DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
DECISÃO POR DESPACHO JUDICIAL
DECLARAÇÃO DE NÃO OPOSIÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

I – O tribunal decide contra legem, com violação dos direitos de audição e de defesa do arguido, e contra o princípio da confiança, uns e outro emanados da CRP, quando, em processo contra-ordenacional, havendo impugnação da decisão da autoridade administrativa, dispensa a realização da audiência de julgamento e prolata a decisão de mérito através de despacho, sem apurar cabalmente a matéria invocada pelo recorrente, atribuindo ao silêncio daquele efeito cominatório de declaração de não oposição à decisão pela referida forma.
II – A decisão assim proferida constitui nulidade insanável, prevista no artigo 119.º, alínea c), do CPP.

Texto Integral



Acordam, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. A sentença proferida em 24 de novembro de 2021 manteve a decisão proferida pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (INCF) que condenou o arguido, AA pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4.º e 15.º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 96/2013, de 19 de julho, na coima de 2 500,00€.

2. Inconformado com esta condenação, impugna-o o Arguido, com as conclusões que seguem:

I. A decisão recorrida. indeferiu a questão prévia. invocada pelo arguido em sede de impugnação judicial sem fazer referência à promoção do MP. que promoveu a suspensão como resulta de fls. 45 de 276 desde a data do pedido e até à decisão definitiva (Cf. art. 7 2, n.ºs 2, 3 e 4 do C. P. Penal, aplicável ex vi art. 32Q do RGCO)."

II. O recorrente não concorda quando é referido que "a validade do ato administrativo que determinou a notificação do recorrente para proceder à reconstituição da situação anterior em nada contende com a sua responsabilidade contra-ordenacional"

 III. A decisão administrativa impugnada teve por origem a instauração de processo de contra-ordenação pelos factos descritos no auto de notícia, e que, a final, aplicou ao arguido uma coima no montante de 62.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e na obrigação da reconstituição da situação anterior nos termos previstos no artigo 13 Q do DL 96/2013 de 19/07, vide fls. 262 e que tal decisão se torna exequível se não for judicialmente impugnada, vide fls. 262.e fls. 272, onde se refere que "se propõe que a DECF acompanhe a situação para efeitos do previsto no artigo 13 Q e 14. Q do decreto lei 96/2013, ou seja a obrigação da reconstituição da situação anterior.

IV. Ora, como resulta da certidão junta pelo arguido, fls. 53 de 276 e seguintes, este interpôs contra o ICNF IP - Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, acção que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob o n. 0 190/20...., que tem por objecto o acto da entidade que impôs ao recorrente a obrigação de proceder, num determinado prazo, ao arranque dos eucaliptos, reconstituindo a situação anterior, e, como, resulta dos factos provados em 1. 0 da douta sentença junta com a certidão, o auto de noticia ali referido. levantado a 14/6/2019. e os factos neles constantes. é o mesmo que originou o presente processo de contra-ordenação a cuja referência se faz menção na fundamentação da douta sentença recorrida.

V. Hipoteticamente, transitando em julgado a sentença recorrida, que manteve a decisão da autoridade administrativa e tornando-se essa decisão exequível (por via da sentença), resultará que o ICNF pode, de imediato na sequência da sentença recorrida, notificar o arguido para reconstituir a situação anterior, nos termos do artigo 13. Q do DL 96/2013 de 19/07 e cuja decisão corre termos no TribunaI Administrativo de ... pode ser diversa (que já existe em 1. 2 instância) que não determina essa obrigação.

VI. De tudo o exposto, resulta que, podendo haver um mesmo resultado, (a ordem/obrigação de reconstituição da situação anterior) por via da sentença recorrida, quando se encontra em discussão o mesmo nos tribunais administrativos e fiscais, é evidente a existência de causa prejudicial, entre os presentes autos e os que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob o n. 2 190/20...., pelo que a sentença recorrida violou o n. 2 2 do artigo 7. 2 do CPP e ainda o n.º 3 do citado artigo ao não ter deferido a promoção do MP. titular da acção penal. que promoveu a suspensão do processo.

VII. Ainda que assim não fosse, com o devido respeito, no entendimento do recorrente, sempre deverá ser revogada a douta sentença recorrida pelos motivos infra indicados, atento os factos dados como provados pelo tribunal recorrido, que aqui se dão por integralmente reproduzidos assim como a fundamentação para a consideração dos mesmos como provados.

 VIII. Analisando a sentença recorrida, revelou-se pertinente, para a definição da matéria de facto dada como provada, o auto de notícia, fazendo fé em juízo até prova em contrário.

IX. Entende o recorrente que existe erro notório na apreciação da prova, assim como o tribunal de recurso tem o dever de conhecer dos vícios previstos no artigo 410. n.º 2 do CPP, desde que o vício resulte da decisão recorrida, por sí só ou conjugada com as regras da experiência comum.

X. Verifica-se que da parca fundamentação factual do tribunal recorrido assumiu papel de relevo probatório o auto de notícia em si considerado e, no cerne da condenação do arguido esteve uma interpretação legal que valorou como uma presunção iuris tantum o acervo de factos que constavam do auto de notícia e apenas porque lá constavam, uma presunção de veracidade dos factos constantes do auto de notícia, o que conduziu à condenação do arguido, o que viola entre outros, o princípio da presunção de inocência previsto no artigo 32. g da CRP.

XI. O Código de processo penal é direito subsidiário da matéria contra-ordenacional, e no entendimento do recorrente o código de processo penal não contém nenhuma norma que permita a operação tomada pelo tribunal recorrido em sede de facto e de subsunção jurídica.

 XII. O artigo 169. Q do CPP que define o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados não engloba o auto de notícia, pelo que, a aplicabilidade do artigo 169. Q do CPP, ou o artigo 363. 9 do CC e demais artigos do CC invocados na douta sentença, ao auto de notícia é uma forma de revogar o artigo 127. 0 do CPP e impor- substituindo o princípio do acusatório- o princípio do inquisitório em processo penal e impingir uma forma tabelada de apreciação probatória.

XIII. O artigo 169º do CPP existe para adequar a apreciação dos documentos autênticos e autenticados, que são apresentados no processo penal, ao princípio da livre apreciação da prova, assim se evitando que tais documentos sejam apreciados em processo penal segundo as regras civilísticas, o que tornaria formal a apreciação probatória e limitaria, de forma inadmissível, o conhecimento dos factos em processo penal, pelo que o valor probatório do auto de notícia é, simplesmente apreciado nos termos do artigo 127. Q do CPP.

XIV. O arguido negou em sede de impugnação judicial a prática da infracção, e, no caso concreto, o tribunal recorrido presumiu factos, ilicitude e culpa com base no auto de notícia quando nenhuma norma o autoriza a inverter o ónus probatório.

XV. 0 tribunal recorrido ao interpretar o auto de notícia como fazendo " fé em juízo " até prova em contrário e presumiu a veracidade dos factos até que o arguido apresentasse contra prova da não prática desses factos, ou seja, operou uma presunção iuris tantum, isso reflecte-se na apreciação probatória como " erro na apreciação da prova, vício de facto previsto no artigo 410.º n. º 2 do CPP, aplicável por remissão do artigo 41. g do RGCO.

XVI. Assim sendo, no entendimento do recorrente, têm que que ser dados como não provados os factos que não podem ser provados por documentos, nomeadamente, os factos constantes da douta sentença recorrida que dão como provado a propriedade e área do prédio referido em 1. dos factos provados assim como o ponto 3. ao dar como provado que o recorrente atuou de forma consciente e deliberada, com intenção de praticar uma infração, pois bem sabia que para efetuar qualquer plantação, com espécies florestais de rápido crescimento, carecia de autorização do ICNF, não possuindo essa autorização.

XVII. Dirá ainda o recorrente, que a decisão administrativa de aplicação de coima, impugnada pelo recorrido, fundou a alegada falta de autorização prévia pelo facto de a plantação se situar numa ZIF, vide factos provados da decisão da autoridade administrativa a fls. 251 de 276, ao contrário da sentença recorrida que nada refere sobre a alegada violação da plantação em área abrangida por ZIF.

XVIII. Como bem explanado no saneador sentença da certidão judicial em lado nenhum se infere que o aqui recorrente tenha violado o que dispõe o ZIF de Almaceda, vide fls. 86 de 276 e seguintes que aqui se dão por integralmente reproduzidas, transcrevendo-se o seguinte trecho:

" ...Por outro lado, não se pode dar como demonstrado que o A. violou o Plano de Gestão Florestal, POIS este Plano prevê parcelas para operações silvícolas e não se sabe em que parcelas estavam plantados os eucaliptos ou se estes foram plantados em todas as parcelas, pois tal não é referido pelo Réu deforma clara”.

XIX. Resultando ainda, pelo exposto, que a decisão administrativa de aplicação de coima padecia e padece de nulidade ao imputar uma plantação ilegal, mas sendo omissa quanto aos factos donde provém essa ilegalidade, limitando-se a decisão a remeter para normas legais e omissa no que concerne ao dolo do recorrente, padecendo igualmente de nulidade, nomeadamente ao não imputar os concretos factos que determinam a violação do plano de gestão florestal da área abrangida pela ZIF e ainda que o arguido tivesse conhecimento da proibição da plantação de eucaliptos no caso concreto, e ainda assim, se tenha determinado à sua plantação, sem prévia autorização pelo ICNF IP, uma vez que o recorrente limitou-se tão só à renovação e repovoamento das plantas que já existiam, sempre tendo o recorrente actuado no pressuposto que não violava qualquer disposição legal.

XX. Outrossim, a douta sentença recorrida devia ter conhecido as nulidades apontadas à decisão administrativa de aplicação de coima, ao invés de as negar e indeferir, sendo totalmente omissa a fundamentação da sentença recorrida quanto às nulidades invocadas, limitando-se conclusivamente a concordar por chancela" remetendo em bloco para a decisão administrativa de aplicação de coima.

XXI. Termos em que deverá revogada a douta sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.

3. O Ministério Público, em primeira e nesta instância, defende a manutenção da sentença recorrida
4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos legais, nada obstando ao conhecimento de mérito do recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância julgou provados os seguintes factos:

O Tribunal, com relevo para a boa decisão da causa, julga provados os seguintes factos:

1) O recorrente efetuou trabalhos de mobilização do solo e plantação de eucaliptos, em data não concretamente apurada de 2019, mas anterior a 14.06.2019, no seu terreno sito com as coordenadas ..., da freguesia ..., concelho ..., com 10 hectares.

2) O recorrente deveria ter solicitado autorização prévia ao ICNF e aguardar que lhe fosse concedida autorização, o que não fez.

3) O recorrente atuou de forma consciente e deliberada, com intenção de praticar uma infração, pois bem sabia que para efetuar qualquer plantação, com espécies florestais de rápido crescimento, carecia de autorização do ICNF, não possuindo essa autorização.

III. QUESTÕES A DECIDIR

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

1.Questão Prejudicial;

2. Nulidade, por violação do disposto no artigo 64.º, n.º 2, do RGCO e omissão de pronúncia;

3. Erro notório na apreciação da prova.

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Questão Prejudicial  

Estando pendente uma acção administrativa instaurada pelo arguido no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., com vista à anulação da decisão que tem por base os factos constantes do auto de noticia, defende o Recorrente que estamos perante uma questão prejudicial relativamente à contra-ordenação, objecto destes autos, com fundamento no artigo 7.º, do Código Penal.

Em causa está a decisão proferida pelo Senhor Director do Departamento Regional de Gestão e Valorização da Floresta do …, que, por oficio datado de 14 de janeiro de 2020, ordenou a notificação do Recorrente, nos termos do artigo 13.º n.º 1, a), do Decreto-Lei n.º 96/2013, para, independentemente da responsabilidade contra-ordenacional que ao caso couber, proceder ao arranque das plantas instaladas ilegalmente.

Tal decisão considerou os factos ocorridos no dia 14 de junho de 2019, em que o arguido tinha plantados eucaliptos num terreno de sua propriedade abrangido pela área do plano de gestão florestal ZIF …, sem a devida autorização prévia do INCF 

Estes mesmos factos fundamentaram a condenação do arguido pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida no artigo 15.º do citado artigo 96/2013, na coima de 2 500€.

Vejamos.

Como é sabido, vigora no ordenamento jurídico português o princípio da suficiência do processo penal, enunciado no artigo 7.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual, o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.

Consagra-se, assim, a orientação de que a jurisdição penal pode julgar todas as questões prejudicais de efeitos não penais e a de que a acção penal é exercida e julgada independentemente de quaisquer outras acções. No processo penal resolvem-se todas as questões que interessem à decisão da causa, seja qual for a sua natureza, salvo nos casos exceptuados na lei. Assim as questões penais são sempre prejudiciais relativamente a questões de outra natureza e não pode fazer-se a união de duas acções na jurisdição não penal (Cavaleiro Ferreira, Curso de Direito Penal, volume III, página 64-65).

Porém, o principio da suficiência do processo penal não é absoluto, como resulta do n.º 2, do citado artigo 7.º e diploma, ao estabelecer que, quando, para se reconhecer a existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida a questão no tribunal competente.

Ou seja, admite o legislador a possibilidade do tribunal de, em determinadas situações, suspender o andamento do processo penal e devolver o conhecimento da questão prejudicial ao tribunal que normalmente é o competente.

A acção penal fica, assim, dependente da decisão que vier a ser proferida sobre a questão prejudicial.

As decisões que se pronunciam acerca das questões não penais não possuem, por regra, autoridade de caso julgado no processo penal [cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de maio de 2001, processo n.º 728/2000].

Como explica Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, página 72), «baseia-se esta orientação na independência das duas jurisdições e na prevalência da penal. O direito processual penal demanda a verdade material, que se pode opor à verdade formal, muitas vezes estabelecida no processo civil. Este está mais na disponibilidade das partes; aqui a decisão pode ser tomada por limites formais de investigação, v.g. falta de contestação, o que de modo algum se compadece com o principio fundamental da demanda da verdade material que comanda o processo penal»

No nosso caso, seja qual for a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal ..., mostra-se irrelevante para a verificação da contra-ordenação imputada ao Recorrente.

Ou seja, ainda que o arguido obtenha ganho de causa e seja declarada nula a notificação do Recorrente para arrancar os eucaliptos com vista repor o terreno no estado anterior assume natureza diferente, tal decisão não o ilibam da conduta jurídica contra-ordenacional que lhe é imputada.

O arguido foi condenado pela prática de contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 15º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico aplicável às Acções de Arborização e Rearborização do território nacional (RJAA), aprovado pelo Decreto Lei n.º 96/2013, de 19 de julho, na versão dada pelo Decreto Lei n.º 77/2017, de 17 de agosto.

O RJAA visa, além do mais, a «simplificação e atualização do quadro legislativo incidente sobre as arborizações e rearborizações de cariz florestal, concentrando num único diploma o seu regime jurídico, em especial o procedimento de autorização e o quadro sancionatório aplicável, pretendendo, ainda,  instituir um sistema geral de controlo, avaliação e informação permanentes das acções de arborização e de rearborização com espécies florestais que não visem finalidades estritamente agrícolas» (Preâmbulo).

A reconstituição da situação anterior nas ações de arborização ou rearborização pode ser determinada nas circunstâncias enunciadas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 13.º, do RJAA, a saber:

a) Não foram autorizadas ou, quando aplicável, não objeto de comunicação prévia válida;

b) Realizadas em desconformidade com as autorizações concedidas ao abrigo do presente decreto-lei ou das condicionantes impostas; e

c) Realizadas em desconformidade com comunicação prévia apresentada nos termos do presente decreto-lei.

A reconstituição anterior segue um regime processual próprio e diferenciado do processo contra-ordenacional.

Assim, a decisão de reconstituição da situação anterior é proferida no prazo de um ano a contar do seu conhecimento, por parte do ICNF, I.P.  (artigo 13.º, n.º 2)

Caso os proprietários, arrendatários e outros titulares de direitos reais ou contratuais sobre os terrenos, não procedam, dentro do prazo fixado, à reconstituição da situação anterior à operação efetuada, o ICNF, I.P., pode substituir-se-lhes na sua execução, correndo por conta daqueles os custos inerentes. (artigo 13.º, n.º 3).

Em casos devidamente fundamentados, sempre que o ICNF, I.P., considere não se justificar a reconstituição da situação anterior, pode sujeitar os destinatários à apresentação de programa de recuperação, nos termos do artigo seguinte. (artigo 13.º, n.º 4)

Em caso de falta de pagamento, as importâncias referidas no n.º 3 são cobradas mediante processo de execução fiscal, que segue, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 148.º e seguintes do Código do Procedimento e de Processo Tributário, constituindo a nota de despesas título executivo bastante. (artigo 13.º, n.º 5).

A reconstituição da situação anterior nas ações de arborização ou rearborização pode ser determinada, independentemente da responsabilidade contra-ordenacional de qualquer dos agentes envolvidos, o ICNF, I. P, como consagra expressamente o artigo 13.º, n.º 1, primeira parte do RJAA.

No que concerne às contra-ordenações, preceitua o artigo 15.º, nº 1, alínea a) do RJAA, que «a realização de ações de arborização ou rearborização com espécies florestais, sem autorização prévia, salvo quando dela dispensados nos termos dos artigos 5.º e 6.º; constitui contra-ordenação punível com coima entre 1 000,00 EUR e 3 740,98 EUR.».

Quer isto dizer, a mesma situação facto, como no caso, pode fazer incorrer o responsável em duas sanções cumulativas: a administrativa e a contra-ordenação.

Aliás, esta foi a posição assumida na sentença já proferida no processo administrativo n.º 190/20.... instaurado pelo aqui Recorrente, onde se consigna:

«Por último, é verdade que mesmo que o A. trouxesse ao procedimento em sede de audiência prévia elementos documentais e requeresse que se realizassem outras diligências que demonstrassem que não houve violação do Plano de Gestão Florestal (…), ainda assim, de facto, teria de haver uma autorização prévia (cf. art. 4.º, n.º 1, al. f) do Decreto-Lei n.º 96/2013).

Porém, esta falta de autorização poderia não implicar uma decisão que impusesse ao A. a reconstituição da situação anterior e o arranque da plantação se se considerar, depois da participação do A. no procedimento, que a plantação de eucaliptos seria de autorizar. De facto, o art. 13.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 96/2013 diz que o Réu pode determinar a reconstituição, mas este artigo não determina que se a plantação estiver em conformidade com a lei o Réu não poderá não determinar o arranque da plantação. E pode, ainda, haver lugar a um plano de recuperação, nos termos do disposto no n.º 5 do art. 13.º deste diploma. E isto, obviamente, sem prejuízo e independentemente da responsabilidade contra-ordenacional que possa caber ao A. por não ter pedido autorização prévia, questão que não cabe, aqui, apreciar (art. 15.º, n.º 1, al. a))”.

A decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal ... não tem, pois, nenhuma influência na decisão de contra-ordenação, sendo, por isso, inútil para a apreciação do objecto dos presentes autos, não se afigurando como causa prejudicial à definição da contra-ordenação imputada ao Recorrente, o que conduz à improcedência deste segmento do Recurso.

2. A declaração de não oposição aludida no artigo 64.º, n.º 2, do RGCO

O processo de contra-ordenação iniciou-se com o auto de noticia de fls. 3 a 6, elaborado pela Guarda Nacional Republicana, que na acção de patrulhamento, realizada no dia 14 de junho de 2019, verificou a «existência de uma plantação de eucaliptos, a qual pelo tamanho das árvores, tinha sido colocada há pouco tempo».

No mesmo auto de noticia, não assinado pelo arguido, descrevem-se as declarações que este prestou perante o autuante.

Finda a instrução, veio o arguido a ser condenado na coima de 2 500,00€, pela prática de uma contra-ordenação dolosa prevista e punida nos artigos 4.º, e 15.º, n.º 1, alínea a), do RJAA.

Desta decisão, recorre o arguido, apresentando a impugnação judicial, estruturando a sua defesa em 3 partes.

No primeiro suscita questões prévias e nulidades.

Na segunda, admite ter renovado eucaliptos já existentes no terreno, mas nega a prática dos factos materiais constantes na decisão administrativa, como sejam, área da plantação de eucaliptos é de 10 m2; a zona plantada está abrangida pela área Plano de Gestão Florestal da ZIF e a actuação com dolo.

Na terceira e última alega que a plantação dos eucaliptos não se enquadra na previsão do artigo 3.º da Lei 96/2013, não sendo, por isso, proibido plantar eucaliptos no terreno, nem necessário solicitar ao ICNF, autorização prévia para o fazer.

Apresentada em juízo pelo Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho:

«Tendo em consideração o alegado pelo recorrente em sede de impugnação judicial e o disposto no art. 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 96/2013, de 19 de julho, notifique o recorrente e abra vista ao Ministério Público a fim de declararem se se opõem a que seja proferida decisão por mero despacho, nos termos do art. 64.º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro».

Este despacho foi notificado o recorrente que nada disse, seguindo-se-lhe, imediatamente a decisão final, ora recorrida.

Conhecidos os factos, debrucemo-nos sobre o direito.   

O processo de contra-ordenações previstas e punidas pelo RJAA é regulado, em primeira linha, pelas regras próprias do RJAA. Subsidiariamente, é-lhe aplicável o Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto Lei nº 433/82, de 27 de outubro, por força do disposto no artigo 15.º, n.º 4, do RJAA; e   sempre que o contrário não resulte do RGCO, são aplicáveis os preceitos reguladores do processo penal devidamente adaptados. (cf. artigo 41.º, n.º 1, do RGCO). 

Nos processos de contra-ordenação, o acto pelo qual o Ministério Público junto do tribunal faz os autos presentes ao juiz equivale à acusação (artigo 62.º n.º 1 do RGCO).

O artigo 65.º, do RGCO (ex-vi artigo 15.º, n.º 4, do RJAA) estatui:

Ao aceitar o recurso o juiz marca a audiência, salvo o caso referido no n.º 2 do artigo anterior.

O preceito anterior, Artigo 64.º, dispõe:

1. O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

2. O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.

3. O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.

4. Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.

5. Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.

Daqui resulta que, o processo de contra-ordenação, contempla a regra geral da realização da audiência de julgamento, da qual exceptua a decisão por despacho nos termos dos artigos 64.º, n.º 2 e 65.º, acima transcritos.

A decisão por simples despacho, enquanto excepção, depende da verificação de dois pressupostos cumulativos: a) a desnecessidade de audiência de julgamento e a não oposição do arguido.

Neste sentido, pronunciou-se António Beça Pereira:

«Da conjugação coordenada copulativa e utilizada neste n.º 2, resulta, claramente, que estamos perante dois requisitos cumulativos, a saber: 1.º O juiz considera desnecessária a realização da audiência de julgamento; 2.º O arguido e o Ministério Público não se opõem à decisão do recurso por despacho» - Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 7.ª Edição, Almedina, pág. 134.

Também, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral consideram como «adquirido que a decisão do recurso da entidade administrativa apenas se pode efectuar através de despacho desde que, para além do juízo nesse sentido formulado pelo julgador e da não oposição do M.º P.º e do arguido, não exista prova cujos respectivos meios de produção apenas tenham a possibilidade de ser contraditados em sede de audiência de julgamento. Significa o exposto que apenas quando o juiz considera adquiridos os factos recolhidos em sede administrativa e que não existem outras provas a produzir é que deverá decidir através de despacho.

(…)

Os casos em que o juiz deverá decidir por despacho terão de ser casos em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova.

Assim, poderá decidir-se por despacho sempre que for de julgar procedente alguma excepção, dilatória … ou peremptória …, ou a questão que é objecto de recurso for apenas de direito ou, quando a questão que é objecto de recurso for de facto, o processo forneça todos os elementos necessários para o seu conhecimento – Notas ao Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, 3.ª Edição, Almedina, págs. 228/230.

Já Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra – Ordenações”, Universidade Católica Editora, págs. 265/266, faz depender a decisão por despacho de três condições cumulativas: (1) o juiz considerar desnecessária a audiência de julgamento; (2) o arguido não se opor à decisão por despacho, nem requerer produção de prova e (3) o MP não se opor à decisão por despacho. Faltando uma das condições, o juiz tem de marcar audiência de julgamento».

No nosso caso, já vimos que tribunal a quo julgou desnecessária a realização da audiência e ordenou a notificação do arguido e do Ministério Público para declararem se se opõem à decisão por mero despacho.

O Ministério Público declarou que não se opunha, enquanto o arguido não se pronunciou sobre a oposição ou não oposição.

A questão que se coloca consiste, assim, em saber, em se, em face da mencionada notificação, o silêncio do arguido equivale a uma declaração de não oposição à decisão por despacho da impugnação judicial, questão controvertida na doutrina e jurisprudência.

Para uns, a oposição exigida pelo n.º 2 do art.º 64.º tem de ser expressa e inequívoca, não podendo ser tida por oposição a circunstância do arguido, na impugnação judicial ter arrolado testemunhas [António Beça Pereira, Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, em anotação ao mencionado art.º 64º].

Neste sentido se pronunciaram, além do mais, o  Acórdão da Relação do Porto de 17 de outubro de 2001 (Relator: Pinto Monteiro), segundo o qual,  ao não se opor a que a decisão no processo de contra-ordenação fosse decidida por despacho, embora tenha indicado testemunhas para prova da sua versão do acidente, entende-se que o arguido prescindiu de sua inquirição, aceitando a matéria de facto dado que não sendo as mesmas ouvidas por não se proceder à audiência não havia possibilidade da sua alteração.

Também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09 de fevereiro de 2009 (Relatora: Isabel Pais Martins) concluiu que, «não obstante no requerimento de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa o arguido indicar prova a produzir em audiência, deve entender-se que não há da sua parte oposição à decisão por despacho se, notificado para dizer se se opõe a essa forma de decisão, nada diz».

E, o Tribunal da Relação de Évora de 11 de outubro de 2011 (Relator: Edgar Valente) considerou que, nas situações em que, o arguido, quando notificado para, querendo, se opor à decisão por simples despacho, nada faz (ou não se opõe expressamente), deve entender-se que prescinde da audição das testemunhas que arrolou, conformando-se com a matéria de facto considerada provada na decisão administrativa.

No sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26 de maio de 2020 – processo n.º 94/18.2T8NIS.E1 – pode ler-se:

Se o arguido for notificado da eventualidade da decisão do recurso por si interposto ser proferida por mero despacho e para vir aos autos, no prazo de 10 dias, dizer se se opõe à decisão por esse formalismo, entendendo-se que nada tem a opor, caso nada diga, é, com o descrito procedimento, conferido ao arguido o ensejo de se opor, com as consequências inerentes, à decisão do recurso por despacho.

Por isso, se o arguido não manifesta oposição à decisão por despacho, quando notificado para o efeito, fá-lo por sua própria opção.

De resto, a oposição a que se refere o nº 2 do art. 64ºdo RGCO é um acto completamente livre da parte do arguido e não carece sequer de ser fundamentada ou justificada.

Nestas condições, o silêncio mantido pelo arguido, na sequência da notificação a que nos vimos referindo, é apto a legitimar a decisão do recurso por mero despacho, com a inevitável preterição da audiência de julgamento e da produção da prova testemunhal por ele oferecida, e tal conclusão não ofende as garantias de defesa do arguido, pois este teve sempre na sua disponibilidade o instrumento processual adequado a «forçar» o Tribunal à realização da audiência, mas não o usou.

Consequentemente, a prolação de decisão sobre o mérito do recurso, independentemente de audiência de julgamento e produção de prova pessoal, não é geradora de nulidade processual.

Para outros, o juiz não pode decidir por despacho, uma vez que deve entender-se que constitui manifestação implícita de oposição o oferecimento de prova que deva ser produzida em audiência [Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações. Anotações ao Regime Geral, página 550].

Assim o decidiram, entre outros,

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de março de 1992 (CJ, ano XVII, tomo II, página 164): «traduz oposição inequivocada arguido a essa forma de apreciação da acusação, a indicação, no requerimento de recurso, de uma ou mais testemunhas para serem ouvidas».

A mesma posição foi tomada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de outubro de 2006 (processo n.º 643695) «traduz oposição à decisão por despacho da impugnação da decisão da autoridade administrativa o facto de o arguido no seu requerimento oferecer prova que se compromete a apresentar na audiência».

Já o Acórdão de 15 de abril de 2015 da Relação do Porto (Relator: Elsa Paixão) concluiu que a «não oposição a que se refere o artº 64º1 RGCO a que a decisão seja proferida por simples despacho deve ser expressa em especial quando o impugnante indica prova a produzir em audiência e o despacho não se pronuncia sobre a irrelevância da prova apresentada para a solução do caso.».

Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de maio 2018 (Relator: José Proença da Costa) considerou que tendo no requerimento de interposição do recurso o arguido apresentado prova testemunhal, deve entender-se que se opõe à decisão por despacho, ainda que sequência da notificação para dizer se se opunha à decisão por despacho se tenha remetido ao silêncio.

Esta orientação tem vindo a ser seguida no Tribunal da Relação de Coimbra.

O Acórdão de 27 de outubro de 2010 (Relator: Mouraz Lopes) decidiu que o «juiz só pode decidir por simples despacho nos termos do artigo 64º n º1 do DL 433/82 de 27/10 quando as questões suscitadas no requerimento de impugnação são meramente de direito ou, sendo questões sobre a matéria de facto, a sua apreciação não implique ou dependa da realização de diligências de prova.».

No Acórdão desta Relação de Coimbra de 12 de maio de 2013 (Relatora: Maria José Nogueira)  entendeu-se, não poder o julgador, sem ofensa do contraditório, logo, das garantias de defesa, extrair do silêncio do arguido a sua não oposição à decisão por despacho da impugnação judicial da decisão administrativa, em casos, como o dos autos, em que: (i) foram negados os factos; foi apresentada, a par de prova documental, prova testemunhal; o despacho proferido (o recorrido) não deixa antever, minimamente, os motivos da irrelevância da prova arrolada; o despacho, para os efeitos referidos na parte final do artigo 64.º, n.º 2, do RGCO, foi proferido nos seguintes termos: «notifique o arguido e o MP para (…) declararem se se opõem ou não a que seja proferida decisão naqueles termos».

De igual modo, o Acórdão de 7 de outubro de 2015 (Relatora: Pilar Oliveira) defendeu que o julgador não pode, sem ofensa dos princípios do contraditório e de confiança decorrentes do direito a processo equitativo, logo, das garantias de defesa, extrair do silêncio do arguido a sua não oposição à decisão por despacho, nos termos do disposto no artigo 64.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, quando o recorrente estrutura a sua defesa na impugnação dos factos integradores da contra-ordenação e na objecção de prática de contra-ordenação de menor gravidade em relação à que lhe esta imputada.

Esta orientação foi, ainda, seguida no Acórdão de 13 de dezembro de 2017 e no Acórdão de 16 de maio de 2018, subscritos pela mesma Relatora (Relatora: Isabel Valongo), sumariando este último:

«No caso, verificado nos autos, em que o arguido impugnou a matéria de facto contida na decisão administrativa, solicitou a realização de diligências tidas como relevantes para a sua defesa e arralou testemunhas, a posição silente daquele perante a notificação de despacho judicial proferido, “para em 10 dias, informar nos autos se se opõe a que a decisão final seja proferida sem a realização de audiência de julgamento, com a expressa advertência de que assim se considerará caso nada seja dito no referido prazo”, não corresponde a não oposição (tácita) à decisão por simples despacho, porquanto o despacho acima transcrito não mencionou, como era exigível, no referido contexto, os motivos da irrelevância da prova oferecida pelo contestante».

Quanto a nós comungamos desta opinião.

O artigo 64.º, n.º 2, do RGCO é omisso relativamente à forma que deve revestir a declaração de não oposição resultante da notificação para esse efeito.

A declaração de não oposição é, pela sua própria natureza, um negócio jurídico unilateral, uma manifestação de vontade que pode ser expressa ou tácita.

As noções de declaração expressa ou tácita devem retirar-se a partir das regras gerais enunciadas no artigo 217.º do Código Civil.

É havida como declaração expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam. (artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil).

Quanto à declaração tácita, costuma-se esclarecer que é aquela que se destina em via principal a outro fim, mas a latere permite concluir com bastante segurança uma dada vontade, traduzindo-se num ou vários processos concludentes, mas que têm de ser inequívocos.  

O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz (artigo 217.º, n.º 2, do Código Civil).

O silêncio só vale como declaração, quando esse valor lhe for atribuído por lei, uso ou convenção (artigo 218.º do Código Civil).

A declaração tácita é, assim, admitida, quando: a) prevista legal e expressamente e, b) se possa deduzir de factos, com toda a probabilidade e segurança, a vontade do declarante.

Estas noções gerais e civilísticas de declaração de vontade expressa ou tácita aplicam-se, subsidiariamente, ao processo de contra-ordenação, sempre que o contrário não resulta do RGCO e devidamente adaptadas. (artigos 31.º do RGCO e artigo 4.º do Código de Processo Penal).

Tanto não significa que se equipare o processo contra-ordenacional ao processo penal, embora seja este, dos processos sancionatórios, o que mais se aproxima daquele, atenta a natureza dos ilícitos que tipifica.

Na verdade,

«Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal, desde logo o princípio da judicialização da instrução consagrado no n.º 4 do artigo 32.º (neste sentido: Acórdão 158/92).

A diferença de "princípios jurídico constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra ordenações" reflete se "no regime processual próprio de cada um desses ilícitos", não exigindo "um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal, inscrevendo se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador", por exemplo, a não atribuição ao assistente (admitindo que a lei consente em processo contra-ordenacional esta figura) de legitimidade para recorrer, legitimidade que o artigo 73.º, n.º 2, do RGCO apenas reconhece ao arguido e ao Ministério Público (Acórdão 344/93).

(…)

No entanto, este Tribunal também tem sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é conciliável com "a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal" (Acórdãos n.º 469/97 e 278/99).

No primeiro acórdão referido acrescentou se que "porventura, um desses princípios, comuns a todos os processos sancionatórios, que mais constrições imporá ao legislador será, desde logo, por direta imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa do arguido, inseridos num desenvolvimento processual em que o princípio do contraditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura acusatória, que não dispositiva, da atuação dos poderes públicos", sublinhando que esses princípios são "imediatamente aplicáveis [...] logo na fase administrativa do processo contra ordenacional, por exigência do n.º 8 [hoje n.º 10] do artigo 32.º da Constituição", não fazendo sentido "aceitar que os mesmos não tenham projeção na fase recursória posterior, que corresponde à jurisdicionalização daquele processo", tendo concluído pela inconstitucionalidade da "norma do artigo 416.º do CPP aplicada ao processo de contra ordenação laboral e aí interpretada em termos de não impor a notificação à arguida do parecer do Ministério Público em que se suscita, pela primeira vez, a questão prévia do não recebimento do recurso por extemporaneidade".» [Acórdão, do Tribunal Constitucional, n.º 659/2006, de 28 de Novembro de 2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt)]. (sublinhado nosso).

A equiparação do silêncio do notificado à declaração tácita de não oposição resulta de uma cominação/advertência, a de que o silêncio do notificado vale como declaração de não oposição à desnecessidade de realização da audiência de julgamento e à aceitação dos factos como constam na decisão administrativa.

Porém, nem o artigo 64.º, n.º 2, do RGCO, nem a notificação ao arguido, contêm tal efeito cominatório, obstando, assim, à valoração do silêncio do recorrente como uma declaração de vontade de não oposição (cf. artigo 218.º, do Código Civil e o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa).

Entendimento contrário pressupõe, mais do que a renúncia do notificado à realização da audiência de julgamento, a aceitação tácita dos factos de que é acusado, que nem a lei nem o despacho notificado contemplam, redundando, em última análise, na admissibilidade da confissão tácita.

Ora, «só em audiência de julgamento é atribuído à confissão, o seu valor especial de meio de prova e mesmo neste caso, fica sujeita ao controle do tribunal sobre o seu carácter livre, a veracidade dos factos confessados» (Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Civil Anotado, II, página 364).

Neste contexto, a preterição da audiência de julgamento, impediria o arguido de se pronunciar-se sobre a veracidade dos “factos confessados tacitamente pelo seu silêncio”, incluindo-os sem mais, no acervo factual provado.

Desta forma, o silêncio do Recorrente equivaleria a uma anunciada e legalmente imposta condenação, violadora do principio da presunção de inocência -, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, devendo ser julgado, com as garantias de defesa -  e do direito de audição e defesa consagrados no artigo 32.º, n.º 2 e n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que o Recorrente delineou a sua defesa, negando a prática dos factos integrantes dos elementos do tipo da contra-ordenação de que é acusado, factos esses que, a serem provados, poderiam conduzir à exclusão ou diminuição da culpa.

E, assim sendo, não se mostra expectável que face à notificação para deduzir oposição à decisão por despacho, o arguido deva entender que se nada disser, o seu silêncio será tido como declaração de não oposição, declaração essa que se traduzirá na aceitação/confissão antecipada dos factos que, por isso, figurarão como provados no despacho final (sem atender à matéria controvertida e à prova indicada), antecipando uma provável condenação.

Tanto mais, que se considerarmos a requerida suspensão do processo em função da questão prejudicial invocada pelo recorrente, a concordância do Ministério Público e a alusão à impugnação judicial como fundamento da desnecessidade de realizar a audiência de julgamento, é razoável supor o deferimento da suspensão deste processo, nos termos peticionados pelo arguido e Ministério Público, sendo este o motivo pelo qual se tornaria desnecessária a realização da audiência de julgamento, com a respectiva produção de prova.

O que já não se mostra expectável é que o juiz prolate decisão final, partindo do principio que o impugnante, com o seu silêncio, renuncia à produção de prova e confessa os factos que anteriormente tinha contestado.   

Ora, como salienta, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99 (apud o Acórdão desta Relação de 7 de outubro de 2015 acima citado):

«Qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) de ser um processo equitativo (due processo of law – conceito importado para o nosso ordenamento jurídico através da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro de valores como a lealdade e a confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transparecem do processo.

Ao dispensar a realização da audiência de julgamento e ao prolatar decisão de mérito,  sem apurar cabalmente a matéria invocada pelo Recorrente, atribuindo ao silêncio daquele efeito cominatório de declaração de não oposição, efeito esse, não consentido por lei -  mesmo que o consentisse, só seria eficaz se o notificado dele tivesse sido previa e expressamente advertido -    o Tribunal a quo decidiu contra legem, com violação dos direitos de audição e de defesa já assinalados,  bem como do principio da confiança emanados da Lei Fundamental.

Dispõe o artigo 119.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, ex vi artigo 64.º, n.º 2 e 41.º do RGCO, por força do artigo 15.º, n.º 4, do RJAA, constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.

A audiência de julgamento constitui, pela própria natureza, o acto processual por excelência, onde se discutem e decidem as questões essenciais para a decisão final, especialmente a matéria de facto.

Retirar ao arguido a possibilidade de, em audiência de discussão e julgamento, produzir a prova que indicou na impugnação judicial com vista a demonstrar a sua razão e de contraditar os factos de que é acusado, deve considerar-se pela sua gravidade de violação dos direitos e princípios do processo penal, uma verdadeira ausência do arguido, quando a lei exigir a respectiva comparência.

A audiência de julgamento não se resume uma diligência que se reputa como essencial   para a descoberta da verdade, antes integra uma fase processual sujeita a um regime próprio, que engloba plúrimas diligências com vista à descoberta da verdade.

Prescindir da realização da audiência do julgamento, sem declaração de não oposição válida, coarta os direitos de audição e defesa do arguido, impedindo-o de estar presente em audiência, por si ou através do seu defensor.

Como vem sendo defendido por alguma jurisprudência, embora nesta norma se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os seus direitos de defesa que a lei e a Constituição da República Portuguesa impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada.

A nosso ver e salvo melhor opinião, a decisão por despacho nos casos em que não tiver sido validamente obtida a não oposição do arguido, impede a presença deste e do seu defensor em audiência de julgamento, e, assim, a nulidade prevista na alínea c) do artigo 119º CPP, ex vi citado artigo 64º, n. º 2 do RGCO. (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de março de 2007, processo n.º 10718/06 - 9ª Secção, acessível em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur.).

Como explica, o Acórdão de 07 de dezembro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa –processo n.º 1214/10.0TBBNV.L1- 3ª Secção, acessível em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur -:

 De harmonia com o disposto no artº 64º, nº2 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, a decisão do recurso por despacho só é possível mediante a verificação cumulativa de dois pressupostos: 1) que o juiz não considere necessária a audiência de julgamento; e 2) que o arguido ou o MP não se oponham a essa forma de decisão.

 A oposição a que a decisão seja proferida por despacho pode ser expressa ou implícita – pode, v.g., inferir-se do facto de ser oferecida prova que deva ser produzida em audiência. No caso de a arguida, no requerimento de interposição do recurso de impugnação, arrolar testemunhas, essa indicação só pode reconduzir-se a uma manifestação de vontade no sentido de ser realizada audiências – o que obsta a que o recurso venha a ser decidido por mero despacho.

No caso de o juiz decidir o recurso por mero despacho, tendo-se o arguido oposto, ainda que implicitamente, a essa forma de decisão, o despacho que assim decide é nulo, sendo essa nulidade insanável – a CRP (artº32º, nº10) reconhece ao arguido, mesmo no processo de contra-ordenação, o direito de audiência e de defesa, pelo que o acto omissivo que postergou esse direito só poderá ser fulminado com a nulidade insanável. Por outro lado, a ‘ausência do arguido’ a que se refere a al. c) do artº 119º do CPP, não se confina à simples ausência física, antes compreende também a ausência processual quando a lei, como é o caso, faz depender a forma da decisão da posição que o arguido venha a tomar.

A nulidade em questão deve ser declarada em qualquer fase do procedimento e tem como consequência a invalidade da decisão recorrida (artº 119º, corpo e 122º, nº1 do CPP). Nessa medida, deve ter-se como assente a oposição da arguida à decisão por mero despacho (artº64º, nº2 do RGCO) e proceder-se à realização da audiência.

Resulta do exposto que o tribunal recorrido, ao decidir, sem realizar a audiência de julgamento, ofendeu os direitos de audição e de defesa, constitui uma nulidade insanável, prevista no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal, de conhecimento oficioso que, nos termos do artigo 122º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 41.º do RGCO que torna inválida a decisão formada.

Termos em que, se impõe a declaração de nulidade da decisão recorrida, aproveitando o segmento decisório relativo à questão prejudicial, uma vez que não depende da realização da audiência de discussão e julgamento (artigo 122.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal).

3. Esta decisão prejudica o conhecimento de todas as demais questões suscitadas pelo Recorrente.

 

V. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que designe data para realização da audiência de julgamento.

Sem tributação.

Coimbra, 18 de Maio de 2022

Alcina da Costa Ribeiro (Relatora)

Alexandra Guiné (Ajunta)

Alberto Mira (Presidente da Secção)