos autos o aditamento que se acha a fls. 120 a 121 (ref.ª ...35), onde a vítima denunciava, em síntese, que no dia 10/10/2021, cerca das 17 h., o arguido deslocou-se ao seu local de trabalho, sito na Rua ..., em ..., onde o mesmo pretendia falar com a mesma no interior da viatura, o que aquela recusou, tendo aquele lhe dito que queria tratar da conta bancária em conjunto, que iria sair de casa, que ia viver para a casa do seu falecido pai situada na localidade de ... ..., garantindo que não assumiria qualquer despesa relativamente aos filhos e à habitação onde a vítima residia, e de seguida, o arguido disse à vítima “o amor que tenho por ti neste momento é ódio”, o que deixou a vítima intimidada e com receio da conduta do mesmo;
10. Face ao teor do aditamento supra referido, e uma vez que os factos ali relatados tinham sido denunciados pela vítima e a mesma tinha-se recusado a prestar declarações no inquérito, ordenou-se, por despacho proferido a fls. 138 (ref.ª ...80), datado de 18/10/2021, que o Sr. Funcionário entrasse em contacto telefónico com a vítima e apurasse se a mesma mantinha o propósito de se remeter ao silêncio ou se pretendia prestar declarações;
11. No mesmo dia da prolação do despacho referido no ponto anterior, foi junto aos autos o aditamento que se acha a fls. 145 a 150 (ref.ª ...35), cujo original se acha na ref.ª ...18, onde se dava conta que no dia 13/10/2021, pelas 15 h. e 04 m., o arguido tinha remetido para o telemóvel da vítima o SMS que se acha transcrito a fls. 154, onde se lê: “Tudo depende de ti como te vais portar no tribunal mas se pensas em mexer no dinheiro que está destinado aos nossos filhos só os vai projodicalos e vai-me ver durante muito tempo não te vou deixar em paz por muitos anos”;
12. No dia ..., foi aberta conclusão com a informação de que a vítima AA tinha informado que pretendia prestar declarações no âmbito dos presentes autos;
13. Nessa sequência, e uma vez que a vítima estava disposta a colaborar com a descoberta da verdade material, assumindo uma postura diferente daquela que havia assumido até à prolação do despacho de arquivamento, determinou-se a reabertura do inquérito por despacho proferido a fls. 165 (ref.ª ...22), considerando o depoimento da vítima um novo elemento de prova fundamental e imprescindível à descoberta da verdade material;
14. Tal despacho foi notificado ao arguido e à vítima, os quais nada disseram ou arguiram no prazo estabelecimento no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nem dele reclamaram para o superior hierárquico imediato – conforme previsto no artigo 279.º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, e, assim , prosseguiu o inquérito com a realização da inquirição da vítima – cf. se verifica dos autos a fls. 177 a 179 e 189 a 184 -, de onde resulta que a mesma prestou declarações acerca dos factos imputados ao arguido quer relativamente aos factos denunciados inicialmente, quer relativamente aos factos constantes dos aditamentos juntos aos autos após a prolação do despacho de arquivamento;
15. Estabelece o artigo 279.º, do Código de Processo Penal, que:

1. Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.

2. Do despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato”;
16. Acresce que dispõe o artigo 118.º, do Código de Processo Penal que:

1. A violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

2. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular…”.
17. Por sua vez, o artigo 123.º, do Código de Processo Penal, estatui o seguinte:

1. – Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contra daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

2. Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando a ela puder afetar o valor do ato praticado”;
18. Por outro lado, resulta do artigo 263.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que: “A direção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal”, e do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República que “Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.”.
19. Importa ainda salientar que são da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal os atos expressamente previstos no artigo 268.º, n.º 1, alíneas a) a f), do Código de Processo Penal, onde não se insere a apreciação da decisão do conhecimento da reabertura do inquérito;
20. Deste modo, cabe ao Ministério Público decidir da reabertura do inquérito, por se tratar de um ato respeitante ao inquérito, cuja direção cabe exclusivamente ao Ministério Público, de acordo com as disposições legais acima referidas dos artigos 219.º, n.º 1, da Constituição da República, e 263.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e é ao Ministério Público que compete decidir se, nesta fase, um ato processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular, e desse despacho caberá então reclamação para o respetivo superior hierárquico;
21. Pois a reabertura do inquérito é um ato não jurisdicional, e como tal não está sujeito a recurso ou a controle judicial, sendo da exclusiva competência do MP, neste sentido, e a título de exemplo citamos o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 07/03/2018, publicado no site www.dgsi.pt;
22. Pelo que, no caso concreto, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal que proferiu o despacho recorrido, salvo o devido respeito, não poderia conhecer de qualquer irregularidade que se tivesse verificado em sede de inquérito, uma vez que, na fase do inquérito, o mesmo tem apenas a competência exclusiva para praticar os atos legalmente previstos no artigo 268.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e não se pode imiscuir nas decisões do Ministério Público e na direção do inquérito;
23. Acresce que, no nosso entendimento, não se verifica qualquer irregularidade ou violação de uma norma legal quando se determinou a reabertura do inquérito, considerando a inexistência de qualquer outra prova testemunhal e tendo em consideração a vontade da vítima em pretender prestar declarações acerca dos factos que o arguido tinha praticado - posição diferente daquela que assumiu em momento anterior à prolação do despacho de arquivamento  -, recusando-se a prestar declarações ao abrigo da faculdade conferida pelo artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal -, é fundamento para se determinar a reabertura do inquérito;
24. No nosso entendimento, o facto da vítima pretender colaborar com a descoberta da verdade material, adotando posição diferente daquela que tinha assumido no inquérito, é um novo elemento de prova que invalida os fundamentos aduzidos no despacho de arquivamento, não se verificando qualquer violação do disposto no artigo 279.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;
25. Importa ainda salientar que o despacho proferido a fls. 165 (ref.ª ...22) que determinou a reabertura do inquérito foi notificado à vítima e ao arguido, únicos interessados com o andamento do inquérito, e os mesmos nada disseram ou arguiram no prazo fixado no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a quem cabia invocar qualquer irregularidade que eventualmente se tivesse verificado, o que não é o caso;
26. Todavia, ao abrigo do disposto nos artigos 53.°, n.° 2, alínea b) e 263.°, n. ° 1, ambos do Código de Processo Penal, sempre se dirá que cabe ao Ministério Público, e não ao Meritíssimo Juiz com funções instrutórias, a direção da ação penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito e da reabertura do inquérito.
27. Prevê o artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/09, de 16/09, prevê que “O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”;
28. Acresce que estabelece o n.º 2 de tal normativo que “O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.”;
29. Assim como, o artigo 24.º, n.º 1, da Lei 130/2015, de 04/09, prevê que “O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal”, tendo em vista a especial proteção da vítima;
30. Por sua vez, prevê o artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previamente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”;
31. Portanto o regime contido no artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, é excecional em relação ao regime da inquirição para memória futura previsto no artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não se aplicando esta norma quando se está perante factualidade que integre a prática de crime de violência doméstica, nem a inquirição para memória futura da vítima tem de obedecer aos pressupostos aí previstos.
32. Neste sentido, cita-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 05/03/2020, mencionado no site da PGDL, em notas ao artigo 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, do qual se passa a transcrever:

… Assim, na linha das finalidades previstas no art.° 3.° da mesma Lei e dentro das competências atribuídas ao Ministério Público, designadamente pelo art.° 53.° do C.P.P., cabendo a este dirigir o respetivo inquérito, sabe o mesmo qual a melhor forma de o fazer, seja promovendo a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias, seja fixando o tempo e o modo de atuação na recolha das mesmas, sendo-o, sempre, com o objetivo único da descoberta da verdade e da melhor decisão para a causa.

… Deste modo, estando os direitos e interesses das vítimas de violência doméstica tutelados, agora, pela Lei n.° 112/2009, neste poder que é conferido ao juiz está implícito o dever de, à luz das elementares regras do bom senso e dos respetivos juízos de oportunidade, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e a conservação de uma prova que é fundamental, tão fundamental que, muitas vezes, até acaba por ser a única.

… Porém, na nossa perspetiva, o art.° 33.° em causa haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mm.° Juiz a quo, cuja regra já parece ser a do indeferimento, exceto quando haja razões especiais, no caso concreto, para deferir a realização da mesma diligência.

Assim, como se disse, atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do dever de proteção à mesma vítima consagrado no art.° 20.°, n.° 2 da Lei n.° 112/2009, só em casos excecionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.”;
33. Desde modo, e concluindo-se que não se verifica qualquer irregularidade do inquérito, o facto do depoimento da vítima ser fundamental e necessário à preservação da prova, a qual ficaria seriamente comprometida se a mesma não prestasse declarações para memória futura,  deverá improceder a argumentação expendida no despacho recorrido, devendo, por isso, ser o mesmo revogado e substituído por outro que ordene a inquirição para memória futura da vítima AA, a realizar pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, e aprecie o promovido relativamente à aplicação ao arguido de medidas de coação mais gravosas que o TIR.

Termos em que, e nos mais de direito, deverá ser julgado procedente o recurso interposto e, consequentemente, o despacho recorrido revogado, o qual deverá ser substituído por outro que ordene a inquirição para memória futura da vítima AA, a realizar pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, e a apreciação do promovido relativamente à aplicação de medidas de coação ao arguido mais gravosa que o TIR, assim se fazendo JUSTIÇA!»


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1.2. Histórico processual relevante:

a) Requerimento do Ministério Público de 24-11-2021:

“Remeta os autos ao Juízo de Instrução Criminal, para os seguintes efeitos:

a) Aplicação de medida de coação

1. Factos:

Nos presentes autos encontra-se fortemente indiciada a prática, pelo arguido BB, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, cometido na pessoa de AA.

A vítima AA conheceu o arguido em ... (país Natal da vítima), no ano de 2004.

No ano de 2005, a vítima e o arguido iniciaram uma relação de namoro, tendo contraído casamento com mesmo há cerca de 5 anos, em ....

Quando iniciaram a relação de namoro, a vítima encontrava-se grávida, no início de gestação, e o arguido assumiu a criança como se fosse seu filho.

A criança nasceu a .../.../2005, de nome CC, e no dia 2..., nasceu o filho do casal, DD.

No decorrer da relação entre o casal, ocorriam algumas discussões, sendo que que o arguido dizia à vítima que a mesma não tinha nada, que não valia nada, inferiorizando-a em relação ao mesmo.

Em julho de 2017, a vítima, o arguido e os filhos abandonaram ..., fixando residência na aldeia de ..., ..., ficando a residir na casa dos progenitores do arguido.

No ano de 2019, a vítima e o arguido arrendaram uma casa na vila do ..., aí passando a residir juntamente com os filhos.

No dia 16/09/2021, cerca das 00 h., quando a vítima chegou a casa, vinda do trabalho na ... / Restaurante "...", situado no largo do mercado na vila do ..., o arguido encontrava-se na sala a ver televisão e, nessa ocasião, o mesmo questionou-a "isto são horas de chegar a casa?", "para uma mãe de família isto não são horas de chegar!".

Por ter notado o tom de voz agressivo do arguido, a vítima voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o quarto.

Ato contínuo, o arguido seguiu a vítima e, no corredor da habitação, o mesmo questionou-a "fala a verdade, o que é que está acontecer?".

De imediato, a vítima referiu que encontrava-se exausta depois do dia de trabalho, e, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu-lhe duas bofetadas na cara de ambos os lados, de forma violenta, o que lhe provocou dores na zona do maxilar esquerdo.

Após, a vítima informou o arguido que ia denunciar tal situação à GNR e, nesse momento, o arguido disse "na tua terra não havia nada disso, se te fores queixar tua vais ver".

Naquela noite, a vítima acabou por pernoitar na habitação de um casal amigo.

No dia 16/09/2021, pelas 08 h. e 08 m., a filha CC ligou-lhe a chorar, dizendo que o arguido havia dito que a mesma não era sua filha.

Perante tal situação, a vítima deslocou-se à residência do casal, e questionou o arguido se tinha dito tal coisa à menor CC com o objetivo de se vingar da ora depoente, o que foi confirmado pelo arguido com ar de arrogância e desprezo.

Nesse mesmo dia, o arguido acabou por pedir desculpas à menor e à vítima, sendo que a última acabou por aceitar tal pedido e regressou a casa.

Passados dois 2 ou 3 dias daquela situação, o arguido disse à vítima para pedir ao patrão para trocar as suas folgas.

No entanto, a vítima como se achava a trabalhar naquele local há pouco tempo, não o fez, acabando por dizer ao arguido que já havia falado com o patrão, mas que o mesmo não havia autorizado a troca.

O arguido, não satisfeito, deslocou-se ao local de trabalho da vítima, onde tomou o pequeno almoço e confrontou pessoalmente o patrão com aquela situação, sendo que o mesmo informou o arguido que não tinha ocorrido qualquer pedido de troca de folgas.

De imediato, o arguido saiu daquele local e dirigiu-se à residência comum, onde se achava a vítima, gerando-se uma discussão entre ambos, tendo sido a vítima acusada, pelo arguido, de mentirosa.

Nas semanas seguintes, a vítima e o arguido não mantiveram diálogo, contudo, continuaram a viver na mesma residência.

No dia 06/10/2021, pelas 11 h., a vítima disse ao arguido que pretendia arrendar uma casa e mudar-se com os seus filhos, pois não aguentava mais aquele ambiente entre o casal, saindo, de seguida, para o trabalho.

Naquele dia, cerca das 23 h. e 45 m., quando a vítima chegou a casa e dirigiu-se para o quarto, local onde se achava o arguido, deitado na cama, o mesmo disse-lhe que queria falar com a mesma, o que a vítima acedeu.

Nessa ocasião, o arguido disse à vítima que a mesma tinha razão, que pretendia mudar o seu comportamento e recomeçar o relacionamento.

Todavia, a vítima informou o arguido que mantinha a decisão que havia comunicado de manhã, que ia sair de casa e separar-se do mesmo.

O arguido, com a resposta obtida por parte da vítima, ficou nervoso, levantou-se da cama e disse "é isto que tu queres?", "então a minha vida acabou", dirigindo-se para a cozinha, que passado alguns momentos regressou ao quarto do casal, empunhando uma faca de cozinha e proferiu a seguinte frase "achas que não tenho coragem?".

Nesse momento, a vítima fugiu para um canto do quarto, julgando que o arguido a ia matar, porém, de imediato, o arguido espetou a faca no seu próprio peito, na região do tórax, retirando a faca e voltando a espetá-la no peito e, de seguida, disse " vou morrer e a culpa é tua".

A vítima, apavorada e em pânico, gritou por socorro.

Nesse dia, o arguido foi transportado para o hospital, local onde permaneceu internado cerca de uma semana.

No dia 10/10/2021, o arguido foi ao local de trabalho da vítima, abordou-a e pediu-lhe para falar com este no interior da viatura, o que a vítima recusou, contudo, a mesma aceitou falar com aquele na esplanada do seu local de trabalho.

Nessa ocasião, o arguido disse-lhe "o amor que sentia por ti, agora gerou ódio", o que provocou medo na vítima, pois a mesma teme que o arguido atente contra a sua vida e integridade física.

No período compreendido entre o dia 09/10/2021 e o dia 12/11/2021, o arguido enviou à vítima os sms que se acham transcritos a fls. 215 a 217, os quais se dão aqui por reproduzidos, de onde se transcreve os seguintes sms:

- “Tudo depende de ti como te vais portar no tribonal mas se pensas em mexer no dinheiro que está destinado para os nossos filhos só os vais projodicalos e vai-me ver durante muito tempo não te vou deixar em paz por muitos anos”, enviada no dia 13/10/2021, pelas 15 h. e 27 m.;

- “Ira já não consigo viver mais tempo assim penssa bem na nossa vida e dos nossos filhos não estou preparado para esta vida de solidão”, “já não tenho forças para viver muito mais tempo assim”, enviada no dia 22/10/2021, pelas 17 h. e 49 m..

A vítima e o arguido acham-se separados desde o dia 06/10/2021, e a partir dessa data, o arguido passou a frequentar o local de trabalho da vítima e passa com frequência junto da residência da mesma, com o intuito de lhe causar medo e inquietação.

A vítima teme que o arguido atente contra a sua vida e integridade física.

O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao molestar o corpo da mesma vítima, ao humilha-la e ao perturbar a sua tranquilidade e liberdade pessoal, apesar de saber que a mesma era sua esposa e lhe devia o dever de respeito, não se abstendo de atuar na residência comum.

Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.


*

2. Elementos de prova:

A indiciação desse ilícito resulta a prova junta aos autos, nomeadamente:

- Auto de notícia a fls. 26 a 27;

- Assentos a fls. 50 a 51, 54 a 55, 61 a 64

- CRC a fls. 60

- Pesquisas do SIC a fls. 65 a 67;

- Aditamentos a fls. 120 a 121, 152 a 155 e 159 a 160;

- Documentos a fls. 124 a 136;

- Autos de inquirição a fls. 177 a 179 e 189 a 194;

- Auto de transcrição a fls. 215 a 217.


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3. Fundamentação:

O crime de violência doméstica que se acha fortemente indiciado a arguida ter cometido é punido, em abstrato, com pena de 2 a 5 anos de prisão.

A vítima pretende que o arguido não frequente o seu local de trabalho, não se aproxime da sua residência e não a contacte por qualquer meio.

Assim, atentas as circunstâncias do crime que aqui se indicia ter cometido e perante a conduta do arguido, acha fortemente indiciado o perigo de continuação da atividade criminosa e existe uma necessidade imperiosa de proteger a vítima.

Perante tal quadro acima descrito, impõe-se equacionar a necessidade de aplicação ao arguido de outra medida de coação para além do TIR.

Os factos acima descritos levam-nos a considerar que, no caso em apreço, existe um sério risco de continuação da atividade criminosa, verificando-se o requisito geral de aplicação das medidas de coação previsto no artigo 204.º, alínea c). do CPP.

O artigo 200.º, n.º 1, alínea d), do CPP prevê a possibilidade de o juiz, se houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, impor ao arguido a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com certas pessoas, ou não frequentar certos lugares.

Por sua vez, dispõe o artigo 31.º, nº 1, alíneas a) e d), da Lei n.º 112/2009, de 16/09 que, após a constituição de arguido pela prática do crime de violência doméstica, o tribunal pondera a aplicação, sem prejuízo das demais medidas de coação previstas no CPP e com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação nele referidos, designadamente da medida de proibição de contacto com a vítima e de não frequentar certos lugares.

Para significar que as medidas de coação que entendemos adequadas e suficientes às exigências cautelares deste caso são de proibição de o arguido contactar, por qualquer meio, com a vítima, de frequentar os locais onde a mesma se encontre, de se aproximar da residência da vítima e do seu local de trabalho num raio inferior a 1 km.

Face ao exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, n.º 1, 193.º, n.º 1, 200.º, n.º 1, alínea d) e 204.º, alínea c), todos do CPP, e artigo 31.º, n.ºs 1, alínea d) e 2, da Lei n.º 112/2009 de 16/09, promovo que, para além do TIR já prestado nos autos, sejam aplicadas ao arguido as medidas de coação supra apontadas.


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b) - Declarações para memória futura

Dispõe o artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

A vítima AA goza, nestes autos, do estatuto de vítima de violência doméstica, atribuído nos termos do artigo 14.º, da L 112/2009 de 16/09, sendo, igualmente, considerada uma vítima especialmente vulnerável, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 67.º-A, n.ºs 1, alínea b), e 3, do CPP e artigo 20.º, da Lei nº 130/15, de 4/09.

Deste modo, tendo em conta a fragilidade da vítima e a fim de evitar a respetiva revitimização, que a sua exposição a uma audiência de julgamento sempre implicará, requer-se que a vítima AA seja ouvida em declarações para memória futura, nos termos do preceito legal acima referido e por referência à factualidade supra descritas e aos depoimentos prestados pela mesma e constante dos autos de inquirição que se acham a fls. 177 a 179 e 189 a 194.”

b) Despacho do juiz de instrução de 10-12-2021:

«O inquérito foi arquivado quanto ao facto de 16.09. Não houve despacho de reabertura.

De 24.10 a 12.11 não resulta qualquer comunicação de BB que implique algum dos perigos do art. 204 do C.P.P.

Lendo as restantes comunicações no seu contexto, com objetividade, o que existe é aceitação da separação, e gestão própria (“temos de acertar as coisas”, “estou aqui a porta para me dares o correio”).

Ora, nas datas subsequentes não há episódios de violência física, a não ser contra o próprio. Não há episódio de violência verbal, seja por imputação de insultos, seja por anúncios de agressões. Há tentativa por parte de BB de encontrar AA para acertarem temas da separação.

Ora, na questão das medidas de coação, apesar de ser indicador, não são aplicadas só porque a “vítima teme que o arguido atente contra a sua vida e integridade física”.

Existirão caso haja a perigosidade manifestada na norma do art. 204 do C.P.P.. É o Direito que oferece os parâmetros de decisão.

Ora, no caso, inexiste nenhum fundamento de perigosidade, sendo desnecessária por agora a aplicação de medida de coação.

Indefere-se o promovido.


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O inquérito foi arquivado, fls. 111. O arguido foi notificado, fls. 118, e assim perdeu tal qualidade.

Não foi proferido despacho de reabertura.

O arguido não se mostra constituído.

Assim, e uma vez que a diligência promovida carece da presença do imputado constituído arguido, sendo nula (art. 119 c) do C.P.P.), e uma vez conhecido nos autos, remetam-se os autos ao M.P., indeferindo-se por agora o promovido, por falta de requisitos essenciais ao ato.»


c) Despacho do Ministério Público de 16-12-2021:

«Compulsado o despacho judicial a fls. 236 (...01, verifica-se que, salvo o devido respeito, que não assiste razão ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal quando afirma que “O inquérito foi arquivado quando ao facto de 16.09. Não houve despacho de reabertura.”, pois por despacho proferido a fls. 165 (ref.ª ...22), datado de 21/10/2021, foi determinada a reabertura do presente inquérito, tendo sido aquele despacho notificado ao arguido e à vítima – vide fls. 167 e 168.

Pelo exposto, remeta os presentes autos ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal para reapreciação 220 a 228 (ref.ª ...11) e dever-se-á ter em conta os factos relatados no aditamento a fls. 253 a 254.»

 
d. Despacho recorrido de 21-12-2021:

«1. O processo foi arquivado, por decisão a fls. 112, datada de 1.10.2021, rececionada por BB a 7.10.2021. Motivos do arquivamento foram: a recusa da testemunha em depôr, o arguido “não assumiu a prática dos factos denunciados”. O facto denunciado reportava-se a 16.9.2021.

2. Está junto aditamento da GNR de 10.10.2021, fls. 120.

3. Após, a Digna Magistrada do MP exarou nos autos “entre em contacto telefónico com a vítima”.

4. O funcionário do M.P. exara nos autos “…pretende prestar declarações”, fls. 164.

5. É exarado “Face ao teor da informação constante da conclusão a fls. 164 (ref. ...58), e verificando-se que a vítima está na disposição de prestar declarações determina-se a reabertura do presente inquérito” a fls. 165, e notificado a BB.

Conhecendo e decidindo:

Motivo da reabertura do inquérito foi a intenção de prestar declarações por parte de AA.

De outra forma, não é justificação a presença de “novos elementos de prova” como

estatui o art. 279 do C.P.P., mas tão só a nova “disposição da vítima”, conceito à margem da ordenação legal. Logo, a reabertura baseou-se em fundamento que a lei não prevê.

Em suma, a reabertura de inquérito com fundamento não previsto na lei, está ferido de invalidade, não estando previsto como nulidade, é irregular, cfr. art. 118 n.º 1 e n.º 2 do C.P.P.

Sem dúvida que a reabertura do inquérito é um ato não jurisdicional, e como tal não sujeito a recurso ou a controle judicial, sendo da exclusiva competência do MP; só que o pedido de medidas de coação, e o pedido de produção antecipada de prova (declarações para memória futura) funda-se na subsistência irregular do inquérito, o que faz com que a irregularidade afete o ato que o titular da ação penal promove, o que torna a irregularidade de conhecimento oficioso.

Termos em que, no âmbito da defesa das garantias processuais, se indefere a promoção de medidas de coação e de declarações para memória futura.

Remeta-se.-----»


1.3. No despacho que admitiu o recurso, o Exmo. Juiz de Instrução manteve a decisão recorrida.
1.4. No parecer do Exmo. Procurador-geral Adjunto nesta Relação, conclui-se pelo provimento do recurso interposto, referindo-se no mesmo, por relevante, nomeadamente:

- no caso em apreço, uma vez que não surgiram quaisquer novas provas, o despacho de arquivamento tem efeito definitivo, em relação aos factos que o mesmo apreciou, não podendo ser reaberto.

- tendo presente o comportamento de BB durante todo o período, desde Setembro de 2021, resulta não ter o mesmo praticado quaisquer atos que denotem um comportamento violento, quer com a queixosa, quer com os filhos. Tal ressalta das transcrições das mensagens, constantes dos autos.  Daí que, em relação a tal factualidade, não se afigure que as medidas de coação, além da proibição de contactos, pessoais ou por qualquer outro meio, se justifiquem.

- nada obsta a que sejam tomadas as requeridas declarações, em sede própria e no respetivo processo.


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2. Conhecimento do recurso

Encontra-se o objeto do recurso limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([1]).

O objeto do presente recurso, tendo em conta as conclusões formuladas, resume-se às seguintes questões:
a) Reabertura do inquérito;
b) Medidas de coação suplementares; e
c) Declarações da ofendida para memória futura.


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A. Da reabertura do inquérito:

No caso dos autos, foi proferido despacho de arquivamento ao abrigo do art. 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal a 1.10.2021 – despacho que teve na sua base a insuficiência dos indícios probatórios recolhidos, mormente face à recusa da vítima em prestar declarações.

O despacho de arquivamento proferido não foi objeto de reclamação hierárquica nem de requerimento de abertura de instrução, nos termos dos arts. 278º e 286º do Código de Processo Penal.

Sucede que a 12.10.2021 foi junto um aditamento ao auto de notícia inicial. Contactada a vítima, declarou pretender prestar declarações, tendo a 21.10.2021 sido proferido despacho a determinar a reabertura do inquérito.

            O despacho de arquivamento não tem, por princípio, efeitos preclusivos, podendo ser reaberto nos termos do art. 279º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece o seguinte: “Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”.

No entanto, o arquivamento não deixa de produzir efeitos extraprocessuais (contrariamente ao que sucede com a acusação, que produz efeitos endoprocessuais), uma vez que, decorridos os prazos para a sua impugnação, através da abertura de instrução ou de requerimento para intervenção hierárquica, passa a ter a força de caso decidido.

Esta decisão apenas poderá ser alterada se surgirem novos elementos que coloquem em causa os fundamentos (não a bondade) da decisão de arquivamento. O que não sucedeu in casu, razão pela qual, secundando o parecer emitido pelo Exmo. Procurador-geral Adjunto, entendemos que não podem os factos objeto do arquivamento ser de novo apreciados.

No tocante a tal factualidade, referente ao dia 16.9.2021, o despacho de arquivamento proferido com estes fundamentos passou a ter a força de caso decidido, nos termos sobreditos.

Mas poderá o Juiz de Instrução declarar a irregularidade na reabertura do inquérito?

Nos termos do disposto no art. 263º do Código de Processo Penal, a direção do inquérito cabe ao Ministério Público, deferindo a lei competência ao juiz de instrução para a prática dos atos enunciados no art. 268º do mesmo Código.

A competência do juiz de instrução na fase de inquérito encontra-se, assim, limitada aos casos discriminados na norma mencionada.

Assim, não tendo a pretensa “irregularidade” sido invocada por qualquer sujeito processual, nem cabendo o respetivo conhecimento no leque de competências do juiz de instrução, não podia este da mesma tomar conhecimento. Acresce que, no caso, os sujeitos processuais foram notificados do despacho do Ministério Público que determinou a reabertura do inquérito, não tendo arguido a referida irregularidade, nos termos do art. 123º do Código de Processo Penal.

Por outro lado, cabendo a direção do inquérito exclusivamente ao Ministério Público, não pode o juiz de instrução conhecer oficiosamente de uma irregularidade na sua reabertura, ao abrigo do n.º 2 do art. 123º do Código de Processo Penal, que se aplica nos casos em que se ordene a respetiva reparação – o que no caso não é possível, já que tal competência se encontra subtraída ao juiz de instrução.

Em suma, não pode o juiz de instrução intrometer-se desta forma na autonomia do Ministério Público, único titular do inquérito, fora das suas competências estabelecidas na lei processual penal.

Esta a razão pela qual, no final, no despacho objeto de recurso não foi declarada a irregularidade indevidamente conhecida.


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B. Da aplicação de medidas de coação suplementares

Já concluímos que sobre os factos descritos no despacho proferido com vista à aplicação de medidas de coação suplementares referentes ao dia 16.9.2021 incide a força de caso decidido, não podendo ser de novo objeto de conhecimento.

Resta atentar nos restantes factos descritos no despacho proferido pelo Ministério Público, acima transcrito, posteriores a 6.10.2021.

O Juiz de Instrução pronunciou-se, a 10.12.2021, sobre as requeridas medidas de coação e declarações para memória futura, indeferindo-as, respetivamente, por entender desnecessária a aplicação de outras medidas de coação, e “por se não encontrar ainda constituído arguido nos autos, o que inviabiliza a diligência requerida, face ao disposto no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal”.

O Ministério Público discordou do despacho judicial na parte em que afirmou não ter sido proferido despacho de reabertura do inquérito, e solicitou a reapreciação do seu requerimento.

No entanto, não apresentou recurso daquele despacho.

O despacho proferido a 21.12.2021, este sim objeto de recurso, afirma que as diligências pretendidas se fundam “numa subsistência irregular do inquérito, o que faz com que a irregularidade afete o ato que o titular da ação penal promove”. Como se referiu, não podia o juiz de instrução conhecer de tal irregularidade, a existir.

Impunha-se, pois, que fosse proferida decisão. No entanto, existia pronúncia judicial anterior, com cujos fundamentos o Ministério Público se conformou – apenas tendo discordado dos efeitos do arquivamento dos factos relativos ao dia 16.9, sem razão, pelas razões que se referiram.

Assim, no tocante às medidas de coação suplementares, extraída a factualidade objeto de arquivamento, são inteiramente válidos os argumentos aduzidos no despacho de 10.12.2021: «De 24.10 a 12.11 não resulta qualquer comunicação de BB que implique algum dos perigos do art. 204 do C.P.P.

Lendo as restantes comunicações no seu contexto, com objetividade, o que existe é aceitação da separação, e gestão própria (“temos de acertar as coisas”, “estou aqui a porta para me dares o correio”).

Ora, nas datas subsequentes não há episódios de violência física, a não ser contra o próprio. Não há episódio de violência verbal, seja por imputação de insultos, seja por anúncios de agressões. Há tentativa por parte de BB de encontrar AA para acertarem temas da separação.

Ora, na questão das medidas de coação, apesar de ser indicador, não são aplicadas só porque a “vítima teme que o arguido atente contra a sua vida e integridade física”.

Existirão caso haja a perigosidade manifestada na norma do art. 204 do C.P.P.. É o Direito que oferece os parâmetros de decisão.

Ora, no caso, inexiste nenhum fundamento de perigosidade, sendo desnecessária por agora a aplicação de medida de coação».

Atendendo à factualidade descrita relativa ao período temporal referido, agora objeto do inquérito e ao teor das mensagens enviadas por BB à denunciante, não vislumbramos de igual forma justificação para a aplicação de outras medidas de coação que imponham a intervenção do juiz de instrução.


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C. Da tomada de declarações para memória futura

A tramitação destes autos mostra-se, esta sim, muito irregular: por um lado, o Juiz de Instrução conhece de uma irregularidade que não podia conhecer, por não ter competência para tal; depois, o Ministério Público pede a reapreciação de um seu requerimento que havia sido já apreciado; finalmente, não ficando por aqui, o juiz de instrução reaprecia e altera os fundamentos do anteriormente decidido…

No despacho recorrido, a tomada de declarações para memória futura foi indeferida com fundamento na necessidade de “defesa das garantias processuais”. De forma errónea, como se viu.

Nem se diga que não podem ser tomadas declarações para memória futura em processos de inquérito em que não exista ainda arguido constituído: o que o art. 271º, n.º 3, exige é a obrigatoriedade de presença do defensor na diligência, de forma a garantia o contraditório. Em lado algum a lei exige a prévia constituição de arguido, o que poderia dificultar ou mesmo impossibilitar a posterior prova dos factos em julgamento. Basta pensar no caso de uma vítima que ficou gravemente ferida e pode falecer a qualquer momento, constituindo as suas declarações o único meio de prova dos factos, não havendo tempo útil para a constituição de arguido ou não se sabendo ainda a identificação do suspeito; ou o caso de testemunhas essenciais de outra nacionalidade (v.g., num crime de lenocínio) que não possam ou não queiram permanecer em território português de forma a serem inquiridas em julgamento, sem que se encontre ainda identificado o suspeito.

Certo é que a tomada de declarações para memória futura não supõe de forma necessária a prévia constituição como arguido ou sequer a sua audição como suspeito ([2]). Poderá sempre ser nomeado defensor, cuja assistência na diligência é obrigatória, ficando desta forma assegurado o direito ao contraditório.

O pressuposto do indeferimento no despacho proferido anteriormente ao que é objeto de recurso é, assim, errado.

Em sede de inquérito cabe ao Ministério Público efetuar a qualificação jurídica dos factos indiciados. Ora, no seu requerimento o Ministério Público afirma que a denunciante é vítima de violência doméstica.

Na versão inicial do Código de Processo Penal, a tomada de declarações para memória futura ocorria apenas nos casos previstos no seu art. 271º. No entanto, a possibilidade de produção deste meio de prova antecipado foi sendo ampliada, tendo em conta, designadamente, a fragilidade das vítimas, a sua proteção e a especial situação em que se encontram.

Assim, no tocante ao crime de violência doméstica - Lei n.º 112/2009 (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência das suas Vítimas) -, e às vítimas especialmente vulneráveis – Lei n.º 130/2015, de 4.9 (Estatuto da Vítima) -, está estabelecido o direito a que estas sejam ouvidas em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofram pressões (arts. 20º, n.º 1, da Lei 112/2009, e 21º da Lei 130/2015). Na realidade, o contacto da vítima com as instâncias de controlo, as sucessivas reinquirições a que é sujeita (como sucedeu já in casu), obrigando-a a reviver o crime e o seu sofrimento, conduzem a uma vitimização secundária que tem de se tentar evitar.

De igual forma terá ainda de se garantir, para além da sua proteção, a espontaneidade e sinceridade das respostas, como melhor forma de contribuir para a prova dos factos que constituem o objeto do processo, e que poderá ser colocada em causa pela sua vulnerabilidade perante o arguido, seja pela sua idade, pela relação familiar que com ele mantém, pelo seu estado de saúde, entre outras.

Considerando todos os interesses em causa, a Lei n.º 112/2009 (bem como a Lei n.º 130/2015, quanto a vítimas especialmente vulneráveis) contém no seu art. 33º uma norma específica para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica: “O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento” (n.º 1). Esta previsão vem no seguimento do regime de proteção previsto no art. 20º, que dispõe, nomeadamente:

2- O contacto entre vítimas e arguidos em todos os locais que impliquem a presença em diligências conjuntas, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado…

3- Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as proteja dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública”.

Conforme resulta do transcrito art. 33º, n.º 1, a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória (pode proceder). No entanto, deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer ([3]).
Acresce que a prestação de declarações da vítima para memória futura não prejudica a prestação de depoimento presencial na audiência de julgamento, conforme expressamente previsto no n.º 7 do preceito vindo de citar.
Consabidamente, as vítimas de violência doméstica são vítimas especialmente fragilizadas, sendo na maioria dos casos os seus depoimentos essenciais para a descoberta dos factos - importando protegê-las quer de possíveis pressões que desacautelem a espontaneidade, a memória e a sinceridade das suas declarações, bem como do perigo de revitimização, tão prejudicial ao seu desenvolvimento futuro.
Procede, pois, nesta parte o recurso interposto.


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3. Decisão

Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e, em consequência, determina-se a prolação de decisão que ordene a tomada de declarações para memória futura de AA.

Sem tributação.

Notifique.

Coimbra, 18 de maio de 2022

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Novais (adjunto)

Alberto Mira [Presidente da 5ª Seção (Criminal)]




[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.
[2] - Cf. no mesmo sentido Ac. da Relação do Porto de 24.3.2021, proc. 132/20.9PHVNG-C.P1, em www.dgsi.pt, e restante jurisprudência no mesmo citada.
[3] - No mesmo sentido, cf. o recente acórdão desta Relação de Coimbra de 20.4.2022, rel. Luís Teixeira, proc. 201/21.8GACNF, e os acórdãos da Relação de Lisboa de 9.11.2016, no proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1, e de 4.6.2020, no proc. 69/20.1PARGR-A.L1, da Relação de Évora de 23.6.2020, no proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, todos em www.dgsi.pt