INJÚRIA
TIPO OBJECTIVO
Sumário

A expressão “Você é um mau pai”, dirigida pelo arguido a outrem, poderá ser materialmente injusta, reveladora de uma personalidade desrespeitosa, mal-educada, pouco cortês, mas não ultrapassa o patamar de simples palavras azedas, acintosas, trocadas entre dois interessados na boa educação de uma criança, não chegando ao conteúdo ofensivo da honra e consideração do visado de forma a justificar uma reacção penal.

Texto Integral




Acórdão da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

 


       I - Relatório
       1.1.   AA, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que o condenou pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 181º nº 1 do Código Penal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 14,00, num total de € 560,00, e ainda no pagamento ao demandante civil BB da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros).
  
       1.2. No recurso em apreciação o arguido apresentou as seguintes conclusões:
        I – DA NULIDADE INSANÁVEL DA SENTENÇA
A. Em 13/10/2021 foi proferida sentença condenatória do arguido AA pela prática do crime de injúrias sustado nos factos constantes da acusação particular do ofendido BB que o tribunal a quo aceitou apesar de arguição de nulidade insanável em sede de audiência de julgamento ter sido arguida nulidade insanável conforme requerimento para a acta de 07/10/2021.
B. A arguição foi indeferida e que deu lugar à condenação do arguido e preenchimento dos elementos do tipo subjectivo em sede de sentença de 13/10/2021, quando os mesmos eram omissos a acusação particular (a acusação do MP tinha já sido rejeitada com os mesmos fundamentos).
C. Ausentes na acusação particular do ofendido que referia somente «…tais expressões gravemente lesivas da honra, pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste. O arguido agiu livre, voluntariamente e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei…» e nada referindo quanto ao dolo, tipo de dolo, quantificação ou qualificação dos elementos volitivos do tipo de culpa.
D. por isso,
E. Entende o recorrente que a sentença padece de vício de nulidade insanável, dado que deveria ter sido rejeitada a acusação particular do ofendido BB por inadmissibilidade legal nos termos da alínea b) n.º 3 do art.º 283.º do CPP.
F. Dado que o processo penal assenta em princípios fundamentais e constitucionais que conferem especiais garantias de defesa e de acesso a um processo justo e equitativo ao arguido, e desde logo porque assenta em estrutura acusatória (art.º 32.º, n.º 5 da CRP) o objecto do processo é definido pela acusação não podendo relegar-se para momento ulterior ou oportuno o casuístico preenchimento de elementos/factos em falta.
G. A estrutura acusatória do processo penal depende o princípio da vinculação temática, a subordinação do juiz do julgamento ao objecto definido pela acusação corporizado pelos factos dela constantes, delimitando, assim, o tema da prova por esse objecto, e também os limites de cognoscibilidade do tribunal e limites da decisão, impedindo o seu preenchimento posterior.
H. Constituindo a sua ausência ou deficiência uma nulidade processual insanável que impõe a sua rejeição liminar – sequer admitindo despacho de aperfeiçoamento – e que inquina de nulidade todos os actos processuais subsequentes, incluindo a sentença, que implica uma alteração substancial dos factos.
I. Neste sentido pronunciou-se já o Acórdão Uniformizador do STJ 1/2015, de 27.01 «… a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objectivo do ilícito, como os do tipo subjectivo…».
J. E ainda esclarecendo ainda que adicionalmente «…em de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual)…»
K. Pugnando o Acórdão Uniformizador que padecendo de tais omissões não deve prosseguir mais fases processuais, devendo de imediato e logo na fase processual seguinte devendo ser rejeitada por inadmissibilidade legal. «… os elementos em falta não poderem ser integrados no julgamento por simples recurso ao art. 358.º do CPP…», sob pena de nulidade insanável de todo o processado subsequente.
L. Ora, é exactamente o que ocorre com a acusação particular do ofendido mas que o douto tribunal recorrido desprezou.
M. Termos em que o presente recurso deverá ser provimento ao recurso e revogada a sentença condenatória ferida de nulidade insanável.
II – DO DESVALOR DA ACÇÃO
A sentença recorrida condenou o arguido AA pela prática do crime de injúrias por aquele ter proferido as seguintes expressões constante do facto provado n.º 2 «…"Você é um mau pai” e "Toda a gente há-de saber o que o senhor é, vou espalhar panfletos aqui e em ..., que o senhor é mau pai, vai ver…»
Entende o recorrente que as expressões proferidas não são susceptiveis de se subsumir na prática de crime de injúrias por não assumirem relevância penal e, consequentemente deveria ter sido absolvido por inexistir desvalor da acção que justifique a intervenção penal, nos termos conjugados do n.º 2 do art.º 181.º do CP que remete para os n.º 2 a 4 do art.º 180.º do CP.
É certo que o arguido AA ao referir «é um mau pai» fê-lo na convicção da veracidade dos factos/juízo de valor que imputava à luz do supra referenciado e visando alcançar interesses legítimos decorrente de um intenso conflito parental que testemunhou entre a sua ex-companheira e o pai da criança aqui ofendido BB. 
O arguido AA é padrasto do menor CC – contribuiu para a sua educação e faz parte significativa da sua vida e desenvolvimento o que fez ao longo de 10 anos da vida da criança e acompanhou os vários processos judiciais em torno da criança e a forma como os pais geriam o conflito no qual acabou envolvido.
Na visão e concepção de parentalidade do arguido quem age assim, instruindo e instigando um filho a maltratar o outro progenitor não será um bom pai/mãe.
Houve uma altura em 2020 que o CC foi com o pai à GNR para dizer que a mãe lhe tinha batido e por isso tinha «um negrão nos olhos», vindo a desmentir por sms e pedir desculpa à mãe porque tinha sido o pai que tinha mandado dizer, junto aos autos entendendo por isso ter fundamento sérios para a sua afirmação.
Afirmar «é um mau pai, que não sabe educar o filho» não constitui um facto cuja acção e cujo resultado seja penalmente relevante, não assumindo, portanto, gravidade nem seriedade susceptível de subsumir no tipo legal de crime de injúria ou de afetar o bem jurídico honra e bom nome do ofendido de forma tal que justifique a intervenção penal, tida como ultima rácio.
A afirmação não ultrapassa a mera critica a um comportamento que o arguido durante certo período de tempo testemunhou.
Não podem considerar-se, objetivamente, ofensivas da honra e consideração do ofendido no contexto em que foram proferidas, mereçam qualquer juízo de censura por parte da comunidade e, por isso, sejam susceptíveis de pôr em causa a honra ou consideração devida. O direito à opinião goza de proteção independentemente da sua expressão ser valiosa ou sem interesse, certa ou errada não integrando o cometimento do crime de injúria os factos por que vem o arguido acusado.
Carecendo, por isso, no caso concreto de desvalor da acção típico da intervenção penal.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso por provado, revogando-se a sentença recorrida e absolvido o arguido quer da prática do crime, quer da condenação no pedido cível.

        
            1.3. O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso,  alegando que  (…) ao contrário do que sustenta o recorrente, a acusação particular em causa não enferma de qualquer vício, uma vez que, desde logo, contem a imputação que “Tais expressões, gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste”, a qual constitui clara referência à voluntariedade/deliberação da lesão do bem jurídico (dolo direto), o que é reforçado pela expressão “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente…”. Acresce que consta da acusação a imputação de “(O arguido agiu) … bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei…” (consciência da ilicitude). Assim, a alegação do recorrente sobre a nulidade da acusação e subsequente nulidade da sentença não faz qualquer sentido, já que ao arguido/recorrente é claramente imputado a lesão do bem jurídico, a título de dolo direto.
                Quanto ao preenchimento do tipo,  defendeu que  (…) concedemos, sem qualquer rebuço, que os factos dados como provados não são, porventura, os mais impressivos e de maior dimensão para concluir, sem qualquer dúvida, pela lesão do bem jurídico tutelado pelo tipo que determinou a condenação do recorrente.
Ainda assim, considerado o contexto em que as expressões foram proferidas (“proferidas de viva voz, em alto e bom som para quem o quisesse e pudesse ouvir, em plena via pública, nomeadamente para as pessoas que naquele momento se encontravam naquele local” – ponto 3 da factualidade dada como provada), sendo a prolação de tais expressões acompanhada do anúncio de que o juízo subjacente seria objeto de maior divulgação futura (“Toda a gente há-de saber o que o senhor é, vou espalhar panfletos aqui e em ..., que o senhor é mau pai, vai ver” – ponto 2 da factualidade dada como provada), causam, logo no momento, particular ressonância, de modo, a salvo melhor opinião, violar o bem jurídico de forma a justificar a punição.
 
       1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido acompanhar a resposta do Ministério Público junto ao tribunal a quo, concluindo pela improcedência do recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.

 

***
II -  Fundamentação de Facto
A – (Teor da acusação particular deduzida pelo assistente )

Indiciam suficientemente os autos que no passado dia ..., cerca das 17.15h, na Rua ..., ..., ..., quando o ofendido se encontrava na soleira da sua porta a aguardar a entrega do seu filho menor CC pela mão da sua mãe DD, esta surgiu acompanhada pelo filho de ambos e pelo arguido.

Mal o veiculo que transportava aqueles parou alguns metros depois da casa de ofendido, o arguido saiu do mesmo acompanhado do menor e logo em voz alta dirigiu-se ao denunciante dizendo:

"Você é um mau pai, não deu educação ao seu filho, não sabe dar educação ao seu filho mas eu dou”.

"Toda a gente há-de saber o que o senhor e, vou espalhar panfletos aqui e em ..., que o senhor é mau pai, vai ver."

Estas expressões foram proferidas de viva voz, em alto e bom som para quem o quisesse e pudesse ouvir, em plena via pública, nomeadamente para as pessoas que naquele momento se encontravam naquele local. Tais expressões, gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, além de objectivamente ofensivas, pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste.

O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de a praticar.

Pelo exposto cometeu um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, do Cód. Penal.


(Factos provados na decisão recorrida com interesse para a decisão da causa)      
Da acusação particular
1) No dia ..., cerca das 17.15h, na Rua ... ..., ..., quando o ofendido se encontrava na soleira da sua porta a aguardar a entrega do seu filho menor CC pela mão da sua mãe DD, esta surgiu acompanhada pelo filho de ambos e pelo arguido.
2) Mal o veículo que transportava aqueles parou alguns metros depois da casa do ofendido, o arguido saiu do mesmo acompanhado do menor e logo em voz alta dirigiu-se ao denunciante dizendo: "Você é um mau pai” e "Toda a gente há-de saber o que o senhor é, vou espalhar panfletos aqui e em ..., que o senhor é mau pai, vai ver."
3) Estas expressões foram proferidas de viva voz, em alto e bom som para quem o quisesse e pudesse ouvir, em plena via pública, nomeadamente para as pessoas que naquele momento se encontravam naquele local.
4) Tais expressões, gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, além de objectivamente ofensivas, pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste.
5) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de a praticar.

Tais expressões, gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, além de objectivamente ofensivas, pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de a praticar.

Razão pela qual, terá o arguido de ser punido pela prática de tais factos uma vez que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito pelo qual o arguido se encontra acusado – um crime de injúrias punido nos termos do disposto no artigo 181º nº 1 todos do Código Penal.

*

     III – Fundamentação de Direito 

     a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

       b) A duas principais questões a apreciar nesta instância de recurso, prendem-se em saber (i) se sentença padece de vício de nulidade insanável por não ter sido rejeitada a acusação particular, e (ii) se as expressões proferidas são susceptiveis de se subsumir na prática de crime de injúrias, defendendo o recorrente que as mesmas não assumem relevância penal.

       c)   Relativamente à primeira questão, defende então o recorrente que a acusação particular deveria ter sido rejeitada, por esta peça processual não integrar todos os elementos subjectivos.

         Neste campo, Ex Procurador do Ministério Público junto a este Tribunal da Relação, citando o Ac TRE de 10-12-2009 (processo n.º 17/07.4GBORQ.E1)  defende que  não se encontrando prevista no art. 119º do CPP, a nulidade de acusação é sanável, pelo que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 311º nº1 ou no art. 338º nº1, ambos do C.P.P., sendo que no caso  o arguido deduziu a alegada nulidade da acusação apenas na audiência de discussão e julgamento logo depois de esgotado o prazo de dez dias, contados sobre a data da notificação da acusação, que o art.º 105º.1 do CPP lhe concedia para o efeito, estando assim vedado suscitar tal  vício.

             Diga.se que esta questão divide a jurisprudência, já que por exemplo o Ac. do TRC de 22-5-2013 (proc  n.º 368/07.8TALRA.C1),  defende que, face  ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.

            Não cuidaremos neste aresto de apreciar esta questão, uma vez que ainda que se considerasse que a nulidade da acusação não poderia ser invocada, por se mostrar sanada – como defende o Ministério Público junto a este Tribunal da Relação e alguma jurisprudência – atendendo à natureza do vício imputado à sentença – a falta factos que permitam integrar os elementos subjectivos do tipo – sempre seria em sede de sentença julgada  improcedente a acusação, com a consequente absolvição do arguido.

           d) Vejamos então se os factos constantes da sentença contêm os elementos subjectivos do tipo que o recorrente aponta como omissos. Recorde-se que na sua conclusão C) o recorrente considera que a acusação particular (e consequentemente a sentença) nada refere “quanto ao dolo, tipo de dolo, quantificação ou qualificação dos elementos volitivos do tipo de culpa”.

       Lida a acusação particular, lê-se que  (…) 4 - Tais expressões (…) pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste (…),  e em 5 que “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de a praticar” (factos esses considerados provados na decisão recorrida, sob os mesmos n.ºs 4 e 5.).
         Daqui resulta o preenchimento do elemento volitivo do dolo; o arguido com as expressões proferida pretendia atingir a pessoa do assistente, assim se revelando a vontade de realizar um ilícito-típico, o que ai reforçado pela expressão “agiu voluntariamente”, configurando a decisão do agente em realizar o tipo de ilícito (no caso por acção).
         Quanto ao tipo de dolo, a nossa lei não exige que se qualifique na acusação o dolo, mas apenas que os factos permitam configurar uma das suas formas previstas no art 14º. No caso, a referida expressão “pretendiam atingir voluntariamente” configura uma situação de dolo direto.
            Em suma, constata-se que os factos provados considerados na decisão recorrida – que reflectem sem qualquer acrescento ou alteração os factos narrados na acusação particular – permitem integrar o elemento subjetivo do tipo na sua dimensão volitiva, sendo assim nesta aporte improcedente o recurso.

         

           e) Resta apreciar a segunda questão, cabendo então avaliar se se as expressões proferidas são susceptíveis de se subsumir na prática de crime de injúrias, defendendo o recorrente que as mesmas não assumem relevância penal.

            Como referem Leal-Henriques e Simas Santos (Cód. Penal anotado, anotação ao artigo 181º), “A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação. A injúria é mais do que isso, e quando se pune um acto injurioso não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração”.

           No acórdão da Relação de Guimarães de 22-01-2018, proferido no processo n.º 154/15.1GAPCR.G1 (www.dgsi.pt) pode ler-se que «O tipo legal previsto no art. 181º do C. Penal (crime de injúria), assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), sendo indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, de modo apreciar se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada, quer no valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer na própria reputação ou consideração exterior, no patamar mínimo exigível de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao estado de direito».

         E no Ac. do TRL, de 12/09/2019, (processo n.º 288/18.0T9LRS.L1-9) “No crime de injúrias, o direito penal não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidade do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidade morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros, sendo ainda de frisar que na avaliação do preenchimento do tipo de crime de injúria não basta a consideração das palavras e expressões proferidas: é preciso situá-las no enquadramento preciso em que foram ditas.

       f)  No caso, a única expressão considerada injuriosa pela decisão recorrida, é o arguido dirigir-se ao assistente dizendo “Você é um mau pai”, a qual a decisão recorrida, de forma algo lacónica e conclusiva considerou como “gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, além de objectivamente ofensivas (…).

       g) Como acima se escreveu, é necessário considerar o contexto em que foi proferida essa expressão:

       O arguido é companheiro da mãe do menor, cujo pai biológico é o assistente, tendo a referida expressão sido foi proferida no momento da entrega do menor por parte da mãe e do arguido, ao pai biológico e aqui assistente.  Como resulta da decisão recorrida na altura existia entre o arguido e a mãe do menor, por um lado, e o assistente por outro, uma grande disputa pelo filho daquela e deste, agravado por uma tensão pré-existente entre arguido e assistente, como sucede muitas vezes em que os pais de uma determinada criança se se separam e constituem novos núcleos familiares. Note-se para ilustrar este contexto, que também o aqui arguido deduziu acusação particular contra o aqui assistente, imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, a qual não foi apreciada em julgamento uma vez essa acusação foi indeferida, por da mesma não constarem todos os elementos típicos do crime de injúria.

       Por outro lado, a expressão “Você é um mau pai” é conclusiva, no sentido que não é apoiada em nenhum facto concreto imputado ao assistente; por exemplo não se disse que era mau pai porque batia a criança, ou abusava dela, circunstâncias em que essas expressões poderiam ser consideradas como claramente ofensivas; é um mero juízo de valor, desgarrado de qualquer factualidade concreta.

         Acresce ainda, que tudo sugere que a afirmação de que o assistente era um mau pai, parece surgir numa tentativa de defesa da criança e dos seus interesses, com a qual o arguido terá criado laços emocionais.

         Considere-se ainda, que o conceito de bom ou mau pai, assume diversas dimensões de pessoa para pessoa, não sendo sequer unívoco para as ciências da educação; assim, por exemplo, para alguns, um bom pai pode ser aquele que pauta a educação do filho com maior severidade ou rigor, enquanto para outros o bom pai será aquele que prefere uma educação mais liberal, concedendo maior autonomia ao menor.  O mesmo é dizer que fossem quais fossem os motivos que conduziram ao arguido a apelidar o assistente como “mau pai” (como se disse, tal não resulta dos factos), outra pessoa poderia avaliar, com base nesses mesmas circunstâncias, o assistente como “bom pai”, ao contrário por exemplo do que aconteceria se tivesse chamado “chulo”, uma vez que objectivamente, com ela se imputa um comportamento e um modo de vida que constitui crime.

         

       h) Tudo ponderado, não nos parece que a expressão “Você é mau pai”, logre atingir um patamar mínimo de dignidade ético-penal que justifique o desencadear de uma reacção do Estado mediante a aplicação de uma pena.  A referida expressão proferida é seguramente desagradável e até incomodativa, mas foi proferida enquanto juízo de valor, conclusivamente, de forma isolada (isto é, sem qualquer explicação para a conclusão que contém), no assinalado contexto de família alargada (na perspectiva do menor), em que frequentemente, e até quase naturalmente, surgem tensões e discordâncias sobre a melhor forma de educar uma criança; aquela expressão pode ser enquadrável numa acesa e desagradável discussão sobe a melhor forma de educar uma criança, disputa mantida entre o pai biológico e o companheiro da mãe, com a qual o arguido partilhará, ao menos parcialmente  a responsabilidade pela educação da criança.

       A referida expressão revela desarmonia, diferendo, falta de civilidade, e no limite até alguma agressividade, mas não atinge o patamar da imputação gratuita de um comportamento parental desonroso para com o assistente.

       Recorde-se que o artigo 181º do Cód. Penal tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre; ainda que o assistente tenha ficado compreensivelmente incomodado e magoado relativamente à forma como o arguido se lhe dirigiu, não podemos concluir - especialmente face ao assinalado contexto “familiar” - que a honra da assistente foi atingida com a produção das mesmas expressões.

       i) A nossa jurisprudência tem de forma consistente defendido o princípio da intervenção mínima do direito penal  de forma a afastar a punibilidade de expressões que, numa primeira leitura, qualquer pessoa apelidaria de insultuosas:  As expressões “mal formado civicamente” (Ac. do TRC, de 16/5/2012, proc. n.º 1985/10.4TACBR.C1),  “vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu” (Ac. do TRG, de 17/2/2014, proc. n.º 1500/10.0GBGMR.G1),  «invejosa» e «comilona» (Ac. da RG, de 23/2/2015, proc. n.º 218/12.3TAPRG.G1), “sacana” (Ac. da RC, de 23/5/2012, proc. n.º 241/10.2GAANS.C1),  ou "bêbedo" Ac. do TRP, de 20/4/2016, proc. n.º 1171/13.1GAMAI.P1), face ao contexto em que foram proferidas, não foram consideradas como  assumindo um carácter suficientemente ofensivo da honra e consideração que permita a sua censura penal.

            Algumas das expressões assinaladas, apreciadas por aqueles arestos, poderão dividir opiniões, mas serve a presente resenha para ilustrar que as palavras em causa nos presentes autos está ainda longe de penetrar naquele círculo de inviolabilidade dos direitos de personalidade e que poderia desencadear uma reacção penal.; A expressão “Você é um mau pai”  poderá até ser materialmente injusta, e seguramente revela o arguido como tendo uma personalidade desrespeitosa, mal-educada, pouco cortês, mas não ultrapassa o patamar de simples expressões azedas, acintosas, trocadas entre dois interessados na boa educação de uma criança,  não chegando ao conteúdo ofensivo da honra e consideração do assistente que justificaria a reacção penal; a referida expressão ainda se mantém dentro de um padrão de normalidade familiar/social.

             j) O recurso deve assim proceder.

             A assinalada atipicidade penal arrasta consigo a condenação no pedido de indemnização civil em que o arguido também tinha sido condenado.

 


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       IV- Dispositivo

       Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente o recurso interposto por AA, e consequentemente absolvê-lo da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 181º nº 1 do Código Penal, absolvendo-o ainda da condenação no pagamento ao demandante civil da quantia de € 250,00.

Sem custas.

Coimbra, 18 de Maio de 2022

João Novais (Relator)

José Eduardo Martins (Adjunto)

Alberto Mira (Presidente da Secção)